(para comprar dirija-se à editora Brasiliense, São Paulo)

capa de zeila navarro swain

O que é o lesbianismo?

 

Pequeno prefácio ou advertência

      Ano passado comecei um de meus  cursos na universidade escrevendo no quadro a seguinte frase: “Minha única pretensão é mudar o mundo!” Achei graça na perplexidade daqueles rostos jovens , na seriedade de seu olhar. Mas de súbito a brincadeira revelou a extensão das tarefas a serem realizadas, a densidade do espaço a ser preenchido. Como sacudir as evidências, como modificar as representações, como trazer o novo a esquemas de percepção do mundo galvanizados em estruturas de verdadeiro/falso?

“Porque o passarinho canta? perguntou o cientista louco.”Talvez por saber, talvez por poder, talvez por querer” respondeu o robô-que-sabia-tudo. De fato o que interessa são as questões; as respostas, sempre ambíguas , tem valor transitório.

Este texto foi escrito em menos de um mês , fruto de um imenso cansaço e da impaciência crescente diante do totalitarismo do senso comum e da arrogância dos paradigmas, dos modelos, das essências.  Dêem-me asas , não tenho mais tempo para buscar a saída dos labirintos

Quem estiver vestido no cimento de suas certezas, não mergulhe nestas águas.

tania- anahita

 

Si je la vois, mon cœur s’arrête, mes mains tremblent, mes pieds se glacent, une rougeur de feu monte à mes joues, mes tempes battent douloureusement. Si je la  touche, je deviens folle, mes bras se raidissent, mes genoux défaillent. […]      

                                                                      Sappho, « Les chansons de Bilitis »

 

Désert: Autrefois terre aride, étendue de sable. Actuellement tout endroit qui n’est pas habité par des lesbiennes.

Couleur : Toutes les amantes émettent une couleur qui leur est propre. Avec les caresses, les embrassements, les baisers, cette couleur sort avec violence, se répand et quelquefois explose.

Monique Wittig, « Brouillon pour un dictionnaire des amantes. »

 

 

Duas jovens  caminham lado a lado e se sentam bem juntas, em um banco da praça,  um halo de ternura, um clima de romance as envolve; duas mulheres, os cabelos grisalhos, se encontram e se abraçam, um brilho no olhar, num sopro de prazer: seriam amigas? Irmãs? Amantes? Lésbicas?

Um clima de mistério e de silêncio envolve as relações entre mulheres : quando se ouve falar é em voz baixa, um ar de desprêzo ou de espanto. Afinal o que podem fazer duas mulheres, que mesmo juntas estão “sozinhas”?

As pessoas costumam se espantar ao ver duas mulheres , passeando, jogando, viajando, se divertindo: que graça pode haver se elas não  tem a quem seduzir , se um olhar masculino não lhes dá presença e lugar no mundo? Isto significa que onde não existe um homem não pode existir emoção ou prazer e mesmo amizade pois as mulheres apenas poderiam adquirir existência enquanto formam uma dupla com um homem, “mulheres acompanhadas”.

Falar de lesbianismo não é apenas descrever práticas ou elaborar definições; é sobretudo tentar observar como uma certa prática sexual se insere nas relações sociais, como é avaliada, julgada, denegrida ou louvada ao longo da história. É também colocar questões relativas  à identidade do humano, à delimitação das pessoas dentro de categorias  sexuadas – mulher e homem – que as condicionam e as enquadram em modos de ser, maneiras de sentir, de perceber o mundo e a si próprias.

Questionar aqui leva a abrir os horizontes, aprender coisas novas ou mesmo desaprender preconceitos adquiridos na superficialidade do senso comum. Se a tradição está presente para falar do lesbianismo como um desvio, uma aberração, cabe- nos indagar o que é esta tradição que faz da lésbica um ser oculto e obscuro , espaço reservado de perversão e de desordem num mundo que se quer transparente na definição dos seres humanos em apenas dois: mulheres e homens.

A história, esta narrativa que recorta a vida e o passado em textos produzidos segundo os interesses e a percepção da realidade dos historiadores , esconde e ignora imensos períodos do viver humano. Ilumina e descreve, analisa e proclama uma ordem , uma lógica, nos eventos que se encontram sobretudo em seu olhar.

Assim, as relacões sociais que escapam aos modelos concebidos são marginalizadas, esquecidas ou eliminadas da historiografia, este grande conjunto de Histórias que compõe a memória do vivido.

 Lésbica, fanchona, sapatão, paraíba, machona, entendida: o que significam estas palavras? Que tipo de pessoas designam? Para que tipo de relações apontam?

O que foi o lesbianismo ao longo do tempo, nos poucos fragmentos que nos restam das relações das mulheres entre elas?  O que foi dito pela História? E sobretudo, o que não foi dito? O que é ser lésbica hoje? Teria o lesbianismo algo a ver com o feminismo?

·        A política do esquecimento:  indícios e as interpretações

 Se as mulheres começaram a surgir na história a partir do feminismo, onde se escondem as lésbicas, em que nichos de obscuridade e silêncio pode-se encontrá-las? Se a história não fala das relações físicas e amocionais entre as mulheres será porque não existiram? Ou porque sua existência representa a desestabilização e o caos em um mundo instituído  na ordem “natural” e “divina” da heterossexualidade dominada pelo  masculino? O que seria do mundo patriarcal se as mulheres dispensassem os homens de suas camas e de seu afeto, se recusassem a parceria incontornável e a reprodução como definidora de suas identidades?

Quem diz História, diz construção.  A partir de indícios , de traços mais ou menos precisos, de restos mal ou bem conservados, sejam eles  figurativos ou impressos, monumentais ou  alimentares , abundantes ou extremamente escassos, um tecido é urdido e um discurso forjado. Os  fragmentos  atestam um real vivido que é entretanto, transformado em História segundo as interpretações possíveis em cada época, segundo as representações que constróem  o mundo e a experiência vivida.

As fontes e o material são  diversos, traços apenas de uma realidade efetiva, concreta, porém  perdida para sempre em sua integridade. Restituir a realidade histórica tal como se passou é apenas uma ilusão perseguida ainda por alguns, herdeiros das “certezas” indiscutíveis do século XIX. A História-ciência, a História-exatidão de fatos e datas cede hoje lugar a um`fazer constante, a uma tarefa de problematizar, de questionar, de tentar apreender nos momentos e espaços vividos pela humanidade os significados criados e os valores constitutivos de seus atos e gestos, de seus sentimentos e paixões.  A História se faz  assim através  de uma série de mediações, de interpretações da realidade da qual os documentos e os indícios  constituem a  primeira etapa.

Um fato é histórico segundo o interesse da época ou a importância dada a certos elementos do humano, como sua organização política, ou as relações entre os Estados; dividos em classes ou grupos , analisados sob uma ótica econômica , religiosa  ou “natural”, os seres humanos foram sendo categorizados em faixas etárias, cor de pele, altura, peso, força, inteligência, sexo biológico, nascimento. Mas estas divisões e combinações nem sempre foram iguais, nem sempre foram binárias do tipo belo/feio, bem/mal, certo/errado, normal/anormal, mulher/homem. Os critérios classificatórios também se modificam ao longo do tempo e as denominações mudam de sentido de um lugar a outro, em temporalidades diversas.

 As ciências humanas, físicas ou biológicas, como qualquer atividade humana sofrem , em sua apreensão da realidade, o filtro das representações sociais do mundo e da vida, ou seja, o discurso  científico está tão impregnado de valores quanto o senso comum mais linear. A pretensa neutralidade da ciência não passa hoje de uma ficção, na medida em que se compreendeu a impossível tarefa de afastar a subjetividade e os valores que a constituem da pesquisa, da análise, da interpretação, da escolha mesmo do objeto de estudo.

 Assim, o que se sabe da História da humanidade depende de uma racionalidade impressa aos fatos, é uma história, uma narração cujas conexões são arbitrárias. Isto significa que os olhos vêm o  que querem e podem ver numa “ política de esquecimento”: apaga-se ou destrói-se o que não interessa à moral, às convicões, aos costumes, à permanência de tradições e valores que são dominantes em uma dada época.

Um fato histórico não existe por si, não fala por si; os eventos são retirados do anonimato , adquirem importância e a perdem igualmente, segundo as condições de apreensão e produção do mundo.Desta maneira , por exemplo, a sexualidade pode ser um sujeito-tabu ou uma prática entre outras na vida dos povos; é matéria científica , de cunho moral, elemento organizador do social ou apenas um relacionamento eventual entre pessoas, cujo sexo biológico não é determinante.

 Mesmo tentanto despojar-se de seus preconceitos e modelos, cientistas de todos os campos disciplinares iluminam ou destacam o que lhes parece justo, certo, evidente, o que lhes parece digno de importância , de análise.  Toda evidência porém, é uma armadilha, na medida em que é naturalizado o que se deve questionar. Esta seria a tarefa científica: desvirtuar as evidências, tirar delas a inocência da convicção e da certeza para se embrenhar na floresta de sentidos que criaram a condição  humana e que fizeram de práticas sócio-culturais  modelos definitivos de ser.

Mas e o lesbianismo? Enquanto forma de relacionamento , esta denominação e o julgamento moral que a acompanha estão inseridos na perspectiva de uma história que se quer  universal mas que em suas narrativas aponta para a parcialidade de sua construção.

As representações sociais, imagens que nos são transmitidas desde o aprendizado da linguagem estabelecem para cada momento vivido em espaços e tempos diversos, uma história, uma forma de relacionamento entre os seres ; no caso do Ocidente, criou-se todo um discurso filosófico/religioso para justificar a divisão dos humanos de acordo com um critério básico: o sexo biológico. Complementares ou diferentes, os sexos biológicos foram dotados de uma importância  crucial, de uma evidência indiscutível; entretanto, enquanto divisor do humano esta distinção  é também arbitrária, é também construída em torno de um critério básico: a reprodução. Mulheres e homens , asssim fomos designados ao nascer, assim somos olhados , avaliados, em tons de apreciação ou menosprêzo, segundo critérios de beleza, sedução, de fecundidade. Assim também nos olhamos, nos criticamos, nos julgamos, assujeitadas(os) ou rebeldes à norma.

Mas quem pode assegurar esta divisão ao longo de 40 ou 50 mil anos de história dos seres que  viveram, amaram, construíram e desfizeram tramas sociais as mais diversas, as mais complexas, as mais simples? Quem pode assegurar que tudo sempre foi da mesma maneira, a não ser invocando uma crença qualquer,  um poder ordenador transcendental, uma natureza humana dotada de características fixas e definitivas?

Ao longo dos indícios da história, encontramos traços de culturas e civilizações diversas, onde os sexos feminino e masculino não se conjugavam da mesma forma que hoje, e onde mulheres podiam , “sem medo de ser feliz” , amarem-se umas às outras.

O infinito pulsar da realidade e das configurações sociais desmentem na história a existência desta natureza inexorável e única e a certeza advinda da crença só é válida para quem crê. Nada mais.  Entretanto, sejam elas representações de cunho religioso ou de caráter “científico” atravessam e compõem a trama das relações humanas com maior ou menor impacto segundo as forças e  os saberes presentes nas diferentes formações sociais.

Por exemplo, Adão/Eva, o casal originário, justificador e naturalizador da divisão sexuada da humaninade, faz parte de um repertório ficcional, traduzido em um discurso fundador do humano, determinando logo de início os papéis para cada sexo: o homem, imagem de deus; a mulher,  sedutora e fraca, destinada por seu erro à obediência e à dor. Dois polos, um superior, outro inferior, marcados pelo signo do sexo , da sexualidade, da reprodução, cada um em seu papel segundo a sua “natureza” dotada do selo divino. A heterossexualidade como norma e as relações assimétricas entre os corpos sexuados assim ficam instituídas no imaginário ocidental. 

Estas representações  mediadoras das relações entre mulheres e homens marcaram de seus valores  o discurso da história “científica” , que se inicia no século XIX; penetraram a pesquisa médica e biológica quando decidiram e decidem a respeito do normal e do patológico nas práticas humanas; abriram espaço para a instituição de modelos de comportamento definidores do certo e do errado , do bom e do mau, do bem e do mal contidos nos sentimentos e nas práticas que ligam os seres humanos.

A heterossexualidade compulsória, fenômeno relativamente recente na história humana passa a ser a regra universal , o que determina a integração  social nos papéis do “verdadeiro” masculino e feminino. Os limites de tolerância de práticas sexuais diversas dependem do grau de hegemonia da heterossexualidade enquanto norma absoluta ou escolha possível;  deste modo nas sociedades onde a reprodução é apenas um dos eixos e não o pivô central das relações humanas, o leque de práticas sexuais aceitas tende a  ser mais amplo.

A Grécia antiga, mais precisamente  Atenas do séculoVI/V a.C. é ponto de referência obrigatório para a  cultura ocidental que se reclama sua herdeira e considera e cita sem cessar os filósofos gregos como marco, divisor de águas entre os caminhos da razão e os dos  mitos que ordenavam o mundo. Entretanto, curiosamente, as práticas sexuais dos gregos não foram incorporadas a seus discursos de saber, são de certa forma obscurecidas nos livros didáticos, nas discussões acadêmicas; mas é bem verdade que o estudo da sexualidade apenas muito recentemente tem encontrado espaço nas ciências humanas , como uma das conquistas do feminismo e do pós-modernismo.

Os gregos viviam uma homossexualidade aberta e institucionalizada e os sentimentos mais profundos, as histórias de amor eram eventos entre homens, como bem assinala Foucault.( Foucault, 1984) O casamento era uma instituição respeitada enquanto espaço de reprodução e sede de poder masculino, exercido sobre todos os membros da família: mulheres, crianças, escravos. Os homem livres tinham um trânsito sexual total entre todas estas categorias e se a bissexualidade era a norma, as pulsões passionais e/ou sentimentais ligavam os homens entre si.

E as mulheres? Nada indica que, no interior das casas onde eram confinadas não mantivessem entre si relações amorosas, sexuais, afetivas; não para compensar a ausência ou o interesse limitado dos maridos, mas por desejos e pulsões talvez ambivalentes, talvez exclusivos. Nada se diz sobre estas mulheres, como se aceitassem passivamente todas as imposições, como se não tivessem impulsos e paixões, como se não sentissem amor e ódio, como se estivessem também excluídas dos sentimentos humanos pelo simples fato de serem mulheres.  Para os atenienses as mulheres eram seres inferiores que não podiam ascender ao nobre sentimento do amor ; seus amores eram portanto, insignificantes. A História, em seu silêncio sobre elas corrobora esta visão.

 A história não fala e um silêncio de chumbo recai sobre as relações entre as mulheres. Mas no próprio mundo grego contemporâneo aos atenienses, os indícios mostram uma outra realidade: em Esparta os homens e as mulheres viviam separadamente . As mulheres participavam da vida da cidade, praticavam esportes e treinavam lutas armadas, estavam longe da clausura e da exclusão que existia em Atenas. Os casamentos eram obrigatórios e a reprodução um negócio de Estado que se encarregava de gerí-la (Pastre 1987: 81);  não é preciso uma bola de cristal para se pensar que a homossexualidade era vivida tanto por homens quanto por mulheres. Uma das leis da cidade, aliás, obrigava as mulheres a se vestirem de rapaz na noite do casamento pois do contrário talvez não se consumasse, segundo comenta Geneviève Pastre. (Pastre 1987: 101) Tem-se aqui o caso exdrúxulo de uma mulher vivendo uma relação homossexual com seu marido.

Mas de Esparta não temos muitos dados, assim como de outras cidades gregas, Tebas ou Siracusa; sabemos apenas indiretamente, pelas observações dos atenienses, que as mulheres nestas cidades dispunham de liberdade, de direitos, de acesso ao saber e à arte. Em Creta fala-se de matriarcado, e as Amazonas estão presentes em um número importante de autores gregos clássicos. Platão não hesitou em considerar Sappho de Lesbos a 10a. Musa e  se o deus máximo do gregos, Zeus, era o primeiro a se debruçar sobre os jovens efebos, vê-se que a heterossexualidade era ou obrigação – dever do cidadão- ou eventualidade. Não a norma. Heteronormatividade, a  heterossexualidade enquanto paradigma, esta questão está em debate atualmente nas teorias feministas, e sua historicidade apenas vem provar seu caráter  circunstancial. Na  Atenas antiga, a dominação e exclusão das mulheres dos direitos civis e o domínio do homem na família deixavam espaço para o amor e o sentimento entre os homens. No Ocidente cristão a homossexualidade é banida como crime – a dos homens- e a das mulheres desaparece da ordem do discuros.

 Não se fala, logo, não existe. De tal forma que no século XVII, a Inquisição, para julgar mulheres acusadas de práticas homossexuais, não dispunha de uma palavra com a qual nomeá-las: eram chamadas de “sodomitas”, segundo comenta Ligia Bellini.( Belinni, 1987 ) Isto é extremamente significativo, pois ao se nomear, cria-se uma imagem , cria-se um personagem no imaginário social. As mulheres homossexuais não tinham direito a um nome, logo, à existência . De toda maneira, à época, tal prática era já vista com uma certa condescendência , pois afinal que sexualidade poderia haver entre duas mulheres?

Quando se pensa a História com uma inquietação , com um olhar que busca o possível e não apenas a monótona repetição do Mesmo , de uma suposta Natureza imutável, as próprias questões abrem horizontes inexplorados. Os fundamentos das certezas, finalmente, ao serem analisados numa perspectiva histórica, mostram seu caráter provisório ou arbitrário: o átomo, por exemplo deixou de ser considerado a menor parcela da matéria face às partículas da microfísica, as raças e seus caracteres secundários perderam sua importância classificatória face ao DNA. O saber é móvel e transitório e a ciência digna deste nome, como sublinha Karl Popper, procura solapar suas próprias descobertas para não se cristalizar, para não obstruir a dinâmica do conhecimento. Desta forma, como pensar as sociedades humanas dentro de modêlos únicos , baseados em apenas uma característica, o sexo biológico e a reprodução? Como restringir as próprias manifestações de sexualidade a um só modêlo , cujas justificativas são morais, logo transitórias e mutáveis?

O que se aprende sobre história antiga, antes dos gregos, nas escolas e universidades reduz a duas ou três aulas 40 ou 50 mil anos de existência humana. Como pensar este lapso de tempo de maneira uniforme senão a partir de crenças e valores contextuais? Porque as próprias definições dos seres humanos não seriam outras que o inevitável mulher/homem? A cor dos olhos, a quantidade de pelos, a espessura do sangue, a habilidade artística e manual, o saber das plantas e dos seres, a idade, a intuição , a corpulência, as opções são infinitas em termos de organização social. E porque sempre a divisão binária? Percebe-se hoje, nas ciências em geral, que as características que consideramos permanentes e imutáveis assim aparecem porque assim as vemos e as instituímos como naturais ou humanas ou universais.

As antropólogas feministas tem mostrado a diversidade de configurações sociais, mesmo na determinação do sexo biológico. Em algumas culturas, como esclarece Nicole Claude Mathieu,( Mathieu, 1991) o sexo das crianças é definido pelo nome que vai lhe ser dado, de um parente homem ou mulher e mais tarde ela decide o que vai ser. Entre os indios brasileiros à época do descobrimento, segundo o relato dos primeiros colonizadores, como Gandavo, (Navarro-Swain,1996) havia pessoas cujo sexo biológico era feminino mas escolhiam o papel social masculino, estabelecendo-se como tal na vida sociala e sexual e realizando as tarefas do grupo escolhido.

Pouquíssimos autores apontaram esta particularidade e quando o fizeram, como Florestan Fernandes, foi para emitir uma apreciação a partir de seus próprios valores: diz ele que as práticas homossexuais entre os homens eram comuns pela falta de acesso ao sexo oposto mas que estas mesmas práticas entre as mulheres eram condenadas e  podiam ser causa de  sua eliminação física . (Navarro-Swain,1996) Ora, a fonte citada, Gandavo, não menciona isto , ao contrário, seu comentário apenas relata a existência destes tipos de relações integradas à sociedade indígena. Florestan Fernandes não admite assim uma emoção de um homem por outro e quanto às  relações entre mulheres trata de excluí-las ou matá-las.

Muitos outros indícios aparecem neste jogo de claro/escuro que é a  história. Às representações normativas do feminino, opõe-se, por exemplo, as Amazonas, guerreiras temidas por sua coragem e destreza nas armas. O número de janeiro/ fevereiro de 1997 da revista Archeology  relata achados arqueológicos realizados por Jeannione Davis-Kimball, da University of California, Berkeley que datam de mais de 500 anos AC. Túmulos atestam a existência de mulheres guerreiras, enterradas com suas armas, espadas de ferro, escudos de bronze, perto da cidade de Pokrovka, na Rússia.  Da Grécia antiga, passando pela Europa medieval e moderna até à Amércia Latina, as narrativas são múltiplas sobre atividades exercidas pelas mulheres hoje vistas como lenda ou mito. No Brasil, por exemplo, as índias em armas espantavam e amedrontavam os portugueses que as consideravam mais ferozes que os homens. Entretanto a trama urdida pelos discursos históricos só retém o que as representações polarizadas de mulheres e homens permitem imaginar: assim, as mulheres guerreiras, Amazonas brasileiras ou gregas ou africanas passaram ao domínio do mito.

 Fala-se de mulheres guerreiras que viviam em grupos separados dos homens como se fossem lendas impossíveis e improváveis, relatos a respeito de seres monstruosos, ficção amedrontadora. Homero, Heródoto, Diodoro de Sicília, Plutarco, Strabon fizeramas inúmeras referências às Amazonas, mas os historiadores realizam, a partir de uma ótica normatizadora, o recorte do que é digno de ser levado em conta, do que é possível : “isto é verdade, isto é mito”. Alexandre “o grande” encontra a rainha da Amazonas Thalestris: ele é história, ela é mito. As Amazonas teriam vivido na região que vai do norte do mar Negro e de Azov até o sul do que hoje é a Síria e a Turquia, em regiões que compunham a Trácia, a Lícia e a Cária ; na Africa, estariam onde hoje é a Líbia e  Egito.

 Como poderia este sexo frágil e dependente dar origem a guerreiras poderosas e ousadas, temidas por heróis como Hércules e Teseu? Mito. Como poderiam guerreiras temerárias nas margens do rio Amazonas enfrentar e afugentar os espanhóis, segundo narra Francisco Orellana? Mito. E sobretudo, mulheres que dispensavam os homens ao longo de  sua vida, requisitando-os eventualmente, para  ritos procriadores? Mito. Mulheres capazes de defesa e ataque, autônomas e temidas adversárias, partilhando suas vidas e emoções entre si? Mito.

No universo da hegemonia heterossexual, a desordem maior é o desisteresse das mulheres pelos homens. Mas quem diz Amazonas não quer significar necessariamente um mesmo modo de vida para todos os grupos dos quais se tem notícia; suas práticas sexuais, entretanto, de acordo com todos os relatos,  não comportavam uma heterossexualidade compulsória. Pode-se mesmo indagar se a sexualidade teria, ao longo da história humana, a mesma importância que lhe é dada hoje.

As recentes descobertas dos túmulos das guerreiras vem apenas confirmar o que a História tem se esforçado para esquecer: rainhas guerreiras, como Artemísia, que lutou ao lado de Dario contra Alexandre ou Bodiceia, à frente de seus exércitos contra os romanos. Danaïades, Górgonas, Erynias, grupos de mulheres que teriam se rebelados contra uma conquista ou um domínio masculino: obrigadas a casar, como as primeiras, mataram seus maridos; as seguintes teriam defendido ferozmente seu espaço contra a intrusão masculina. Figuras míticas ou relatos sobre as lutas que resultaram no sistema patriarcal e heterossexual? 

Por que não se estuda os Celtas, que dominaram a Europa por mais de mil anos,  cuja homossexualidade – masculina e feminina – era vivida sem embaraços? ( Markale,1979) Cujas mulheres – das tribos Namnètes e Smnites por exemplo - combatiam os romanos armas em punho?  E os Pictos, na atual Escócia, entre os quais as mulheres eram  mestras no manejo das armas, treinadoras dos futuros combatentes, como assinala Jean Markale?  Porque a história não se detém nos Citas e nos Sármatas, povos  estreitamente ligados às Amazonas?  Quantas e inumeráveis rainhas, sacerdotisas ou outras personalidades não foram transformadas em homens ao longo das traduções de seus nomes? Nunca e sempre são palavras a serem evitadas: “nunca existiu”, “sempre foi assim”; nada tem uma permanência inquestionável na história, talvez apenas o existir. Mas  quantas modalidades de existências possíveis!

Da história antiga as mulheres guerreiras foram  assim banidas, mas os documentos escritos persistem em nomeá-las e a seus feitos ; relegá-las ao domínio mitológico é uma solução que se revelou eficaz ao se forjar um novo modelo para as “verdadeiras” mulheres, cujo destino e emoção estariam atrelados inexoravelmente ao masculino. Os indícios e os traços porém aí estão para quem quer vê-los . Amazonas guerreiras e homossexuais? É possível. Por que não?

Séculos de história apagam as mulheres da história. Como se espantar diante do muro de silêncio a respeito de grupos que desmentiam a naturalização de papéis masculinos e femininos? No século VIII na Boêmia, com a morte da   da princesa Libussa, Wlasta, guerreira comandante da guarda toma o poder com seu exército de mulheres, para evitar a tomada do trono pelo irmão da princesa. No  século IX, Alfred le Grand, rei anglo saxão que recuperou a Inglaterra dos dinamarqueses e fundou Oxford, batisou de Magdaland a ilha situada no mar Báltico, unicamente povoada por mulheres, da qual se falou por muitos séculos,. Tem-se notícia de que no século XVIII os franceses teriam lutado contra o exército de mulheres organizado pelos reis de Dahomey (Bénin) ; no Burkina-Faso, a etnia Moré se diz descendente da amazona Jaffara; fala-se da existência de Amazonas no Nepal, na Indonésia, estas últimas assinaladas pela imprensa em 1966. No Brasil estima-se que existem cerca de 5000 indígenas que nunca tiveram qualquer contacto com os brancos. Estariam as Amazonas entre eles? Em 22 de maio de 1999, o Correio Braziliense publica matéria sobre expedição organizada pelos militares da Indonésia para encontrar uma tribo de mulheres na Nova Guiné, “amazonas canibais”, como as chamam, “devoradora”de homens. Pode-se quase sentir o desejo febril destes homens em domesticá-las, dobrá-las, a qualquer custo. Como suportar um tal desafio?

 Em que livros escolares se ousaria anexar tais informações? Mas mesmo quando o silêncio é quebrado, os valores e os julgamentos estão presentes: Alain Bertrand, em recente trabalho acadêmico considera “criminosas” as Amazonas, porque matavam homens que contra elas se levantavam; entretanto, os homens que matam e estupram as mulheres nas guerras são “guerreiros”, “soldados”. Considera-as também “megeras”, e tal como Sérgio Buarque de Holanda quanto às Amazonas brasileiras, “viragos”  ou seja, “mulher que tem estatura, voz ou maneira de homem”: c apenas aricaturas, paródias, simulacros do masculino. Aqui o referente é sempre o homem que deteria , em sua “natureza”, tais disposições – para o combate, para a conquista, para a defesa, para a expansão de domínios ou simplesmente para a autonomia de ação e a independência.

As Amazonas seriam, nesta ótica, “mulher macho”, “paraíba”, “fanchas”,desvio da natureza. Melhor colocá-las na dimensão do mito. O mesmo autor aponta para seu “homossexualismo latente”: de que arrogante posição de autoridade pode afirmar ou negar  as práticas sexuais das Amazonas, cuja dispersão e multiplicidade de grupos nunca poderia ter um caráter homogêneo? A História não nos traz certezas, apenas questões sobre um humano infinitamente plural. Mas a eliminação do múltiplo se faz em apenas algumas gerações de silêncio.

A política do silêncio é a melhor aliada da política do esquecimento e as imagens de mulheres hoje produzem e reproduzem características de fragilidade, depedência, incapacidade física e mental. As que se destacam o fazem “apesar de serem mulheres”ou por ser  “tão capazes quanto um homem”.

 O que dizer das que não se casam e que não se interessam pelos homens, na atualidade, onde o sexo é rei? Desvio, anormalidade, exclusão, doença, feiúra, falta de atrativos, falha de caráter, caricatura: o desejo e a atração de uma mulher por outra é transformado em  válvula de escape para um corpo desgracioso e desprezado pelos homens.

Nas modernas concepções a respeito do imaginário, do qual os mitos seriam uma das produções por excelência, as representações reproduzem , instituem, criam ou transformam relações sociais. São narrativas a partir de e sobre o mundo no qual se vive e que se apreende desta ou daquela maneira.

O aspecto simbólico de alguns mitos é inquestionável, como por exemplo, o epsódio em que Zeus se transforma em chuva de ouro para penetrar uma ninfa e suas interpretações podem ser inumeráveis. Entretanto, como afirmar que a existência de grupos de mulheres guerreiras é mítica a não ser por uma  representação cristalizada de imagens? A lógica é : mulheres não podem ser guerreiras, logo não existiram. As mulheres não podem ser homossexuxvais, não podem dispensar o masculino de suas vidas quotidianas. Logo, não podiam existir. Mesmo na atualidade, quando é inegável a existência de grupos e movimentos lésbicos a divulgação na mídia é mínima e permance um halo de silêncio e mistério em torno de suas práticas,  ações e reivindicações.

As Amazonas enquanto grupos humanos são assim relegadas ao domínio do ilusório; nesta mesma perspectiva, não se estuda, não se fala, não se debate formações sociais históricas, nas quais o imaginário religoso era dominado por uma figura feminina, pela Deusa  , não apenas “deusa disto-ou-daquilo”,  fecundidade/fertilidade/etc, mas  A  Deusa. Criadora-de-todas-as-coisas. Que composições  não seriam possíveis em sociedades onde o feminino não é desvalorizado , não é considerado inferior ou secundário, mas eixo central de ordenação do mundo?

Nos primeiros 40 mil anos de humanidade, de homo sapiens sapiens, produziu-se imagens exclusivamente femininas em abundância, como mostram por exemplo Marija Guimbutas ( Guimbutas,1989) ou James Melaart.(Melaart, 1971) Pequenas imagens ou esculturas,  algumas encontram-se nos museus do  Louvre, British Museum,  em Istambul, etc. Algumas esculpidas com perfeição , outras toscamente elaboradas, mas seu número e existência são significativos. Sua descrição, porém,  é sempre ”imagem de mulher, figura feminina, mulher”; quanto aos primeiros achados correspondentes ao masculino são descritos como: “rei, príncipe, sacerdote, guerreiro”.  Um museu tem discursos ideológicos evidentes, este é um deles. Sob a noção de uma evolução constante da humanidade, da passagem inexorável de um estágio inferior para o civilizado, estes povos são descartados do estudo e do imaginário ocidental sob a denominação de “matriarcado primitivo”. Primitivo, logo superado. Matriarcado, inverso do patriarcado, domínio das mulheres sobre os homens, estágio inferior da humanidade.

 O raciocínio é claro: as mulheres são inferiores, logo, se dominavam, a humanidade estava em um estágio inferior. E quem pode afirmar que os critérios fundadores das relações sociais destes povos eram os mesmos que os da atualidade, a força e a dominação? Que cartomancia  autoritária  e arbitrária decide o desenho das configurações sociais durante milhares de anos? Como se ousa generalizar valores e julgamentos sobre civilizações antigas de 10, 8 ou 5000 mil anos, que se transformaram e se sucederam em perfis mais diversas, já  que dos 2000 anos de nosso calendário não possuimos senão lacunas?

Kramer, especialista em história da Suméria pretende explicar rapidamente como se constituía a civilização sumeriana, que durou 3 milênios, em algumas páginas: faz desfilar uma série de imagens e representações que poderiam ter saído do século XIX quanto às relações entre homens e mulheres.( Kramer, 1969) E cristaliza este imenso período de tempo em uma só descrição, como se qualquer cultura não abrigasse transformações constantes em todos seus níveis. Ainda mais em milênios. É suficiente se pensar na história européia ou americana nos últimos 500 anos para se vislumbrar o absurdo deste tipo de descrições. No entanto,  a autoridade do historiador, seus valores e preconceitos representam  o discurso da memória humana:  o da universalização e galvanização de imagens estereotipadas nas relações sociais.

Porque não discutir elementos que escapam à nossa maneira de ser e de apreender o mundo? Por exemplo, durante milênios, “deus era mulher” como escreve Merlin Stone ( Stone, 1979); cabe-nos indagar sobre as relações interpessoais possíveis nestas culturas, onde o feminino encontrava-se no centro do imaginário social. “Eu sou a deusa dos mil nomes” , diz Innana, Isthar, Tiamat, Atar, Astarté, Asthoret, Anahita, Tanais, Artemis, Isis, Cybele, Epona, Brigit, Cerridwen, Uma, Kali, etc. Da Suméria à Europa, passando pelo Oriente Médio, pela India, pela Africa, a deusa criadorea está presente na maior parte das culturas conhecidas. ( James,1989)  Que papel teriam as mulheres nestas formações sociais, que relações manteriam entre elas?

Uma vez rasgado o véu da naturalização dos corpos sexuados e fixados para sempre em masculino e feminino, o possível se instaura. Artemis, a deusa criadora , figura simbólica de recusa de uma dominação masculina que se anuncia, para os gregos é deusa guerreira e homossexual, temida por sua coragem e ferocidade; patrona das Amazonas e das mulheres,  seu templo em Efeso foi considerado também uma das maravilhas da antiguidade, evocação da pujança do feminino. Na mitologia grega Zeus toma a forma de Artemis para possuir a ninfa sua amante, simbólica  representação da intrusão masculina numa relação entre mulheres. Presente no imaginário constitutivo da realidade social, a deusa criadora, em suas diferentes denominações ordenava também as relações humanas. A Bíblia, o Alcorão , por exemplo, narrativas ligadas a um deus masculino, não são verdadeiros manuais de comportamento e normatividade relativos à construção do social e dos gêneros?

 “Nada de novo na frente ocidental” diz a naturalização dos papéis sociais e das práticas sexuais; a crítica feminista, porém,  na antropologia e na história desfaz o  murmúrio monótono de dominador /dominado, de superior/inferior contidos nas representações de homem/mulher. O discuros mítico, iconográfico e mesmo os documentos escritos que chegaram até nós abrem horizontes mais amplos quanto às relações e organização humana e uma outra história se instaura, a do Múltiplo . 

A história que não questiona não foge às armadilhas ideológicas, às representações cristalizadas, às crenças arraigadas cujos fundamentos estão na sua própria afirmação. É assim, diz o discurso social,  porque “sempre” foi, porque é tradicional, porque é natural, porque está escrito, porque o jornal disse, porque os filósofos explicaram, porque os padres afirmaram, porque a ciência demonstrou, porque o historiador afirmou.

As afirmações “verdadeiras”sobre o humano se sucedem numa escala de crenças em que tradição e autoridades discursivas diversas se confundem e se apóiam para desenhar o perfil do certo ou errado, na sexualidade e na vida quotidiana. Assim a medicina, a psicanálise, a psiquiatria se unem ao discurso jurídico e religioso e definem a doença mental, a delinquência e exclusão social em termos de normal/ anormal: o lesbianismo aí se encaixa enquanto desvio, disfunção mental ou social, anomalia física ou psíquica.

A cadeia afirmativa que faz das coisas o que elas são,  chama-se positivismo e  rege ainda atualmente a vida quotidiana e a apreensão do mundo. Como explicar o assujeitamento aos papéis sociais senão em função de sequências aparentemente lógicas,  que de fato, são impressas no pensamento  como verdades inquestionáveis, como certezas que sustentam o ser e o social? Como aceitar denominações, identidades, a partir de práticas, de critérios mutávies que não passam de categorizações impostas do exterior de acordo com as transformações e os espaços sociais?

Lésbica ou lesbiana: o que significa esta palavra?

A polissemia é característica de toda palavra, de toda frase pronunciada ou escrita, ou seja, seus significados são múltiplos, conforme a capacidade e as condições de sua recepção, de sua compreensão. Houve um tempo em que lésbica era a mulher nascida em Lesbos, ilha grega na Asia Menor,marcada pela presença de Sappho , poetisa de talento excepcional cuja inspiração era insuflada pela paixão e desejo pelas mulheres .

Mantinha um escola para moças nos arredores de Mitileno onde aprendiam a arte da poesia e da música. Considerada uma das maravilhas da antiguidade por seus contemporâneos, sua obra foi posteriormente destruída, queimada, esquecida pela História oficial, apagada dos livros escolares, prova de que o amor entre mulheres deve ser negado pelo silêncio.

 A primeira vez que seus poemas foram queimados parece ter sido em 380 a.C; mais ou menos na mesma época o homossexualismo transforma-se em crime passível de pena de morte por decreto do imperador Teodósio do império romano do Oriente. Neste início de cristianismo, os poemas de Sappho são igualmente queimados no Império do Ocidente, segundo informa Dolores Klaich. ( Klaich, 1976: 167/68) O único poema completo de Sappho que nos restou está contido no livro de Denys d’Hallicarnasse, De la composition, escrito no século I a.C. Atualmente das  traduções do que restaram da obra de Sappho tem grande prestígio as de Renée Vivien e de Edith Mora.

Mas não se apaga os clássicos gregos que se referem constantemente a seus poemas e à beleza dos sentimentos que exprimem. Dos fragmentos que restaram destes poemas ficou a paixão , o tormento, os sentidos que se turvam na visão, na presença da  amada. O erotismo e a sensualidade, a voluptuosidade amorosa mostram que a sexualidade não se restringia aos órgãos genitais pois em seus cantos de amor  o corpo e a alma se mesclavam. As impensáveis relações entre mulheres, das quais Sappho é apenas um exemplo existiram, em outras épocas, de forma cotidiana ou ritualística, em assembléais, ou grupos ou cerimônias destinadas apenas às mulheres; não como sub-manifestação do social , “coisas de mulheres”, mas marcos na vida e na organização social. Assim, Paul Foucart ( Foucart,1914) indica a celebração dos Grandes Mistérios de Eleusis como cerimônias secretas e iniciáticas, às quais só eram admitidas mulheres; Haloa, outro tipo de assembléia de mulheres e as Eleusinias, jogos e práticas esportivas exclusivas às mulheres marcavam a vida na Grécia por volta de 1300 AC (Foucart, 1914:48-56)

 Sappho era altamente considerada, estátuas foram erigidas em sua honra, moedas cunhadas com sua efígie, segundo assinala Dolores Klaich. (Klaich, 1976:162) Nesta época, portanto, nenhum opróbio , nenhuma vergonha ou infâmia no amor entre mulheres; ao contrário, seus poemas aparecem como expressões estéticas maiores do sentimento amoroso. Que valores regeriam tais sociedades, que critérios existiriam no imaginário social para a definição dos seres humanos? Sabe-se que na Grécia Oriental em sua época, as mulheres gozavam de todas as liberdades políticas, economicas e sexuais, bem ao contrário de Atenas. Certamente  a heteronormatividade  não  estava ainda em vigor como fator absoluto de classificação do humano.  Ser poeta não seria talvez um dos eixos de identidade, em lugar do corpo sexuado? Mas quem, no discurso histórico vigente se preocupa em assinalar estes fatos? Falar de mulheres na história já é complicado, falar de lesbianismo é quase um crime.

Foucault (Foucault,1987:5) mostra como a taxionomia – a classificação – pode ser completamente diferente dos nossos hábitos de categorizar os seres comentando uma “certa enciclopédia chinesa” citada por Borges na qual os animais estariam dividos em: a) pertencentes ao imperador; b) embalsamados, c) domesticados; d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cães em liberdade h) que se incluem na presente classificação; i) que se agitam como loucos; j) inumerávies, [...]” etc, etc, etc. Esta classificação mostra de forma deliciosa que a racionalidade e a sensatez que se imprimem às coisas e a divisão dos seres é aquela que nos é familiar, que é tradicional, que é apontada como tal pela autoridade, pela ciência, pela religião. Pela crença em alguma ordem qualquer e no caso, a ordem binária dos seres, em feminino e masculino, em macho e fêmea, antes da adição de qualquer especificidade.

Quem diz feminio e masculino na atualidade diz práticas heterossexuais e reprodução. Como afirmar que a reprodução sempre ordenou o mundo, sempre conjugou as relações humanas e sexuais? Porque o prazer e o desejo estariam atrelados à perpetuação da espécie?

Valores morais, valores religiosos definem a  visão do humano e no mundo patriarcal o amor e o sexo entre mulheres é o perigo maior de perda de poder . De fato, a melhor maneira de assegurar uma dominação é de se fazer amar e desejar pelos dominados: neste caso, a heterossexualidade compulsória e a naturalização dos papéis faz de uma relação assimétrica e hierárquica o espelho do natural , do certo, do bom.

 Mas nessa   Grécia antiga, onde as mulheres começavam a ser excluídas do mundo e relegadas a uma função de ventre reprodutor,  Sócrates considerava Sappho digna de adoração e colocava-a entre os sábios, mulheres e homens da antiguidade, como assinala Dolores Klaich. (Klaich,1976:162.) Já Aristóteles em sua Retórica,    distilando sua filosofia misógina e xenófoba afirmava que em Mitileno honorava-se Sappho, ainda que mulher, sublinha Klaich. Neste caso , porém, não recrimina seus amores homossexuais, mas desqualifica sua condição de ser mulher. Nesta época, aparece assim claramente o embate entre diferentes formas de pensar e viver no mundo grego: uma, excluindo as mulheres, mas não condenando a homossexualidade masculina e outra, onde as mulheres participavam da vida social e sua sexualidade era livre da norma heterossexual.

 Isto não signifca que não houvesse mulheres e homens que se amassem e/ou tivessem relações heterossexuais. Significa apenas que estas relações não eram obrigatórias para sua identidade ou inserção no mundo em que viviam. Fora do âmbito da Grécia e suas colônias, as configurações sociais e sexuais podem ter sido muitíssimo mais variadas. Significa também que a obssessão da procriação não era necessariamente o centro da vida humana.

Sappho viveu há cerca de 2600 anos e em sua ilha de Lesbos , a poesia e o amor das mulheres fizeram dela um nome que atravessou os séculos. Neste mundo grego-oriental do século VI a.C.,  era sacerdotisa de Afrodite e participava dos ritos de iniciação e de renovação simbólica da cidade. (Bonnet, 1995) Poderosa, louvada em sua época pela qualidade de sua obra, esquecida ou  vilependiada em seguida, seus poemas em fragmentos atravessaram os tempos para cantar seus amores e seu desejo pelas mulheres

Entretanto, Sappho é “liberada” de seu lesbianismo, é “recuperada” a partir do relato de Ovídio[1] sobre sua vida na XVa.Heroïde, que a faz se suicidar por ser desprezada por um homem.

Esta narrativa,  desde o início da era cristã,  foi repetida infinitamente: uma pobre mulher desprezada se joga no abismo porque um jovem rapaz a despreza. Isto com certeza contribuiu à formação da imagem da lésbica: ela se volta para as mulheres porque os homens não as querem. Horácio, por sua vez, em I a.C. vê em Sappho a caricatura de um homem: mascula Sappho, assim a nomeia.

A partir da Renascença, Marie Jo Bonnet (Bonnet,1981,30) identifica uma retomada dos poemas e do nome de Sappho em perspectivas que pretendem separar seu talento poético de seus amores: no século XVII reaparece sob a pluma de Thomas de Bartholin, anatomista que descreve o clitóris e que fala de uma “certa sodomia” praticada por algumas mulheres, entre as quais Sappho; à mesma época Mlle de Scudéry era chamada “Sappho”, por causa da heroína de seu romance “Le grand Cyrus” o que era considerado sinômino de talento literário; no século XVIII , ser uma “Sappho” significava ser dotada de imaginação e ardor. Mas no século XIX reaparece Sappho ora na afirmação de seus amores homossexuais, ora como a poeta que  não resiste à rejeição masculina . Esta última Sappho, (Bonnet,1981,31/32) é cantada em prosa e verso, em óperas, romances e peças de teatro no século XIX, reproduzindo e reafirmando a imagem e a representação social  da “lésbica-porque-mal-amada”.

 Sappho : este nome passa a ser insulto ou elogio mas seu prestígio literário de certa forma a redime , minimiza  aos olhos da época  seu “desvio” sexual. No século XX , entretanto, os dicionários atrelam à ilha de Lesbos, onde vivia, as definições de Lesbianismo, à práticas sexuais, mas igualmente a sentimentos e emoções: De acordo com o Koogan Larousse  (1979 : 507) “ Lesbico: diz -se do amor sexual de uma mulher a outra”. Na Enciclopédia Encarta 1999, em CDRom: “Lésbica: mulher homossexual, mulher-homem, mulher-macho; Chulo: sapatão.” Quanto ao adjetivo: “Lésbico: diz-se do amor de uma mulher a outra”.

      Amor ou sexo, qual destes ítens define o lesbianismo? Um dicionário retém a sexualidade , o outro não. Então, o que é ser lésbica? Um  sentimento, uma emoção? Ou a prática de uma certa sexualidade? Como criar uma identidade individual ou de grupo em torno de uma preferência sexual, eventual ou sistemática? Que classificação é esta que em sua ambiguidade atravessa o meu ser? Em que medida tais definições não reduzem ou aniquilam o potencial subversivo do lesbianismo  em relação à normatividade, à disciplinarização dos comportamentos? Retomarei esta questão mais adiante.

Entretanto, como se pode notar nas definições dos dicionários, as conotações, as significações  que acompanham a palavra “lésbica”, são sempre negativas: mulher-macho, paraíba, mulher feia, mal amada, desprezada. As imagens revelam assim ou uma caricatura do homem ou uma mulher frustrada , uma mulher que foge ao paradigma da beleza  e da “feminilidade” e  escolhe a companhia feminina por não atrair os homens. A insignificância atribuída à relação física entre duas mulheres já demonstra qual o “verdadeiro” sexo: o masculino, sem ele não há relação sexual. Esta é uma definição delimitadora da sexualidade humana : sexualidade é sexo genital, masculino. O aceitação deste estereótipo será comentado em outro momento.

 Existe um profundo mal estar  social em torno do lesbianismo , seja para obscurece-lo ou negá-lo enquanto prática corrente, seja para desqualificá-lo enquanto mutilação do SER mulher. O obscurecimento, a eliminação dos traços e da memória do lesbianismo , a política sistemática do esquecimento é reveladora da prática disciplinar dos sentimentos e emoções das mulheres , contribuindo para seu assujeitamento a  um papel inferior na sociedade.

O princípio de justificação pela simples afirmação seria o seguinte: “É natural, porque é ; é natural, logo é bom.” Na trilha da tradição, da autoridade e de valores de uma certa moral ambígua ( o que é aceitável para os homens não o é para as mulheres) elimina-se a possibilidade do questionamento sobre as práticas sexuais¸cria-se a exclusão, o mêdo , a vergonha e a culpa.

A existência de práticas sexuais e sociais diversificadas ao longo da história mostra a própria contingência da heteronormatividade, isto é, da norma que fixa a heterossexualidade enquanto padrão. Que perigo não representaria para a relação “natural” entre mulher e homem, para a constituição de famílias centradas na reprodução, para a domesticação das pulsões e desejos das mulheres ?

De fato, ao se perder o  registro, apaga-se da memória o que vem deslocar, perturbar a ordem do discurso, a ordem do Pai. Isto explica a condenação à morte de   mulheres que se vestissem de homem, pois esta atitude representava então um elemento de perturbação na ordem do social, logo,  do mundo.

Crime ou loucura, a recusa das mulheres de assumir seu papel “natural”  de mães e esposas leva-as à morte, à prisão, ao internamento, à exclusão , caso sua atitude ameace o institucional e o normativo . O celibato, sintoma do lesbianismo, é da mesma forma um indício da desordem e sua punição pode ser, nas sociedades ocidentais, a marginalização ou o internamento, além do ridículo e da derrisão.

Na antiga União Soviética, os gays, mulheres e homens, eram internados em hospícios culpados de preferências sexuais a- sociais, atrapalhando o caminho e a moral socialista por viveram o  “vício burguês” por excelência. Em 1990, a revista “Lesbia”de Paris , em seu número de novembro, traz o testemunho de uma jovem, Olga, de 20 anos que foi internada por homossexualismo em um hospital psiquiátrico, tratada com drogas e depois de “libertada”, passou a viver sob tutela psiquiática, impedida de ver a mulher com a qual tinha uma ligação amorosa. Como ela, milhares de outras e outros.  A Pereströika não modificou muita coisa neste sentido. Da mesma forma no discurso médico ocidental pregava-se a eliminiação da “doença”, entrave para uma humanidade eugênicania, falha genética, disfunção hormonal, enunciações que de tempos em tempos voltam à baila nos jornais, revistas, “talk-shows” da televisão, etc. “Tem cura? “Nasci assim?”

Neste jogo perverso de identidades, vem ganhando o “natural-reprodutivo” como marca do humano. Resulta uma humanidade moldada pelo sexo e  cindida primeiro em homens e mulheres – com predominância dos primeiros; em seguida, do normal e anormal – com a exclusão social dos últimos.

Assim, vemos que se elimina ou se apaga o que atrapalha a ordem instituída: a moral religiosa, socialista, positivista ou “natural” dos discursos bio-científicos. Na política do esquecimento, reside a destruição ou o silêncio sobre a multiplicidade das relações humanas, sejam elas sociais ou sexuais.

“Nosso nome é legião” : o espaço vivido.

. casos famosos

Legião significa multidão, segundo o dicionário. Apesar do obscurecimento, o amor, a sexualidade, a emoção das mulheres entre si fazem parte do cotidiano vivido por  milhares dentre elas, seja de forma explícita, seja “in the closet”[2]. Mas o espaço vivido de suas experiencias varia na atualidade como variou no passado, segundo as imagens e as representações nas quais se inserem ou criam.  Onde estão, quem são, como vivem? Como se vêem, como se agrupam? Que laços poderiam unir pessoas de culturas , classes, etnias diferentes? Uma certa idéia da vida, do amor, do sexo, ou práticas específicas que as distinguem das demais? Quem são aquelas que saíram do anonimato para enfrentar o repúdio , a repressão ou a condescendência? Quem ousa explicitar suas preferências e finalmente, a questão a meu ver crucial, para que explicitá-las?

A  frase que abre este capítulo está nas últimas páginas de um livro clássico sobre o lesbianismo: “O poço da solidão “, de Radcliff Hall, romance que fez escândalo no início do século na Inglaterra. Trata-se da história de uma jovem criada como rapaz, com um nome de homem , Stephen Gordon e que vive uma vida de tormentos morais até entregar sua amada aos braços de um homem. Neste livro estão presentes os estereótipos clássicos: o isolamento, a marginalização, a bebida, a pobreza, um relacionamento doloroso e conturbado entre amantes eventuais. Os bares, um “bas-fond” enfumaçado, um clima de submundo acompanha a heroína, rica, intelectual, belo personagem sempre impecavelmente vestida de homem. Este livro, publicado em 1928. foi motivo de escândalo na Inglaterra puritana e Radcliff Hall foi processada por obscenidade.

Em sua narrativa ela não faz apologias sobre o lesbianismo, apenas conta histórias de amor entre mulheres, sem julgamentos morais e isto é causa de escândalo. Inversão, obscenidade, imoralidade, corrupção, perigo para a religião, para  os jovens, para o país, infecção, são os adjetivos e argumentos empregados para , à época, condenar o livro, que foi interditado na Inglaterra durante 31 anos.( Klaich, 1976: 216/220) Os primeiros duzentos e quarenta e sete exemplares do Poço da Solidão foram queimados no porão da Scotland Yard. ( Klaich, 1976: 215) Como a obra de Sappho.  Publicado entretanto em 14 países, inclusive no Brasil, tornou-se uma referência clássica sobre o lesbianismo.

É interessante salientar algumas características deste romance: o lesbianismo é congênito, as lesbianas são masculinizadas, formam casais no estilo heterossexual e  são infelizes.  No final, a normalidade vence: Stephen, vencida  pelo dever moral de dar-lhe condições de felicidade e inserção social, entrega “sua” mulher ao “verdadeiro” homem.

Nada menos  obsceno que   este romance onde a sexualidade é apenas discretamente sugerida e o “bem”, o “normal” e a ordem heterossexual triunfam. “Maria, não me deixe”, é o grito silencioso de Stephen ao ver seu amor se afastando , é a constatação da “incontornável infelicidade” ligada ao lesbianismo. Este é o destino da “invertida”, fatalidade, quase doença , digna da condescendência e comiseração social. Se o livro parece  datado na composição de seus personagens, as mesmas questões morais e os estereótipos ainda estão presentes na atualidade, apesar dos limites  cada vez mais transparentes quanto à delimitação de papéis “butch/femme”, o clássico casal lesbiano, reprodutor dos papéis estereotipados de gênero. A anormalidade, o desvio, a inversão, a exclusão, são categorias em torno das quais transita ainda o  medo de expressar sentimentos ou desejos voltados para o mesmo sexo.

 Este livro é exemplar na medida em que retoma os paradimas cristalizados de gênero – feminino e masculino – e faz de todas as nuances um caso de patologia física ou mental. É um discurso claramente construído em suas condições de saber, ou seja, uma lésbica escreve sobre o lesbianismo o que se pensa à época sobre este assunto. Radcliff Hall, entretanto, ligada por mais de 30 anos a Lady Una Troubridge, foi obrigada a  se exilar por ter ousado falar claramente sobre uma realidade que até pode ser vivida, mas nunca exposta e dita clara e explícitamente.

 Em Paris, porém, na Belle Époque que   se prolonga no entre-guerras, havia todo um mundo artístico onde mulheres famosas evoluíam e se amavam sem esconder suas preferências . É o caso de Nathalie Clifford Barney, escritora americana que viveu toda sua vida  na capital francesa, mantendo um salão literário por onde passaram todos os grandes nomes da época, homens- de Proust à Joyce - e mulheres, estas últimas geralmente fazendo um breve ou longo estágio em seus braços.

 Nathalie Clifford Barney era a imagem da mulher sedutora e irresistível, mas seu interesse era exclusivo às mulheres. Lyane de Pougy, uma das mulheres mais sensuais e solicitadas da Belle Époque, Renée Vivien, Colette, Lily, duchesse de Clermont Tonerre, Dolly Wilde, Djuna Barnes, Germaine Beaumont, Marie Laurencin, suas amantes foram incontáveis e famosas e aos 80 anos começava uma nova relação amorosa. Morreu em 1972, aos 95 anos ( Weiss, 1995:101), deixando muitos livros escritos e inuméraveis lembranças nos corações femininos.

 Amores múltiplos, havia entretanto uma relação especial, com Romaine Brooks, famosa pintora, que durou mais de 50 anos. Relação aberta? Tinha a fama de ser tão fiel em amizade quanto era infiel no amor. (Weiss, 1995:119) Nathalie Braney fugia a todos os estereótipos , ora sendo fotografada nua na floresta, uma verdadeira ninfa iluminando a clareira, ora vestindo um estrito tailleur e chapéu masculino. Em sua casa em Paris, reuniões pagãs e montagens teatrais eram feitas exclusivamente para e por mulheres, das quais participavam, por exemplo, Colette e Sarah Bernard. Muito rica, promovia e auxiliava a carreira das mulheres artistas e fundou mesmo uma Académie des Femmes para se opor à Académie Française, que excluía as autoras por serem mulheres.(Weiss, 1993:117)

       Outros nomes famosos aparecem e se destacam no cenário europeu e tem seu nome mundialmente conhecido, como   Florence Nightingale, que abriu o campo da enfermagem como profissão para as mulheres ; Ana Freud, filha e herdeira de Freud no desenvolvimento da  psicanálise (Richards,1993); a escritora Gertrude Stein , Marguerite Yourcenar, primeira mulher admitida na Académie Française cuja relação com sua tradutora,Grace Frick, durou 40 anos. Todas elas, lesbianas, viveram longas histórias de amor com outras mulheres.

Florence Nightingale organizou o sistema hospitalar militar inglês e aos 36 anos volta da guerra da Criméia como heroína, tendo feito baixar a taxa de mortalidade dos feridos de 41 a 2.2%.,(Richards,1993:68 ) Com o fim da guerra, em 1860, fundou a Escola e Lar para Enfermeiras Nightingale, em Londres. A inauguração desta escola marcou o início da formação profissional na área de enfermagem. Seu primeiro grande amor foi Marianne Nicholson e igualmente sua tia, Mai, mais velha que ela 20 anos, que deixou marido e filhos para estarem juntas durante alguns anos. (Richards,1993:51/52)

Dell Richards afirma que se Ana Freud soubesse estar seu nome num livro sobre lesbianismo daria voltas em seu túmulo. (Richards,1993: 259) Segundo esta autora, Ana teria afirmado: “Não sou lesbiana. Apenas me apaixonei por uma mulher” (Richards,1993: 243) Isto é extremamente  significativo em relação à questão inicial destas reflexões: o que é o lesbianismo, o que é ser lésbica?[3] Quem se considera lesbiana e quem é assim considerada?

 Quando se pensa que só em 1973 a Amercian Pshychological Association retirou o homossexualismo de sua lista de doenças e no Brasil apenas  em 1999 o Conselho de Psicologia em seu código de ética proibiu os terapeutas de tentar mudar a orientação sexual de seus pacientes, não é de se espantar que as pessoas tenham receio às vezes de confessar a si mesmas suas pulsões. Em todo o caso, Ana Freud viveu uma relação de  mais de 25 anos com Dorothy Tiffany Burlingham, com a qual trabalhou, escreveu e criou a Hampstead War Nurseries, para tratamento de crianças órfãs de guerra e que se tornou um centro de referência mundial para o tratamento psicanalítico de crianças.

        Gertrude Stein , escritora norte-americana que causou um grande impacto na literatura do século XX, viveu toda sua vida com Alice Toklas, que editou seus livros. Edith Hamilton, autora de “Mitologia” , primeira mulher a entrar na Universidade de Munique, célebre especialista da Grécia antiga, cidadã honorária de Atenas, recebeu a Cruz de Ouro da Order of Benefaction do rei Paulo da Grécia em 1957 ; foi diretora por 25 anos da Bryn Mawr School of Girls e viveu também um amor de vida inteira com Doris Fielding Reid, uma antiga aluna sua.

Sylvia Beach e Adrienne Mornier vivem juntas  e fundaram a livraria-editora Shakespeare and Company em Paris, onde se arriscaramm a publicar escritores “malditos”à época, como Joyce e que se tornou um dos centros culturais da época, antes da 2a guerra.(Weiss,1995: 30/57).Vita Sacckville-West, outra escritora de sucesso, além de seus livros ficou conhecida por seus amores com Virgínia Wolf, e inúmeras outras mulheres, Violet Trefusis, Margareth Goldsmith Voigt, novelista, Mary Campbell, poeta, entre outras. Vita era casada, mas não hesitava em viajar com suas amantes vestida de homem, para evitar problemas sociais. ( Richards, 1993:261/285) Dizia sentir-se duas pessoas, homem e mulher, vivendo assim uma bissexualidade assumida.

Estas mulheres, que assumiram explícitamente ou não seu lesbianismo nasceram em geral em fins do século XIX , mas viveram, amaram , trabalharam e produziram suas obras no século XX. Americanas em Paris, francêsas, inglesas, desafiaram padrões rígidos de comportamento e abriram as portas  de diversas instituições profissionais e artísticas, interditadas às mulheres pelo guante do patriarcado.

Em outros tempos, como em Paris do século XVIII , falava-se  à “boca pequena” da rainha Maria Antonieta e suas “amigas íntimas” como Madame de Lamballe, cujo corpo decapitado foi arrastado diante de seus olhos; Catarina II, a grande,czarina de todas as Rússias, não parecia ser indiferente às mulheres  de sua corte; Catarina de Médicis, no século XVI, era famosa pelo seu   séquito  de favoritas;. E a rainha Vitória? Misteriosa vida íntima, solteira invicta, quem pode por a mão no fogo quanto às suas práticas sexuais, apesar de seu puritanismo aparente?  Greta Garbo? Quem diria? Envolta em um halo de segredo e discreção conseguiu guardar seu “segredo”do grande público.

Rainhas, plebéias, servas, neste mundo de um quotidiano banal ou de círculos mais restritos das artes e da literatura evoluíam assim incontáveis mulheres, em diferentes espaços e épocas, às vêzes casadas, outras não, trocando amor e sensualidade, com maior ou menor dificuladade de inserção social.  Entretanto,quantas  milhares de outras se escondiam ou se expunham, num anonimato que as fez desaparecer das páginas da história, da memória social, da própria  existência ?

 Na Europa ou na América, nas mais diferentes épocas, as mulheres se amaram , se desejaram e viveram emoções  sexuais , eróticas, passionais ou amizades especiais e duradouras  que as ligavam intimamente. Aos poucos a história as traz à luz , difícil nascimento de relações impensáveis, saindo aos poucos do impossível.

 Ligia Bellini nos traz imagens de mulheres acusadas de “sodomia”[4] e julgadas pela Inquisição no Brasi, entre 1591 e 1595: 29 mulheres ( Bellini, 1987:34/35/36), das quais apenas uma solteira e duas viúvas. Todas as outras eram casadas. Francisca Luis, negra alforriada e Isabel Antonia, degredada para o Brasil pelo “crime nefando”, tiveram um caso escandaloso em Salvador, com cenas de agressão e ciúme em público que foi parar no Santo Ofício.

Paula, mulher do Contador da Fazenda de El Rei confessou  seu “ajuntamento carnal”com Felipa de Souza, que teve, no mínimo, 6 parceiras confessas. (Bellini,1987:22 a 24) As penas variavam de multas a repreensão ou ao degredo. Felipa de Souza era negra forra e  seu caso aponta para um tipo de relacionamento pouco estudado: o que podia existir entre as mulheres brancas e negras, entre as senhoras e as escravas.

Bellini indica vários casos de relacionamento deste tipo, como o de Guiomar Piçara e Mecia. Maria de Lucena acabou sendo expulsa de casa por dormir com as escravas, principalmente Vitória e Magayda.( Bellini, 1987:29) Resistência? Desejo? Amor? O que se percebe é o desabrochar da emoção lá onde só se via o domínio sexual do homem sobre a mulher: a família colonial.  O “cafuné”, o recostar das senhoras no colo de suas escravas para o descanso vespertino podem dar um perfume de relações amorosas das brancas entre si, das escravas entre si ou de negras e brancas confundindo seu suor e seu prazer.  Outras práticas, desenhos coloridos de uma vida estranha às nossas imagens. Que mundo desconhecido não iremos ainda descobrir? É toda uma parte da história do Brasil, da história das mulheres a ser desvelada.

         No século XVII, na Toscana, irmã Benedetta Carlini, abadessa do convento Mère de Dieu sofre uma série de inquéritos eclesiásticos que transitam entre suas visões místicas e suas relações sexuais com uma outra religiosa. ( Brown, 1986) Fatos esporádicos e inéditos , iluminados  por historiadoras, apontam assim para vivências múltiplas, para espaços vividos de encontros físicos e amorosos que despontam em locais propícios, de convivência próxima – conventos, colégios, acampamentos, prisões – e em outros absolutamente comuns, como os locais de trabalho e de diversão.

Este é um espaço deixado no ostracismo pela história, mas os registros existem,  mostrando as dobras de um mundo desconhecido onde as mulheres exerciam sua sexualidade e desenvolviam sentimentos mútuos na rede patriarcal que limitava suas ações..

Carrol Smith-Rosemberg,(1975) por sua vez, trabalhou as relações entre as mulheres nos séculos XVIII e XIX, através de cartas trocadas nestes períodos, nos Estados Unidos, em grupos Mórmons e Quakers. Mostra que, nesta configuração social específica, o mundo das mulheres funciona quase sem a presença masculina e as emoções e os afetos florescem na espontaneidade do desejo e da amizade.

                As cartas contam histórias de amor e paixão, de sentimentos partilhados durantes anos a fio, na proximidade e na distância. Histórias cheias de sensualidade e de desejo, cartas onde o sopro da vida passa pela presença, pelo toque, pelo encontro das amantes. Nelas desponta o frescor da cumplicidade, da generosidade, da paixão entre as mulheres, cuja expressão expõe o múltiplo do sentimento humano ; a historiadora , debruçando-se sobre o possível, mostra os perfis singulares da emoção e da sexualidade que surgem onde se menos espera.

               Com Carroll-Smith Rosenberg  as relações entre as mulheres reaparecem na história, em uma realidade próxima e ao mesmo tempo alheia aos padrões com os quais se costuma analisar os séculos XVIII e XIX.

               Se as  margens de tolerância quanto a estas relações eram amplas, parecem entretanto, delimitadas por um lado, pela pouca importância dada a relações afetivas ou sexuais entre mulheres, já que a “verdadeira” sexualidade encontrava-se no sexo masculino. Por outro, apesar desta ampla latitude emocional o mundo dessas mulheres relacionava-se ao esquema tradicional: eram quase todas casadas, mães e transmitiam imagens de gênero estereotipadas e centradas nas tarefas definidas socialmente como femininas.

               Assim,  não ameaçava a ordem instituída, a Ordem do Pai. Eram, desta forma, aceitas e incorporadas à rede de laços familiares. “As grandes amigas”, traduz-se “as amantes”  não escondiam seu afeto que finalmente não modificava a divisão dos gêneros: feminino e masculino. Entretanto, apesar de dobrar-se às exigências das instituições- casamento e maternidade - não permitiram que seus sentimentos e sua sensualidade fossem por elas domesticados e limitados ( Rich, 1981 :37)                                       

          De um lado, portanto, uma sociedade de normas rígidas e estritas, como a dos Mormons ou Quakers, estudada por Rosenberg; de outro, uma estratégia social que aceita e interina as relações homoeróticas neste mundo de mulheres, já que não interferiam na organização simbólica  e material.

          Neste caso, as experiências múltiplas das mulheres entre si , de toque, de paixão e de sexo não apareciam como transgressões: estas relações parecem inserí-las em um mundo de outra categorização binária: a das emoções/ prazer e a do práticas institucionais/dever. Não estando nas margens, no border line, mas integradas às configurações culturais de relacionamento e aos limites do corpo sexuado, do afeto e da sensualidade, estes apaixonados e sólidos laços entre mulheres desaparecem no discurso monótono das relações binárias. Se não fosse a inquietação, o questionamento da historiadora, quem hoje conheceria estas relações entre mulheres mórmons e quakers? O que a memória social não retém, perde a espessura de sua realidade. Da mesma forma, ignorar e esconder o homossexualismo feminino é também uma tática  para traçar um caminho único à sexualidade e ao sentimento amoroso. 

. Algumas opiniões

A ambiguidade com que é visto e tratado o lesbianismo varia portanto, segundo o tempo e o espaço vivido, desde que, no patriarcado, não ameace as instituições. Varia igualmente segundo a imagem e o conceito que se tem das relações sexuais e/ou amorosas entre mulheres.

Vamos encontrar em Simone de Beauvoir,por exemplo,  arauto do feminismo contemporâneo, os mesmos estereótipos em 1949, vinte anos depois do lançamento do Poço da Solidão. No “Segundo Sexo,” ( Beauvoir,ed. 1966) obra fundadora das teorizações feministas, a  indecisão argumentativa a respeito do lesbianismo  navega nas águas do senso comum, da “autoridade” dos testemunhos  mas apresenta em certos momentos  uma análise aguda das imagens construídas sobre preconceitos.

Em uma frase, de Beauvoir desfaz o aspecto determinista da homossexualidade feminina e aponta a escolha como fator principal de um certo modo de vida social ou sexual.  “[...] nenhum destino sexual governa a vida do indivíduo; seu erotismo traduz ao contrário sua atitude global quanto à existência.”(Beauvoir,1966:185)

Muito atual esta afirmação que separa o erotismo ( aqui entendido como sexualidade) e o sexo; afirmação da liberdade e da escolha  na coerência da pessoa, do indivíduo face ao social. O lesbianismo seria assim uma escolha pessoal , “existencial”.

Por outro lado, suas considerações sobre o amor entre as mulheres, que aqui se confunde com a sexualidade, criam um universo erótico particular, pois “[…] as carícias destinam-se menos a apropriar-se da outra do que recriar-se lentamente através dela; a separação é abolida, não há luta, nem vitória, nem derrota; em uma mesma e exata reciprocidade cada uma é ao mesmo tempo o sujeito e o objeto, a soberana e a escrava, a dualidade e a cumplicidade.”(idem:184)

Neste idílico universo, suas considerações tem o mérito de contemplar a quebra da representação social de um mundo divido em dois, de hierarquia e assimetria que estão ligadas à heterossexualidade obrigatória.

Mas, recuperando as imagens estereotipadas, o lesbianismo aparece também como o fracasso de uma sexualidade “normal”, último refúgio das mulheres cujo físico ingrato não atrai os homens. “Desgraciosa, mal formada, uma mulher pode tentar compensar sua inferioridade adquirindo  qualidades  viris.”, dirá de Beauvoir.( idem:171) E acrescenta: “O desdém masculino confirma a feia no sentimento de sua falta de beleza ; a arrogância de um amante ferirá a orgulhosa. Todos os motivos de frigidez nos quais pensamos: rancor, inveja, medo da gravidez, traumatismo provocado por um aborto, etc, encontram-se aqui.”( idem:178)[i] Tornar-se lésbica  portanto , para de Beauvoir, seria uma saída para a inveja, a feiura, as famosas “mal amadas”que se voltam para o mesmo sexo pela impossibilidade de ter relações ‘normais” ou por frigidez pura e simples. “ Nada  dá uma impressão maior de estreiteza de espírito e de mutilação que estes clans de mulheres liberadas”( idem:192) diz de  Beauvoir, que conviveu com Nathalie Barney e frequentou seu salão literário. Os pré-conceitos, os estigmas voltam a seu discurso, as imagens cristalizadas refazem sua aparição.

 O peso deste senso comum em de Beauvoir parece espantoso, mais isto apenas demonstra o poder das representações no discurso social, no imaginário que habita tudo o que é dito, escrito, publicado, discutido, enunciado em um estado de sociedade específico.

O traço mais marcante de seu  texto sobre o lesbianismo poderia ser a referencia maior e constante ao homem, às relações heterossexuais e sua ‘normalidade”.em suas reflexões sobre os lesbianismo. Entretanto, o amargo depoimento de  Bianca Lamblin (1993) vem confirmar as incursões amorosas de de Beauvoir nos meandros do lesbianismo. Inconfessáveis atrações? Quem não as tem, ou teve, ou terá? Em todo o caso, o feminismo apresenta sérias dificuldades em relação ao lesbianismo, como veremos adiante.

Apesar de denunciar a construção social dos papéis de gênero com a clássica frase: “não se nasce mulher, torna-se ” , reafirma a ordem instituída como “natural” na medida em que  desenha nitidamente uma “natureza” feminina, uma feminitude que se afirma não somente em relação a masculino, mas também em oposição às “atitudes viris” das lésbicas. A inversão, palavra empregada muitas vezes por de Beauvoir sublinha a noção de uma ordem transtornada. Face à  “verdadeira mulher”   encontram-se  as lésbicas, cuja sexualidade seria infantil, incompleta pois  “[…] se sua sensibilidade erógena não é desenvolvida, ela não deseja as carícias masculinas”.( idem, 171) De seu lugar de fala privilegiado, de Beauvoir interina as representações e os preconceitos sobre o lesbianismo e reforça o biológico enquanto “natureza’  em oposição à construção dos papéis sociais. Contradição? Pois é.

Neste mundo de imagens, o que é finalmente ser lésbica? A  resposta é complicada pois como pode uma prática definir o ser? Se eu digo: “sou professora, sou  médica, sou diretora, sou engenheira”, estou expondo minha atividade profissional, minha especialidade, meu cargo; se digo “sou gorda ou magra, pobre ou rica ”estou expressando une estado de ser, eventual. Se digo, porém, “sou lesbiana” estaria falando de meu ser profundo, de minha subjetividade , de minha identidade ? Porque? Porque afinal, tantos problemas em se ocultar ou se expor, em dizer , explanar, contar, mentir, fingir, enfrentar, sofrer uma “diferença” , imposta do exterior? “Sair do armário”, se revelar, desafiar, que sentido tem estas atitudes , senão num quadro binário onde a sexualidade se tornou o centro , o núcleo do ser , a expressão definitiva do indivíduo?

No Ocidente a partir da baixa Idade Média , a religião cristã criou em torno da sexualidade, como bem mostra Foucault ( 1976), um halo de mistério e de pecado, fez da reprodução ,esta função física, o eixo em torno do qual passou a girar a vida social, material, espiritual,  estruturada na família heterossexual  e na instituição do casamento monogâmico. “Pecou contra a castidade?” repetiam e repetem incansavelmente os padres nos confessionários, a voz um pouco ansiosa. Aos poucos, a sexualidade vai sendo censurada, limitada, definida, esboçada em perfis cada vez mais estritos, sempre se acentuando que só era aceita e válida em vista da procriação.

 Abaixo o prazer, viva o missionário! Toda uma estética do erotismo desaparece nos abismos do pecado e da luxúria. Nesta perspectiva, a homossexualidade só podia ser vista como a pior das perversões, aquela que contorna a reprodução e impede o controle dos corpos pela domesticação da carne. Não é de se espantar que durante muito tempo  a sodomia tenha sido  considerada um crime tão  grave quanto  um  atentado contra o rei, passível de pena de morte. Mas se a atitude é repressiva, a importância que se atribui à sexualidade é a outra face que instiga, ordena , controla: é o poder que faz da sexualidade o nódulo central da existência, definindo vidas, identidades, carreiras, divindo o mundo entre os “normais”e os “anormais/ invertidos/desviantes  O traçado de um caminho “correto” passa a ser o viés da exclusão das manifestações múltiplas de afeto e/ou sexualidade.

No século XIX,  alguns médicos e psiquiatras[5] atuam como experts junto aos tribunais e à noção de crime alia-se a idéia de doença em relação aos comportamentos sexuais desviantes, ou seja, fora da conjunção carnal heterossexual. Klaich (Klaich,1976:70) comenta que para encontrar a homossexualidade feminina em certos tratados , era preciso buscá-la entre os canibais, os zoófilos, necrófilos, coprófagos, estupradores, assassinos passionais,  manifestações estas classificadas em conjunto como “psicopatologia sexual”. As noções de “doença congênita”, de degenerescência se completam com a idéia da “homossexual inata”, onde suas preferências sexuais estariam inscritas em seus genes, degenerados, que criariam uma predisposição incontornável. Doentes física e mentalmente, portanto.  Estas idéias tiveram um campo de recepção extremamente favorável e no clássico romance que citei acima – O poço da solidão – esta é a visão da própria autora sobre o lesbianismo. No ano 2000 ainda vemos um resquício desta noção , na divisão entre as “verdadeiras” lesbianas , as que sempre o foram, e as outras, bissexuais, ex-casadas, etc.

A construção social do desejo sexual nas mulheres está presente no tratado de Krafft-Ebing, mas passa desapercebida enquanto tal, na afirmação do instinto de procriação, construção moral de uma época, que passa a circular com valor de verdade . Assim como para Rousseau, um século antes, para este autor a passividade sexual e social devem ser fruto de uma educação conveniente, que encaminharia a sexualidade feminina para o caminho, correto, do instinto reprodutor”: o desejo da mulher finalmente, não passa do desejo de ser mãe. Este seria o instinto sexual da  “verdadeira” mulher. ((Klaich,1976:71)

O comportamento social, assim, é visto como um retrato de uma mulher “comme il faut”.[6] As meninas eram assim vigiadas em suas preferências, em suas atitudes, na busca constante de  sintomas de normalidade ou desvio: fúteis, frágeis, passivas, diáfanas, superficiais,ignorantes, felizes de sê-lo, são as verdadeiras mulheres.Qualquer manifestação quanto ao intelecto, à leitura, à atividades “impróprias” – podia ser um signo de anomalia, de lesbianismo, de “querer tomar o lugar do homem”. Até mesmo as reivindicações sociais básicas, como a possibilidade de estudar, eram vistas com suspeita.

 No Brasil do século XIX, como mostra um estudo sobre as mulheres do hospital psiquiátrico do Juqueri, em São Paulo, aquelas que se vestissem de forma masculina, que tivessem uma profissão, que pudessem ganhar sua vida ao exercê-la, eram vistas como sociopatas. ( Cunha, 1989)

Segundo Corbin, neste mesmo século, em Paris, Parent-Duchatelêt publicou um livro  sobre a prostituição que teve grande influência, à época, e nele afirma um de seus perigos  é a possibilidade de levar a mulher ao  “cúmulo da abjeção”, ao tribadismo.( lesbianismo) Sublinha a  “terrível ameaça” que representa o tribadismo sobre a ordem sexual e constitui um atentado moral direto à moral do comportamento feminino. ( Corbin, 1978 : 17,19,22)

Quanto a Krafft-Ebing o tratamento que propõe  para “curar” as homossexuais se desdobrava em várias  partes: impedir a masturbação ( isto vai ser realizado com a cauterização ou ablação do clitóris); curar a neurastenia ( definida como inquietação, como não-conformismo? ) e sobretudo, encorajar os sentimentos heterossexuais com um estrito controle de si mesmo. ((Klaich,1976:76) Como conciliar o “natural” da preferência heterossexual se a domesticação, a disciplina, a mutilação são exigidas para que as meninas não se desviem do “bom”caminho? É claro que toda uma teoria filosófico-religiosa construtora de uma representação maléfica da mulher, pecadora por excelência, ajuda na justificação de tais procedimentos.[7]

A construção social aí se confunde na moral, na religião, na ciência para melhor delimitar o gênero feminino e suas funções “naturais”: a prática heterossexual aparece  assim como condição sine qua non para a realização do destino último das mulheres: a maternidade. É também  marco de sanidade mental, de inserção social, de uma perfeita consonância com a “natureza” das coisas. Mas se o instinto natural é tão poderoso, porque a repressão, porque a necessidade da educação domesticadora?

A constatação de que as lesbianas eram fêmeas humanas perfeitamente constituídas fisicamente, nos casos estudados, levou à criação da idéia do desvio, da doença, enquanto teorias explicativas de suas preferências sexuais. Porque senão, como instituir a preferência heterossexual como “natural”? Como separar a instituição social daquilo que é concebido como “natural”, senão pela própria afirmação redundante de que é natural “porque é”? O espaço vivido do lesbianismo se reduz na proporção do medo, do assujeitamento , da vergonha de ser “diferente”, da repressão implícita e explícita  que   aponta e nomeia para melhor excluir. Lésbica: a palavra designa e constrói ao mesmo tempo todo um campo de representações negativas.

Mas além da religião e da psiquiatria,[8] uma outra forma de dogmatismo se instala , dotada do prestígio da  ciência: a psicanálise. Os postulados psicanalíticos  conferem  à  sexualidade a importância maior no desabrochar da individualidade. Se há uma pausa significativa no caminho evolutivo das fases ( anal, oral, genital),  isto significaria um desvio ou uma fixação anormal em estágios anteriores à sexualidade adulta. Assim, os/as homossexuais estariam vivenciando uma sexualidade  cristalizada em uma fase anterior ao pleno desenvolvimento sexual, em práticas mais ou menos infantilizadas.

O feminismo tem discutido , interpelado, debatido os pressupostos da psicanálise, que de certa forma vem interinar os papéis sociais de gênero – mulher/ homem,- a partir de um sexo determinado biologicamente.

E neste caso, as nuances dos pressupostos psicanalíticos, em sua construção enquanto teoria da sexualidade são obscurecidas pelo rolo compressor dos estágios de desenvolvimento da sexualidade, pelo complexo de castração, pelo desejo do pênis, pelo complexo de Édipo, pela noção de uma sexualidade difusa que é a herança das mulheres – por serem mulheres. Nelas, a  falta do pênis seria substituída pela maternidade, e deste modo, mais uma vez a teoria, a ciência, vem confirmar e ratificar a heterossexualidade - como fundamento inquestionável -  e os papéis de gênero, estabelecidos de forma hierárquica e assimétrica.

A prática clínica tenderia assim a disciplinar as diferentes práticas sexuais em direção a seu destino anatômico guiado pelo instinto da procriação. Mas desta forma,  a psicanálise não descreve apenas os mecanismos de evolução sexual: ela se torna um destes mecanismos. Isto significa que a prática psicanalítica seria um dos caminhos de instituição da heterossexualidade “natural” ( Rubin, 1975:184); por outro lado se para a teoria  psicanalítica  a sexualidade é central na vida humana, desenvolvendo-se em patamares,  gravitando em torno da presença ou ausência do pênis, o masculino torna-se seu eixo fundamental . A inveja do pênis seria um  sentimento partilhado por todas as mulheres; mas ficando claro   o esquema de poder que dá prioridade ao detentor do  penis, não seria o desejo de aquisição deste poder social o fator  determinante para o complexo de castração? “Freud explica” diria o senso comum...

Até mais  ou menos 1920 ( Rubin,1975: 185) a sexualidade humana é descrita a partir do complexo de Édipo, que comtemplaria o amor do menino pela mãe, frustrado pelo medo da imagem de um pai castrador. O desenvolvimento da sexualidade da menina fica meio nebuloso, e esta formulação supõe dois seres biologicamente determinados em suas pulsões heterossexuais. A partir desta época, entretanto, o debate psicanalítico se detém sobre um período pré- edipiano, na qual as crianças dos dois sexos seriam psiquicamente indistintas quanto à sexualidade: no início, portanto,  seriam bissexuais: as atitudes passivas ou ativas não seriam próprias a um ou outro sexo, mas adquiridas. Nesta perspecitva, o feminino ou o masculino seriam assumidos e não  desenvolvidos naturalmente sobre um fundamento biológico.( Rubin,1975: 186) Na fase pré-edipiana a criança é confrontada com a heterossexualidade de sua mãe e de seu pai: como seria seu desenvolvimento fora deste esquema?

 Os meandros  dos esquemas psicanalíticos parecem, como sublinha Rubin, mais do que apontar a natureza das coisas,  descrever um desenvolvimento sexual dentro de parâmetros sociais, ou seja, em uma rede significativa que sublinha o importante, o certo, o errado e o normal. Que determina a fonte do poder e a subordinação subsequente. A determinação se faz portanto no social e não  na natureza das coisas. É a natureza das relações sociais que decide os critérios básicos do que é natural, normal, aceitável; é a rede de sentidos social que determina o valor, a divisão, a coerção e a exclusão. A sexualidade é um marco divisório cultural e as práticas que a compõem dependem do perfil social; homo ou heterossexualidade, aparecem assim como configurações da experiência humana, e não sua natureza intrínseca.

Nesta ótica, cada sociedade produz um sistema de apreensão e organização do mundo; o lesbianismo desenha-se no Ocidente patriarcal[9] a partir das representações do feminino e a subordinação/ exclusão social se dá a partir de sua condição de mulher. Monique Wittig, romancista e teórica feminista francesa,considera entretanto, o lesbianismo uma categoria à parte, pois a definição do feminino só tem razão de ser numa política heterossexual. Neste caso, as lesbianas não seriam mulheres porque não se sujeitam ao desejo masculino e ao controle social que determina os contornos do feminino. (Wittig,1980:53) O efeito político do lesbianismo seria a recusa do patriarcado em seus fundamentos, ou seja, do contrôle do desejo, da emoção e do corpo definido biologicamente como feminino. Esta perspectiva apresenta o lesbianismo como um fator de modificação da ordem instituída , como ponta de lança na transformação dos poderes vigentes. Para as  Radical  Dykes, cujo discurso fez parte dos debates feministas da “Segunda Vaga” dos anos 70/80, “[...] a lesbiana é a cólera de todas as mulheres condensada em ponto de explosão.”( Nicholson, 1997:153)

A antropologia também contribui ao debate e se nos atemos ao estruturalismo de Lévi-Strauss, a heterossexualidade seria um pressuposto básico  da organização social, a partir, por exemplo, da noção básica da troca de mulheres ou do tabu do incesto. Mas Gayle Rubin (Rubin,1975:159) afirma que nem Freud nem Levi Strauss perceberam as implicações de suas teorias, quando analisadas por um olhar feminista.

 É assim que quando L.Strauss  aponta a troca de mulheres entre os homens como o fundamento do sistema do parentesco, está de fato descrevendo a construção social da opressão das mulheres,e não descrevendo a incontornável natureza das coisas. (Rubin,1975:159) Parentesco é organização social e distribuição de poder: assim , a troca de mulheres aponta para o social e não para o biológico.( Rubin,1975:175)                                

 Que tipo de autoridade pode afirmar que tudo sempre foi das mesma maneira? Sobretudo em antropologia, onde a própria diversidade da organização sócio-cultural demonstra a impossibilidade de afirmações universais? Nicole-Claude Mathieu faz uma tipologia das possibilidades de articulação entre o sexo biológico e o papel social e aponta vários exemplos que desfazem a lei “natural” da heterossexualidade: um caso muito conhecido é o dos berdaches, que  existiam ainda no século XIX entre os índios das planícies e do Oeste da América do Norte: fêmea ou macho biologicamente, escolhiam o gênero social a que pertenceriam, que de fato consistiria num “terceiro sexo” institucionalizado e aceito socialmente.( Mathieu, 1991: 248/249) Entre os Mohave, como sublinha Rubin, a situação é similar aos berdaches. No Dahomey uma mulher pode se casar com outra, desde que tenha condições de pagar seu dote. ( Rubin, 1975:181) e o mesmo acontece em outros países da Africa. .( Mathieu, 1991:281)

Qualquer desqualificação destes comportamentos em torno de categorias tais como primitivo/ civilizado; pagão/ cristão não passam de construções  morais fundamentadas num etnocentrismo que divide o mundo entre o grupo do Nós  os evoluídos, os escolhidos e os Outros. Quem arrisca dizer “exercício de poder” tem grandes chances de acertar. Poder de normatizar, poder de subordinar, poder para construir uma superioridade na desqualificação do outro.

 A famosa “diferença natural ” entre homens e mulheres é enfatizada na construção social do “ser” mulher ou homem, em detrimento de suas similaridades: assim, os sexos são considerados opostos, quando é a educação e a repressão que fazem do sexo biológico o masculino e o feminino. “Menino não chora”; “menina não demonstra força”; “menino é corajoso”, “menina é retraída ”: frases que todos já ouviram ou sentiram na própria pele. De fato, a rígida construção da personalidade em características totalitárias de feminino ou masculino é que define e cria a heterossexualidade enquanto norma e o homossexualismo como desvio.   Menina que gosta de esportes, que não brinca com bonecas????? Hummmm..... será que ela é?

A socialização das crianças é um processo de formação de pequenas fêmeas e machos ensinados , desde o berço , na escolha das cores das roupas infantis, que cada sexo tem seu lugar e seus limites , suas preferências corretas, seu caminho definido. A coragem da emoção, o desafio da afirmação de um desejo singular  são atravessados pela exclusão , pela injúria, pelo aniquilamento; o preço da “normalidade” é a domesticação, a  disciplina do múltiplo humano em torno da crença do binário, cujo selo é o “instinto natural” de procriação. Nada pode ter a pretensão de provar ou identificar algo de inato, tendências, preferências,comportamentos e a história das ciências[10] demonstra a validade temporária das definições universais e dos conceitos definitivos.

. imagens do tempo presente.

 Mas o que é  finalmente, ser lésbica? Quem são estas pessoas que afrontam a opinião alheia, a imagem social para afirmar uma singularidade?

Se a ciência hoje, como  vimos,  abre espaço para o questionamento da naturalização da relação heterossexual, qual a latitude do espaço vivido pelo lesbianismo, que questões suscita à ordem social,  em que rede de imagens e representações do lesbianismo se inserem as pessoas que se dizem lésbicas ou que não se afirmam, mas são vistas como tal?

Foucault   considera que o mundo moderno tem sido regido por um “dispositivo da sexualidade”, ou seja, uma rede de investimentos políticos, econômicos, institucionais, científicos, religiosos, jurídicos,educacionais que trazem ao centro do social o sexo e a sexualidade, e lhes conferem a importância máxima que podemos observar no quotidiano de nossas vidas. (Foucault ,1988:244) Este dispositivo atua em ramificações conscientes ou inconscientes, intencionais ou aleatórias , mas faz do sexo e das práticas sexuais a chave do controle de si e de outrem. Neste pulsar incessante de estímulos, o desjo sexual toma uma aparência polimorfa,  os limites são expandidos e a tolerância social parece ampliar seu horizonte quanto às escolhas individuais.

Ao nomear, identificar, catalogar as lesbianas enquanto desvio da natureza,  patologia ou caricaturas, imitação do masculino, as ciências e o senso comum criaram, ao mesmo tempo  o espaço de sua existência, de sua presença no mundo. Deram origem assim à possibilidade da identificação, do encontro, da união, da reivindicação; a quebra da solidão engendra a corrente da informação, do conhecimento, da ajuda mútua, de solidariedade. Assim, as “saídas do armário” ( out of the closet) se tornam mais frequentes, mais explícitas: o número diminui o medo,  e a crescente visibilidade tende a diminuir o preconceito. Quantas jovens e mulheres não sufocaram suas emoções diante do espectro da anormalidade, do pecado, da monstruosidade?

Aos poucos, alguns grupos lançaram revistas, boletins, criaram grupos de reflexão que deram não apenas visibilidade mas inteligibilidade ao lesbianismo.Alguns poucos exemplos ilustrativos: na França,  várias revistas, com maior ou menor regularidade, apareceram desde os anos 70, como “Désormais”. “Quand les femmes s’aiment » ; « Bulletin des archives lesbiennes »,  “La Grimoire”, “Lésbia”, esta última de grande circulação e que existe até hoje . No Québec, a tradicional revista  « Treize » vem tentando manter sua periodicidade de 4 números por ano  ; nos Estados Unidos, « Off  our backs » ; « Lesbian connection », « Lesbian contradiction », « Girlfriends », « Quim »  e revistas de estilo acadêmico surgem também como “Lesbian ethics”ou “ Common Lives, Lesbian Lives” ; “Vlasta”, na França; no Brasil, “Femme”, “Um outro olhar” abririram caminho neste campo. Livrarias especializadas também, como “Les mots à la bouche”em Paris, ou “L “androgyne” em Montréal  funcionam como pontos de difusão de informações e encontro e  nelas pode-se encontrar prateleiras de literatura lesbiana, que vão desde romances, teoria, poesia, ficção científica e policial. Nomes como Nicole Brossard, romancista do Québec,  de renome mundial, traduzida em 15 países  ou Louky  Bersianik, uma das primeiras autoras a trabalhar a crítica e a escrita fora do binário heterossexual. Na Sorbonne, foi realizado um Colóquio Internacional  em 1989 sobre “Homossexualité & Lesbianisme”: estranha denominação que coloca o lesbianismo como categoria outra, fora do homossexualismo.

Evidentemente, com a proliferação dos “chats” na Internet, a comunicação se fez instantânea , intercultural, internacional. Experiências,idéias, discussões se abrem de forma mais ampla, os encontros são mais fáceis e o isolamento quebra-se como por encanto. Abre-se um mundo novo na troca , na amizade, no “papo” informal. Mas como todo “chat” na Internet, nunca se sabe ao certo com quem se fala..É claro que em países  como o Brasil estes contatos só são possíveis entre uma pequena minoria que dispõe da tecnologia adequada; minoria sexual na minoria com recursos suficientes, mesmo  assim, o número de participantes dos “chats” é grande. Resta saber quantos homens se dizem lésbicas, nestas conversas.

Os modelos de identificação são difíceis de se encontrar, principalmente no dia a dia da vida comum; no mundo do espetáculo, porém, a fama de certa forma libera os costumes. A diferença , nestes casos, é instigadora, é “merchandising”: é o diferente exibido como curiosidade, como exceção, o que de fato, serve para   reforçar a norma . Arautos da bissexualidade como Madona aparecem como provocadores, pois sua homossexualidade é ocasional, não interfere na divisão binária , na ordem sexuada do mundo; já a afirmação de um lesbianismo convicto, como Angela Ro-Ro, faz dela um espetáculo à parte, envolta em um halo de deboche e derrisão, marcada pela “diferença”, impondo-se entretanto, pelo seu inegável talento. As façanhas esportivas também colocam  personagens acima dos mortais : Nadina Navratislova declara seu lesbianismo em alto e bom som. No mundo dos esportes a visibilidade lesbiana é grande, espaço de liberação do corpo e das amarras.

Festivais femininos de música  como Lilith Fair são ocasiões de presença maciça de lesbianas para a apresentação de cantoras e compositoras  famosas como K.D.Lang ou Jewel, que não escondem suas preferências sexuais. No Brasil, algumas conhecidas cantoras atraem um público específico tendo em vista suas preferências ou aventuras conhecidas no circuito “entendido”. Ainda que não declarando abertamente seu lesbianismo atuam como ponto de aglutinação de uma “comunidade”que não tem nome, sigla ou perfil. Há toda uma rede de comunicação informal onde tudo se sabe entre pares.

  Festivais de cinema homossexual são igualmente ocasiões de encontros e debates, reunindo em torno das imagens pessoas ávidas de identificação, de um lugar no mundo. A busca do grupo, da tribo, dos “meus” se faz assim pública por ocasião dos espetáculos, das festas, onde a inversão da ordem não representa a revolução dos costumes.

Nos Estados Unidos e Canadá verdadeiras comunidades lesbianas foram criadas e mantidas por muitos anos, reinvenções modernas das Amazonas; algumas tiveram a revista “Amazones d’hier, lesbiennes d’aujourd’hui” de Montréal, nos anos 80,   como locus de comunicação e debate. As  universidades nestes países tem frequentemente Grupos Lésbicos institucionalizados, com local, telefone, inscrição ofical na própria universidade que as abriga, como na Uqam- Université du Québec à Montréal . Cursos são dados igualmente em diferentes quadros disciplinares , o que demonstra uma abertura institucional ao múltiplo em relação à sexualidade.

Montréal foi palco da criação do Réseau  des Lesbiennes du Québec,em 1998 e grupos como “Les Amazones” congregam grande número de lesbianas para atividades  esportivas, esqui, cayak, alpinismo e outras modalidades. Um outro grupo comprou e mantém uma pequena comunidade chamada “La Terre” nos arredores de Montréal; ainda hoje existe e abre suas portas ocasionalmente à grande número de lesbianas em encontros informais; a “Chambre de Commerce des Lesbiennes” realiza o “Salon des femmes d’affaires lesbiennes”  todo ano , em um grande hotel do centro da cidade, reunindo profissionais das mais diversas áreas. O “Centre  Communautaire des Gais e Lesbiennes” de Montréal  tem uma sede social  no Village,  aberta para informação, ajuda, encontros.  Em Paris, o “Centre Gai et Lesbien” exerce as mesmas funcões. No Brasil o Seminário Nacional de Lésbicas está em seu 4o encontro, no Rio de Janeiro, em 1999 e em Belo Horizonte em 1998.

 Existe portanto, nas América e na Europa igualmente, um movimento de integração e visibilidade do lesbianismo enquanto grupo e a lesgislação vem acompanhando esta afirmação: no Canadá, as parceiras lésbicas tem os mesmos direitos sociais que os casais heterossexuais , mesmo no que diz respeito à imigração.

Quanto à obtenção de direitos civis, as associações lesbianas unem-se aos homossexuais homens: O ILGA – International Lesbian and Gay Association , fundada na Europa em 1978,está presente em todos os continentes, de maneira mais ou menos ativa, inclusive no Brasil.  Esta organização visa a colaboração e o apoio entre as organizações de diferentes países, atuando como meio de informação e pressão nos aparelhos legislativos e jurídicos denunciando e opondo-se à homofobia. Funcionou durante algum tempo como órgão consultivo da ONU neste sentido.

 Entretanto, a não ser como meio de pressão, a junção de homossexuais mulheres e homens faz problema: que teriam em comum, além da exclusão e da rejeição social? Num mundo dividido entre homens e mulheres, os pederastas permanecem no pólo dominante e seus problemas de inserção e aceitação social não integram a realidade vivida pelas lesbianasm, mulheres,  duplamente discriminadas. Não há nenhum laço específico que possa unir estes segmentos do social. Porém, as grandes amizades atualmente existentes entre jovens gays, de ambos os sexos, seria talvez uma nova forma de relacionamento na qual não estaria presente a sexualidade. Por que não? Em uma nova configuração, os sexos seriam embaralhados e confundidos, e eis que surgem pessoas no lugar do gênero binário.

Na Europa, sete países (Dinamarca, Suécia, Groenlândia, Noruega, Hungria, Islândia, Países Baixos ) decidiram que o direito de se unir não se aplica unicamente aos heterossexuais e instituíram um reconhecimento civil dos casais do mesmo sexo. Na França, muito recentemente foi também adotado um texto legislativo semelhante, o PACS. No Brasil, projeto neste sentido foi apresentado pela deputada Martha Suplicy e teve adiada inúmeras vezes sua votação, por pressão principalmente de grupos religiosos, em sua incontornável necessidade que caracteriza as religiões e suas seitas de esquadrinhar as práticas sexuais. Controle?  Domesticação? O que seria do poder religioso sem a divisão do mundo entre escolhidos e perversos, entre eleitos e pecadores, entre homens e mulheres? 

Entretanto, este tipo de legislação é criticado por alguns grupos ativistas já que de certa forma retiram o potencial subversivo de uma sexualidade múltipla, inserindo-a no sistema de valores vigente, como por exemplo a monogamia, com seu corolário de “infidelidades”, ciúmes, posse, violência, hipocrisia.  Porque não a criatividade, a busca de novos tipos de relacionamento ?

As modificações legislativas foram conseguidas, portanto, depois de muita luta pela visibilidade e reconhecimento social da homossexualidade. Na Parada Gay de 1998 em Paris, a Declaração dos Direitos do Homem foi utilizada para denunciar a exclusão e a reticência da sociedade francesa em relação ao homossexualismo. Seu primeiro artigo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.São dotados de razão e de consciência e devem agir uns em relação aos outros em espírito de fraternidade”  é comentado em  seu manifesto: “A Declaração dos Direitos do Homem deveria conter apenas este artigo. Assim não haveria nem sexismo, nem racismo, nem escravidão, nem totalitarismo... nem homofobia.” (Gay Pride 1998) A homofobia seria, como indica a palavra, a rejeição, o ódio, a violência contra as pessoas consideradas homossexuais.

Se alguns Estados, em suas instituições consideram os direitos civis dos homossexuais, como se apresentam suas imagens e representações na mídia, como são vistas as lesbianas, teriam realmente uma visibilidade?

O mundo em que vivemos é construído em imagens, não apenas as visíveis,decodificáveis, analisáveis. É composto igualmente de representações sociais que adquirimos ao nascer, a partir dos primeiros contatos , das socializações iniciais , do aprendizado da comunicação e da linguagem propriamente dita. Estas representações estão carregadas de valores, de hierarquias, de posições , de normas  nas quais a vida individual se desloca, adequando-se com maior ou menor pertinência aos perfis pré-estabelecidos.

O assujeitamento é a atitude mais comum, é a aceitação total das instituições do social sem dúvidas, sem questionamentos, sem problemas. É o desenvolvimento individual nos perfis definidos pelo social, seja enquanto gênero – mulher ou homem – seja na experiência do gênero , sua adequação aos moldes, valores e comportamentos constituídos socialmente. Esta experiência, o ser no mundo, o dia-a-dia é assim traduzida na reprodução das representações e imagens adquiridas: a repetição dos mesmos gestos, o controle dos mesmos desejos, a projeção das mesmas aspirações faz do mundo o monótono desenrolar do Mesmo, que ao se fixar , ao se anunciar, faz nascer o Outro, o indefinido, o improvável, o incompreensível.

A desqualificação das mulheres ou dos negros no mundo masculino e branco, a exclusão ou eliminação dos homossexuais no mundo heterossexual são os sinais da intolerância nascida de um modelo único de ser, seja ele biológico, filosófico ou  religioso. Toda a cultura ocidental vive a esquizofrenia da duplicidade contida nas representações sociais do mundo:  vida/ morte, bem / mal, verdade/mentira, pecado/ pureza,  belo / feio, e assim por diante. Neste raciocínio, face à “verdadeira mulher” encontram-se a prostituta e a lésbica; se a primeira entretanto é preservada na ordem do sistema, a segunda é apagada dos registros, encontrada nos corredores dos hospícios ou olhada com desprezo e derrisão. Quando aparece, é para melhor ser eliminada .

Neste sentido, as “tecnologias de reprodução do gênero” (de Lauretis, 1987), os meios de comunicação trabalham no sentido de reinstalar as imagens tradicionais de mulheres e homens galvanizados em imagens estereotipadas do “macho-man” , da”femme fatale” ou “barbie”. As revistas femininas  , o cinema, a televisão, video, publicidade, revistas em quadrinho, desenhos animados, na maior parte das vezes reproduzem os papéis de gêneros, seus valores e sua importância. Acontece, às vêzes, por exemplo, no cinema de grande público , surgirem histórias de lesbianismo : geralmente acabam mal e os personagens acompanham as idéias pré-concebidas sobre as lesbianas. No filme “Boys in the side”,  Yhoupi Goldemberg, que faz o papel de lésbica, é triste, solitária, sua vida não deu certo e a relação que desenvolve com outra mulher é totalmente platônica. Por um lado, é uma pessoa boa e dedicada, mas infeliz; por outro, o que definiria o lesbianismo, uma prática sexual específica, é inexistente. Volta-se à questão: o que é ser lésbica, afinal?

Em outro filme, a personagem lésbica é totalmente desestruturada, sai pelas estradas e mata todos os que encontra pela frente. Em   “The Fox” estrelado por Shirley Maclaine, as duas personagens principais são proprietárias de uma escola, uma é apaixonada pela outra mas existe um homem que vem interferir, uma denúncia de lesbianismo e Maclaine acaba se enforcando, depois de ver sua amada nos braços masculinos. O filme brasileira “Vera” mostra o estereótipo mais marcante, a menina é tão masculina que todos pensam que é um rapaz e como tal se apresenta para a família de sua namorada. Sexualmente tem problemas incontornáveis, não permite que ninguém a toque, nem mesmo sua amante. Muito recente, “Boys don’t cry”reproduz uma história real, de Teena Brandon, que também assume uma identidade masculina e é estuprada e assassinada quando descoberta. O estupro de lesbianas é seu castigo “natural”, para reduzí-las à sua condição de fêmea; de toda maneira, como ousou tomar o papel masculino? Ela afirma várias vêzes: “tenho uma crise de identidade sexual.” Sua ingenuidade, candura, seu desejo de se integrar a um grupo, seu amor que se revela aos poucos, o sofrimento de uma indefinição nos levam à sufocante limitação identitária do binário, que faz dela um ser monstruoso, destinado à extinção e efetivamento eliminado. A violência física e moral do estupro é secundada pela violência do interrogatório policial. Imitação ou caricatura masculina, doença mental ou física, rejeição,  desiquilíbrio, infelicidade, exclusão isto seria ser lébica?

 Em novela recente na televisão brasileira, um casal de lésbicas aparece sem nada que pudesse distinguí-las das outras mulheres fisicamente. São aceitas e respeitadas em sociedade, mas a trama da história faz com que literalmente sejam explodidas em um incêndio criminoso. Elas não são  assassinadas ou excluídas, são EXPLODIDAS. Esta circunstância dispensa comentários. Em um seriado americano “Ally MacBeal”, a personagem principal se envolve com uma colega de trabalho, sentem-se profundamente atraídas, jantam, dançam juntas, beijam-se mas no final chegam à conclusão que apesar desta atração , falta algo, dito em todas as letras: um pênis. Se nos exemplos anteriores as mulheres quase não se tocam, tudo é mostrado em subentendidos, neste último existe uma densa sensualidade: o discurso do filme mostra, porém que duas mulheres não podem resolver seus desejos sexuais sem o auxílio de um homem. Explicita-se novamente a idéia de que a sexualidade só é possível onde existe um pênis.

Outro seriado americano, “Mad about you” mostra um casal de lésbicas que aparecem eventualmente e também estão integradas socialmente; mas em um epsódio uma delas confessa finalmente ter fantasias eróticas com um dos personagens masculinos; em outro momento uma das mães afirma não poder aceitar esta relação, em um rápido diálogo, que passa quase desapercebido. Se as representações não mostram imagens caricaturais de lésbicas, os valores que compõem a teia discursiva são claros na desqualificação do lesbianismo.

Ainda no domínio dos seriados americanos, “Friends” tem como um dos eixos da história de um dos personagens masculinos seu casamento com uma moça que se descobre lésbica e o abandona por outra mulher. Um dos epsódios gira em torno do casamento de ambas e apesar do clima de descontração, os estereótipos são marcantes na masculinização das convidadas para a festa; uma surda rivalidade  e descontentamento fica evidente nos personagens masculinos.

Um seriado americano que deu muito o que falar foi  “Ellen ” onde a personagem  se descobre lésbica e se declara como tal , mas antes está numa dúvida atroz: será que sou? Será que não sou? Note-se que em sua descoberta não interfere qualquer experiência sexual com outras mulheres. De novo, volta a questão: quem é lesbica? Não é finalmente a expressão de uma prática sexual? Que descoberta é esta, afinal? O epsódio onde se declara lésbica foi festejado ,visto e revisto de norte a sul das Américas; entretanto, pouco tempo depois desapareceu da programação. Quando se imagina uma nova visibilidade atravessando a mídia , quando se pensa um certo contra-imaginário em marcha na transformação dos papéis fixos de gênero e de sexualidade, toda uma imagética colorida e atraente ressucita em força os estereótipos que quando  não são físicos , são  psico-sociais.

Poucos filmes adensam o relacionamento entre mulheres e um dentre eles é “Fire” filme indiano que causou escândalo, depredações e quase foi censurado na India. Neste caso, uma das mulheres era desprezada pelo marido e a outra vivia uma relação platônica com o seu: o discurso do filme, apesar da bela construção é o das lésbicas, mal amadas

Um filme do Québec, “Quand la nuit tombe” é um dos poucos que escapa a este esquema: de expressão extremamente sensível ,  suas imagens falam de ardor, paixão, sensualidade, sexualidade  e  amor entre mulheres.

Porém,  em relação à produção cinematográfica no tempo presente, os filmes de grande divulgação tratando do lesbianismo representam uma ínfima parte, quase inexistente. E nestes, as representações refletem, de fato, as idéias pré-concebidas.

Mas, quando se trata de filmes de sexo explícito, o lesbianismo está presente constantemente, como um estímulo à ereções difíceis ou inexistentes. As posturas em geral são uma exibição de genitália e não uma ação visando prazer – o que se procura mostrar na produção  heterossexual deste tipo. No seriado “Ally MacBeal” citado acima, o namorado de uma das garotas , ao tomar  conhecimento de seus desejos afirma não ter importância e que ele gostaria de participar à sua realização, “olhando e se tocando”. Ou seja, a sexualidade entre duas mulheres assim se revela através do olhar masculino.

Nos”chats” da Internet é constante a procura  de lesbianas para incrementar o desejo moribundo de casais heterossexuais. De toda maneira, no “voyeurismo” o lesbianismo é apenas uma brincadeira excitante entre mulheres,  que só toma peso e significado quando existe um homem participando. No fundo, seriam duas mulheres à disposição de um homem: como não estimular tal prática? O que muda apenas é a falsa hipocrisia da monogamia, soletrando-se ainda o mundo no masculino.

 O múltiplo aqui é disciplinado em torno do Uno, obedecendo ao “dispositivo da sexualidade”. De fato, quando mais sexo, na atualidade, mais performantes, sedutoras, ganhadoras sentem-se as pessoas: até que ponto esta exuberancia é prazer, até que ponto tornou-se um dever, uma tarefa social?  Até que ponto a disciplina dos corpos não exige  mais sexualidade , prazer efêmero cujos suspiros se prolongam no poder da posse , da dominação, da compra, na multiplicação dos corpos e dos encontros? Mesclado à violência, o mercado do sexo não tem limites nem fronteiras.

Os perfis identitários

 . pouco de teoria

Corpo e sexo parecem, à primeira vista, indissociáveis. Mas  que corpo é este, atravessado pelo sexo? Que sexo é este a cujos definições se atrelam características de meu ser? Corpo, superfície pré-discursiva, sobre a qual se instalam  práticas, coerções e disciplinas? Sexo, detalhe anatômico ou delimitação incontornável  do indivíduo no mundo?

Quem diz corpo e sexo pensa também em mulheres e homens, divisão naturalizada do mundo em um esquema binário de superior/ inferior, dominador/ dominada.  Na atualidade, vê-se a proliferação  de novas identidades, transsexuais, bissexuais, homossexuais, mas na busca de identidade de fato reproduzem as representações hegemônicas na medida que se afirmam em “oposição a ” , “diferente de”, ou seja, o múltiplo gira em torno do eixo unificador do corpo sexuado de forma polarizada.  O poder cria o corpo ao anunciá-lo sexuado, ao fazer de sua constituição biológica um fator “natural” que carrega características específicas e que torna indiscutível a divisão dos seres humanos em dois blocos distintos. Isto não significa que o corpo humano não exista de forma sexuada, com um aparelho genital dado.

O  que o poder cria é outra coisa: é a importância dada a este fator corporal , é o sentido que se lhe atribui de revelador, de catalisador da essência do ser e da identidade do indivíduo. Estamos falando assim do  “sexo-significação” cuja constituição em discurso e imagens é criada pelo próprio discurso e as representações nele contidas.

 O sexo-discurso produz corpos aos quais se atribui uma “sexo-significação” de forma binária e normatizadora, em torno da reprodução e em sexualidades diversas que não cessam de se referir ao sexo “originário”, o reprodutor. A prática sexual, a sexualidade é forjada como um ponto de inflexão discursivo que dá ao corpo um sentido sexuado “natural”, normativo . A heterossexualide compulsória aparece assim como um mecanismo regulador de práticas e definidor de papéis restritos aos desenhos morfológicos e genitais,  isto é, à correspondência exata sexo biológico- gênero social que o lesbianismo e a homossexualidade em geral desmentem.

 O desejo e a expressão  sexual são codificados em corpos definidos cuja biologia não é apenas classificatória mas funciona como um operador simbólico/ funcional de inserção: quem obedece à norma usufrui das benesses sociais, dos sorrisos e ritos e festas que acompanham o amor e o casamento entre uma mulher e um homem.

Assim, a desnaturalização do sexo biológico promove a queda dos bastiões mais poderosos da divisão binária da sociedade com seus efeitos de apropriação  e dominação; mas a identificação da heterossexualidade como locus e estratégia de poder está longe de ser incorporada aos discursos de saber, mesmo nas teorias feministas. A crítica  do sexo biológico enquanto determinante estratégico de relações hierarquizadas  ainda é incipiente, apesar de sua existência desde os anos 70.

Ti Grace Atkinsons, por exemplop, aponta  a heterossexualidade como instrumento de sujeição e de apropriação das mulheres( Atkinsons, 1975), idéia retomada e reelaborada por Monique Wittig e Adrienne Rich nos anos 80. (Wittig, 1980 e Rich, 1981) . Foucault se debruça igualmente sobre esta questão : “A noção de ‘sexo’permitiu regrupar segundo uma unidade artificial elementos anatomicos, funções biológicas, condutas, sensações, prazeres e permitiu fazer funcionar esta unidade fictícia como princípio causal, sentido omnipresente, segredo a ser descoberto en toda parte: o sexo assim pode funcionar como significante único e como significado universal. […]”(Foucault ,1976:204) .

 O sexo aparece aqui descrito em sua função significativa, dando  sentido , essência e identidade do humano em práticas normativas de sexualidade heterossexual.

Judith Butler, por sua vez,  argumenta que se no binômio clássico sexo biológico/ gênero social , o sexo seria um dado anatômico e o gênero construído culturalmente, as diferenças culturais e históricas sugerem uma distinção radical entre os corpos sexuados e os gêneros construídos socialmente. ( Butler,1990:6) 

Porque  os gêneros seriam  instituídos de forma binária em todas as sociedades e em todos os tempos? Que autoridade daria a última palavra, a não ser sustentada pela crença no natural e na ordem supra-humana? Quem diz crença diz valores, quem se apoia em valores não pode fugir de sua historicidade incontornável. Como vimos, os valores se transformam e podem mudar radicalmente a apreensão do mundo e do relacionamento dos seres.

O corpo performativo para Butler,  “drag-kings” ou “drag-queens” encena a ligação sexo biológico/ gênero social e desmascara  assim seu aspecto ilusório, construídos, pois demonstra a possibilidade da total inversão de sexo/gênero.”(Butler, 1990:7). Quantas mulheres e homens que encontramos tem um sexo biológico correspondente a seu gênero?

Vimos como o saber biomédico definiu e criou o corpo e a conduta da lésbica, prescrevendo medidas preventivas e educativas para transformá-las em “verdadeiras”mulheres. Para Foucault, o sexo biológico e sua relevância  “[…]está sob a dependência histórica da sexualidade; [...] a sexualidade é uma figura histórica muito real, e é ela que suscitou como elemento especulativo, necessário a seu funcionamento, a noção de sexo..”( Foucault, 1979:207)

O sexo biológico aparece assim como um ponto estratégico de expansão do poder sobre os indivíduos, pois dada sua importância no imaginário social passa a ser um ponto focal de identidade, de intelegibilidade.   Neste caso, portanto , como sublinha Butler, “não há identidade  de gênero atrás da expressão de gênero; esta identidade é performativamente constituída pela  expressão que deveria ser o seu resultado.”(Butler, 1990:25) O gênero, portanto, cria o sexo e não a evidência de seu contrário, ou seja, os papéis socialmente construídos de mulheres e homens fixam em um contorno biológico sua identidade, que passa a ser supostamente definida e definitiva em torno de práticas heterossexuais.

. que sexualidade é esta?

Existe uma tipologia do lesbianismo, ancorada no imaginário social , com algumas variações espaço-temporais: o tipo mais característico seria a mulher-macho, paraíba, sapata, fanchona, caminhoneira, “ butch”, “dyke” identificada por um mimetismo das atitudes e maneiras masculinas. Como sublinha Martha Barret é possível que a rigidez da divisão binária da sexualidade humana faça com que aquelas que se sentem atraídas por mulheres sintam a necessidade de apresentar características masculinas, físicas e comportamentais. (Barret,1990:257) Este assujeitamento dar-se-ia da mesma forma entre as mulheres que se sentissem atraídas por estes tipos masculinizados. Desta forma, reproduz-se a ordem heterossexual em corpos biologicamente femininos, o casal “butch/femme”.

Outros tipos seriam : “a esportiva”, cuja liberdade corporal inspira dúvidas; a “lesbian chic”, meio andrógina, com especial cuidado no visual  e a “quem diria”, aquela que não tem nenhum signo externo de suas preferências sexuais e neste caso, todas as mulheres podem estar incluídas. Este último tipo é talvez atualmente o mais difundido, não como uma forma de esconder a sexualidade, mas para marcar a privacidade de opção. Afinal, porque a sexualidade teria que ser explicitada ? A ‘lésbica política” teve também  sua expressão nos anos 70, no auge do movimento feministas, quando algumas mulheres declaravam-se lésbicas, mesmo sendo heterossexuais para mostrar sua recusa do patriarcado como sistema de dominação das mulheres. ( Atkinsons, 1975)

Se o lesbianismo se define a princípio enquanto prática sexual , a sexualidade lésbica propriamente dita padece de alguns mitos e lugares comuns. Vimos que, no imaginário social, as representações das lesbianas se fazem a partir de um desvio de conduta ou de preferência em relação à “verdadeira mulher”. Esta, heterossexual por natureza, seria dotada ou de uma fraca pulsão sexual, compensada pela maternidade, ou de uma poderosa sexualidade , as “femmes fatales”, prostitutas, devoradoras de homens, destruidoras de lares. Duas faces da mesma moeda. O sexo a serviço da reprodução ou  do prazer masculino. Estas são as imagens com as quais convivemos: o assujeitamento das mulheres à violência e à utilização de seus corpos, em nome da Ordem, do “natural”, do divino, talvez .

 Assim são vistas as lésbicas, em imagens invertidas: dotadas de furor sexual ou de uma frágil sexualidade , de uma pulsão sexual quase inexistente ou de um insidioso poder de sedução. Porque finalmente, não passam de mulheres. Por um lado são vistas como um perigo à inocência das jovens, por outro são seres assexuados brincando de tomar um lugar que não lhes é próprio.

Existe uma fantasia entre as mulheres heterossexuais que a proximidade de uma lésbica representa uma certa aventura, pois acreditam  que necessariamente serão objeto de assédio, projetando-se assim sobre o lesbianismo um comportamento socialmente aceito como masculino : se o homem não tenta, não é macho e lésbica que se preze também.  Assim, um toque, um sorriso, um abraço podem ser imediatamente considerados como avanços sexuais da parte de uma lésbica.

Uma das idéias préconcebidas sobre as lesbianas e que aparecem com frequência na literatura é que entre elas a sexualidade não tem relevância e que priorizam as carícias amorosas e o sentimento: “ Muitas vêzes é o vínculo afetivo que é considerado mais  importante, ou então o contato sexual pode ser mais uma questão de carícias feitas em várias  regiõesdo corpo do que um contato voltado essencialmente para os órgãos genitais.”( Fry, 1985:106).  Ou ainda: “Mas como muitos casais lésbicos, mesmo no século XX, o aspecto sexual de seu relacionamento não é de importância primordial. Seus laços são baseados mais no intelecto e nas paixões compartilhadas.”(Richards,1993:268). Estas análises dão uma conotação negativa, de seres quase assexuados, e num mundo onde o sexo é rei,onde a psicanálise faz lei, dar pouca importância à performance sexual reabre o espectro da doença, do anti-natural.  Os pequenos anúncios das revistas especializadas  que priorizam atividades em comum, ou a estabilidade das relações podem até enfatizar este aspecto, mas o que aparece como uma sexualidade inexistente pode apenas ser uma outra maneira de ver o sexo e o relacionamento amoroso. Num corpo descentrado, o erotismo tem um traçado amplo e sempre renovado.

Uma sexualidade problemática, uma recusa do corpo e de seus prazeres não é mais comum entre as lesbianas, como tantas vezes se pretende, pois enquanto mulheres podem ter sofrido os mesmos traumatismos e violências, os mesmos abusos e assédios  que as heterossexuais, num mundo onde a sexualidade masculina dita as normas. De toda forma, no processo de socialização, o que é consequência é tomado como causa: as meninas e as mulheres aprendem a controlar, a disciplinar, a negar seus desejos e seus corpos em nome da moral e dos bons costumes e toda lésbica foi um dia uma menina. O assujeitamento é contundente: em uma pesquisa sobre identidade lesbiana feita pelo MIEL- Mouvement d’Information et d’expression des Lesbiennes, de Paris em 1987/88, o questionário não apresentava nenhuma pergunta específica sobre sexualidade, como se ou não existisse ou fosse um ponto pacífico sobre o qual todas estariam de acordo.

Antes do feminismo contemporâneo surgir com força a partir da segunda guerra, pouco se falava do prazer das mulheres, a não ser para controlá-lo, impedí-lo. Marie Jo Bonnet relata as “sábias” injunções médicas no século XIX a respeito do “problema” da masturbação feminina e do tamanho adequado do clitóris ( definido naturalmente segundo os critérios destes senhores), assim como das soluções aventadas : ablação, excisão, cauterização . Recomendam inclusive o tipo de instrumento para cortá-lo -tesoura ou bisturi - e discutem a melhor posição para agir com mais eficácia.  Apesar de recomendar estes procedimentos, os médicos alertavam para os acidentes e perigos : peritonites, abcessos, morte.( Bonnet,1981:176/178) O que hoje acontece na Africa e em outros países do Oriente – é cultural, dizem os antropólogos – dava-se na Europa, na França, por exemplo, por volta de 1880. São muitas as faces do poder no contrôle do corpo  e do desejo das mulheres e o discurso científico é uma delas.

Quando se fala de sexualidade feminina a palavra mais usada é “vagina”, como se fosse a essencia e a totalidade do sexo da mulher. Mesmo os livros que tratam do lesbianismo falam parcimoniosamente de sexualidade, as folhas parecem sussurar, as letras se esconder, as páginas se dobrar.

Clitóris, pequenos lábios, grandes lábios, pouco se menciona, pouco se conhece destas zonas erógenas por excelência do corpo feminino.  O orgasmo feminino é clitoridiano,  se pensamos nestes espasmos que percorrem o corpo em todos os sentidos , tem um começo, meio e fim. O orgasmo vaginal é uma emoção difusa, que mescla desejo, prazer de penetração, prazer de contato, maior ou menor, mas nada mais duvidoso que um climax vaginal.

Freud faz uma descrição exemplar de uma transição cultural do prazer clitoridiano ao exercício vaginal: “[...] na medida em que se forma a feminilidade,o clitóris deve ceder toda ou parte de sua sensibilidade e deste fato, sua importância, à vagina. Esta é precisamente uma das duas dificuldades que a mulher é obrigada a superar durante sua evolução. Ela se vê obrigada de mudar de zona erógena e de objeto.” [11]A representação do prazer se desloca de uma região de intensidade para um ponto difuso: vê-se que o “natural” é assim construído : o aprendizado , a educação são a melhor forma de assujeitamento.

 O ponto G, nova descoberta “científica”,  seria mais uma justificação para  a falta de orgasmo feminino na relação heterossexual: muito escondido, inexistente, mal colocado, a culpa da ausência de prazer seria mais uma vez da própria mulher, de sua constituição defeituosa.  Não de uma relação  precariamente vivida, onde a penetração é o signo e a realização sexual. Porque o obscurecimento do clitóris? Porque a ênfase à vagina?  A resposta a estas questões é quase ociosa: o prazer que se contempla é o masculino.

“Tribadismo: homossexualismo feminino. Consiste no atrito recíproco dos órgãos sexuais.” (  Encarta 1999) A palavra  apela à imagem e o modelo é a cópula heterossexual. A classificação inicial  do lesbianismo como tribadismo se faz, entretanto, a partir do clitóris, de seu tamanho e de sua relevância na sexualidade feminina: no século XIX  era reconhecida sua importância no tratamento da masturbação e do “desvio”  homossexual.

 No tratado “De la prostitution de la ville de Paris »de 1837, considera-se que o clitóris é « a sede principal dos órgãos genitais”. (Bonnet,1981: 175) No « Dictionnaire des sciences médicales par une société de médecins et chirurgiens » do início do século XIX, o discurso médico alertava para os perigos do que chamavam de “clitoridismo”, prática condenada pelos costumes, pela higiene e pela preservação da feminilidade, pois a masturbação pode causar desde mau hálito e insanidade até a morte.( idem) Pode-se alegar que a masturbação masculina também era combatida, porém não se tem notícia da ablação do pênis por este motivo.

Se as classificações tentam definir um perfil para a sexualidade lesbiana, a tarefa é inglória.Não há UMA sexualidade lesbiana, pois não há um modelo a ser seguido, não há uma receita, não há mistérios; pressente-se uma busca e um conhecimento do próprio corpo que é utilizado no prazer de outrem e de si mesmo. Sua força e intensidade depende das pessoas, assim como em qualquer relação. A sedução, o contato, o namoro , o toque, o cheiro, são desdobramentos da emoção . Humana emoção, troca  de  humores,  erótica reinventada. Afinal, a multipliciade é a marca “ natural” do ser.

 O “mistério” da sexualidade lésbica permanece enquanto tal na medida em que não existe um padrão de comportamento, uma postura unitária, uma “maneira de fazer” imposta a todas, uma “posição” clássica obrigatória. O uso fantasioso de artefatos, de “dildos” é apenas mais uma imagem que procura , no sexo entre mulheres, colocar a inevitabilidade da penetração e de um similacro de pênis. No imaginário social ainda o sexo masculino é o detentor da sexualidade. Como concebê-la  sem o falo? Entretanto, tudo existe e a sexualidade é vivida na singularidade individual, com maior ou menor assujeitamento às representações socias comuns.A realidade vivida por milhões de mulheres ,  cria talvez  um contra-imaginário na  obscuridade capaz de renovar as representações hegemômicas.

. identidade nômade: um desafio

              Mas o  que é ser lésbica? O que é ser mulher?

A história do movimento das mulheres mostra a presença constante de lesbianas tanto nas práticas políticas de reivindicação, quanto nas reflexões teóricas. No vigor dos anos 70 viu-se mesmo feministas que quase se desculpavam de sua heterossexualidade diante da avalanche de análises sobre a violência implícita e explícita da dominação , da apropriação dos corpos e da exploração sexual das mulheres em um mundo patriarcal ( de Lesseps, 1980 :55), problemática avassaladora que invadiu assim as ciências sociais.

O feminismo cunhou a categoria “gênero” , cultural,  opondo-se a sexo, biológico  e assim desfez em parte a noção de essência, de um fundamento intrínseco para os seres, que definiria mulheres e homens, conferindo-lhes papéis segundo sua “natureza”. Mas os problemas de definição e de identidade atravessaram a trajetória e a utilização da categoria “gênero”: o que é a Mulher? O que é o feminino? Com o pensar a diversidade da experiência vivida das mulheres em contextos culturais, espaço/temporais diveros? Como contemplar as diferenças entre as mulheres?

O desenvolvimento de teorias feministas múltiplas vem estimulando um refinamento de análises teóricas que descontróem os modelos únicos do “ser mulher” . Neste sentido  as lesbianas, as negras, as mulheres oriundos de países  outrora colonizados denunciam a nova representação hegemônica sob a imagem da mulher branca, heterossexual, classe média, abrindo assim o caminho para se pensar o múltiplo.

A raça, a classe, a opção sexual,  variáveis  que se impõem e determinam uma viravolta na crítica teórica feminsita, instalam a diversidade de imagens e de experiências de “mulheres” após desconstruir o mito da “natureza”da mulher. A idéia de um feminismo singular, dotado de estratégias e de discursos unificados se desfaz assim face à diversidade, face à incontornável especificidade de experiências múltiplas.

    Os discursos feministas  iniciam desta forma um movimento contínuo e voluntário de deslocamento, de desidentificação que se fundamenta no espaço vivido e utiliza o instrumental teórico disponível  para melhor ultrapassá-lo. O “pós-modernismo”que denuncia as verdades essenciais, os discursos do “natural”, a existência de um sujeito estável e coerente como sendo  frutos de um artifício do poder, cruza-se com o percurso feminista que recusa a idéia de uma “verdade do sexo”: a prática sexual diretamente ligada ao sexo biológico. (Flax, 1987 : 624)

Abre-se assim o caminho para o questionamento da naturalização do sexo biológico e das práticas sexuais um terreno comum ao feminismo e ao lesbianismo.

Mas mesmo neste início de milênio, colocar em questão a heterossexualidade aparece como um desafio ao senso comum, face às diferenças físicas entre fêmeas e machos; graças à força das representaçoes sociais de correspondência exata entre gênero e sexo, a multiplicidade do desejo é obscurecida e sobretudo domesticada.

 A maternidade é ligada estreitamente à construção do gênero “mulher”,da representação social “mulher”, do sexo biológico “mulher”. Esta construção faz da prática heterossexual a chave do poder disciplinar : há assim um amálgama do sexo biológico, do papel social e da sexualidade potencial , no quadro do “instinto sexual” reprodutivo.

Mas nesta ordem discursvia, ser “mulher” ou “mulher negra”ou “mulher latina” ou “mulher pobre” é ainda melhor que ser “lesbiana”. Para um certo feminismo tradicional, se a categoria “mulher” pode admitir a diversidade, é no domínio das práticas sexuais que se encontra o traço de união: a heterossexualidade.

O lesbianismo, de certa forma, vem quebrar o peso da norma e da evidência, pois pode funcionar como um possível contra-imaginário, uma outra ordem símbólica, uma experiência que coloca em xeque a legitimidade e a  dominação do “natural” heterossexual, fundado em todo um sistema de crenças científicas ou religiosas

Neste caso, a crítica feminista atual , com  Judith Butler,  Teresa de Lauretis, Donna Haraway e outras, atua no sentido de apontar para a construção social não só dos papéis mas igualmente a construção social dos corpos, na heterossexualidade obrigatória e na coerência do gênero, na qual um corpo de mulher só pode conter a significação social “mulher”. A questão é : a noção de sexo biológico  não é igualmente uma construção social?

A noção de heterossexismo, (de Lauretis, 1987 :5 )de heterogênero  (Ingraham, 1996 : 169)  foram cunhadas  como  instrumental teórico feminista para se pensar as práticas sexuais;  colocam em evidência,em sua própria enunciação a construção social do sexo biológico na importância que lhe é dada para definir o lugar e a importância das pessoas.

A prática héterosessexual que Teresa de Lauretis( de Lauretis, 1987:3) nomeia “Sex Gender System”, seria “[…] um construto socio-cultural, un aparelho semiótico e um sistema de representações” que confere uma significação à sexualidade em uma rede de valores: sobre o binário “natural”do sexo biológico eleva-se um edifício de hierarquias e assimetrias,( Delphy, 1991:91), um sistema simbólico fundado sobre sua representação que adquire a evidência da enunciação repetida, da tradição cultivada, de uma memória cuidadosamente elaborada em história.

A instituição da heterossexualidade obrigatória seria o heterosexismo,  fundamento do binário universal como base de elaboração do gênero. Quebrar o binário seria assim abrir as portas de um sistema de significações que obscurecem o múltiplo em uma coesão identitária em torno do sexo biológico.

E isso nos leva à questão da identidade. O que é a identidade de gênero, senão características socialmente instituídas e assim mantidas em uma certa ordem simbólico/material?O gênero, o papel social, nesta perspectiva, constrói o corpo sexuado em uma erotização polarizada; a diferença biológica é vista assim em sua estreita ligação aps sistemas ideológicos , culturais, científicos. Para Butler, as representações de gênero projetam suas imagens na materialidade do social, significando e interpretando  o mundo em expressões fixas de sujeitos sexuados. (Butler,1990:7). 

Quando se ilumina o heterossexismo, a mesma lógica faz aparecer  a norma institucional do coito regular – no casamento –  como meio de criação e apropriação de um grupo socialmente constituído: o grupo das mulheres. Os corpos femininos são assim delimitados em suas práticas sexuais através dos ritos de iniciação, dos tabus e das interdições que definem sua mobilidade, suas preferências e a erotização de seus gestos na esfera do masculino. (Rich (idem :23) Portanto  o lesbianismo, assim como a “verdadeira mulher”, só existem nestes quadros de pensamento que lhes confere uma identidade a partir de um corpo e de práticas sexuais

As mesmas questões afligem, neste sentido, o feminismo e o lesbianismo quando se interrogam sobre o sujeito e o objeto de seus percursos teórcios e políticos.: o que é afinal uma mulher, o que é uma lésbica? Mas definir uma identidade é criar ao mesmo tempo um campo de exclusão, uma dimensão de verdade: à “verdadeira”mulher” corresponderia a “verdadeira”lésbica. De que direito uma imagem torna-se mais verdadeira  que outra? De que representações,  que caminhos de poder são assim traçados?

 Se tomamos o  simbólico como vetor de sentido torna-se claro que a distribuição do poder é uma questão de afirmação, de legitimação de autoridade, de reatualização de lutas para posse de símbolos, em torno de significações que instauram e sustentam práticas sociais e sexuais, tais como a heterossexualidade. Nada de definições fixas portanto para o lesbianismo, mas um campo de estruturação do corpo capaz de constituir um novo perfil de identidades sociais em novos espaços socio-simbólicos ( Braidrotti, 1997 : 56), em novas representações sociais do humano.

Um novo sujeito do desejo não é senão o contra-imaginário que abre suas asas, pronto para outros espaços de relacionamento: como mudar a realidade sem uma nova rede simbólica que trace, por sua vez, novas imagens dos corpos? Com que direito a sexualidade e a heterossexualidade definem o sujeito do desejo? Com que direito uma norma ou um valor explicam o ser ? E a partir de que vontade de poder/saber o desejo torna-se o eixo central do discurso sobre o corpo sexuado? Como destruir o labirinto que nos faz girar sem fim no mesmo círculo fechado?

Meu argumento é que o lesbianismo não pode constituir umna identidade já que esta denominação não é senão um conjunto de questões, de práticas diluidas no questionamento das categorias “mulher”e “gênero”. Reivindicar uma identidade lesbiana seria fazer parte de um contra- maginário domesticado e encontrar uma coerência identitária seria tão ilusório quanto uma coerência de gênero.

Como alguém pode ser uma prática sexual? Como se pode ser lésbica? A criação de grupos em torno de preferências é compreensível, por exemplo,  amantes da natureza, dos animais,  vegetarianos,  surfistas. Cria-se grupos tendo em vista objetivos comuns, proteção, direitos. Mas que laços podem criar uma prática sexual, a não ser a possibilidade de encontros mais fáceis num meio específico ? Os famosos “ghetos”, ou a “gay scene”, são as boates, bares, cidades como Provincetown, Montréal , São Francisco, Sidney ou mesmo Parati , onde olhares podem se cruzar “sem medo de ser feliz”.

Nesta ótica, assim como os estudos feministas se debruçavam sobre “o que é uma mulher? podemos repetir nossa indagação primeira : o que é uma lésbica? E as questões continuam a  se desdobrar: Mulheres que amam mulheres? Que fazem sexo com outras mulheres? Que se sentem atraídas mas não ousam o  sexo? Que amam outras mulheres e fazem sexo com homens?  A própria bisexualidade que hoje se desvela torna irrelevante as defnições em torno de práticas.[12]

A pesquisa do « Mouvement d’Information et d’expression des Lesbiennes » sobre o « Ser Lesbiana » assim define : « Para nós, o termo “lesbiana” representa uma afirmação de nossa identidade, afirmação que se dirige no sentido de uma maior visibilidade. Nas relações entre mulheres, esta visibilidade não deve se expressar  somente em um modo de vida sexual ou emocional, mas igualmente por um questionamento da sociedade sexista e patriarcal e contra a heterossexualidade compulsória por ela veiculada ( MIEL; 1987:8)

A questão permanece: que identidade é esta? Que visibilidade se propõe? Roupas, gestos, contornos físicos, comportamentos específicos? Como conseguir uma homogeneidade em relação a pessoas  que não tem interesses ou objetivos comuns? Estou pensando nas divisões sociais que em alguns países como o Brasil  criam compartimentos quase intransponíveis de educação, de linguagem, de reflexão, de expressão e apreensão do mundo.

 O que é afinal o lesbianismo em uma rede de sentidos dominada pela heterossexualidade , tal como se apresenta em grande parte das teorias feministas? Práticas desviantes, ligadas à sexualidade? Sentimentos que se dirigem às pessoas do mesmo sexo? Uma erótica particular? Uma escolha política, como nos primeiros tempos do feminismo, as heterodykes? Ou práticas de recuo e de frustação diante dos homens como aparece em de Beauvoir?

 Não é possível esquecer a frase de Wittig : “uma lésbica não é uma mulher”,( Wittig, 1980: 53) definição em negativo, locus maior de resistência ao patriarcado. Mas esta própria designação  supõe um quadro de pensamento  que coloca o lesbianismo num conjunto de práticas cuja referência central é a sexualidade e o sexo.

Neste caso, a outra face da  visibilidade lésbica, as maneiras de se vestir , de ser diferente, de sublinhar uma singularidade não fazem senão interinar a ordem binária na medida que expõe uma diferença e a diferença supõe um modelo. A construção do corpo sexuado enquanto marco e identidade do humano  define as fronteiras do sexo biológico do qual não nos desfazemos sem ameaçar a ordem.

Assim, a  norma heterossexual , a disciplinarização da prática sexual dentro de padrões delimitados por valores morais historicamente datados além de tornar-se instituição normatizadora , adquire caráter de verdade, de sexo e sexualidade verdadeiros, nucleares, de expressão máxima do ser humana . A verdade do sexo, em suma.

Neste sentido, desafiar os padrões , assumir a representação social da inversão e o nome dado às práticas ‘desviantes” legitima de certa maneira, a norma que determina as zonas de exclusão. Muitas vêzes, aliás, os casais de lésbicas reproduzem uma divisão generizada de papéis, num mimetismo cujo efeito de espelho é a reprodução da assimetria e da hierarquia.

Os discursos médicos, jurídicos, religiosos, educacionais bem como o senso comum são unânimes na afirmação do sexo biológico como um dado incontestável da natureza. Mas como sublinha Foucault, a respeito do sexo « […] deve-se falar como de algo que não devemos simplesmente condenar ou tolerar, mas sim gerir, inserir em sistemas de utilidade, regulamentar para o bem de todos[…] O sexo não se julga apenas, administra-se. Está no âmbito do poder público. »( Foucault, HS:34/35)

De toda maneira, tentar traçar um perfil Da lésbica ou Das lésbicas é uma tarefa impossível pois não há substancia à qual se prender, não há um bloco homogêneo e monolítico de coerência, não existe experiência unívoca que possa tomar o lugar de um referencial estável. A criação de um modelo, de um protótipo é uma forma de derrisão externa, vinda do social ou uma forma de totalitarismo interno, vinda de um grupo que se erige como arauto do verdadeiro lesbianismo.

 Além disso, a própria noção de casal não é evidente, quer seja heterossexual ou homossexual: é a sexualidade que o define? O sentimento? A coabitação? Laços institucionais? Nenhuma resposta positiva compreende em si a noção de casal e seu conjunto pode ser desdobrado em séries inumeráveis.

 É muito fácil cair no essencialismo quando se reivindica uma identidade, quando se liga o ser à uma prática, à uma atração, à um gosto, nem tão particular assim. Uma definição já é um cerceamento, é demarcar um domínio que logo dará origem à novas exclusões. A necessidade de se dizer, de se explicar, de se traduzir pela sexualidade faz parte de nosso quadro de pensamento, da época pós-psicanalítca. De fato, a questão que se colocaria é: porque temos necessidade de uma identidade senão para responder às exigências de uma moldura binária de pensamento ?

Tomarei aqui no que diz respeito à identidade  lésbica as considerações que Braidotti tece sobre a identidade das mulheres em  geral: “[…] um conjunto de experiencias múltiplas, complexas, potencialmente contraditórias, atravessadas por variáveis como classe, idade, maneira de viver, preferências sexuais, etc.” .(Braidotti, 1994: 4)

 Acrescentaria o espaço e tempo vividos, a linguagem e a língua e as constelações de sentido nas quais se constróem e se auto-representam os indivíduos. Uma identidade portanto em construção, móvel, fluida, nômade, transitória; uma identidade somente retrospectiva, que indica onde estivemos e não estamos mais, no que Braidotti chama a “cartografia nômade” do ser. .(Braidotti, 1994: 35)

Identidades múltiplas, circunstanciais, deslocamentos imprevisíveis das pulsões em torno de pessoas, não de sexos definidos, assim  seriam  identidades múltiplas  construtoras de uma nova ordem sexual. Para Monique Wittig, “[...] uma nova definição da pessoa e do sujeito para toda a humanidade só pode ser encontrada além das categorias de sexo ( mulher/ homem)[...] na eliminação de sua utilização e na rejeição das ciências que as utilizam como seus fundamentos.[...]” (Wittig, mai 1980:83)

 A identidade nômade é assim uma posição de sujeito ocupada em uma situação, em uma sociedade dada. E nesta ótica, eu não sou lésbica e vocês não são mulheres; de toda maneira não existe lésbica onde não existem mulheres. Não há cópias pois os modelos se esgotaram em sua busca de essência e de transcendência, em sua busca do ponto nodal e definitivo de significação.

Neste mundo instituído por representações, a identidade é uma ficção e a incerteza e o paradoxo  são as conquistas maiores de nosso tempo para desmascarar as verdades de todos os tempos.

Identidades múltiplas, circunstanciais, deslocamentos imprevisíveis das pulsões em torno de pessoas, não de sexos definidos, assim  seriam  identidades múltiplas  construtoras de uma nova ordem sexual.

O que é finalmente ser lésbica?  É o exercício da sexualidade, finalmente, que torna uma relação especial entre todas? De toda forma, a prática sexual nunca terá o mesmo perfil para todas , nunca responderá às mesmas expectativas , com os mesmos  resultados. Quem sabe a emoção despertada possa ser um indício, emoção restrita ou plural, num outro caminho livre de definições.

Não existem respostas. Apenas um emaranhado de sentidos e representações que constituem o mundo: estratégia, opção, passagem, destino, recusa , cansaço , emoção. Cada qual seu desenho, sua fluidez. A volatização da essencia é a libertação da norma, da disciplina, da exclusão. É a disseminação da identidade que pode mudar a ordem do mundo, a ordem do pai, a ordem do falo.

O que é o lesbianismo? Boa questão.

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[1]       Ovidio, Heroïdes, XV, Paris, Les Belles Lettres, edição de  1965 . citado  por Marie-Jo Bonnet,  (Bonnet : 1981:75)      

[2] « no armário »expressão utilizada correntemente para indicar aquelas que não se mostram publicamente como homossexuais.

[3] Abordarei esta questão na parte final deste livro

[4] à época as relações entre as mulheres não tinham um nome específico e apesar da sodomia dizer respeito principalmente a sexo anal, assim eram denominadas as homossexuais femininas.

[5] Por exemplo, o famoso Lombroso, médico italiano ,Westephal, Moll, ou Richard Krafft- Ebing autor de Psychopatia Sexualis, publicado na Alemanha em 1882

[6] como deve ser

[7] ver para uma pálida idéia, por exemplo, Jean Delumeau , Benoite Groult., Elisabeth Badinter e as bibliografias respectivas.

[8] A análise do discurso filosófico teria muito a revelar sobre a constituição da “verdaeira”mulher, mas não cabe neste volume.

[9] Sistema de autoridade masculina discriminando e oprimindo as mulheres através de suas instituições sociais, políticas, econômicas e científica, construindo-as enquanto “mulheres” a partir de seu sexo biológico..

[10] Ver a este respeito, por exemplo, Thomas Khunn, Canguilhem, Karl Popper.

[11] Sigmundo Freud, « Conférence sur la féminité » , Nouvelles Conférences sur la psychanalyse, Gallimard, coll. Idées,pg.155 citado por Marie Jo Bonnet ( 1981 : 188)

[12]  sobre esta questão, ver [12]  ver Tania Navarro Swain, Au déla du binaire : les queers et l’éclatement du genre, in Lamoureux,Diane (org) Les limites de l’identité sexuelle, Montréal, Ed. Remue Ménage, 1998, 195 p. pgs135 a 150