A ideologia do gênero e tutti quanti
É desanimador ouvir sem cessar a palavra « gênero”, cuja significação e emprego tornaram-se fluidos e dispersos, utilizados como sinônimo de “mulher”, de “sexo”, de “sexualidade”. Não é mais uma categoria de análise crítica da realidade binária, mas um utensílio domesticado e sem força. O patriarcado, em um movimento que não é novo nem original, toma as categorias que o ameaçam e as transforma em seu favor. É o caso da expressão « ideologia de gênero », que passou a designar a homossexualidade. A análise da heterossexualidade como meio de coerção e estrutura social de criação do feminino – o diferente – desaparece para dar lugar a um ataque feroz contra a homossexualidade, reforçando desta maneira o “natural” biológico, ligado à procriação. A divisão binária do social fica assim preservada e a palavra « gênero” gera uma áspera disputa para sua exclusão das escolas. No Brasil[i] o debate sobre a inclusão ou não da categoria “gênero” no currículo mínimo das escolas de primeiro e segundo graus, em 2015, tem sido intenso, orientado principalmente pelas pressões religiosas, cujo argumento reside no perigo de naturalizar a homossexualidade entre crianças e adolescentes. A “ideologia de gênero” reduz assim a discussão à polaridade heterossexualidade /homossexualidade. Deste modo as práticas societais que constroem os gêneros são substituídas pelas práticas sexuais no discurso social. Nesta ótica, as questões relativas à divisão binária do social, da inferiorização e dominação do feminino, baseadas no biológico, são desviadas. Esta manobra patriarcal é ainda mais significativa, pois a educação é o ponto crucial para erradicar as representações sociais binárias e a hierarquia sexuada. Esta passagem da análise da construção dos corpos sexuados à “ideologia do gênero” marca o desaparecimento dos feminismos do debate social, para concentrar-se na diversidade das práticas sexuais. O perigo de se questionar o sistema binário heterossexual, que cria, explora e domina as mulheres, é assim afastado. É evidente hoje que a categoria « gênero” perdeu sua função de designar a construção social dos sexos, presa de todas as reivindicações identitárias. Se, por um lado, as feministas utilizam esta palavra para indicar o sexo social, por outro seu uso de maneira acrítica e universal não serve senão a afirmar o sistema binário baseado no sexo. O gênero, enquanto categoria de análise, viu reduzido seu alcance heurístico pois ignora a diversidade das relações humanas no curso da história, já que nada pode provar que o sistema sexo/ gênero tenha sido dominante de maneira a-temporal e universal nas formações sociais ao longo dos milênios. Não me refiro aqui às relações sexuais, mas às relações humanas que não seriam organizadas necessariamente pelos genitais. É esta diversidade que os discursos sociais/ acadêmicos tentam esconder para melhor salvaguardar o binário hierárquico, “natural”, fundado nos órgãos genitais. Assim sendo, o « gênero » cessa de denunciar a naturalização dos corpos, pois se apresenta sempre acoplado ao sexo. Este último funda os valores que outorgam importância desmesurada ao masculino; entretanto, como sublinha Butler, não existe gênero fora de práticas de gênero e finalmente é este que cria o sexo em sua fixidez binária. O sistema sexo/gênero, tal como é empregado atualmente, desvia o objetivo último dos feminismos, isto é, a mudança das relações sociais com a desconstrução do binário heterossexual, instrumento de poder, criador dos corpos e identidades sexuadas. A difusão da categoria “gênero” domesticou-a e dobrou-a à demanda identitária sempre baseada nos genitais e suas representações sociais. Dá-se assim o ressurgir do destino feminino, definido pela procriação e pela sedução, para glória maior do pênis. É desta forma que, sob o beneplácito patriarcal, os “estudos de gênero” foram aceitos na academia e substituíram os estudos feministas, já que seu uso não perturba a ordem patriarcal nem as hierarquias que o apoiam. Descritivos, os estudos de gênero não conseguem descolar da ordem do pai, das narrativas soberanas que, ao cria-lo, instituem um patriarcado universal e “incontornável” em todas as esferas, indo da ciência à religião. Os estudos de gênero não contemplam outras realidades, curvam-se ao sistema sexo/ gênero, constituído na heterossexualidade e desta forma, suas pesquisas não encontram nada a dizer, senão repetir o Mesmo. As análises baseadas no « gênero” insistem sobre o lado relacional das práticas generizadas, o que abre o caminho, nos colóquios e conferencias feministas aos "masculinismos” queixosos ( nós também fomos construídos”) e aos “trans” que pretendem ir além dos limites dos gêneros,. Todavia, os masculinismos esquecem de mencionar a instituição do masculino como modelo e referente da estrutura patriarcal; os transgênero/sexo tentam marcar seu lugar “fora” do sistema, porém apelam ao binário sexual para poder se definir. A desconstrução das estruturas de poder baseadas sobre os corpos sexuados é assim esquecida sob as reivindicações identitária ainda baseadas sobre o sexo. Por outro lado, a força das hierarquias de poder instaladas na anatomo-política que divide o humano em duas categorias é voltada a uma ortopedia do sexo, cujo referente é o binário e a heterossexualidade reprodutiva. O sexo continua a ser central no embate entre o “natural” e a “ideologia de gênero”, ou seja, o homossexual. Ora, os feminismos, a partir de uma afirmação do lugar “mulher” enquanto sujeito, tomaram consciência dos limites desta posição identitária, pois a afirmação de um feminino político continua em um quadro de iteração do binário. A luta pela igualdade, sem dúvida necessária em um primeiro momento, torna-se obsoleta para os objetivos transformadores dos feminismos: a igualdade que supõe uma “diferença” construída, não é mais aceitável, já que depende do referente masculino. Não se é “diferente” senão em relação a alguma coisa ou alguém. E a igualdade nominal não transforma as imagens e representações de um feminino assujeitado. De toda maneira, quem quer ser igual a um homem, referente negativo do humano, cadinho onde fermenta a violência, a crueldade, a ânsia de poder? Portanto, o pertencimento identitário « mulher », mesmo tomado como lugar de fala para afirmar a ação no político, não modifica em profundidade as relações sociais. Para os feminismos, assim, era preciso sacudir os cânones identitários a fim de escapar aos limites impostos ao “ser mulher”. Identidades nômades, então? Não, pois a transferência de uma posição identitária a outra não muda nada à perspectiva binária. O movimento não transforma os esquemas de poder, de hierarquia, de organização do mundo tal como se apresenta. Tereza de Lauretis propôs uma oscilação in e out, entrando e saindo da categoria “mulher” para encontrar outros lugares de resistência. Mas isto não era suficiente para erradicar o binário, pois a identidade social ficava sempre ligada ao sexo ou a sexualidade. Mesmo problema das “identidades fluidas”, vagando entre polos. De fato, se a vida quotidiana exige uma identidade, mudar de gênero não significa nada, pois ainda uma vez, há a submissão ao binário e à importância desmesurada dada ao sexo. A hipersexualização não é senão uma resposta patriarcal aos apelos feministas pela liberdade dos corpos. A reivindicação de corpos livres nos feminismos resultou em um assujeitamento ainda maior aos desejos dos homens, pois a atividade sexual precoce e constante tornou-se sinônimo de liberação. O aborto, por sua vez, continua criminalizado na maioria dos países, pois não interessa ao sistema patriarcal liberar o controle da procriação às mulheres. Assim, em lugar de voltar-se para a construção de si enquanto sujeito político e de ação no social, as jovens se veem ainda em projetos de sedução, de maneirismos, de provocação sempre com cunho sexual o que é reforçado pela mídia. A “liberação” dos costumes tornou-se um novo assujeitamento aos desejos dos machos. Toda uma nova geração busca sua liberdade nos jogos sexuais, nova forma de coerção “livre”. Neste oximoro, nada muda em relação à dominação patriarcal. Enquanto o sexo e a sexualidade estiverem no centro das relações humanas, o patriarcado encontrará a maneira de impor – pelo convencimento ou pela violência - seus grilhões ao feminino, pois disto depende sua própria força. Em uma perspectiva de resistência, sob o pretexto de « desconstruir » o gênero, o que se tem visto nos colóquios, na academia, na web, nos discursos múltiplos do social, é uma nova manifestação de identidades, permeáveis entre sexo e gênero, ao mesmo tempo em que reivindicam sua dispersão. Se a denominação ou o ativismo transgênero, transexual e/ou travesti são performances de um não-conformismo com a imposição social e normativa do sexo, o eixo da questão, entretanto, o mesmo: é em torno do sexo biológico, da sexualidade, da dicotomia heterossexualidade / homossexualidade que se desenvolvem as problemáticas da diversidade. Certas questões quanto à diversidade sustentam o debate ainda no modelo binário, tais como definição de família, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Entretanto, a reivindicação do casamento gay não faz senão reforçar esta instituição fundadora da heterossexualidade; seria necessário dissolvê-la, em vez de nela acomodar outras categorias. Porque teríamos necessidade dos ritos da heterossexualidade para encontrar um lugar no social? A tarefa é transformar o social em suas estruturas e não a elas se acomodar. Desconstruir o gênero não significa instaurar outras normas de sexualidade ou de práticas sexuais, mas reduzir a importância dada ao sexo para transformar as relações sociais. Descontruir o gênero não é apenas a grande orgia de todas as práticas sexuais, a grande festa de acolha a todas as trocas e mudanças corporais. Desconstruir o gênero não é também inserir o “diferente”, o “desviante” nos cânones da normalidade. Desconstruir o gênero é, ao contrário, desmontar a partir do interior o sistema criado pela biopolítica que faz da “diferença” dos sexos o motor do sistema binário sexo/ gênero. Desconstruir o gênero é usar a in-diferença em relação às categorias “normais”, tais como a família, o casamento, a adoção ou procriação. Onde o sexo e a sexualidade permanecem como centrais à vida, identidade, inserção no social, vetores por excelência das relações sociais, a heterossexualidade não deixará de reivindicar seus direitos “naturais”. É nesta perspectiva que se afirma a « ideologia de gênero »: as críticas e análises feministas do social desaparecem sob esta denominação, para dar lugar apenas à dicotomia heterossexual / homossexual, como já assinalei. A subordinação das mulheres retoma sua invisibilidade no quadro onde o “natural” se impõe, pois, de fato, a heterossexualidade é um sistema de dominação e de criação não somente dos gêneros, mas igualmente do sexo. Ou seja, as categorias mulher/homem fundadas sobre os genitais, tornam-se incontornáveis no social e o discurso da diferença não é senão o carimbo que sela o assujeitamento das mulheres. E falo aqui da metade da humanidade, não apenas de grupos minoritários que reivindicam sua inclusão. Já foi sobejamente descrito e analisado o papel da heterossexualidade[ii] na divisão hierárquica das tarefas sociais e do político. Urge, portanto, ultrapassar o estado do genital para se repensar as relações sociais. Transformar não é retomar os mesmos e mudar os lugares ou inserir novos elementos. Transformar é esquecer os caminhos cimentados das normas e seus desvios para criar e percorrer novas trilhas. Mas para além das metáforas e das ficções políticas, fixar uma identidade em um leque mais amplo da sexualidade não muda estritamente nada à importância dada ao sexo, à genitália como marco de valor e poder dado ao masculino. Quer seja o “desviante” que aspira à normalidade ou que reivindica seu desvio em novas “figurações”, ou ainda o “normal” que enraíza seus direitos no “natural”, não vejo hoje grandes mutações nas relações humanas. É ainda o aprisionamento ao sexo, à recusa ou à afirmação do binário e do biológico que desfilam nas relações sociais. Mudar os papéis individuais “mulher/ homem” ao sabor da inspiração do momento não muda nada. Ao contrário. Reinstala o binário. Negar seu pertencimento a um ou outro sexo é algo puramente retórico, já que o sexo se mantém como o eixo da contestação. Grupos que não tem nenhum objetivo comum se formam sempre em relação às sexualidades e identidades: LGBTT[iii], por exemplo, é uma sigla que representa simplesmente a formação de um bloco de resistência ao “normal”, mas a definição de suas partes é a reatualização do sexo e da sexualidade no centro do palco. Em uma perspectiva heurística, somente o desejo de se integrar à sociedade, de uma aceitação enquanto “diverso” poderia reagrupar pessoas que não tem nada em comum. Sobretudo nada a ver com as feministas, com exceção das lesbianas que sempre estiveram presentes nas práticas e teorias feministas, apesar das reticencias heterofeministas. As roupas não transformam um homem em uma mulher. A construção social do masculino, mesmo sob sedas e saltos altos retém seu contorno de arrogância, de intrusão, de violência simbólica ou material em relação às mulheres e às feministas. As performances masculinas em encontros feministas não indicam a performatividade dos papéis, ao contrário, tornam-se caricaturais. O que percebe hoje é um retorno agressivo às figurações identitária. Sobre a transformação de mulheres em homens, pode ser considerada como uma negação do papel subalterno das mulheres ou apenas uma ascensão ao lócus de pode social, o masculino. Os autonomeados “queers” reivindicam a liderança no que diz respeito à diversidade, porém seu projeto de desconstrução de gêneros não abala suas estruturas baseadas no sexo. De fato, a sexualidade persiste no centro da questão e suas teorias não estilhaçam o biopoder do patriarcado. A heterossexualidade permanece ainda o referente ao qual se conecta a “norma” e contra a qual se manifesta o desejo de diversidade. Para onde foi a desconstrução? O “queer” perde sua faculdade demolidora, já que as práticas sociais concretas das subjetivações permanecem em um projeto distante de um quotidiano modelado em poder. De toda forma, originado pelas teorias feministas, o “queer” que pregava o desaparecimento das formas binárias biológicas tornou-se apanágio de grupos de ensaio sexual e / ou de performance identitária sobre o eixo da instabilidade. A performance tomou o lugar da desconstrução da performatividade, pois os corpos transitam em torno do sexo biológico para negá-lo ou afirma-lo. Em que desvão foram abandonados os profundos desejos de dissolver a ordem patriarcal? A categoria « gênero » que fora um instrumento importante para os feminismos, com sua difusão acrítica tornou-se um bazar de banalidades e ponto de resistência do patriarcado. Com efeito, a « ideologia do gênero” transmutou-se uma arma patriarcal para conter toda transformação radical das relações sociais. Se o alvo do binário fundador do “natural” eram anteriormente os feminismos, hoje é a “ideologia do gênero” que se espalha, apoiada sobre a profunda ignorância do conteúdo heurístico da categoria, mas também sobre a percepção da força que poderia ter para solapar as bases do patriarcado “natural”, energia que se perdeu na medida de sua domesticação acadêmica, em uma utilização descritiva, no melhor dos casos. Assim, os feminismos se estilhaçam sob os golpes do « gênero” acrítico, sob as estocadas dos “masculinismos”, sob a intrusão dos transativistas. Se o binário “mulher” / “homem” foi instituído pela noção de « diferença », a diversidade pregada pelos feminismos foi, aos poucos, restringindo-se às práticas sexuais, abandonando o impulso para a transformação radical das estruturas regidas pelo patriarcado, uma vez que o sujeito social é ainda afirmado enquanto sexual pelas práticas de gênero. E o sexual é político. Sua importância desmesurada para categorizar o humano faz parte integrante do poder anatomo-político, alicerce maior do patriarcado. O « gênero » domesticado, desvinculado dos feminismos tornou-se, por conseguinte, sinônimo de homossexualidade e de incitação à desordem, dando origem a polêmicas acerbas. O patriarcado pede sua exclusão das escolas , por dois motivos: por um lado porque a educação é o motor de toda mudança societal, logo é necessário investi-la para reiterar a norma e reinstalar em altos brados a “diferença” dos sexos. As portas da diversidade se fecham assim, mais uma vez, o que incita o ódio e a eliminação dos “desviantes”. Por outro lado, « ideologia do gênero” marca a eliminação dos feminismos dos bancos da escola e dos discursos sociais. De fato, são os feminismos o verdadeiro perigo para o patriarcado, não os grupos homossexuais ou as análises descritivas e acríticas sobre a construção dos gêneros. A diversidade nas relações sociais torna-se novamente a « diferença », que faz apela a um outro referente – a heterossexualidade- instalado na exclusão e no repúdio aos “diferentes”. É o caminho aberto a todas as infâmias engendradas pelos religiosos, os machistas, os fanáticos, as mulheres assujeitadas, aos adeptos da força e da coerção para assegurar seu poder sobre outrem. A « Ideologia do gênero » ignora todas as análises feministas sobre a instituição do binário com a dominação do masculino que cria e alimenta o ódio do outro, neste caso, o feminino. Pois “gênero” tornou-se o “outro” da heterossexualidade. Os feminismos e a crítica da hierarquia homem/mulher em seu papel “natural” desaparece da cena do político para dar lugar à luta contra os “desviantes” aqueles que vão contaminar as crianças e adolescentes com suas mudanças de gênero ou sua homossexualidade. Assim, os feminismos foram infectados por uma nova onda de relegação, não somente pela sociedade “normal”, mas também pela entrada intrusiva dos “transativistas” que se consideram a ponta de lança do fim da hegemonia da heterossexualidade. Desta forma se perdem os objetivos comuns aos feminismos: a transformação de um social unicamente estruturado sobre a sexualidade como divisão do humano. Considero que os feminismos nada tem a ver com as reivindicações identitárias que, por definição fixam os contornos dos sexos e da sexualidade, mesmo se há uma perspectiva de transumância de um à outro. Desfazer os gêneros não é refazê-los. Ao contrário, é esquece o biológico enquanto linha de partilha e inventar novas maneiras de expressão. É aí que se intensifica o perigo para a ordem patriarcal. Foucault indicava o “sexo rei”,[iv] como o novo eixo da servidão do humano. A sexualidade, portanto, sendo esta uma das manifestações do humano, não tem razão de ser o centro e o objeto central das relações sociais. A menos que se decida tomar como verdade absoluta os discursos religiosos ou aqueles dos “mestres”, como Freud ou Lacan, que constroem a sexualidade como essência do humano, tal como a criam e representam. Os feminismos nos falam de liberdade. Liberdade de costumes, das normas, das ideias preconcebida, das referencias universalizaras, dos discursos que criam o feminino submisso e assujeitado. Os feminismos nos apontam também a liberdade de dizer “não”: não à força, à intrusão, às exigências de mixagem, sob pretexto de inclusão. Porém os feminismos hoje agregam os derivados do machismo, os “masculinismos” que não tem nada a ver com a transformação das relações humanas, os transativistas que não encontram seu lugar de expressão e se imiscuem aos encontros feministas, às vezes de forma misógina e agressiva. Basta de aceitar os discursos de discriminação quando as feministas desejam colóquios e reuniões não mistas. No mundo tal como é, os homens nos eventos feministas não se acanham em tomar a palavra e nos ensinar o que é e como deve ser o feminismo. Os feminismos, sinto dizer, não representam o lugar de fala de todo mundo, as portas abertas, o coração na mão para todas as manifestações. Esta atitude faz, sem nenhuma dúvida, parte de um feminino submisso, doce e acolhedor. Um feminismo totalmente “mulher”, assujeitado. Enquanto isso, a metade da humanidade continua a sofrer as violências e sevícias de sua definição biológica e é de sua liberação que se ocupam os feminismos. Vendidas, trocadas, usadas, traficadas, mercantilizadas, presas a todas as violência, das quais a morte não é a pior, as mulheres não descobriram ainda a liberdade num mundo dominado pelas religiões, fanatismos e por seus próprios discursos submissos à ordem do falo. Os feminismos se curvam ao “politicamente correto” quando sua função seria de estilhaça-lo em mil pedaços. As mulheres representam ainda corpos à venda, sexos disponíveis para qualquer um: a prostituição, este estupro repetido se tornou trabalho, o tráfico de mulheres se transforma em tráfico de “pessoas”, retirando de sua significação que a esmagadora maioria é composta de meninas e mulheres. O casamento forçado de meninas, sua prostituição na beira das estradas, tudo é banalizado, justificado para assegurar a manutenção do patriarcado, baseado na dominação, no desejo, nas necessidades masculinas que exigem o assujeitamento das mulheres, transformadas em sexo, cascas vazias preenchidas pelo soberania do falo. Pois não há liberdade de escolha na prostituição, há uma submissão profunda à ordem do pai e do pênis, à condescendência social em relação à violência que as levou até lá. É, sem dúvida, a importância dada ao sexo masculino, à representação reinante do falo que ordena o discurso social sobre a banalização e naturalização da prostituição. O feminismo que adoto e que vivo não almeja a integração com os “arranjos possíveis” que não permitem uma mudança radical da sociedade, a permeabilização às investidas do patriarcado. Ao contrário, desintegrar os papéis e quebrar a importância identitária dada ao sexo e à sexualidade é função dos feminismos para eliminar a ordem patriarcal. As violências contra as mulheres são um fato quotidiano; o assujeitamento continua a exercer seu poder de persuasão sobre um feminino reduzido à sedução ou ao dispositivo amoroso.[v] Isto Já foi estabelecido. Meu feminismo é um feminismo radical, que vai às raízes da dominação, que não tem nada de doce e amável e responde sem hesitação à agressividade misógina. Pois não se elimina a violência material e simbólica contra as mulheres com sorrisos. Ainda não houve até agora um tsunami para destruir os papéis hierárquicos sociais, que os erradique da cena do político, que quebre o tabuleiro, em lugar de mudar os peões de lugar. A categoria “gênero”, domada, não significa mais um suporte aos feminismos. O domínio patriarcal, cujo novo alvo é a “ideologia de gênero” torna invisíveis as lutas feministas e o sexo – masculino – retorna como signo por excelência da ordem “natural” e da normalidade. Do ponto de vista político strictu sensu o sujeito “mulher” está ainda muito longe da igualdade com os homens no Ocidente, em termos de renda, de participação nas decisões, sem falar da absurda desigualdade existente no resto do mundo. Os feminismos parecem haver perdido sua bússola, seu rumo, seus objetivos principais e urgentes submersos nas águas turvas das “acomodações possíveis” e do “politicaly correct”. Para onde se escoaram as forças feministas? O biopoder impera em todos os setores sociais e o patriarcado se regozija. Basta de transigência. Voltemos aos “estudos feministas” e às práticas radicais. [i] http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/09/mec-lanca-documento-preliminar-da-base-nacional-comum-curricular.html [ii] Ver por exemplo Monique Wittig et Adrienne Rich [iii] Lesbicas, Gay, Bissexuais, transgeneri, travestis [iv] Ver Microfísica do poder, 1988, RJ, [v] Ver http://www.tanianavarroswain.com.br/chapitres/bresil/por_falar_em_liberdade.htm |