Meu corpo é um útero? Reflexões sobre a procriação e a maternidade. ( a última parte deste artigo retoma um texto publicado em outro livro)
“O Às mulheres tem-se tentado, há 4 ou 5 séculos, no Ocidente, atribuir um modelo, uma forma singular centrada em seu corpo, em sua capacidade reprodutora. Louvada enquanto apanágio das mulheres, a capacidade de procriação tem, por outro lado, o peso de um destino, de uma fatalidade que definiria as mulheres enquanto a verdadeira mulher. Esta imagem, tão difundida pelas instituições sociais, na iteração de um discurso construtor de corpos disciplinados, vem moldando as representações do feminino e a auto-representação das mulheres em torno da figura da mãe. “ Eu sou mãe”, esta frase parece justificar a existência e proclamar uma identidade. Entretanto, o próprio feminino é uma criação social com suas características e atribuições, pois se instala, com esta denominação uma relação a um referente, a um modelo, do qual se destaca enquanto diferente. “ Escute minha diferença”[1], já proclamavam algumas feministas, nos anos 1970 e este clamor visava à igualdade de direitos e funções. >Se neste momento a afirmação de uma diferença, para os feminismos, visava sublinhar as desigualdades existentes no social, baseada no sexo biológico, ficou velado o fato de que a própria instauração da idéia da diferença era fundamentação de uma desigualdade política. De fato, onde se estabelece a diferença o espaço se abre para a instalação das hierarquias e assimetrias. Anunciar a aceitação da diferença não é senão afirmar o fundamento da dicotomia: o referente e o outro, no caso, outra. Na ótica dos gêneros, o referente é sempre o masculino, branco, de preferência abastado; este não é diferente de nada, é , em si, é parâmetro. >As mulheres são assentadas e definidas por esta diferença em seus próprios corpos, em uma imanência que se concentra em seus órgãos reprodutores. Mas, se a capacidade de procriação é uma especificidade, esta não define a totalidade de meu ser. Entretanto, procriar, reproduzir a espécie passou a significar socialmente o feminino e esta significação social chama-se maternidade. Por um lado, a maternidade é louvada e incensada, objetivando-se na figura da mãe; por outro, torna-se uma fatalidade, na medida em que deixam de ser mulheres a imensa legião daquelas que não querem ou não podem ter filhos; perdem sua inteligibilidade social e alinham-se na fileira dos excluídos. A mãe é o modelo de mulher, a mulher no singular, uma figura fractal, que reproduz infinitamente a mesma imagem,. reduzida a um sentido unívoco de ser. > Porém, eu, socialmente definida enquanto mulher, seria apenas este útero? Qual o lugar das mulheres que não querem ou não podem ter filhos? A proliferação das clínicas de inseminação ou reprodução artificial mostra que a auto imagem das mulheres é ainda tributária da maternidade para uma inserção plena no social. Ou seja, uma função orgânica é promovida em termos simbólicos a um nível identitário, essencial, portadora de um destino social ancorado no corpo. Objetiva-se, desta forma, a imanência que faz das mulheres este corpo fractal: é a apropriação social do corpo construído em mulher que confere a todas as mulheres um destino biológico, quase uma fatalidade. > Reprodução e sexualidade são faces da mesma moeda : o que afinal define uma relação heterossexual como normal senão a premissa da procriação? A heterossexualidade compulsória como um dos mecanismos de controle dos corpos das mulheres vem sendo discutida pelos feminismos. Entretanto, mesmo para além desta prática normativa, a maternidade continua a manter-se como alvo: é grande o número de lesbianas que, libertas de relações heterossexuais, buscam a procriação como fundamento familiar. A maternidade seria , então, o fundamento da família, instituição das mais contestadas ?É o que pretendo discutir . FEMINISMO, PRÁ QUE TE QUERO? Já questionava a autora, em 1949, esta Quantas Um A A
Diabolizado A VERDADEIRA MULHER, A MÃE Mãe e esposa, O Todo o “[…] O “birth-control’ e o Assim, desnaturaliza uma A Mostra a “A Esta contextualização do Entretanto, inserida nesta “É . Temos “[…] diz-se de uma As “[…] A As “É uma . Betty Friedan, “A A “Quando uma De Beauvoir comenta A A HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA “[…]a De “[…] ideologicamente as No MAS AFINAL... QUE CORPO É ESTE? Que corpo é este, que me impõe uma identidade, um lugar no mundo, que me conduz no labirinto das normas e valores sociais/ morais? Que corpo é este que eu habito cuja imagem invertida reflete o olhar-espelho dos outros? Que corpo é este, afinal, que sendo apenas um, pode tornar-se dois, ocupando o mesmo lugar no espaço? Corpo feminino, corpo reprodutor, a maternidade que me desdobra vem me integrar ao mundo do social , à representação da “verdadeira mulher”. Serei eu “mãe” mesmo antes de ser “mulher”? Serei eu um útero, antes de ser humana? . Mulheres e homens, os seres humanos aparecem constituídos como evidência de sua materialidade biológica definidos por um determinado aparelho genital . Entretanto, as funções corporais constituem estes corpos ao encomtrarem-se implicados em relações simbólicas/ sociais; a própria noção de evidência é histórica e socialmente construída. Assim, a grade de interpretação que nomeia e delimita a realidade é composta de uma gama extensa de valores e significações sociais, que institui representações do ser humano de forma binária; estas investem os corpos e os definem pelo biológico, dando-lhes um lugar e funções – esposa e mãe para as mulheres- segundo valores determinados pelas significaçõe do social. Meu pressuposto é que as “evidências” são elas,.portanto, igualmente construídas e se questionamos a concretude dos corpos biológicos vemos um conjunto em dissolução: que corpo é este em mutação, atravessado pelo sexo, invadido por um sentido unívoco do humano? De que direito uma parte de meu corpo delimita meu ser, estabelece minha identidade? Que significa este sexo, este útero, que insistem em caracterizar meu ser? Seria o corpo uma superfície pré-discursiva, pré-existente , que sofre as coerções, as disciplinas, a modelagem social? Ou, ao contrário, uma construção social que lhe confere imagem e forma? Estas questões são fundamentais para as teorias feministas e seus desdobramentos. Os feminsmos, graças à sua pluralidade e dinamismo penetraram as redes discursivas do século XX, desafiando os regimes de verdade que instituem o mundo e suas significações tais como o corpo biológico ( natural) e o papel social ( cultural); suas análises ressaltaram os processos e mecanismos que transformam os corpos em feminino e masculino, interpelados pelas práticas de dominação, de assujeitamento ou de resistência. Os feminismos, estas poderosas correntes de contra-imaginário, interrogam assim o social e suas instituições, iluminando a incontornável historicidade das relações humanas e dos sistemas de apreensão do mundo. Entretanto, na imbricação entre o social e o individual, do “nós”e do “eu”, encontra-se a dicotomia que enclausura o pensamento em um pressuposto binário do tipo natureza/cultura, real/imaginário, bem/ mal; esta perspectiva supõe um esquema de apreensão e análise das relações sociais que, mesmo sob um olhar feministas, se compraz ainda no maniqueísmo de pares opostos e/ ou complementares. Os mecanismos da reflexão crítica permanecem assim fixos, mascarando a realidade que constróem. Porque a dicotomia, o binário, senão como fruto de uma linearidade do olhar, de uma homogeinização que furta e esconde o múltiplo nas dobras de discursos regularórios? No cadinho das práticas sociais o “eu” se forja em peles, delimitando corpos normatizados, identidades contidas em papéis definidores: mulher e homem , assim fomos criados evas e adãos, por uma voz tão ilusória quanto real em seus efeitos de significação, cujos desígnios se materializam nos contornos do humano. Estes traços, desenhados por valores históricos, transitórios, naturalizam-se na repetição e reaparecem fundamentados em sua própria afirmação: as representações da “verdadeira mulher”, e do “o verdadeiro homem” atualizam-se no múrmurio do discurso social. Entretanto, a noção de historicidade remete aos inumeráveis perfis de formações sociais dispersas no tempo e no espaço, cujas práticas e suas significações não podem ser senão singualres. Desta forma, quando os feminismos colocam em questão o “natural”e a “natureza” humana como sendo as bases imutáveis do ser, revelam a multiplicidade do social e as possibilidades infinitas de sentidos atribuídos às práticas, às culturas e aos seres. A história mostra assim seu caráter de construção, resultado de uma operação de racionalização e redução do social, de apagamento da pluralidade e da diferença. A própria noção de diferença, neste sentido, é construída historicamente. Assim, o múltiplo contido no “nós” social fica reduzido a um binário que cria em torno da norma um espaço ao mesmo tempo de rejeição e de inclusão. Estou aqui falando de seres sexuados, cujas práticas são definidoras de seus corpos, cujas identidades são essencializadas na coerência entre o sexo e o gênero, entre um biológico tido como natural e um esquema de atribuições sociais a ele atrelados. Em função desta coerência, o espaço ao redor, o espaço constitutivo do binômio femnino/ masculino inclui e cria o desvio na constante re-articulação da norma e a norma é o “verdadeiro” sexo. Como ironiza Foucault: “Acordai, jovens! de vossos prazeres ilusórios; despojai-vos de vossos disfarces e lembrai-vos que tendes um verdadeiro sexo! “ Aquele[..] que esconde as partes mais secretas do indivíduo, a estrutura de seus fantasmas, as raízes de seu eu, as formas de sua relação com o real. No fundo do sexo, está a verdade” (Foucault, 1982:4) É assim que a história do Ocidente naturaliza as relações e funções atribuídas a mulheres e homens, re-criando-as e desenvolvendo uma política de esquecimento, que apaga o plural e o múltiplo do humano. A divisão binária da sociedade segundo o sexo torna-se “evidência” e a imposição, a construção desta divisão biológica enquanto valor distintivo não é questionada, já que “natural”. Vejo aqui a maternidade enquanto representação da “verdadeira mulher”, criando assim um corpo feminino cujas funções biológicas tornam-se um destino. A reprodução tem assim um lugar central em meu discurso já que, enquanto traço biológico, adquire uma significação e um peso que ao mesmo tempo esmagam e exaltam o feminino na rede de significações sociais. A imagem da mãe resgatando um “pecado original “ do feminino fez um longo caminho no seio do cristianismo desde o paraíso. Permanece, entretanto a garantia, o selo de qualidade que distingue as mulheres entre elas e lhes atribui um lugar social. A reprodução, assim, é um dos signos e uma das marcas que criam as mulheres e o feminino e as distinguem entre ela, em um sistema de poder e de hierarquia , subordinando-as ao masculino. O NATURAL DO DISCURSO Quem diz corpo e sexo pensa imediatamente em mulheres e homens povoando um mundo binário. “Natural”. Porém, hierárquico e assimétrico, o que não passa despercebido. A pletora de análises feministas dos discursos ocidentais sobre o feminino e o masculino revela a instituição de uma ordem social, o sex/gender/system assim nomeado por Gayle Rubin ainda nos anos 70.(Rubin, 1975:159) O desenvolvimento do cultural criando o binário e os papéis sexuais enviam à sexualidade e às práticas sexuais girando em torno da reprodução enquanto eixo principal . A noção de gênero foi criada pelas teóricas feministas enquanto categoria analítica da divisão sexuada do mundo, desvelando assim a construção social dos papéis naturalizados pela matriz genital/biológica. A articulação das significações no sex/gender system, a constelação de representações que atribui sentido às práticas sociais definem a procriação como eixo de relação entre os sexos : matriz universalizante, rege as práticas sexuais em torno das noções de “normalidade”, da “natureza”. Reprodutor, receptor, passivo, o sexo da mulher não existe senão para responder aos desejos, às necessidades do masculino individual e social Assim, a identidade generizada se estabelece moldando os corpos e define o feminino. Desta maneira, o binômio sexo/gênero se traduz de maneira implícita e natural em sexualidade reprodutiva, heterossexual e instala então a imagem da “verdadeira mulher”cuja função materna desenha os contornos e as funções sociais de um corpo sexuado. Mas como se vê hoje o sistema sexo/ gênero? Se por um lado, as análises feministas mostraram que a construção da representação social das mulheres estava centrada na função procriadora, por outro, entretanto, continuaram a girar em torno da maternidade, pois o sexo biológico não era visto como um problema, e sim tratado como elemento “natural”. A função social da reprodução – a maternidade e o materno - continua ligada à noção do feminino: a demanda atual pelas novas tecnologias de reprodução mostra a permanência deste desejo da procriação biológica. As pesquisas sobre as novas técnicas de reprodução (NTR) in vitro ou de inseminação artificial, a polêmica das “barrigas de aluguel” respondem à uma “necessidade” da maternidade para os casos de infertilidade. Entretanto, estas técnicas podem ser vistas como uma utilização máxima dos corpos femininos, como sublinha Jana Sawicki (1999:193), ou seja, tornam-se ainda mais determinados por sua especificidade reprodutora. As questões ligadas às NTR ainda não foram suficientemente discutidas; no imaginário social, porém, estas técnicas não liberam as mulheres de um fardo, nem lhes concedem maior poder social. Com efeito, realizam uma partilha da função materna entre as mulheres, sublinhando e renovando o biológico enquanto fundamento da maternidade. Nesta ótica, considera-se a “necessidade”da maternidade, o “instinto materno” como uma criação social que se perpetua e aparece enquanto evidência nos discursos e na iteração das normas heterossexuais e reprodutivas, mecanismo desvelado pela a análise feminista. Como indica Moira Gatens “[...] o que se requer é um balanço das maneiras pelas quais as típicas esferas de movimentos de homens e mulheres e suas respectivas atividades constróem e recriam espécies particulares de corpos para realizar tarefas particulares.”(Gatens, 1999:228-229) É assim que os “programas de verdade”, que instituem as relações sociais, definem para as mulheres, além das técnicas biogenéticas, corpos reprodutores por meio das “tecnolgias de produção do gênero”. A imagem e os sentidos atribuídos aos corpos não são, portanto superfícies já existentes sobre as quais se encastram os papéis e os valores sociais; são , ao contrário, uma invenção social, que sublinha um dado biológico cuja importância, culturalmente variável torna-se um destino natural e indispensável para a definição do feminino. A questão se articula sobre a importância social: isto significa que a materialidade do corpo existe, porém a “diferença entre os sexos”é uma atribuição de sentido dada aos corpos. Porque não olhar para as similitudes do humano em vez de demarcar espaços sexuados de ação e de poder? Se o gênero denuncia o social agindo sobre o sexo – feminino, masculino- as preocupações relativas às identidades sexuais, aos corpos sexuados levam certas teorias feministas a discutir atualmente a criação do sexo pelo gênero, a criação do corpo pelo sentido e pelo papel social atribuído às mulheres definidas enquanto tal. Este debate é central neste artigo. O MATERNO EM PERSPECTIVA A maternidade, enquanto traço distintivo do feminino fez correr rios de tinta. Este assunto é, de fato, incontornável, na medida em que grande número de análises se debruçaram sobre as esferas do privado e do público enquanto domínios de exclusão ou de pertencimento. O privado torna-se político, mas a dicotomia se mantém: o patriarcado, identificado como fundamento do sistema sexo/gênero encontra-se nas engrenagens que produzem o humano enquanto seres sexuados, divididos inexoravelmente em dois. A linha divisória centra-se na reprodução que define as mulheres de maneira ambígua, exaltada e inferiorizada ao mesmo tempo na maternidade. Exaltada na tarefa “divina”de dar à luz seres humanos, mas ao preço de se ver atrelada e delimitada por esta função. Fêmea ou mulher ou mulher por ser fêmea? Em que ordem de evidências a procriação instituiu-se como marco que separa os seres o os classifica, de maneira hierarquizada? Em um rápido olhar à história, vê-se que as diferentes práticas sociais criam a importância cultural e o papel das mulheres. No Ocidente, desde a antiguidade grega, as redes discursivas que compõem o saber e ligam a filosofia, a teologia, a medicina, o direito, a educação , as tradições orais e escritas tem elaborado e retido imagens e representaçõs negativas do feminino.(Groult, 1996) A construção e a inferiorização do “ser mulher” aparece como resultado de uma essência atrelada à um corpo deficiente: fêmea, espírito fraco e superficial, moral escorregadia e duvidosa , exigindo vigilância constante e a domesticação de sua tendência para o pecado. Diabolizada desde a legendária Eva, a salvação, entretanto, está a seu alcance por intermédio de seu corpo, de sua fecundidade, da possibilidade de reproduzir o humano e, sobretudo o masculino. Assim, em seu lado obscuro, as mulheres carregam o pecado e a fraqueza física e moral: em seu lado luminoso, o dever e a alegria da maternidade na dor e na abnegação são a única saída para apagar o “pecado original”. Encontramos aqui as imagens da mãe e da prostituta, binômio constitutivo da representação social das mulheres. Mãe e esposa, sexo domesticado, moralidade, espaço privado, família, reprodução do social. Prostitua, mulher pública, liberação do vício e da lascívia latentes no feminino. Estas premissas, porém, corresponderiam às práticas sociais históricas? Fundadas nas premissas da heterossexualidade e nas matrizes de inteligibilidade do patriarcado, a reificação contínua destas categorias deixa um espaço de significação onde as mulheres não podem “estar no mundo”senão para responder ao masculino, à seus desígnios , para dar-lhe uma descendência. A maternidade é assim seu destino e sua transcendência, a prostituição a imanência na impureza de seu sexo. As reflexões teóricas dos feminismos identificaram no determinismo biológico e na construção e apropriação do corpo das mulheres os mecanismos históricos e sociais da divisão binária da sociedade. A historicidade das relações humanas, suas possibilidades infinitas de combinação, as singularidades que modelam as formações sociais foram introduzidas nestas análises, ofuscando e recusnado uma visão não-histórica das essências, da univocidade, do universal aplicado ao humano. Este naturalismo, como sublinhava Guillaumin nos anos 70, “[...] proclama que o status de um grupo humano, como a ordem do mundo que assim o faz , é programado do interior da matéria viva [...] É a idéia singular que as ações de um grupo humano, de uma classe, são “naturais” ; que elas são independentes das relações sociais; que elas preexistam à toda história, à toda condição concreta determinada.”(Guillaumin, 1978:10-11 Se entendemos as significaçõs, as representações sociais como uma forma de conhecimento socialmente elaborado e partilhado que se materialisem em instituições e práticas ( Jodelet, 1989:36), podemos compreender que a auto-representação das mulheres submete-se aos saberes elaborados em lugares de autoridade que as reduzem a um corpo/sexo/matriz. Isto é o “assujeitamento”, a resposta individual à interpelação do social que cria as identidades e a identificação a um grupo, definindo sua inserção no espaço societal . Como sublinha Teresa de Lauretis :”[...] Aprendemos que alguém se torna mulher na prática dos signos nos quais vivemos, escrevemos, falomos, vemos...” A instituição social do casamento e seu corolário, a maternicade, aparecem como elementos constitutivos do “ser mulher”enquanto locus ideal do feminino. Entretanto, há cerca de 40 anos a pesquisa feminista vem indicando os mecanismos sociais produtores destas representações cristalizadas, cuja matriz, a heterossexualidade, aparece como fundamento dos corpos “diferentes” e complementares, (feminino/masculino) ligados de maneira inexorável pela “natureza”ou pela “ ordem divina”. A instituição da noção de “família” restrita, de núcleo familiar constituído pela mãe, pai e filhos como base do social completa a estreita ligação entre casamento, maternidade e heterossexualidade. Em 1981 Adrienne Rich perguntava se “[...] a grande questão do feminismo seria somente a de ‘desigualdade dos sexos’[...] ou não seria também a da heterossexualidade compulsória para as mulheres, como meio de assegurar um direito masculino de utilização física, econonomica e afetiva das mulheres?” (Rich, 1981:31) E prossegue: “Mas a incapacidade de ver na heterossexualidade uma instituição é da mesma ordem que a incapacidade de admitir que o sistema econômico nomeado capitalismo ou o sistema de castas que constitui o racismo são mantidos por um conjunto de forças, compreendendo tanto a violência física que a falsa consciência. “(idem:32) Parece-me claro, nos dias de hojes, e em certos países do Ocidente, que a maternidade não está mais necessáriamente ligada às práticas sexuais, a virgindade não é mais igualmente uma condição sine qua non para o casmaneto, as “mães-solteiras”não são necessariamente expulsas de casa, nem a família continua a ter o mesmo sentido estrito que mencionei anteriormente. Entretanto, e apesar das transformações ocorridas em algumas normas sociais ( de maneira pontual e localizada) e devido em grande parte aos feminismos, o casamento e a maternidade povoam os sonhos e o imaginário das mulheres que se consideram completas apenas se forem mães e esposas. O que dizer das esposas inférteis? De sua angústia, culpabilidade, do sentimento de inferioridade, da vergonha de não poder “dar um filho” a seu marido, a seu homem? Mas uma vez que a realidade não é vista como um bloco homogêneo, esta construção sofre os ataques da crítica feminista e de práticas sociais dinâmicas, que apresentam uma outra imagem do feminino, cujas aspirações se dirigem à outros setores da vida. Porém, o fato é que a maternidade “independente”, vivida por tão numerosas mulheres em todo Ocidente, modifica certamente os laços de dependência que entretinham com a instituição do casamento e com a própria auto-imagem. Entretanto, o desejo de ter filhos biológicos continua a compor o quadro de um feminino perfeito, pois as mudanças na ordem social parecem fazer-se de maneira sempre ambígua: as grades de interpretação do mundo não se transformam de uma só vez e as representações sociais de gênero delas são constitutivas. PROCRIAÇÃO E MATERNIDADE Gostaria de assinalar aqui a diferença que percebo entre a procriação e a representação social que lhe dá sentido, a maternidade: a primeira releva de algumas mulheres para renovar uma certa população dada, pois todas as mulheres não tem necessidade de procriar para que o humano não desapareça. A maternidade, por sua vez, é o resultado de significações sociais e torna-se assim um fato de “natureza” extensivo à toda uma parte do humano, uma essência definindo os corpos e os seres soletrados no feminino. Assim, o materno não é visto aqui como uma tara da qual as mulheres devem se liberar, mas como um sentido social que aprisiona e desenha os corpos, os desejos e o ser no feminino. Com efeito, o biológico adquire sua importância em um conjunto de práticas semióticas e simbólicas cujo referente ou significante geral foi localizado na reprodução; na ordem do patriarcado, onde o masculino se erige como norma e paradigma do humano, polo hierarquicamente superior, a capacidade específica de procriação do feminino torna-se o próprio feminino. Isto faz da fêmea do humano o ser classificado como “mulher” cuja existência se justifica pela sua capacidade de reprodução. A mulher é assim confinada a esta função e já em 1949, Simone de Beauvoir comentava que “[-...] ela engendra na generalidade de seu corpo, não na singularidade de sua existência” ( de Beauvoir, ed.1966:308) É assim que por um lado, o discurso da “natureza” faz da procriação a essência da mulher e subtrai-lhe ao mesmo tempo o papel de sujeito e a posse de seu corpo; por outro, a instituição do casamento em particular e a heterossexualidade compulsória em geral, faz com que as mulheres possam ser apropriadas em sua sexualidade e sua força de trabalho de modo individual e coletivo pelos homens. Se as análises feministas certamente descontruíram esta “essência natural”do papel social das mulheres, a sexualidade e o corpo biológicos permanecem no domínio do não-problematizado. Voltarei a esta questão. Assim, tecida em uma densa rede discursiva que imbrica memória, tradição e autoridades diversas, a representação da “verdadeira mulher” , mãe/ esposa/dona de casa é ainda em nossos dias a imagem e o quotidiano da maioria das mulheres. A multiplicidade que compõe o desejo e a experiência das mulheres é esquecida pelo efeito homgeinizante da imagem do Mesmo. O “eterno feminino” se atualiza sem cessar nas “tecnologias de reprodução do gênero( D Lauretis, 1987)”: no senso comum, nos mídia ( televisão, cinema, imprensa, música, etc) nos discursos dotados de autoridade ( religiosos, políticos, médicos, jurídicos, científicos) celebrando a maternidade como um duplo nascimento: da criança e da mulher, que realiza assim seu potencial procriador e desta forma, seu destino. As mulheres nesta perspectiva, não encontram a plenitude de seus corpos constituídos em sexo senão em sua função reprodutora. A face múltipla do poder social, continua desta forma, a desenhar um perfil humano construindo corpos sexuados desdobrados em sexualidade, em um modelo binário de divisão do mundo e de valores. O lícito e o ilícito do sexo, a boa e a má sexualidade se determinam implicitamente em torno da possibilidade de procriação. Os corpos são identificados pelo sexo e a proliferação de práticas sexuais se faz ainda segundo o modelo central de uma sexualidade binária e reprodutiva. A INVENÇAÕ DOS CORPOS: O BIOLÓGICO EM QUESTÃO
Foucault identifica um “dispositivo” da sexualidade neste conjunto de práticas, discursos, investimentos econômicos e simbólicos, poderes que gerenciam et produzem a sexualidade no vórtice das relações sociais, sem entretanto apagar a pregnância da família heterossesxual; sublinha neste sentido, que a sociedade “[...] colocou um ação toda uma aparelhagem para produzir sobre ele ( o sexo) discursos verdadeiros. Como se lhe fosse essencial que o sexo esteja inscrito, não somente em uma economia do prazer, mas também em um regime ordenado de saber.(Foucault, 1976: 92-93) Se as “tecnologias do sexo”analizadas por Foucault são aplicadas de maneira universal à produção dos seres humanos e esboçam os corpos em sujeitos sexuados, para Teresa de Lauretis desdobram-se em”tecnologias de gênero”, fixando identidades assimétricas fundadas sobre o sexo.(de Lauretis, 1987) Esta decodificação traduz assim a criação da pesada materialidade dos corpos femininos e masculinos a partir de valores e de representações que os constituem. Alguns discursos feministas (Deveaux, 1994: 231-232) percebem esta trama cerrada de poderes que tecem o social como uma generalização muito extensa , obscurecendo as relações assimétricas e de dominação, como são identificadas na formação do sex/gender system. Entretanto, a existência das “tecnologias do gênero” mostra poderes disseminados, que pela criação e difusão de imagens e papéis femininos/masculinos, compõem e alimentam o dispositivo da sexualidade, determinando identidades binárias como matrizes de inteligibilidade do sexo. Assim, o corpo inteligível, que opera em registros de submissão ou de resistência é igualmente o corpo naturalizado da mulher em sexo e reprodução. De um lado, o masculino, cujos genitais, físicos ou metafóricos assinalam-lhe um locus de poder e de autoridade enquanto sujeito universal: o homem, sinônimo do humano, sujeito dotado de transcendência. De outro, o feminino, o Outro inevitável e necessário, marcado pela imanência de um corpo-destino realizado na maternidade e na heterossexualidade. As “tecnologias do gênero” seriam os mecanismos institucionais e sociais que teriam o “[...] poder de controlar o campo da significação social e produzir, promover e ‘implantar’ representações de gênero. ( DE Lauretis, 1987:18)“ Nesta ótica, por meio da linguagem, da imagem, do vasto leque de discursos teóricos dos diferentes domínios disciplinares, de todo um aparato simbólico que designa, cria e institui os lugares, o status, as performances dos indivíduos na sociedade, as “tecnologias do gênero” constróem uma realidade feita de representações e auto-representações , cristalizadas em normas sociais. As imagens que as constituem mostram mulheres seduotras, belas, magras, e sobretudo mães, ou expressando seu desejo de sê-lo. Se o poder é difuso, exerce-se, entretanto na ordem do discurso e nos lentos mecanismos articuladores de relações sexuadas e sexuais, instituindo assim a sociedade, o imaginário hegemônico e as representações sociais que modelam os corpos e suas identidade. A mulher torna-se corpo inteligível enquanto mãe, pois as significações atribuídas ao feminino conferem-lhe um sentido unívoco: mulher-mãe, da qual a maternidade revela seu ser profundo, sua própria razão de ser. Fora da maternidade, o caminho do negativo, do vício, da sedução. Nesta instauração de corpos sexuados cria-se ao mesmo tempo o sistema de sexo/gênero que, como explicita de Lauretis, seria uma aparelho semiótico, um construto socio-cultural e um sistema de representações que designa identidades, valores e normas. ”( de Lauretis, 1987:5) Vemos aí uma política de localização socio-individual, de expressão identitária e de instituição de normas e regras, a partir da importância dada ao sexo e sexualidade como eixos de representação do ser: “ diga-me teu sexo e te direi quem és e sobretudo, o que vales.” Da decodificação da “tecnologia do sexo” aplicada de forma universal à produção do humano , a noção de “tecnologia do gênero” traduz um recorte que observa sua atualização polarizada. Com efeito, na materialização social dos corpos, as tecnologias polítcas que os investem tem por tarefa “[...] tomar conta da vida [...] distribuir o vivente em um domínio de valor e de utilidade. Um tal poder de qualificar, de medir, de apreciar, de hierarquizar [...] opera distribuições em torno da norma “ segundo comenta Foucault. (Foucault, 1976:189-190) A maternidade é, para a imensa maioria das mulheres o resultado direto de relações sexuais e, portanto a prática da sexualidade é o princípio organizador de sua identidade inteligível, em um jogo de “verdades” que cria a ilusão de um sujeito ontologicamente definido por seu assujeitamento ou resistência às normas reguladoras. Ao construir seres sexuados, as tecnologias sociais esculpem mulheres e homens, além das identidades múltiplas que circundam o binário naturalizado. Temos assim mulheres e homens – identidade delimitadas em um esquema binário, heterossexual, reprodutor, “natural”, circundados por práticas que traduzem identidades incompletas, incorretas, incômodas. Estou falando de sexualidade e das práticas que compõem o permitido , o pensável, o aceitável, traçando em sua esteira os sulcos do erro , práticas que “[...] insultam ‘a verdade’: um homem ‘passivo’, uma mulher ‘viril’, pessoas do mesmo sexo que se amam...”ou seja, “[...] um modo de fazer que não se adequa à realidade.”como explicita Foucault (Foucault, 1982:4). Realidade construída, a heterossexualidade é arauto da divina procriação, eixo reprodutor que justifica e interina a importância dada a um certo tipo de relação sexual, a “boa”, a “normal”. Judith Butler ( Butler, 1993:3) comenta estas margens de “erro” apontando- o como o fantasma do múltiplo que acompanha a ordem normativa : a criação do “abjeto” insere-se na “regulação de práticas identificatórias” e mostra assim o caráter provisório da norma e sua historicidade, que exige a constante re-citação, a permanente reafirmação da ordem instituída enquanto ordenamento natural. A multiplicidade sexual , desta forma, assombra e penetra os espaços binários. Ou seriam as práticas sexuais múltiplas? Questões de ordem diversa, porém indissociáveis, na medida em que às práticas concede-se o sêlo da identidade sexual, definidora dos indivíduos. O assujeitamento, a auto-representação das mulheres enquanto matrizes do humano, a imagem de sua inserção social e histórica atrelando corpo, sexo, desejo, identidade em torno da maternidade e heterossexualidade vem interinar e reproduzir o binário, o sistema sexo/gênero, a inteligibilidade de um mundo desenhado no masculino , distribuidor de tarefas segundo a modelagem e a utilidade dos corpos. Neste sentido, a reivindicação de uma “diferença” biológica das mulheres em relação aos homens, localizada em sua capacidade de procriação é fundada sobre um aporte cultural que lhe designa por “natureza” a nurture and care, contra a violência e o egocentrismo masculino. Como sublinha Moira Gatens, “[.,..] o corpo da mulher confinado no papel de esposa/mãe/ dona de casa, por exemplo, está investido de desejos particulares, capacidades e formas que pouco tem em comum com o corpo de uma atleta olímpica . Neste caso, o senso comum biológico não consegue exprimir a espeficidade destes dois corpos.[...] Este senso... não se encontra simplesmente em nível de interesses e desejos, mas no nível da verdadeira forma e capacidades do corpo. “(Gatens, 1999: 228) A especificidade, de fato, não é outra senão a iteração das qualidades e dos papéis designadas às mulheres ( que se aproximam singularmente dos valores morais cristãos) e a reatualização do sistema sexo/gênero com uim novo perfil. Assim, além das descrições históricas/sociais do funcionamento do gênero binário, a problemática do corpo biológico tornado feminino/masculino torna-se incontornável. O corpo biológico, fundamento “natural” da diferença é então percebido como criação do social . Neste aspecto, o poder constitutivo das relações sociais cria o corpo quando este se percebe sexuado e o sexo biológico toma uma evidência de “natureza” com características específicas, tornando indiscutível a divisão do humano em dois blocos separados mas unidos ao mesmo tempo por esta “natureza”, baseada na atração mútua, nas relações heterossexuais e na possibilidade da reprodução. Para as mulheres, o corpo materno é assim inventado. Isto não significa que não existam corpos humanos sexuados, com um aparelho genital dado. O que é criado pelas redes de significação e pelas práticas sociais é a importância dada a este fator, é a significação que lhe é atribuída enquanto revelador, catalalizador da essência do ser e da identidade do indivíduo. É o sexo que aparece enquanto efeito discursivo dando forma e perfil ao feminino/masculino binário pela atribuição de valores à certos detalhes anatômicos. Judith Butler afirma que “ Neste sentido, o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus movimentos será inteiramente material, mas a materialidade vista como o mais produtivo efeito do poder” Ëstou falando, portanto aqui, de sexo-significação, posto em discurso e images, veiculando e criando ao mesmo tempo as representações que lhe dão poder sobre os seres no social. O sexo- discurso produz corpos aos quais confere uma “sexo-significação” sobre uma matriz binária e normaliszadora, fundada sobre a reprodução, bem como sobre uma pluralidade de sexualidades que não cessam de se referir ao “sexo originário”, o procriador. Desta forma, os mecanismos de construção dos corpos, as estratégias e táticas se desvelam nas práticas sociais que definem os corpos “femininos”e os marca de inferioridade. Vejo assim o sexo-significação como o mecanismo de invenção do corpo feminino e dos corpos biológicos, como grade de interpretação binária do mundo e o sexo-discuros na prática social como a invenção do corpo feminino, do corpo materno. Ancorada no biológico, portanto, a representação da mulher se faz associada à da “verdadeira mulher”, a mãe. A regulamentação da fecundidade, as leis que decidem sobre o aborto e gerem os corpos femininos, a normalização dos comportamentos, a noção de “instinto materno”, tão cara ao senso comum, a ênfase e a importância dadas à célula familiar são também mecanismos de construção dos corpos. Foucault sublinha a histerização do corpo da mulher, sua saturação em sexualidade como meio de inserção e de comunicação orgânica com o corpo social. E comenta que a imagem em negativo da “mãe” é a mulher nervosa, sem controle, sem limites, uma vez perdida sua função e seu funcionamento específico de reprodutora. ) Foucault, 1976:137) Toda palavra reivindicadora, aliás, é logo classificada no domínio da histeria. Se a criação de categorias tais como gênero e patriarcado enquanto instrumentos analíticos das relações sociais foi fundamental para os estudos feministas, a crítica do sexo biológico como determinante estratégico da hierarquia dos sexos é ainda tímida. Entretanto, já nos anos 70 algumas autoras, como, por exemplo, Ti Grace Atkinsons sublinhava que a heterossexualidade era um instrumento de sujeição e de apropriação das mulheres.( Atkinsons, 1975) Da mesma forma, Gayle Rubin afirmava em 1975 “[...] todas as formas manifestas de sexo e gênero são vistas como sendo constituídas pelo imperativo do sistema social [...] Em um nível mais geral, a organização social do sexo repousa sobre o gênero, heterossexualidade obrigatória e o controle da sexualidade feminina.” (Rubin 1975: 179) Estas idéias foram retomadas e reelaboradas por Monique Wittig e Adrienne Rich nos anos 80, entre outras.(Wittig, 1980 e Rich, 1981) Meu argumento é que a significação discursiva é indissociável da significação corpórea atribuída ao humano nas matrizes de inteligibilidade que produzem o sexo em experiência de gênero e a heterossexualidade “normal”. Passamos assim à uma outra dimensão de análise quando, em lugar de considerar a diferença sexual, observamos a diferenciação social dos sexos, ( Mathieu, 1991:256) a construção social desta diferença, os mecanismos, as estratégias, o desvelamento enfim das representações que a fundam. A análise compreende desta maneira, não somente a construção social dos gêneros, mas igualmente a instituição cultural do sexo biológico e da sexualidade como base do humano, como a diferença fundadora dos seres..(idem) A desnaturalização do sexo biológico permite a queda dos bastiões mais sólidos da divisão binária da sociedade, indicando o caráter construído de toda “evidência”social. O contraponto da instituição do binário aparece assim como sendo a heterossexualidade obrigatória e procriadora, locus e estratégia do poder social sobre as mulheres , mas se o reconhecimento deste mecanismo está longe ainda de ser incorporado aos discursos feministas , o que dizer então do discurso social. O feminismo da femmelléite, assim nomeado por Francine Descarries (Descarries, 1998:194) é disto um exemplo, na medida em que esta corrente, sublinhando a maternidade como ponto de especificidade e poder das mulheres apenas interina as representações sociais que as constituem enquanto “mulheres”, seres à parte, inferiores. O que nos interpela aqui é a construção dos corpos sexuados, tomando sua pesada materialidade nas expressões de gênero e, sobretudo na especificidade do feminino centrado na maternidade, na reprodução. Corpo biológico, constituído em história: neste sentido, o corpo sexuado criado “mulher” aparece como estratégia, objeto e alvo de um sistema de saber entrelaçado a poderes múltiplos, imbricados na produção da sexualidade que engaja o conjunto das mulheres na tarefa da renovação física da sociedade. No seio das práticas sociais/históricas, a sexualidade é assim forjada como ponto de inflexão discursiva que confere ao corpo um sentido sexuado “natural”, cuja objetivação cria campos assimétricos de normas. A heterossexualidade obrigatória se instaura assim como um dos mecanismos reguladores das práticas, definindo os papéis sociais sgundo os desenhos morfológicos e genitais. Meu argumento, portanto, é que o sexo é uma construção social que o cria estabelecendo sua importância sobre os papéis generizados, fixados em torno de um valor máximo que naturaliza as relações heterossexuais: a reprodução. A noção de “maternidade” se enxerta sobre o materno com uma ampla significação que compõe a imagem, as funções, os deveres e ao mesmo tempo, os desejos e as pulsões e os sentimentos de uma “verdadeira mulher”. Para Foucault, “[...] a noção de ‘sexo ’permitiu regrupar segundo uma unidade artificial os elementos anatômicos, as funções biológicas, as condutas, as sensações, os prazeres e permitiu o funcionamento desta unidade fictícia como princípio causa, sentido omnipresente, segredo a ser descoberto em toda parte: o sexo pode assim funcionar como significante único e como significado universal “(Foucault, 1976: 204) O sexo torna-se assim o sentido, a essência e a identidade do humano na experiência da sexualidade normativa heterossexual. A argumentação de Judith Butler é muito sugestiva neste sentido, pois sugere que se o sexo biológico fosse um dado anatômico e o gênero uma construção cultural, o sexo não seguiria necessariamente o gênero da mesma maneira binária no espaço e no tempo. “Tomado em seu limite lógico, a distinção sexo/gênero sugere uma radical descontinuidade entre os corpos sexuados e gênero culturalmente construído.”(Butler, 19909:6) A oposição sexo/gênero em um sistema binário é desconstruída por sua própria explicação pois, acrescenta esta autora “Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo¸o próprio gênero torna-se um artifício livre e flutuante¸ com a consequência que homem e masculino podem tanto adquirir significação num corpo de fêmea ou de macho, e a mulher e o feminino num corpo de macho tão facilmente quanto de fêmea “(idem) Com efeito, o sexo biológico tomado como dado natural, não problematizado é o produto de um sistema de representações do mundo, de um regime de verdade que constrói a diferença ao anunciá-la. A invenção do corpo sexuado constituído em gênero seria assim um corpo peerformativo, que ilunina a ilusória coerência sexo biológico/ gênero social Para Butler, “ Não faria sentido, então, definir gênero como uma interpretação cultural do sexo, se o próprio sexo é uma categoria generizda. O gênero deveria não ser concebido meramente como uma inscrição cultural de sentido em um sexo pré-existente [...] gênero deve também designar o aparato de produção pelo qual os sexos eles próprios são estabelecidos. “( idem:7) Donna Haraway, por sua vez, não hesita em classificar os corpos biológicos como “[...] nódulos generadores, materiais e semióticos, cujos limites se materializam no processo de inteerção social. ( Haraway, 1991:358) A análise do corpo biológico como produto de uma economia social desfaz, de alguma forma, o nó górdio do contrato heterossexual que une sexualidade e reprodução, construindo a imagem da mulher e do feminino em maternidade . A observação de Foucault a este respeito é muito pertinente:”[...] a sexualidade é uma figura histórica muito real e é ela que suscita como elemento especulativo, necessário a seu funcionamento, a noção de sexo. Foucault, 1988:207) Nesta perspectiva, a importância dada à diferença entre a genitália dos seres como fonte de identidade encontra aqui seu lugar explícito na ordem do discurso: construção social, o eixo biológico vê-se criado nas práticas sociais que o engendram/ generizam. A este respeito, Nicole –Claude Mathieu explicita que “ O gênero, isto é, a imposição de um heteromorfismo dos comportamentos sociais não é portanto concebido [...] como a marca simbólica de uma diferença natural, mas como um operador de poder de um sexo sobre outro[...]”( Mathieu, 1991: 258) Neste caso, as práticas sociais, instituídas em um quadro de representação e interpretação do mundo decidem e moldam os corpos segundo a partilha de um poder centrado no sexo. Butler sublinha que “Não há identidade de gênero atrás de expressões de gênero; esta identidade é performativamente constituída pelas próprias expressões que deveriam ser seus resultados.(Butler, 1990:25)” O gênero cria portanto, o sexo e não o contrário. PARA ALÉM DO GENERO A categoria gênero, enquanto instrumento analítico vem perdendo seu vigor, a força subversiva demonstrada quando denunciava a partilha do mundo em um binário naturalizado. Domesticada, esta categoria reafirma o sex/ gender system agora considerado um universo “relacional” onde o descritivo toma o lugar da análise dos mecanismos de instituição social. A imposição de papéis “generizados” descreve assim não somente o lugar do feminino, mas igualmente o do masculino; entretanto, a hierarquia e a assimetria desta construção, da prática social que faz do gênero um vetor de poder e violência é esquecida pelo caminho e os “estudos das masculinidades” tomam espaço nos colóquios sobre o “gênero”. Onde ficam as propostas de transformação do mundo, das relações sociais, quando o binário é aceito como premissa indiscutível? A heterossexualidade não problematizada é o fundamento destas análises, pois é “natural” e os mecanismos de reflexão crítica permanecem cristalizados, escondendoo uma realidade que não cessa de revelar sua multiplicidade. Porque a existência desta dicotomia, deste binário, senão como fruto de uma linearidade do olhar, de uma homogeinização que vela e esconde o plural sob as dobras dos discursos reguladores? Neste sentido, o emprego da categoria heterogênero permite a desconstrução, ao menos teórica, do sistema sexo/gênero que compõe o dispositivo da sexualidade, marcado pelo selo do patriarcado, princípio e sistema gerador da divisão binária e hierarquizada do humano. Ao ser enunciada, a categoria heterogênero explicita o princípio básico que constrói o gênero : a sexualidade normatizada em torno do sexo reprodutor, atravessada de valores e normas morais. Expõe também os mecanismos de representação e auto-representação identitária em regimes ordenadores de uma correlação sexo biológico / gênero social, instalados em hieraquia pois “ [...] comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais e memórias organizadas” . (Deleuze e Guatari, 1980:25) Quem somos ‘nós”, finalmente, encerrados em corpos sexuados, construídos enquanto natureza, passageiros de identidades fictícias, expressas em condutas mais ou menos ordenadas? Quem sou eu, marcada pelo feminino, representada enquanto mulher, cujas práticas não cessam de apontar para as falhas, os abismos identitários contidos na própria dinâmica do ser? Que sofrimento inútil é este, criado por identidades sexuais pré-determinadas , por desejos e pulsões “anormais” , que devastam a vida de milhões de pessoas cujo sexo biológico não se adeqüa a seu gênero social? Foucault marca uma posição: “Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo” (Foucault, 1987:20) Deleuze, por outro lado, aponta para caminhos de subjetividade: “Não apenas chegar ao ponto onde não se diz mais eu, mas ao ponto no qual não há a menor importância de dizer ou não eu. . (Deleuze e Guatari, 1980:9). Assim, o indivíduo se afirma em um espaço de normalidade ou em uma brecha du dehors, sujeito que aparece na multiplicidade domesticada. Que faço eu de mim? No pronome oblíquo, o desdobramento do sujeito em objeto. Na ação, o assujeitamento à práticas regulatórias ou a reflexão crítica que faz de mim uma “forasteira de dentro” ( Hutcheon,1991:98) ancorada em minha identidade de gênero, experiência de um corpo sexuado, cuja pesada materialidade pede um questionamento. Afinal, porque o “eu” seria definido por traços biológicos ou por práticas sexuais, senão através de convenções socio-históricas, de repetições incessantes que atuam em todos os níveis do humano, do cotidiano mais banal ao científico mais elaborado? Identifica-se aí uma certa ordem , uma economia do discurso atuando através de suas tecnologias intrínsecas, segundo “[...] as necessidades de seu funcionamento, as táticas que atualiza, os efeitos de poder que o fundamenta e veicula” como sublinha Foucault.(Foucault, 1976:92) Face a um feminino identificado por sua capacidade de reprodução, de procriação, Butler aponta para a busca de seus mecanismos de funcionamento pois “[...] a questão que importa é: em que medida deve um corpo ser definido pela sua capacidade de procriação? Porque é pela procriação que se define o corpo?”(Butler, 1994:33) O GENERO CRIA O SEXO Foucault denomina “tecnicas de si” o movimento que permite ao sujeito efetuar sobre seu corpo, alma, pensamentos, condutas, um certo número de operações “[...] de maneira a produzir neles uma tranformação, uma modificação e atingir um certo estado de perfeição, de felicidade, de pureza [...]”(Foucault, 1994:171). Nesta perspectiva, se o espaço histórico-institucional produz os seres sexuados, estas representações são absorvidas em um processo de auto-representação, de auto-domesticação , na medida em que o sujeito instituído “eu” atua na absorção e reprodução de “si ” segundo as práticas regularórias do social/ sexual. Deste assujeitamento, as mulheres que se descrevem como sendo antes de tudo “mães” são um exemplo lapidar, a maternidade justificando seu ser e sua existência. As “técnicas de si” segundo avança Foucault, exigem uma série de constrições, de obrigações em torno da “verdade” sobre si: auscultá-la, digerí-la e sobretudo explcitá-la. (idem) Entretanto, esta formulação supõe um sujeito anterior às práticas nas quais se situa.. Como sublinha Judith Butler “[... ] como e onde atuo enquanto ser é a forma como este “sendo” se torna estabelecido, instituído, circulante e confirmado.”(Butler, 1991:18) Ou seja, a identidade de gênero institui sua própria imagem e se realiza em sua atualização: o “eu” se torna possível enquanto sujeito através de práticas e representações de “mim”. Não preexiste à sua instituição. Eu denominaria “técnicas de mim” este processo em que de mim para mim e de mim para os outros eu digo e represento: “eu sou”. Eu sou um sexo, uma mulher, um gênero, eu assumo uma identidade sulcada pelo sistema sexo/gênero, que determina a coerência do gênero, ou seja, [...} o que a pessoa sente, como age e como expressa sua sexualidade em articulação e consonância com o gênero. Há uma causalidade e identidade particulares que se estabelecem na coerência do gênero , ligada à heterossexualidade compulsória.,(Butler, 1994:36-37) no qual se classifica e se produz. Estas “técnicas de mim”seriam performativas, no sentido dado por Butler, em que produzem aquilo que nomeiam ou representam. (Butler, 1993:107) De fato, como sublinha esta autora, [...] a coerência do gênero, que se realiza na aparente repetição do mesmo produz como seu efeito a ilusão de um sujeito precedente e volitivo.E assim, [...] o gênero não é uma performance que um sujeito anterior elege para realizar, mas o gênero é performativo, no sentido em que constitui como efeito o sujeito que pretendo expressar. ( Butler, 1991:24) A auto- representação das mulheres não é portanto uma performance social baseada em um fundamento biológico, mas a adoção do gênero é um ato performativo, mecanismo criador do sujeito biológico feminino nomeando-o e designando-lhe seu lugar e seu papel de gênero. Mas e este corpo, cuja materialidade é inegável, este corpo no qual se alojam pulsões, este corpo que se traduz em desejos e impulsos? Como habitar este corpo ao qual é atribuída uma identidade antes mesmo de estar no mundo, no desejo manifesto do nascimento de uma menina ou de um menino? A antropologia feminista vem mostrando inumeráveis culturas onde o sexo biológico da criança não é determinante de sua identidade social. A própria historicidade do relacionamento heterossexual faz com que sua prática hegemônica se mantenha através da repetição, da re-citação incansável de sua condição “natural”. Como salienta Butler “[...] uma das razões pelas quais a heterossexualidade tem que se re-elaborar, reproduzir-se ritualisticamente em toda parte é para suplantar o sentido constitutivo de sua própria fragilidade[...]”(Butler,1991:34) “Creio que o simbólico é o sempre-já pronto-lá ( always-already-there) mas está também em processo de ser feito e refeito. Não pode continuar a existir sem uma produção ritualística pela qual é contínuamente reinstalado .” (idem:36) Deste modo, a orientação do desejo e da sexualidade em uma só direção – o sexo oposto- cria núcleos identitários sexuais , construídos pelas “técnicas de mim”, pela produção contínua de representações e auto-representação em invólucros de carne nomeados pelo sexo. Neste caso, a sexualidade e o sexo dizem respeito a lugares de fala de onde emerge o sujeito sexuado constituído hierarquicamente em papel social e corpo biológico . Heterossexual superior ao homossexual, masculino ao feminino. Aqui a experiência de gênero feminino mostra que a ancoragem do gênero no sexo biológico é o fundamento dos mecanismos de divisão e contrôle de um sexo sobre outro. Os discursos sobre o gênero e sobre a especificidade do feminino reiteram , nesta perspectiva, as divisões e exclusões sociais, sem questionar a instituição do sexo biológico na partilha do mundo. O corpo assim não é investido pela sexualidade, superfície pré-discursiva sobre a qual se delineiam os sulcos de um sexo definidor; toma forma, ao contrário, materializa-se a partir de um sexo-significação, produzido pelo próprio discurso. Deste modo, a significação discursiva é indissociável da significação corpórea que produz corpos em relações de inteligibilidade, nas quais [...] nos colocamos nós mesmos, sob o signo do sexo, não de uma Física mas de uma Lógica do sexo”, como enfatiza Foucault.(Foucualt, 1976:102) O sexo, portanto, é in-corporação, criação de corpos sexuados inseridos em uma ordem sócio-histórica, definida através de suas práticas discursivas , normativas, pedagógicas; O sexo biológico tem aqui apenas o valor e a importância que lhe são dados, mas aparece como evidência maior na identidade humana.. O “natural”, o “instinto materno” ou a pulsão heterossexual, regulador de identidades e do ser no mundo mostra assim sua dimensão real: não passa de uma ilusão , construída e repetida para manter sua própria instituição. Como salienta Foucault: “É preciso pensar o instinto não como um dado natural, mas já como toda uma elaboração, todo um jogo complexo entre o corpo e a lei, entre o corpo e os mecanismos culturais que asseguram o controle do povo [...]” (Foucualt, 1994:183) e do feminino, acrescento. No mesmo sentido, aponta Butler “[...] as normas regulatórias do sexo trabalham de forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferança seuxal a serviço da consolidação do imperativo heterossexual.”(Butler, 1993:3) O poder não se dá, ele se exerce, diz Foucault.(Foucault, 1994:235-236) Esta é a relação de poder, é a inflexão sobre a auto-representação, sobre a conduta, sobre as imagens de corpo, sobre a apreensão do mundo instituindo assim uma realidade fundada na univocidade das imagens e das significações, lá onde as possibilidades são plurais. A determinação do possível e do pensável , do natural e do instintivo compõem o perfil da relação heterossexual reprodutiva como a verdadeira face do mundo, dividida em partes desiguais, em sujeitos determinados: passivo/ ativo, mulher/homem, gay/straigt. Identidades fixadas no sexo e pelo sexo, identidades múltiplas porém domesticadas pela rede de sentidos na qual estão inseridas, “regime de verdade” foucaultiano, onde os valores circulam como verdades, e cuja força reside em sua reafiramação constante, na tradição, no discurso do “natural”. Ou seja, as representações sociais , veiculadas em imagens e em linguagem traduzem o gênero em corpos sexuados, e o desnudamento deste mecanismo permite a inversão das polaridades do sistema de sexo/gênero: assim, é o gênero que cria o sexo. O sexo biológico deixa de ser o signficante geral que abriga o binário sexual e passa a ser igualmente signo produzido no próprio seio do agenciamento social. Neste sentido, é performativo, como sublinha Butler, instalando sua realidade no próprio discurso que o descreve.(Butler, 1993:3) Assim, o sexo passa a ser pensado “[...] não mais como um dado corporal sobre o qual o construto do gênero é artificialmente imposto, mas como uma norma cultural que governa a maaterialização dos corpos.”( idem) A heterossexualidade compulsória apontada pelas teóricas feministas Adrienne Rich ou Monique Wittig no início dos anos 80 pode ser hoje compreendida como uma matriz de inteligibilidade, como um sentido condutor na constituição dos desejos e dos corpos. A lei normativa, as práticas discursivas e regulatórias definem as práticas sexuais e em torno delas cristalizam os indivíduos em sujeitos sexuados. Ordem simbólica, constrói o solo sobre o qual se apoia. Constrói também a desigualdade, a hierarquia, a inferioridade, o desprezo, a culpa, a abjeção. Butler propõe repensar este processo pelo qual “[...] o sujeito, o ‘Eu’ falante é formado em virtude de ter sofrido o processo de assumir um sexo”(idem). O corpo não é apenas discursivamente construído, é objetivado numa escala de valores e atributos que além das identidades, estabelecem seus critérios “verdadeiros”: a “verdadeira mulher”, sedutora , bela , implacável, imagem à qual procuram se identificar milhões de seres marcados do feminino. O “verdadeiro homem” macho empedernido, coração seco e músculos túrgidos. A noção de dispositvo de Foucault aí se desdobra, em uma economia omnipresente do sexo, investindo em corpos rijos, curvelíneos, macios e apetitosos – homens , mulheres , gays, crianças– consumíveis e consumidores de sexo, sexo, sexo. A “verdadeira mulher” se desdobra também em esposa-mãe, imagem que habita as mulheres como apelo do natural, o apelo do ventre, destino e marca da verdade do sexo. Reprodução e sexualidade: porque estariam atrelados senão como resultado de uma ordem simbólica que traduz o contingente-histórico como o necessário-natural? O privado é político, o pessoal é político, diziam as feministas nos anos 70 pois determinar papéis e espaços: fixar identidades é finalmente, “conduzir a conduta”, ação precípua do poder. Por outro lado, no domínio do “abjeto”(idem) do espaço marginal ao “verdadeiro sexo” binário, outras identidades florescem: a “verdadeira lésbica”, o “verdadeiro travesti”, transsexual, drags e outros. Todos girando em torno da sexualidade e do sexo , reivindicando lugares de fala e de ser. Todos aprisionados em corpos sexuados obrigados à sensualidade, à sexualidade, única forma de afirmar sua existência. Os grilhões não estão na repressão, mas no dever de uma prática sexual qualquer, nos discursos sobre o sexo e a sexualidade que preenchem os escaninhos do pensamento, da emoção , que definem os cânones de rejeição ou inserção em redes identitárias. Em que me torno, quando me ausento da sexualidade, que ser monstruoso é este, cujos anseios não passam necessariamente por práticas genitais? A « miséria sexual”, finalmente, não é a falta de sexo, a reclusão, a proibição; a miséria sexual é a obrigação do sexo como medida do ser, como essência identitária, padrão de comportamento, verdade na qual desenho meu perfil, meus contornos, minha inserçaão no mundo. No castelo d’If, os anos escavando os muros para a liberdade só levaram a outra cela dentro da mesma prisão: a do sexo-verdade, do sexo-identidade , do sexo-ser-no-mundo. Neste sentido, quebrar as cadeias significa dissolver as identidades sexuadas e sexuais : eu não sou nem mulher, nem lesbiana, nem mãe, nem esposa, nem transexual. Sou uma pessoa cujo perfil se desenha nos caminhos escolhidos, cuja identidade não se fixa que no momento preciso da ação no mundo, no presente fugitivo que se torna passado no instante mesmo de sua manifestação. A pergunta que se impõe é: em torno de que valores construimos nossas imagens e papéis, enquanto-ser- no mundo? Que faço eu de mim, a partir desta experiência materializada em mulher e feminista? Que importância atribuimos às coisas e às palavras que as definem? Que faço eu enquanto as “tecnologias do gênero” em ação continuam a materializar corpos sexuados em um sistema de sexo/gênero, binário, heterossexual, difundindo representações hierárquicas e assimétricas de sexo e sexualidade em imagens e discuros , em filmes, em revistas, jornais, televisão , banalizando a venda de crianças para o sexo, o abuso sexual, a violência doméstica, a violência paroxística da prostituição, o estupro, a discriminação e o assassinato de homossexuais, aqueles que ameaçam a ordem instituída e organizada do “eu”e do “nós”? Sem falar da violência do “eu” sobre “mim”, na domesticação do desejo e do prazer, centrado e simbolizado pelos órgãos genitais, na tarefa de me explicar ou reproduzir, dentro ou fora da matriz da heterossexualidade ? Que cansaço é este que se abate sobre mim na constatação da tortura e da dor que os modelos impõem ao humano, criando-o “`à imagem de alguma coisa” que certamente não é divina? UMA ECONOMIA DO NOMADISMO
O que fazemos de nós mesmas, nós que vivemos a experiência de mulheres, de feministas, de mães? Como fazer a crítica do sexo biológico, da função procriadora, da maternidade presente na vida e no desejo da maioria das mulheres? Como se liberar da pregnância e da interpelação do social que mesmo para as feministas faz da maternidade um lugar de fala e de resistência? Os discursos “pós-modernos” da disseminação do sujeito criam uma perplexidade nas fileiras de certas correntes do feminismo, pois a materialidade da experiência vivida contradiz a evidência do desaparecimento do sujeito. Onde nos localizamos, quando o sujeito do feminismo desaparece? Esta questão pede uma meta-crítica, na medida em que a prática e produção epistemológicas feministas passam pela experiência de cada uma , sem entretanto aí permanceram fixadas. Se a teoria é capaz de analisar a construção de identidades que se tornam a pedra fundadora do humano, a prática social da desconstrução revela-se muito mais complicada. Como tornar-se nômade face ao mundo povoado de identidades “naturais”? A noção de experiência, elaborada por Teresa de Lauretis mostra-se fecunda nesta ótica, vista como “[...] um processo em andamento, pelo qual a subjetividade é construída semiótica e historicamente.[...] como um complexo de hábitos resultando da interação semiótica entre o “mundo de fora”e o “mundo de dentro”, o engajamento contínuo do self ou sujeito na realidade social.” (DE Lauretis, 1984:182) A experiência é assim concebida como a imersão do sujeito nas práticas sociais, a inserção do ser no mundo, sua ação e seus movimentos em uma ordem social múltipla, plurívoca. Isto significa que uma identidade não pode ser designada por UM detalhe anatômico, emocional ou funcional, mas por um conjunto de experiências que fazem de nós seres em mutação, marcados por momentos e motivações diversas, agindo entretanto a partir de um lugar de fala, de um papel socio-histórico e individual específico. O movimento, a mutação é o eixo de ação, deslocando assim as identidades fixas/ fictícias, em um processo de transformação incessante. A necessidade de marcar uma identidade, uma identificação a um grupo, à uma imagem , à uma representação é constitutiva de uma certa maneira de pensar e de construir um mundo inteligíbel e ordenado a partir de matrizes que se escondem sob a evidência dos corpos e das diferenças. Mas se em uma outra ordem de idéias a busca fosse de similitudes e não de diferenças? O que sucederia às diferenças irredutíveis entre mulheres e homens? É necessário não somente pensar o mundo, mas principalmente pensar sua transformação jpois como sublinha Foucault “[...] já que as coisas existentes foram feitas, podem, com a condição que se saiba como foram feitas, ser desfeitas.”( Foucault, 1994:449) A auto-representação , de fato, abre uma brecha, uma fissura, pois a partir de uma experiência, de um lugar de fala “mulher” ou outro qualquer, posso aderir a um contra-imaginário, espaço onde o sexo binário não seria mais A base identitária, onde a definição do humano não passa pelo biológico do sexo. Imagens e representações forjadas por um discurso patriarcal a ser superado como sublinha Teresa de Lauretis “[...] temos que caminhar fora do quadro de referência centrado no masculino no qual o gênero e a sexualidade são (re) produzidos pelo discurso da sexualidade masculina.”( de Lauretis, 1987:17) Colocar em questão as “evidências”identitárias não somente sociais, mas também biológicas é um dos mecanismos que permite a modificação das representações sociais, criadoras de seres e de relações sociais. Teresa de Lauretis propõe um ponto epistemológico crítico, no quadro de uma política de localização subjetiva, com a plena consciência de um corpo desenhado em gênero, transformado em sexo; não o despojamento, a neutralidade, mas o “eccentric subject” , dentro e fora de seus contornos de gênero, e com plena consciência de sê-lo. Este seria o “space off” “[...] uma posição atingida através do deslocamento político e pessoal através dos limites entre as identidades sociosexuais e as comunidades, entre corpos e discursos[...]”( de Lauretis, 1990,145) Esta política de localização não busca apagar os efeitos de significação, ao contrário: cria para o feminino um lugar de fala “[...] com um entendimento particular da experiência individual como resultado de um feixe complexo de determinações e lutas, um processo de contínua renegociação entre pressões externas e resistências internas. “(idem:137) Este lugar de fala é histórico e localizado em um campo determinado de relações sociais; não pode portanto ser nem definitivo nem unificado , sendo atravessado pelas dimensões que se cruzam e são eventualmente contraditórias. “(idem) Neste sentido, para Rosi Braidotti, o projeto feminista se espraia sobre a dimensão da subjetividade, do ser histórico e de seu engajamento sociopolítico, assim como sobre a dimensão da identidade, ligada à consciência, ao desejo e à política do individual. (Bradotti, 1994: 163) Com efeito, propostas radicais de se re-pensar a identidade, a partir de uma subjetividade ancorada na experiência de gênero e suas articulações, na história e no espaço vivido, são oriundas de algumas correntes feministas. A ancoragem na experiência do feminino é o ponto de partida para a explosão identitária da própria categoria « mulheres » cujas experiências são múlltiplas e/ou contraditória, constituídas por variáveis que as constituem de formas diferenciadas : idade, preferência sexual, etnia, status social, etc. Neste caso, o sujeito assujeitado à sua identidade passa a ser um “eu” em construção, em processo, numa poética identitária, poética entendida como processo, mutação, onde os limites se traduzem apenas no passado, numa cartografia de mim, numa identidade nômade. Para a identidade nômade do feminismo, não há necessidade de uma visão substantiva do sujeito para uma atuação política : numa perspectiva nômade, como argumenta Rosi Bradoitti “[...] o político é uma forma de intervenção que atua simultaneamente nos registros discursivos e materiais da subjetividade [...] na consciência da constituição fraturada do sujeito constituído pelo poder e a busca ativa das possibilidades de resistência às formações hegemônicas.” » (idem:35) Uma identidade em construção, móvel, transitória uma identidade somente retrospectiva, da qual podemos traçar mapas acurados, mas“[ ... ] a que indica unicamente onde já estivemos e onde,consequentemente, não estamos mais “(idem) O que fomos, e já não somos mais. Ou melhor, o que pensamos ter sido e que só permanece no que a memória seleciona. Assim, as transformações identitárias atingem os espaços do imaginário hegemônico quebrando os moldes dos papéis e dos corpos, criando outras representações para instituir novos relacionamentos. A disseminação identitária só pode ser alcançada através das estruturas múltiplas da in-corporação indivudual, como sublinha Braidotti.: “Deve-se começar deixando livres os espaços de experimentação, ou busca ou transição: tornando-se nômades.” (idem:171) Isto não significa negar a existência de estruturas identitárias, ao contrário. Significa atuar , a partir destas, no sentido de desestabilizá-las. Significa uma luta, como sugere Foucault, “[...] como aquelas que combatem tudo que liga o indivíduo a si mesmo e assegura assim sua submissão aos outros.”(Foucault, 1994:227) De fato, a identidade nômade enquanto proposta para o próprio feminismo seria a convivência com as contradições e descontinuidades internas, trabalhando as incertezas não como derrota , mas como traços constitutivos do ser.(Bradidotti, 1994:167) Deste lugar de onde falo, deste corpo que abriga minha linguagem, do gênero que me é atribuído, traduzindo representações do mundo e auto-representações em determinado tempo /espaço sou um feixe de experiências que fazem de mim um ser no presente, porém nunca cristalizado em uma natureza ou uma função. A maternidade faz parte de uma das experiências vividas, entre todas as outras variáveis da existência . Se falo enquanto mulher ou feminista, este lugar não representa uma essência, mas experiências, atravessado por traços como profissão, idade, preferência sexual, cada um estabelecendo limites, autoridades, valores, adotando ou rejeitando as normas sociais. (idem:4) Este nomadismo , esta troca constante de lugares, de posições revela o modo de ser nômade “[...] como a consciência crítica que resiste aos códigos sociais estabelecidos de pensamento e conduta.” (idem:5) Esta perspectiva encontra-se com a epistemologia nômade de Deleuze e Guattari, que, segundo aponta Braidotti, dissolve a noção de centro e de topos originários de identidades autênticas de qualquer tipo, focalizando a necessidade de um outro patamar fora do alcance hegemônico. (idem) Temos aqui também a perspectiva rizomática, pois tal como o rizoma, a identidade nômade ‘[...] não se deixa reduzir ao Um ou ao múltiplo.[...] Não é feito de unidades, mas de dimensões, ou ainda, de direções móveis. Não ha começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual cresce e transborda “ (Deleuze e Guatari,1980:31) Nomadismo, portanto, transição, posição que quebra as exigências de um pensamento binário do antes e do depois. O ponto de partida é o meio, mas num espaço sem horizontalidade ou evolução. Para Foucault “[...] as relações que devemos ter conosco não são de identidade: devem ser relações de diferença de criação, de inovação. É muito cansativo ser sempre o mesmo.”conclui. De certa forma, a identidade nômade é a reinvenção de mim enquanto outro. É o espaço de mim. Se pensarmos este espaço identitário como estando em ligação com todos os outros espaços de um “eu”, que os critica, designa ou reflete, temos aí uma heterotopia identitária. Eu, nômade, sou outra , além daquilo que pareço ou do que falo. Eu sou um espaço de mim, migratório, de transição, nesta cartografia que me revela e me nega. Eu sou o espelho de mim , um lugar sem lugar “[...], em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície, eu estou lá , onde não estou, uma espécie de sombra que me dá a mim mesma minha própria visibilidade, que me permite olhar-me lá onde estou ausente.” (idem:756) Eu sou, de fato, a heterotopia de mim, o espaço outro onde posso re-criar meu ser no mundo , onde as normas e os modelos não legislam. Jogo de palavras? Não, pois em minha materialidade sou um lugar de fala, em meu corpo sexuado, sou um sujeito generizado, localizo-me em um mundo de representações, nas quais o corpo e a sexualidade são identificatórios. Sou porém nômade, e esta concretude é apemas o reflexo no espelho, pois este “eu” que vejo refletido não sou “eu”. Este “eu” forjado em valores e normas históricas, por teorias e discursos de saber, por limites e entraves erigidos em sexo e sexualidade não sou eu: é apenas uma passagem, um momento de mim. Na imagem invertida no espelho vejo apenas a imitação de mim em um eu unificado, categorizado, tão ilusório quanto as dimensões que se abrem na superfície polida. Esta é a identidade nômade: uma heterotopia de mim, um espaço outro, que conectado a todos os espaços dos quais eu falo e sou, abre o caminho para a transformação. Na perspectiva da resistência, como queria Foucault, “[...] nós somos sempre livres e [...] há sempre a possibilidade de transformar as coisas. (idem:740) Num mundo de representações sociais onde os seres se definem pelo corpo sexuado e pelas práticas sexuais uma identidade nômade desfaz as polaridades e as hierarquias, solapa as bases do sistema de sexo/gênero, desvelando a tragédia e a triste comicidade do assujeitamento ao “verdadeiro sexo”, às essências humanas instituídas e narradas em história. Não há opostos, há posições de sujeito, não há binário nem múltiplo, pois não há unidades. Uma identidade em construção não visa um desenho final, o que importa é o movimento. Nada de representações fixas: uma identidade nômade não compreende senão o movimento, a transformação, a crítica que se inicia com a auto-representação sexuada e se estende ao social. Do “eu”ao “nós” a mudança em nível de representações é uma modificação do imaginário que institui o mundo, uma estratégia política que visa os mecanismos mentais construtores do ser sexuado e das práticas sociais que as objetivam, como a invenção do corpo sexuado, a invenção do corpo feminino, do corpo materno. Como pensar o feminismo e sua ação política no interior do sistema sexo/gênero?, como se situar quando as categoria habituais de pensamento encontram-se questionadas, invertidas, sacudidas? Talvez seja necessário mergulhar nesta corrente de contra-imaginário que abole o sujeito para melhor dotá-lo de instrumentos de transformação sem temor dos paradoxos quando se almeja a mudança social. O contra-imaginário feminista é, entre outras formas de intervenção social, aquele que quebra a ação das “tecnologias do gênero” dando início à transformação das representações instauradoras do real; absorve, assim, o paradoxo de uma ação que se desenvolve para anular seu próprio objeto. Baseado na experiência de cada mulher, trata-se de estratégias múltiplas, voltadas para a dissolução das representações sociais identitárias mulher/homem, para a modificação das relações sociais fundadas no sistema sexo/gênero Para Foucault, o trabalho do intelectual “[...] não consiste simplesmente em caracterizar o que somos, mas, seguindo as linhas de fragilidade de hoje, detectar por onde e como o que é poderia não ser mais o que é. E é neste sentido que a descrição deve ser sempre feita segundo esta espécie de fratura virtual,que abre um espaço de liberdade, compreendido como espaço de liberdade concreta, isto é, de transformação possível.” O sujeito composto em gênero nas relações sociais se auto-representa mulher ou homem . Mas esta subjetivação incide, por sua vez, na representação social, o que abre a brecha, a oportunidade da transformação. Abre caminho para a ação de um contra-imaginário que desloca o sistema hegemônico em um leque de novas representações , onde o sexo, por exemplo, não seria O definidor identitário. Não apenas pensar o mundo, mas tranformá-lo. Foucalt não poderia ser mais enfático a este respeito: “ [...] o problema não é mudar a ‘consciência’ das pessoas, ou o que elas tem na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade”. (Foucault, 1988:14) Neste sentido os estudos feministas e os movimentos das mulheres vem criando espaços outros – heterotopias – práticas e teorias que atuam na representação de gênero e fora dela, na medida da crítica à produção e reprodução do sistema de sexo/gênero através das instituições sociais, entre as quais a heterossexualidade compulsória . Questiona-se assim as evidências identitárias não apenas sociais, mas também biológicas na produção de discursos além dos limites hegemônicos. Como assinala de Lauretis, são “[...] espaços sociais escuplidos nos interstícios das intituições , nas fendas e nas fissuras dos aparelhos de saber e de poder. “( de Lauretis,1987:25) Este é o ponto epistemológico crítico dentro de uma política de localização subjetiva, com a plena consciência da ancoragem em um corpo delineado pelo gênero, transformado em sexo; não o despojamento , a neutralidade, mas a Sujeito “ex-cêntrico”, dentro e fora de seus contornos de gênero, que permite não apenas a descrição do sistema e seu funcionamento, mas a exposição de seus mecanismo de engendramento, reprodução e instituição no social e no individual, retirando-lhes seu caráter de evidência. Ponto de ação no mundo, político¸ na medida em que uma vez conhecidos estes mecanismos, fica mais fácil destruí-los. Como afirma Foucault , a descrição de diferentes formas de racionalidade mostra que “[...] repousam sobre uma base de prática e história humanas e como foram feitas pode- se, com a condição de que saibamos como foram feitos, desfazê-las.”( Foucault,1994:449) Neste sentido, os feminismos tem sido ponta da lança em termos teóricos e de ação política de transformação, marcando a política de localizaçãoque leva em conta , para a sua reflexão crítica a experiência múltipla e diferenciada, marcado e definido pela sexualidade enquanto feminina. Afinal, a historicidade das relações sociais/ sexuais mostra que o importante, é aquilo a que damos importância. Mudar um regime de verdade significa mudar de lugar, inverter os paradigmas para melhor dissolvê-los. BibliographieAtkinson. Ti Grace. 1975 . L’odysée d’une Amazone, Paris, Des Femmes. Beauvoir, Simone de . 1966 . Le deuxième sexe, l’expérience vécue, Paris, Gallimard BRAIDOTTI, Rosi. 1994. 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