Mulheres sujeitos políticos: que diferença é esta?

 

 

Resumo

A presença e a atuação das mulheres na construção histórica do social tem sido sistematicamente ocultada, senão apagada, dos registros e memória social. A epistemologia feminista, em suas diferentes correntes, tem sido igualmente ignorada na academia. Entretanto, torna-se cada vez mais evidente a presença e a ação das mulheres, em  movimentos, associações e em termos de participação política, enquanto candidatas, eleitas ou eleitoras. A noção de diferença sexual, da imagem das mulheres em uma forma generalizante, denominada “ a mulher” é aqui discutida e problematizada, enquanto lócus de formação das desigualdades políticas.

 

 

 

mais de 40 anos os movimentos de mulheres e feministas no Brasil tem atuado em todos os setores, abrindo espaço para uma visibilidade maior do trabalho feminino, de sua reflexão sobre o social, agindo para a modificação de representações sociais e auto-representações, que acorrentavam o feminino a tarefas e papéis limitados e estereotipados.

 Apesar de sua participar na construção da nação com seu trabalhoseu esforço, com seus ideais, com seu ventre, produzindo bens  e reproduzindo seres , a atuação das mulheres foi apagadas dos registros históricos : presentes, porém invisíveis. Atreladas a seus corpos, a um incensado “destino biológico” aparecem como o “outro dos agentes históricos”, enquanto mães ou companheiras, incapazes de um comprometimento ideológico ou político,  sujeito de suas ações.[1]

Sexismo e  racismo tem muitas semelhanças e com freqüência aparecem imbricados; mas se hoje, no Brasil,  é anticonstitucional a discriminação racial e a igualdade total entre mulheres e homens foi estabelecida na Constituição de 1988,  apenas mudaram de perfil, pois permanecem ancorados nas estruturas sócio-econômicas e imaginárias. Quando um certo ufanismo nacionalista fala da mistura racial brasileira, esquece-se que esta mestiçagem foi fruto do estupro de milhares de escravas negras, de índias aprisionadas, cujas entranhas rasgadas produziram assim mesmo mão de obra útil e os mitos de um encontro cultural idílico.Sexismo e racismo cristalizam seu encontro na imagem da mulata ou da mulher negra, habitando o mundo da sedução e da lascívia.

Entretanto, o sexismo mudou de tom, modificou alguns recortes, permitiu certas brechas, permanecendo porém estruturado em quadros binárias de sexo e sexualidade, de hierarquias e papéis mantidos e aceitos como evidentes, em sua expressão social do feminino e do masculino.Pode-se constatar, porém, que a situação das mulheres permanece desfavorável em relação aos homens: em termos de emprego salário médio das mulheres estaria em torno de 1,5 salários mínimos, enquanto que o dos homens seria de 3,2 salários mínimos em 1999, apesar do fato de terem um nível de escolaridade mais elevado. (Yannoulas ,2002:21) 

 Em 2001, mais  de 40% da População Economicamente Ativa (PEA) , era formada por mulheres, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).Destas, cerca de 50% trabalhavam em atividades tradicionalmente ligadas ao feminino, ou seja, o âmbito doméstico ou prestação de serviços em saúde, educação ou áreas assistenciais.[2] Uma vez inseridas no mercado formal de trabalho, as mulheres permaneceram atreladas , porém, à realização das tarefas ditas “femininas”: limpar, lavar, cozinhar, “cuidar”.

Alguns setores concentram assim um alto percentual de mão de obra feminina, tais como costura (94%), professoras primárias (90%), recepcionistas (81%, enfermeiras (89%) e secretárias (89%). (Yannoulas ,2002:21).A divisão de trabalho é portanto, ainda, atrelada a um binarismo assimétrico e hierarquizado, que tais setores são menos cotados no mercado de trabalho em geral

No espaço do político strictu sensu, as decisões e postos de chefia sempre estiveram nas mãos dos homens: a participação de mulheres eleitas nos postos do legislativo ainda é frágil: em 2002, apenas 42 mulheres foram eleitas deputadas federais, o que representou, porém, um crescimento de 45% de sua presença na Câmara dos deputados em relação a 1998; isto, entretanto, significa apenas 8,2%  contra 5,6% em 1998, do total dos deputados eleitos.(Cfêmea, 2002) No Senado, 8 candidatas foram eleitas o que representou 14,8% do total. Estas cifras não apontam para grandes mudanças. . Isto se verifica igualmente na constituição dos Ministérios, onde raramente ou nunca, as mulheres, para setores como Fazenda, Planejamento, Agricultura, Indústria, Casa Civil, Presidentes de Câmara ou Senado, etc.

 

Um pouco de história: As primeiras mulheres na política

 

No fim   do século XIX, as mulheres brasileiras reivindicavam o direito à cidadania política, com os libelos da escritora Nisia Floresta e de numerosas revistas editadas e escritas por mulheres; no início do século XX, Bertha Lutz e algumas outras mulheres reclamavam direitos civis plenos para as mulheres e fundavam em 1922 a Federação Brasileira para o Progresso das Mulheres, ligada à NAWSA- National American Woman's Suffrage Association, norte-americana.

Rachel Soihet indica que:

"Muitas mulheres se proclamaram em favor de uma educação profissional, comum aos dois sexos, que permitisse um amplo acesso às atividades profissionais: o direito de voto, de elegibilidade e de igualdade civil. Aquelas que corajosamente questionaram o divórcio, a sexualidade e a dupla moral, foram numerosas.(Soihet, 2002)

 

Durante dez anos, sem esmorecer, utilizando diferentes modos de pressão , as brasileiras lutaram e finalmente conseguiram o direito de votar e de ser eleitas. Bertha Lutz foi indicada para a Comissão encarregada da Elaboração do Projeto de Constituição de 1934, cuja promulgação ratificou o direito de voto para as mulheres. A tarefa "sagrada"da maternidade, inspirou uma certa retórica justificadora do acesso ao voto e à cidadania para as mulheres, como sublinha Rachel Soihet (2002, Labrys). Esta estratégia é anda utilizada na atualidade, para apoiar certas reivindicações.

A Assembléia Constituinte  de 1934 contava com apenas 2 mulheres eleitas entre 254 membros: a doutora Carlota Pereira de Queiroz ,eleita pelo estado de São Paulo em 1933 e Almerinda Gamak, escolhida como delegada de classe pelo Sindicato das Datilógrafas e Taquigrafas e da Federação do Trabalho do Distrito Federal. Bertha Lutz foi eleita como suplente de Deputada e participou da Assembléia Federal em 1936, depois da morte do titular de sua vaga (Soihet, 2002:Labrys) O caminho apenas trilhado, necessitava ser definitivamente aberto.

 

Políticas de idéias ou política de presença? Algumas reflexões.

 

Após haver obtido o direito de voto, signo maior de cidadania, a resistência das mulheres à exclusão do político prosseguiu pelas décadas seguintes, mas permaneceu invisível, que contida em uma política do silêncio, silêncio dos mídia, silêncio da história.

Os movimentos feministas irrompem com vigor nos anos 70, desafiando as estruturas patriarcais e ao mesmo tempo engajando-se contra a ditadura militar; este militantismo provocou uma violenta reação falocêntrica, inclusive das esquerdas. Apesar de seu engajamento democrático, os movimentos feministas, à época, tornaram-se então relativamente autônomos, apontando em suas análises, para a clivagem classe/ sexo, dentro de uma perspectiva marxista, dedicando-se à conscientização das operárias, arautos da revolução social. (Rago,1995/5 :34).

Os anos 80, por outro lado, vêem os feminismos nas ruas, nos mídia, para reivindicar direitos específicos das mulheres: direito à livre disposição de seus corpos, direito ao prazer e à sexualidade, direito ao aborto, direito à individualidade, direitos econômicos e sociais, em regime de igualdade com os homens.

Estes movimentos colocaram a atuação das mulheres em evidência, criando, de fato, sua existência enquanto sujeitos políticos. Tornou-se impossível negar sua atuação e presença nos mais diversos setores, mas todas as conquistas, que hoje parecem banais,  foram obtidas com lutas e esforço. Numerosas associações foram criadas e grupos de pressão assim formados conseguiram mudar as políticas do Estado, leis foram votadas para a proteção e saúde das mulheres, de seu trabalho; denunciou-se a violência social e doméstica, começou-se a falar das mulheres enquanto pessoas, atoras no político e não apenas coadjuvantes, corpos que engendram ou se destinam ao prazer de outrem. Ouve-se ressoar a palavragênero” e é assim que em 1985 é criado o Conselho Nacional dos direitos das Mulheres (CNDM), ligado ao Ministério da Justiça e conduzido por feministas da primeira hora.

 Apesar desta visibilidade maior, o poder do masculino  continua a persistir nas práticas sociais , o que se constata nas estatísticas das violências quotidianas exercidas contra as mulheres, desde o espancamento doméstico até o estupro e morte de meninas e mulheres.

A questão da representação propriamente  política das mulheres suscitou muitos debates, principalmente face à proposta , nos anos 1990, da criação de quotas destinadas às candidaturas de mulheres. As discussões intelectuais entre essencialismo / especificidade/ diferença / igualdade, alimentaram os debates e as articulações dos feminismos brasileiros, aqui e alhures. Mas daquela reivindicação igualitarista, pregada a partir da idéia de um sujeito universal, encarnado pelo masculino, passou-se às estratégias políticas do quotidiano, entre as quais a proposta de quotas, indo das reivindicações ligadas às especificidades ditas femininas, à inserção das mulheres na cena do poder político, saindo finalmente dos bastidores.

 A noção de  “ diferença” impõe-se então, para marcar um espaço que deveria ser ocupado, local de ancoragem, porto para incursões no caminho das transformações das práticas sociais instauradoras de hierarquias.

 

Diferença e desigualdade: algumas reflexões

 

Em termos filosóficos, a diferença não é antônimo de desigualdade, mas de identidade. Criando-se uma identidade única para todas as mulheres, “A Mulher”, está-se instituindo a base para criar uma diferença em relação ao modelo do humano, o referente masculino. O importante aqui é não apenas apontar para as zonas, os campos de saturação  da desigualdade, mas igualmente mostrar os mecanismos utilizados para sua instituição, a economia simbólica e representacional que marca e constrói a diferença.

De fato, cada indivíduo é uma singularidade e mesmo biologicamente não são iguais entre si.. A diferença entre os seres não é nem positiva nem negativa , pois somos diferentes mesmo em relação a nós mesmas, em nosso caminhar histórico e político. A criação de uma diferença política cria, porém, a desigualdade   quando se erigem hierarquias valores sociais, instituindo referentes,  desenhando corpos, perfis ideais, estabelecendo exclusões, demarcando espaços, limites de ação e posição, mapeando e classificando o social.

 Se considerarmos o material e o simbólico como uma realidade única, ordenadora da inteligibilidade humana, vemos a desigualdade política como um conjunto de práticas discursivas e não- discursivas, representações e imagens saturadas de sentido,  instauradoras do desenho das formações sociais. Os sentidos produzidos criam, portanto a diferença e a  partir desta desigualdade políticas, estabelecendo papéis e controles, disciplinas e possibilidades, segundo as características apontadas comodiferentes”.

Temos então uma desigualdade instaurada no político, como fundamental na taxionomia do humano, cujas raízes estão localizadas na noção de diferença entre o feminino e o masculino; esta categoria ancora-se na afirmação da “ natureza” dos sexos”, que toma uma parte do humano- seu aparelho genital- como sendo a expressão de sua totalidade.

Ao mesmo tempo, esta“ natureza” carrega uma série de características socialmente construídas, criando uma escala binária de atributos, cujo pólo positivo encontra-se fixado no masculino. Cria-se assim um referente , modelo desdobrado em homem, branco, ocidental, jovem, de posses, origem de uma cascata de desigualdades; classificou-se enquantooutro” todas /os que não se adequassem ao perfil do referente, seja por questões de raça, sexo, classe, “deficiênciasfísicas, velhice, sexualidade, etc.  O racismo e o sexismo são os produtos imediatos da “ difrença”.

As desigualdades encontram-se assim fundadas num discurso de “evidência”, ocultando-se , desta forma que a própria idéia de diferença sexual pressupõe todo um aparato valorativo, onde o sexo biológico é tomado como parâmetro principal na classificação do humano.

 De fato, a afirmação identitária a partir de um sexo biológico binário tem como uma de suas premissas a sexualidade procriativa e a maternidade como o “destino biológico” das mulheres. Como compreender os discursos sobre a “ condição femininasenão em uma perspectiva de marcar e reiterar a diferença e no mesmo movimento, a desigualdade sócio-política? A “ condição feminina existe na medida em que todas as mulheres são essencializadas e transformadas em uma singularidade igual a ela mesma; de fato, a experiência das mulheres no relacionamento sócio-político é a expressão de sua diversidade.

 

      Feminismos em ação

 

A construção de umsujeito feminino” epistemológico e político foi objeto de uma profícua literatura feminista, nos mais diversos campos disciplinares, objetivando a visibilidade das mulheres e a abertura de espaços múltiplos de atuação, dos quais , em tempos e locais diversos,  aos poucos haviam sido excluídas.

 Escrever, neste sentido, também é um ato político, na medida em que o discurso é uma ação; não apenas a denúncia das práticas de discriminação sexual, mas, sobretudo, a exposição dos mecanismos simbólicos instauradores das desigualdades é uma ação transformadora em nível de imaginário e das representações constitutivas do feminino, subordinado à sua natureza.

 “ O privado é político” anunciavam as feministas dos anos 1970 ( Descarries, 2002) apontando para a historicidade da divisão social do trabalho entre público e privado, mostrando que a própriaevidência” deste  esquema binário era uma construção histórico / social. .(Pateman,1993) A luta pela igualdade, porém, apesar de sua importância crucial para a vida das mulheres não questionava , em numerosas vertentes, o aparato conceitual , os mecanismos construtores do referente masculino, aquele sem o qual não há desigualdade política com base no sexo.

A categoriagênero” utilizada para mostrar as variantes culturais dadas ao sexo biológico tem sido profícua ao desnaturalizar os valores componentes das representações do feminino e do masculino. A implantação de sistemas sexo /gênero foi analisada há mais de 30 anos pelos feminismos (Rubin, 1975) e esta quebra da evidência do natural, da  diferença sexual incontornável” foi, penso eu, artífice do questionamento que hoje sofrem os paradigmas científicos. A destruição das evidências, proposta por Foucault (1971) era uma prática feminista desde os anos 1940.

Entretanto, a adoção da categoriagêneropela Academia, que deu projeção, visibilidade e sustentação aos estudos sobre as mulheres veio, ao mesmo tempo, domesticá-la,  retirando-lhe seu cunho subversivo: onde as feministas apontavam para a criação da desigualdade, biológica e política, no exercício da apropriação dos corpos femininos pelo sistema patriarcal,( Guillaumin, Delphy) passou-se a indicar uma espécie de construto relacional, abandonando-se precisamente a perspectiva da construção social dos gêneros em termos de desigualdade.

A própria formulação do binômio sexo /gênero  deixava intacta a dualidade universal como fundamento do humano, o binarismo conceitual, desdobrando-se, por exemplo, no inevitávelpúblico / privado”, cuja construção histórica datada é repetida como um esquema de análise pré- existente,  por historiadoras ou analistas que trabalham com  a categoriagênero”.

De fato, a desigualdade política persiste e é reconstruída, na medida em que o sexo permanece enquanto base estável do binômio sexo/ gênero, reproduzindo assim um discurso de re - naturalização: a cultura (gênero), agindo sobre a natureza (sexo). Vemos assim que a desconstrução do natural justificador da desigualdade, realizada pela categoria gênero, vem  reiterar esta mesma natureza ao aceitar a diferença sexual como dado inquestionável.. Isto significa, como analisa Tereza de Lauretis, ( 1987) trabalhar a descontração e lutar pela igualdade “ na casa do mestre”, ou seja, dentro do aparato conceitual binário que funda, em um sistema de opostos, nossa apreensão, interpretação do mundo. E instituição da realidade, em práticas discursivas / políticas.[3]

As teorias críticas feministas, entretanto, adensando a análise da construção do feminino, apontaram para estes próprios mecanismos  , que dotam  de inteligibilidade não as diferentes expressões do “ ser mulher”, mas que estabelecem também o aparato categorial instaurador desta inteligibilidade. Neste caso, os opostos, a binariedade, o sexo, tomados como elementos indubitáveis, fazem parte destes mecanismos, ou seja , estão incorporados a um sistema de saber como dados objetivos.  Os sentidos, portanto, que criam e habitam nossos corpos de valores, normas, expectativas de comportamento, estão, de fato, delimitando e definindo-os em feminino e masculino, em diferentes, em desiguais.

 

Idéias desencarnadas?

 

As feministas americanas e francesas, que pediam a paridade entre mulheres e homens na política, sofreram críticas acerbas  de uma certa esquerda e mesmo de algumas correntes feministas , em nome da neutralidade de um sujeito abstrato, portador de valores universais, querela  que Joan Scott analisou com pertinência. (Scott, 2001) É corrente se dizer e repetir que “ as idéias não tem sexo”: isto deve ser motivo de riso ou de indignação, diante de tal, que faz tabula rasa das práticas sociais  e científicas de exclusão, com pretextos diversos, sexo, sexualidade, etnia?

Esta perspectiva é a reatualização da política das “ idéias desencarnadas” , do esquecimento das práticas e representações sociais que forjam os indivíduos sexuados para melhor dividir o exercício do poder. As pessoas assim criadas pelas relações sociais em lugares de autoridade, de fala, de ação permitida ou interditada, vivem a realidade de um quotidiano hierárquico, tecido em valores e normas, expressos por idéias e códigos. E os códigos políticos criam cidadãs de segunda categoria, nomeadas mulheres, a partir de sua sexualização, a partir de uma definição atrelada a seu corpo e seu sexo biológico.

Mary Jane Spink aponta a produção de sentidos nas práticas discursivas do quotidiano na constituição da pessoa “[...] no jogo das relações sociais,[ ...] inserida num constante processo de negociação, desenvolvendo trocas simbólicas, num espaço de intersubjetividade ou, mais precisamente, de interpessoalidade.”( Spink1999:55) É neste campo de negociações que se cria o assujeitamento às normas, aos valores correntes, aos modelos inteligíveis do social.

Assim, se o sujeito universal é habitualmente representado pelo macho da espécie, como não reivindicar uma especificidade e a igualdade para obtenção de um lugar ao sol? Evidentemente, esta perspectiva acentua a noção de diferença dos sexos, pois, como vimos, é a própria diferença que cria a desigualdade,  reforçando assim,  a divisão  e a hierarquiaMas porque negar o paradoxo que nos habita? Esta negação é tributária dos quadros de pensamento binário, que fundamentam a noção de “sujeito universal”. A incorporação deste paradoxo representa uma estratégia feminista de transformação,pois falamos de um lócus instituído para melhor tentar desconstruí-lo.

A “ experiênciaenquanto categoria , explicitada por Teresa de Lauretis ( de Lauretis, 1984) responde a este interminável debate : ancorada no lugar de fala e de ação de cada mulher, a experiência leva em conta as práticas sociais e quotidianas dotadas de sentido histórico e social, formadoras do humano: aponta para a diversidade das mulheres no social e político ao mesmo tempo que ilumina os mecanismos formadores da desigualdade na expressão da diferença. .

 Assim, as reivindicações das mulheres em relação à aquisição de um status e uma voz no político leva à desestabilização do sujeito universal masculino, abrindo o caminho a um novo campo de relação entre pessoas que a diversidade não é geradora de desigualdade. Como bem analisa Joan Scott, a História das Mulheres, mesmo que descritiva  e reafirmadora do binário na História, pela sua própria existência desestabiliza os cânones do “fazer histórico” (Scott)

Entretanto, ir além das premissas habituais de uma filosofia criadora de  universais, cuja importânciafundamento são valores históricos e transformáveis  pela sua própria dinâmica reflexiva, é ainda penoso: os sistemas de pensamento fazem-nos perceber o mundo em branco ou negro, bom ou mau, feminino ou masculino. Como escapar a esta trama, como se desfazer destes liames sociais, sem antes havê-los habitado, incorporado, para melhor expor seu caráter de invenção, de criação, no seio de práticas políticas do direito, das verdades, do senso comum , do quotidiano das divisões de trabalho tradicionais, das interdições e assujeitamentos que nos moldam?

De fato, a questão da paridade política ou a igualdade social entre homens e mulheres deixa de existir em termos filosóficos quando se deixa de lado a noção de uma coerência ou essência do sujeito, mulher ou homem, dotados de atributos particulares ao sexo. Sujeitos políticos, sim, criadas/ os por relações, sentidos e representações , construídas e inventadas no seio das práticas sociais. A clivagem binária e hierarquizada alimenta as oposições e se coloca como árbitro do debate: porque, afinal, o um deve excluir ou diminuir a importância do outro, senão para criar um campo de poder ? É , deste modo, a meu ver, uma lógica de partilha de poder que pretende reduzir a atuação e participação das mulheres, sob o pretexto de uma especialização “ natural” de suas funções, desqualificando-as para o restante.

Sem dúvida é preciso uma boa dose de imaginação sociológica para negar as “ idéias sem sexo”, pois o “sujeito universalainda está presente na linguagem quotidiana: “ a condição feminina” , “ A mulhernos faz colidir quotidianamente com o fantasma da essência do feminino, de sua especificidade, opondo-se ao universal masculino.

Uma pitada de imaginação histórica é também necessária, para se pensar estratégias de mudança, cujos pressupostos seriam estranhos ao quadro binário de oposições.

Entretanto, dizer, por exemplo, que as mulheres não trazem perspectivas outras no exercício do poder político é negar a própria construção social do feminino: um feminino criado, instituído, ensinado, modelado ao longo de nossas vidas, porém perfeitamente real, em um quotidiano pesado de coerções, de poderes dilacerantes, disciplinares. Tendo em vista o peso das representações sociais na partilha do humano em duas categorias primárias – mulher / homem – parece-me claro que as mulheres exprimem valores que lhes foram inculcados antes mesmo de terem nascido, próprios a um feminino modelar. A binariedade afasta a possibilidade do humano em múltiplas facetas: ou se é homem, ou mulher, com suas características próprias.

O assujeitamento à esta domesticação do social não é incontornável, pois onderesistência, as transformações se iniciam. E se as resistências foram apagadas do discuso histórico, nem por isso deixaram de existir e suas marcas permanecem para serem expostas. Mas não se pode negar a experiência, os apelos incessantes ao “ ser mulher”, a “ verdadeira mulher”, a esposa e a mãe dedicadas ao lar, ao marido, aos filhos, que supõe uma trabalhadora incansável na cena pública e na domesticidade. No caso das mulheres engajadas na política, como em outro trabalho qualquer, enfrentam as duplas ou triplas jornadas de trabalho, a desaprovação implícita que as persegue por se afastar de suas tarefasnaturais”, por quebrar a ordem de uma divisão de trabalho tradicional.

Mas esta especificidade imposta pelo social pode se tornar uma arma para desfazer as hierarquias sexuadas, pois a presença das mulheres em todos os postos e campos de trabalho tende a modificar o imaginário social que as discrimina. Com efeito, os sujeitos humanos são sujeitos políticos e se os comportamentos sociais são aprendidos, podem ser modificados.

 

Política de idéias ou política de presença?

Depois de haver obtido o direito de voto, signo maior de cidadania, a resistência das mulheres prosseguiu durante as décadas seguintes, mas permaneceu invisível, mantida em uma política de silencio, silencio dos mídia, silencio da história. Os movimentos feministas eclodem com visibilidade nos anos 1970, engajam-se nas lutas contra a ditadura militar, sofrem a misoginia das esquerdas e aos poucos se tornam , em geral, autônomos em relação a partidos políticos, dedicando-se, porém, à conscientização das mulheres operárias, consideradas “ arautos da revolução social”, no espírito da época. (Rago,1995/5 :34).Os anos 1980, por sua vez, vêem os feminismos nas ruas, nos mídia, para reivindicar os direitos específicos das mulheres: direito à livre disposição de seus corpos, direito ao prazer e à sexualidade, direito ao aborto, direito à individualidade, direitos econômicos e sociais em regime de igualdade. Estes movimentos colocaram as mulheres em evidencia e criaram, de fato, sua existência enquanto sujeitos políticos.

A questão da representação das mulheres no parlamento suscitou muitos debates, principalmente no que diz respeito ao estabelecimento de quotas – um percentual destinado à candidatura das mulheres nos postos elegíveis. As discussões entre essencialismo / especificidade / igualdade alimentaram as discussões e as articulações dos feminismos brasileiros, como em outros países onde esta medida foi adotada.  Mas da perspectiva do igualitarismo, pregado a partir da idéia de um sujeito universal e encarnado pelo homem branco, passou-se às estratégias políticas do quotidiano, indo das reivindicações ligadas às especificidades ditas femininas ( construídas pelo social) à inserção das mulheres sobre o palco do poder político, tirando-as dos bastidores, seulugar tradicional”.

A “ diferença” se impõe então para marcar um espaço que deve ser ocupado, local de ancoragem permitindo o início das transformações desejadas.Numerosas associações  foram criadas e os grupos de pressão assim formados conseguiram modificar as políticas públicas, leis foram votadas para a proteção da saúde mas mulheres, de seu trabalho; foram denunciados e expostos publicamente a violência e o estupro doméstico, as mulheres passaram a ser consideradas atoras da trama político-social e não mais apenas corpos destinados ao prazer e ao serviço de outrem.  Neste movimento geral, foi criado o Conselho Nacional dos direitos das Mulheres ( CFNDM), ligado ao Ministério da Justiça e dirigido, em um primeiro momento, por feministas de renome.

Os anos 1990 viram surgir Organizações Não Governamentais em profusão, redes de ação e de pesquisa: cerca de um milhar de grupos de estudos sobre gênero e feminismo surgem nas universidades brasileiras. A conquista de postos no legislativos, executivo e judiciário torna-se um eixo de luta em prol da visibilidade , marcando a atuação das mulheres no dinamismo societário. Neste sentido, a criação de quotas nas instâncias políticas strictu sensu aparece como uma estratégia de transformação do imaginário social a respeito do papel tradicional das mulheres, ou seja, restrito ao âmbito do doméstico, do privado.

Com efeito, marcar a presença das mulheres nas diferentes instancias do político, dele fazer parte com direito de expressão e decisão é um grande passo para mudanças mais profundas e a transformação  nas relações sociais / sexuais / de sexo é um ponto comum a todos os feminismos, não importa seu eixo de ação.

Uma política de presença e de ações afirmativas foi acionada por um grande número de movimentos feministas e de mulheres, principalmente a partir dos anos 1990 e articulam-se , quando possível, às mulheres eleitas nos diferentes níveis do parlamento brasileiro: sua linha de atuação principal  é o fomento às candidaturas e a formação de lideranças femininas.

A questão da representatividade se coloca então: quem pode representar quem? As mulheres eleitas seriam representantes dos interesses específicos das mulheres e,  sobretudo, existiriam interesses comuns a todas as mulheres? Esta questão nos envia novamente à discussão sobre as essências, os sujeitos universais. Se a experiência das mulheres é singular como discutimos anteriormente, pode-se falar de grupo de mulheres e em caso afirmativo, como representá-los, com seus interesses específicos

Mais uma vez, defrontamo-nos com a dicotomia binária clássica, indivíduo / sociedade, base do pensamento ocidental; entretanto, mesmo se a experiência individual das mulheres é atravessada de variáveis sociais e pessoais na construção de seu feminino singular, existe um feminino imagético, criado pelo social em prátcias, representações e imagens fundadas em valores e normas que modelam um perfil de gênero, designado “mulher”.

A singularidade da experiência não apaga os dados que essencializam e criam o “ ser mulher” no social . Com certeza não existe o “feminino homogêneo, que encarnaria o ideal-tipo de “mulher”, mas nós, mulheres, somos assediadas com as imagens que nos confrontam constantemente a este ideal. Partilhamos assim, representações sociais que definem comportamentos e atitudes semelhantes e inteligíveis, representações sociais que criam o feminino e às quais nos assujeitamos... ou não.

O Relatório sobre o desenvolvimento Humano ( PNUD,2002) afirma, neste mesmo sentido, que “ [...] apenas o nível elevado dos rendimentos não assegura oportunidades oferecidas às mulheres. Além do econômico, os lugares ocupados pelas mulheres são igualmente tributários das significações presentes nas relações sociais / sexuais”)

Assim, as mulheres eleitas para postos legislativos não representam um grupo de interesses homogêneos, mas partilham situações diversificadas de exclusão, dominação e subordinação, em sua experiência pessoal; é assim que os interesses das mulheres, associadas pelofemininoconstruído no social, podem ganhar lugar nos fóruns políticos, sem que a singularidade das mulheres seja novamente expressa pelo coletivo abstrato e inexistente “ a mulher”. A problemática dos debates se desloca , neste caso, de uma noção de diferença e especificidade paranoção de “ representação adequada”

“ [...] que implica em uma representação dos diferentes grupos sociais que compõe o corpo dos cidadãos” (Phillips, 2001 :273), neles , é claro, incluídos os grupos de mulheres e feministas. Esta perspectiva tem resultados imediatamente possíveis, como o sistema de quotas para as mulheres nos parlamentos de vários países, hoje 11 no mundo. ( PNUD,2002)

A política das quotas[4], peladiscriminação positiva” expõe a ilusão de umsujeito universal”, que até o momento foi conjugado no masculino. A presença das mulheres no parlamento é igualmente importante fator de transformação das imagens que forjam as relações sexuadas e a divisão de trabalho no imaginário social. Neste sentido, a linguagem é um poderoso instrumento de transformação quando no quotidiano dos jornais e das conversas se fala e se ouve: governadora, prefeita, deputada, vereadora, juíza, procuradora, etc. Desta forma, a dimensão simbólica, também constitutiva da materialidade das relações sociais, da presença das mulheres na Câmara e Senado, bem como em postos de decisão não pode ser negligenciada, para além de suas ações afirmativas.

A Bancada Feminina no Congresso tem atuado no sentido de propor, acompanhar, argumentar pelos direitos das mulheres, mesmo que não haja unanimidade em questões polemicas[5]. Entretanto, a representação política das mulheres é ainda muito fraca. As quotas para as candidaturas femininas, face ao peso das tradições e da divisão de trabalho não foram uma varinha mágica de transformação, mas a disparidade de representação foi assim exposta em todos os meios de comunicação.

As categorias « empoderamento » e « advocacy » passam a fazer parte de um vocabulário muito presente na atualidade para os mais diversos setores de ação política feminista. O empoderamento, de modo geral, pretende dar às mulheres o poder de pensar, de conhecer, de agir livremente, de realizar seus potenciais, de ter uma equidade nas remuneraçõestrabalho igual, salário igual -, igualdade de chances ; as redes feministas brasileiras vem trabalhando neste sentido, segundo as perspectivas apontadas pela IV Conferencia Mundial sobre as Mulheres, em Beijing.

Nesta ótica, as mulheres parlamentares, que formam a Bancada Feminina do Congresso, desde 1987 e certos grupos de mulheres / feministas, tem criado diversas campanhas, comoMulheres sem medo do poderque lançou um manual destinado às candidatas às eleições de 1996  e “ Mulheres nas instâncias de decisão municipais” /21(Costa,1998 :2145), com o apoio da UNIFEM e do PNUD.

De fato, a aliança das parlamentares aos grupos de mulheres é considerada pelo Relatório do Desenvolvimento Humano de 2002 como uma estratégia de “ empoderamento”, pois reconhece que os resultados negativos obtidos pelas mulheres no quadro do desenvolvimento mundial é devido, também,  à sua reduzida participação nas instancia políticas. (PNUD,2002 :24)

Por outro lado, a « advocacy » refere-se às táticas de pressão política e à articulação das organizações civis para dar uma maior visibilidade a certos temas e influenciar a adoção de políticas públicas para as mulheres. Objetivos precisos e campanhas específicas foram definidos para, não somente transformar atitudes e comportamentos, mas também estimular a mudança / instituição de políticas públicas, da legislação, do orçamento e da distribuição de recursos. (IBASE, 2002)

As “ações afirmativas”, portanto, colocam em prática estas duas perspectivas: “ empoderamento” e “ advocacy”  para afirmar, recuperar, redistribuir os direitos , equilibrar as relações de gênero (Sonia M.Miguel, 2000), desestabilizando uma divisão tradicional de poderes e papéis. Porém, como assinala Almira Rodrigues “ o Brasil ratificou todos os acordos internacionais para a construção da cidadania das mulheres e equidade de gênero[...] mas apesar disto pode-se constatar uma grande distancia entre as conquistas legais e a realidade[...]Rodrigues, 2001 :89)  Desta forma, as ações afirmativas, a discriminação positiva são perspectivas contidas na “política de presença” anunciada pelos movimentos feministas, parte das estratégias que desestabilizem a ordem patriarcal em que ainda vivemos.

 

Referencias

 

Araújo, Clara. 1998. Mulheres e representação política: a experiência das quotas no Brasil, Estudos Feministas, vol.6 n.1, pp 71-90

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