“Todo homem é mortal. Ora, as mulheres não são homens, logo, são imortais”

 

« silence avant de naître, silence après la mort.

La vie n´est rien d´autre qu´un bruit entre deux insondables silences »

Isabel allende

 

Resumo

A elegia à vida, de fato, tem sido utilizada no controle das populações e sobretudo na disciplina e apropriaçaõ dos corpos das mulheres. Enquanto estão disponíveis no mercado do sexo e da procriação, o patriarcado, em suas múltiplas formas, aplica-se no controle e assujeitamento da vida das mulheres, negando-lhes a posse e decisões sobre seus próprios corpos. Com efeito, o que se nota é que a vida das mulheres vale menos que seu útero procriador. As reflexões de Foucault , neste texto, representam um instrumental importante para a análise feminista.

Palavras -chave: vida, morte, corpos, apropriação, mulheres

 

 

Empenhamo-nos em viver. Tudo se passa como se apenas o fato de existir fosse importante. De fato, acredito que a vida não é o valor supremo, mas instalou-se como tal em nossas formações  e imaginários sociais. A valorização da vida faz parte de um dispositivo de controle e de dominação: nega-se o direito elementar da eutanásia, condena-se o suicídio, como se o viver fosse sua própria justificativa,  suficiente para expurgar o sofrimento, a dor, a doença, a decrepitude. A elegia à vida, de fato, vela os mecanismos de exploração do humano,  em sistemas múltiplos de assujeitamento, de resignação, de conformismo. Se o controle das populações, como quer Foucault, exige a manutenção da vida,  ele é, porém, atravessado por normas e hierarquias de gênero. Fica claro que a vida de alguns é mais importante que a de outros e , sobretudo, de outras.

Uma menina é presa por mais de uma semana em uma cela com 20 homens no Nordeste do Brasil: esta vida não importa. Milhares de mulheres assassinadas, mutiladas, surradas por seus maridos, companheiros, namorados: estas vidas pouco importam. Criou-se uma nova palavra, feminicídio, para designar o assassinato de centenas de mulheres, em Juarez, no México, pelo fato de serem mulheres. Quem se importa?

Meninas e jovens vítimas do tráfico internacional e nacional de mulheres destinadas à prostituição – seres humanos convertidos em orifícios a serem penetrados e usados, estas vidas não importam. Elas servem a um sistema fundado no e pelo patriarcado e pelo dispositivo da sexualidade, que destila,  nos discursos fundadores do humano, na biologia, no sexo e nas práticas da sexualidade, a sagração da vida . Instaura-se aqui, de fato, não a vida, celebrada em termos de liberdade, escolha, plenitudes, mas o existir, apenas.

Um homem prende e estupra sua filha por 24 anos na Áustria e para isto a pena prevista é de 15 anos. Certos crimes, específicos contra as mulheres, pouco importam.

Para Foucault, a gestão da vida se reveste de todo um aparato  político. Diz ele:

« É sobre a vida agora e ao longo de seu desenrolar que o poder estabelece seu domínio ; a morte,  disto, é o limite, o momento que lhe escapa : torna-se o ponto mais secreto da existência, o mais ´privado´ ». (Foucault, 1976:182)[1]

A quem serve a celebração da vida?

Em que medida a promoção do existir, em si, constitui mecanismo de sujeição e de controle? Estas são as perguntas-chave, ancoradas no  político.

 Em alguns países, a vida não é o valor supremo, como no Japão, onde, aparentemente, a honra está acima de tudo. A defesa da vida enquanto tal,  como o fazem, por exemplo, os movimentos contra o aborto, encobre outros desígnios; afinal, o controle do corpo das mulheres e da procriação é um dos mecanismos de sujeição, uma das tecnologias de gênero, que produzem a hierarquia e a assimetria política entre os sexos, técnica de controle das populações, mencionada por Foucault.(1976:83) Se a vida das crianças fosse tão importante, não haveria esta multidão de abandonadas/os, seres cuja existência é  socialmente descartável. Neste caso, o que importa é o controle sobre os corpos que procriam e sobre as mulheres assim definidas.

O dispositivo da sexualidade, que cria os corpos e impõe uma heterossexualidade normatizadora, imbrica-se, hoje, a um dispositivo da violência, que incita e cria, regula e determina  os poderes sobre a vida e  a morte. 

Dispositivo, para Foucault , seria

“[...] um discurso decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (Foucault, 1988:244).

A violência constitui  também, desta forma, um dispositivo, uma economia instituída e naturalizada, exposta em espetáculo, quando se trata, por exemplo, de relações de gênero; nelas, as mulheres são representadas, tratadas, olhadas, utilizadas em esquemas de violência simbólica e material, praticada e mostrada, em imagens, discursos, filosofias, subordinações, enunciados  diversos. O dispositivo da violência incita e produz dominação, discriminação, mortes múltiplas. Se o pressuposto da diferença “natural” de sexos institui o dispositivo da sexualidade, a violência é sua materialização.

No discurso mediático o que vemos hoje, de forma esmagadora, é o crime enquanto espetáculo, enquanto imagem, que ao desvelar a morte ao mesmo tempo reconduz a elegia à vida. A morte da menina Eloá, assassinada pelo ex-namorado, certo de seu direito de posse,   foi rapidamente substituída pela notícia da doação de seus órgãos, na imprensa. Afinal, da morte resultou a vida, que importam as relações sociais que permitem a apropriação física das mulheres pelos homens?  Não se percebe, sequer, que sob este discurso, de certa forma sua morte foi justificada.

Por outro lado, a hipersexualização, também celebrada como exaltação da vida, é  a exacerbação do dispositivo da sexualidade, inseparável da violência, da  negação de vidas, fundada  na diferença de sexos e seu corolário de dominação e exclusão, de morte e silencio social , instalado  na in-diferença. A criação da diferença de sexos, deste modo,  é um ato político, que instaura nos corpos femininos uma sexualidade ávida, mostrada e ensinada em forma de sedução e essência do existir, “a verdadeira mulher”, no singular, imagem única de um ser “feito para isto”.  Mulheres e bebidas, esta é a imagem da festa!

Entretanto, já Catherine MacKinnon,(1987)  nos anos 1980, apontava para a implacável junção da violência e da sexualidade contemporâneas , explícita nas propagandas, na pornografia, nos discursos sociais múltiplos, que fazem das mulheres, corpos e estes corpos,  mercadorias, a serem usadas e abusadas, corpos expostos, em constante oferta. Porque, para se vender tijolos ou carros, seguros ou imóveis, é preciso usar a imagem de uma mulher de biquíni, sorriso esfuziante, lábios entreabertos, olhar sedutor, antegozo do desfrute do objeto? Porque o cinema e a televisão reproduzem chamadas e cenas de espancamento de mulheres, senão para promover o “direito” masculino da punição, do controle pela força? Porque estas mesmas cenas apresentam e reproduzem imagens de mulheres passivas e amedrontadas, incapazes de uma reação? Reconstrói-se assim, sem cessar um imaginário social de dominação, onde o masculino se impõe pela sua própria definição.

MacKinnon analisa que a penetração convencional ou intercurso sexual define o encontro paradigmático sexual, mas também define legalmente o estupro. E esta textualização, situada  em um contexto de hierarquia e poder, em sua construção  torna-se sexualidade. Do íntimo ao institucional, do olhar ao estupro, a erotização define os corpos femininos enquanto propriedade, o que, de fato, constrói e mantém a dominação masculina enquanto sistema de controle de corpos e vidas.

 Falou-se da vida, religiosos e seus asseclas se abespinham, como se valores e crenças fossem absolutos, universais, ahistóricos, inerentes à própria existência. Defendem com ferocidade suas prerrogativas de controle, mestres que são na arte da dominação e do assujeitamento. Recentemente, ao se descobrir uma menina grávida de 8 anos, estuprada por seu padrasto, o arcebispo de Olinda e Recife desculpou o estuprador – pelo crime menor- , mas excomungou a menina, sua família e os médicos que lhe fizeram, legalmente, um aborto.

 Para os desatentos, não estou defendendo mortes ou suicídios ou eugenias, apenas refletindo sobre a importância social de discursos falaciosos, que fazem da vida um valor pelo qual se devem aceitar todas as injunções, desmandos, torturas, disciplinas,  limitações, enquadramentos, normatizações, aprisionamentos. Legislar sobre os corpos, cassar a palavra e os direitos de quem os reivindica tem sido uma estratégia freqüente na elegia à vida. De fato, como controlar ou disciplinar, se a vida deixa de ser o valor supremo no social, um dentre muitos?

Para Foucault  as perspectivas em relação à vida sofrem mudanças significativas enquanto objeto de saber, de conhecimento, de reflexão, enquanto objeto de exercício de poder / autoridade em condições de produção específicas. Da punição com a morte, ao controle geral dos comportamentos pela disciplina e pelo controle das normas, Foucault nos mostra as transformações dos regimes de verdade, das construções de evidencias e naturalizações, explicitadas enquanto  axiomas, dogmas científicos, nichos de verdade acessíveis apenas a alguns, aqueles que têm direito à palavra.

Afirma, como se sabe, que nem todos podem dizer qualquer coisa em qualquer lugar, ou melhor, a questão é: quem fala, para quem, de quem e, sobretudo que efeitos de poder tem estes discursos? (Foucault, 1971) Controlar os corpos femininos que multiplicam vidas, legislar e normatizar sobre a concepção/ sexualidade, sobre o “direito de viver” in útero, em detrimento das mulheres e seus direitos de cidadania, são meandros das tecnologias de gênero, que as reinstauram em suas práticas discursivas.

Eluana, jovem italiana, vegeta há 17 anos, inconsciente, em uma cama. Seu pai e sua família, depois de 10 anos de batalhas jurídicas, conseguem da Corte Suprema que sua vida não continue a ser mantida artificialmente. Porém, 34 associações pro-vida partem em “defesa” de Eluana, e acionam a Corte européia de Justiça para “ salva-la” . O dr. Dolce, presidente da associação “Vive” , fundando-se na menstruação deste pobre corpo que mantém suas funções, afirmou que ela “não quer morrer”. ( Nouvel Observateur, 2008:47.) Mesmo em coma, os corpos das mulheres precisam ser controlados, definidos em função de suas funções procriadoras. Que esperam eles? Que ela seja inseminada artificialmente ou estuprada, para não escapar ao seu dever procriativo? Com que direito ortodoxias religiosas se impõem em países laicos? O desejo de poder e controle sobre os corpos, especialmente os  das mulheres, encontra-se  sempre além de seus próprios limites,  muito aquém do umbral do respeito ou da simples compaixão. Esta violência do controle, da disciplina e do destino biológico afirma-se na produção da diferença de sexos, na implantação de referentes que erigem a vida conjugada no masculino mais importante que aquela soletrada no feminino.

Se a elegia à vida faz parte das tecnologias de gestão  das populações, esta é uma  estratégia de produção binária de controle e disciplina dos corpos, em pesos e medidas diversas, em hierarquia e assimetria. Deste modo,  a incitação à existência, forçada ou desejada, feita de  sofrimento de viver, mas louvada pelos  discursos sociais, abriga os nichos mais profundos de menosprezo à existência de outrem. Tudo se passa como se, tendo em vista a importância social de alguns, os demais fossem apenas peças a serem usadas e substituídas, quando necessário, sobretudo quando se aplica à “diferença” sexual.

De fato, no “controle das populações”, percebe-se a instituição de mecanismos de produção de verdade sobre não apenas o sexo, mas o sexo binário, sobre a “diferença” e a desigualdade política que engendra. Para Foucault, « Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada sobre a vida  ».(1976 :190) e a iteração das representações sociais da « verdadeira mulher » não é senão o aprendizado e incorporação das normas que instituem o feminino: procriadora, sedutora, bela, intuitiva, passiva, frágil, etc.

 No desenrolar do dispositivo da sexualidade, na perspectiva do controle e no que denomina o processo de “histerização do corpo da mulher” Foucault assim se exprime:

« [...] o ‘ sexo’ foi definido de três maneiras : como o que pertence em comum ao homem e à mulher ; ou como o que pertence por excelência ao homem e falta, portanto, à mulher ; mas ainda como o que constitui inteiramente o corpo da mulher, ordenando-o inteiramente às funções reprodutivas e perturbando-o  sem cessar pelos efeito desta mesma função  ;  a histeria é interpretada, nesta estratégia, como o jogo do sexo enquanto ele é ‘um’ e  o outro, todo e parte, princípio e falta.(1976 :202-204)

De forma binária ou excludente, a sexualidade se constrói assim, para este autor em detrimento do feminino, já que, no imaginário social ,  dela padece por saturação  e/ou padece, igualmente, por falta. Este tipo de contradição não cria obstáculos para a representação “da mulher”, no singular: frígida ou devoradora. Neste caso, é de fato um bio-poder que controla o feminino, já que definido e significado por um corpo, uma genitália “diferente”.

Problemas de natalidade, de longevidade, gestão da velhice - alvo recente de um capitalismo voraz - compõem as técnicas de valorização da vida. A velhice cria especialidades, proliferam  as casas para idosos, novas fontes de lucro, infantilizando os velhos, liberando os jovens para o mercado da vida e do sexo. Escondem-se os velhos, para não  expor, em seus tremores, nosso próprio destino. A longevidade, longe de trazer felicidade, cria um lucrativo negócio. Pouco importa se as pessoas vivem mais e suas condições de vida sejam cada vez piores, na perda de seus sentidos ou de sua razão: exalta-se a vida a todo custo, movimentando e produzindo capital.

A morte é o fantasma a ser afastado, silenciado, apagado, nos tratamentos de rejuvenescimento, nas clinicas geriátricas, nestas casas de repouso, que de fato, são morredouros institucionalizados. Que fazer das velhas/os, senão agrupa-los e deixa-los morrer? No prolongamento da vida, insidiosamente, a morte ronda, e a velhice anuncia o destino inexorável, velado pela hipersexualização e seus corolários,

Diz Foucault:

«  A atividade sexual se inscreve, portanto no horizonte amplo da morte e da vida, do tempo  do devir e da eternidade. Ella se tornou necessária porque o indivíduo está destinado a morrer e para que, de certa maneira, escape à morte. (Foucault, 1984: 152)

Se, entretanto, Foucault almejava uma passagem do sexo aos prazeres, numa Erótica desestabilizadora dos controles e das normas, o que se vê hoje é um biopoder que se instala na sexualidade e a exacerba, que se desdobra no binarismo sexuado, reconstruindo e reatualizando a naturalizada “diferença dos sexos”.  Como sugere este autor, o acontecimento está em sua reaparição em outros momentos, em outras práticas discursivas e os mecanismos da construção política da diferença sexuada, desaparecem para melhor se instituir.

 Quando se fala de prazer, hoje, subtende-se frotar de corpos e línguas, em movimentos frenéticos e rápidos espasmos, na repetição de gestos, como vemos todos os dias, à exaustão, no cinema, na televisão, em vídeos, nos apelos imagéticos e representacionais que compõem o quotidiano.

 A ode ao orgasmo vela a violência que integra a sexualidade em nossas condições de produção e imaginação atuais. E, sobretudo, cria um evento, uma necessidade vital, algo que nunca se satisfaz, pois sua representação situa-a em tais píncaros, que a realidade espasmódica e instantânea é incapaz de alcançar. A sexualidade se tornou a raiz fictícia da identidade e da vida, negação da morte. A quem serve a sexualidade, tal como se apresenta enquanto representação  e sentido para as relações sociais? Que tecnologias sociais se desdobram a fim de criar a necessidade imperativa do sexo, enquanto diferença e dominação? Em que espelho ficaram perdidas nossas faces, cecília meyreles, em que meandros de humores se perderam nossos amores?

Como sublinha Luce Irigaray, trata-se de questionar o funcionamento da gramática de cada figura do discurso, suas configurações imaginárias, suas redes metafóricas e o que se articula no enunciado: seus silêncios constitutivos.  (Irigaray, 1997:73)

Neste horizonte de desejos incompletos, cria-se  uma espantosa armadilha em torno da existência, da completude, do pertencimento, do ser e da vida. A sexualidade, na vacuidade de seu exercício, como núcleo fundametnal da própria existência, canto e elegia à vida pretende espantar a morte, que espreita em cada desvão, em todas as esquinas.

As configurações imaginárias, as redes metafóricas, as articulações e o alarido dos silêncios nos enunciados não podem passar despercebidos, em uma análise do discurso, como propõem Irigaray e a metodologia foucaultiana de destruição das evidencias. Afinal, as condições de produção, nas quais se exercem os biopoderes, aparecem nos indícios discursivos e estes nos apontam para a violência contida na sagração da vida, na criação de identidades sexuadas.  

Quanto mais se fala de amor nos diferentes discursos sociais, mais se constata a divisão sexuada  do humano, a iteração da diferença: o “amor” é para as mulheres, para os homens é o “prazer”, a “posse”, a sexualidade em suas diferentes práticas, mas que tem como fundamento a heterossexualidade compulsória, transformada em sistema político. Aquela que cria os lugares de fala e de autoridade, neste amplo biopoder binário e hierárquico da construção social dos corpos sexuados, processo de diferenciação do humano.

Na imbricação, entretanto, de um dispositivo da sexualidade e de um dispositivo da violência, enraizado em sexo social e nos desdobramentos das tecnologias de gênero, a morte está visível, presente, onipotente no imaginário social. A morte atravessa  a produção midiática, investe a literatura, o cinema, as manifestações culturais, que em imagens e textos nos invadem de crimes, crimes sexuais, surras, estupros em profusão, em longas cenas exasperadoras, pornografia, exploração sexual, prostituição naturalizada, propagandas sexistas, vídeos, textos de músicas, roteiros de filmes, o crime enquanto espetáculo e diversão: a violência material ou simbólica é o arauto de mortes, anunciadas e/ou praticadas.

As séries televisivas, de maior sucesso têm, em suas dobras, morte /vida/ sexo mesclados, à saciedade; os filmes escorrem em imagens de violência, onde todos os tráficos levam à cenas de morte, exploração, dominação. A sexualidade, em seus interstícios, em seus fundamentos, em suas motivações, desenrola as meadas de nossas vidas, marcadas, porém,  de morte. É evidente que a violência regula também as relações entre os homens, de classe, de raça, de hierarquias incontáveis, combatida esporadicamente. A violência contra as mulheres, todavia, ancorada em uma diferença aceita socialmente e naturalizada, é, antes de mais nada, “natural” sexuada e sexual.

  Aa grande fraternitas  dá ao conjunto dos homens a possibilidade de apropriação social das mulheres, também como conjunto, mas reduzidas a uma singularidade justificada na natureza que a define: a mulher, singular que, para  Luce Irigaray contém algo em comum:

«  [...] sua condição de subdesenvolvimento vinda de sua submissão por e a uma cultura que as oprime, as utiliza, as ‘mercantiliza’ sem que disto elas tirem  proveito.» (Irigaray, 1977  : 31).

Colette Guillaumin, no fim dos anos 1970, contemporânea de Foucault, analise a apropriação dos corpos instituídos no feminino, nas diferentes instancias e práticas sociais: apropriação do tempo, do trabalho, da riqueza produzida, da emoçãoe do sangue, em mortes múltiplas. Diz ela?

«  a apropriação das mulheres, o fato que  sua materialidade é adquirida em bloco está tão profundamente admitido que não é vista. ». (Guillaumin, 1992 :38)

O não dito nas relações sociais é o silencio do qual fala Irigaray, instituidor, assentado nos pressupostos que encobrem e justificam as relações de violência, as relações sociais que produzem a diferença  sexual e dela fazem o ponto de inflexão da desigualdade e de exercíco do poder. Como sublinha Foucault,

“[...] a sexualidade não é [...] aquilo de que o poder tem medo; [...] ela é,  sem dúvida e antes de tudo, aquilo através de que ele se exerce” ( Foucualt,1988: 236)

           Não é sem razão que os feminismos reclamam, há anos, o direito das mulheres de decidirem sobre seus corpos,  sua sexualidade, o respeito de seu desejo ou não de procriação. A idéia de “natureza” faz das mulheres uma unidade psico-material e como explicita Guillaumin  “[...] tem não somente um lugar e uma finalidade- mas são organizadas interiormente para fazer o que fazem[...] (Guillaumin, 1992:49) Deste modo, sublinha, são vistas fora das relações sociais e discursivas de produção e se inscrevem em uma pura materialidade.

Assim, as características físicas das mulheres, ou dos dominados em geral, são vistas como causa da subordinação, velando-se os mecanismos e os pressupostos que criam a representação social de inferioridade e a própria subordinação. (idem, 49) Ou seja, constrói-se o diferente para melhor afirmar a pregnncia de seu referente, no caso, o masculino, o sujeito da fala e da ação, o sujeito político.

A apropriação sócio/sexual das mulheres se constata a cada instante, nas revistas, nas expressões do senso comum, em um imaginário masculino no qual estão-lá para serem subordinadas, dominadas, exploradas, consumidas. E esta relação supõe a violência do assujeitamento físico, imagético, representacional.

Colette Guillaumin analisa que

«  a força das relações sociais permite introduzir a existência dos apropriados na pura matéria reificada, de chamar ‘intuição’ a inteligência ou a lógica como se nomeia ‘ordem’ a violência, ou ‘capricho’ o desespero.  (Guillaumin, 1992 : 54)

É assim que as mulheres que se rebelam contra as injunções sociais são ‘ histéricas’, ou estão tomadas pelas agruras de seu ciclo menstrual, que , mais uma vez, ligando-as a funções do corpo, parecem domina-las. A síndrome pré-menstrual é mais uma criação recente para desqualificar qualquer movimento de reação à imagem da “verdadeira” mulher, cordata, submissa, passiva.

>O biopoder, portanto, atuando  em tecnologias de gênero cria e distribui lugares de fala, autoridade, cria sujeitos políticos e cria sujeitos “naturais ao instituir o sexo social.

« O sexo, esta instancia que parece nos dominar e este segredo t que estaria subjacente a tudo que somos  [...]. O sexo é, ao contrário, o elemento mais especulativo, mais ideal, mais interior também em um dispositivo de sexualidade que o poder organiza em suas tomadas sobre os corpos, suas materialidades, suas forças, suas energias, suas sensações, seus prazeres.. (Foucault, 1996 :205)

Sexo, de fato, significa, em primeiro lugar, a construção  de corpos em função de um sexo social, definidos pela escolha de um detalhe anatômico; em segundo lugar, exprime a posse e a penetração de um corpo – desta maneira, como sugerimos no início,  o dispositivo da sexualidade se imbrica e desdobra em outro dispositivo, o  da violência, violência de sexo, violência material, violência simbólica.  

Para Foucault a categoria « sexo » regrupou em uma unidade artificial o anatômico, as funções biológicas, os comportamentos, as sensações e os prazeres e aparece assim como “significante único e significado universal” (Foucault, 1976:205) Instala-se, deste modo, na categoria sexo, o  binário sexuado e em suas tecnologias de gênero, a verdade sobre o humano, definindo-o em “homem”, universal, referente, significado de poder e “mulher”, específico, diferente. A diferença de sexos e a sexualidade normativa é o campo paroxístico do bio- poder, na atualidade.

            O que fica claro, em Foucault, é que a transformação de um regime de verdade translada e refaz sentidos e a naturalização da “diferença sexual”, nesta perspectiva,   se ancora em um interdiscurso filosófico-religioso misógino e desqualificador em relação ao feminino. Para a filósofa Geneviève Fraisse a historicidade da categoria “diferença de sexos” é  a antítese das asserções “naturalizantes”. Afirma que a historicidade vai além da idéia de história, pois significa a representação de um ser histórico.(1996:74) E acrescenta que a passagem de registro, de história das representações, para a representação da história faz um duplo deslizamento:

“[...] coloca as mulheres em posição de sujeito da história, atoras da história real e indivíduos de pensamento; e assim indica a importância do sujeito sexuado em geral. Traz também um saber possível sobre a diferença dos sexos por um trabalho crítico sobre os invariantes, um desmonte dos mecanismos de atemporalidade” (1996,75)

De fato, denomino “história do possível”, a pesquisa genealógica da sexualidade humana e da construção de corpos sexuados, que pode revelar o múltiplo do humano e a pluralidade de suas formas de relacionamento. Em outras formações sociais, a partir do pressuposto de uma historicidade incontornável, nada deixa supor a existência da “diferença sexual” e seu corolário de violência e poder, nada afirma a presença de uma incontornável sexualidade, atrelada ao bio-poder de classificação dos seres. Uma história do possível pode também mostrar, na historicidade dos valores e significações, que vida e morte são apenas faces do existir.

A elegia à vida, de fato, intenta apagar a presença da morte, mas os discursos sociais não cessam de proclamá-la: presença incontornável no funesto clangor de armas invisíveis, repicar de sinos que anunciam a ausência, o luto, a dor de ser /existir nestas trilhas de violência, simbólica e material, que reconstroem sem cessar diferenças e desigualdades, para melhor exercer seu poder. E no sexo social, na sexualidade enquanto dispositivo de controle, dominação, necessidade insaciável,  modelagem de corpos medram a violência de sexo e a ameaça de morte.

A sagração da vida, hoje, ancora-se no sexo enquanto  categoria ( não como genitália) e sua  inteligibilidade desdobra-se em hierarquia,  potencia,  verdade,  produção de sentido, o sentido próprio de ser. (Foucault,1976 :205) Tudo se passa como se a sexualidade fosse a antítese da morte.

Entretanto, se o sexo vale a morte, é bem a morte de outrem, pois  se, para os homens o sexo é contingência, para as mulheres é definição, é a parte que define seu ser, seu existir, logo, sua morte.  Se o dispositivo da sexualidade naturaliza o desejo sexual, este se materializa, em grande parte, na violência de gênero. Não há espanto, neste sentido, quanto  a existência da “defesa da honra”, em que o direito de morte do masculino-soberano se exerce sobre a mulher suspeita de infidelidade; hoje é o direito de “posse”, não mais a infidelidade, que fomenta os crimes contra a vida de meninas e mulheres, que recusam um relacionamento indesejável. No âmbito do dispositivo da sexualidade os homens selam sua fraternitas : nunca se ouviu falar em uma passeata, um movimento  masculino contra o estupro, contra a violência doméstica, contra uma pedofilia cada vez mais revelada. A violência sexual parece ser uma questão que concerne apenas às mulheres, seus corpos, suas vidas, suas mortes.

Os feminismos são muitas vezes execrados por analisar em profundidade aquilo que é recoberto de silencio. Os mecanismos de apropriação e construção dos corpos das mulheres, da diferença sexual, já estão claramente expostos – mas o conhecer não cria necessariamente a transformação. Os poderes que dividem o humano em dois sexos, mas os conjugam em um, “o homem” ; que permite a venda de meninas para se casarem com anciãos; que naturaliza o uso e a venda de corpos em um mercado globalizado do sexo , tem, no patriarcado,no dispositivo da sexualidade e da violência sua ancora, seu porto seguro.

Se Foucault analisa o dispositivo da sexualidade de forma geral, a violência que nele prospera não permite ignorar a construção do sexo social, pois nela estão contidas a dominação e morte.

Diz ele:

« Ironia deste dispositivo : faz-nos crer que contém nossa ‘liberação’,"(Foucault 1976 :207)

A questão política, transformadora, é libertar-se do próprio dispositivo; a libertação está na identificação das novas servidões e seus mecanismos de assujeitamento: não é negar a sexualidade, mas recusar sua importância vital no existir, na inteligibilidade humana, no processo de subjetivação, na construção de si, enquanto mulheres, seres políticos. A libertação não está em negar a morte, mas incorporá-la no inexorável desenrolar da meada da vida, na ação política de construir relações humanas destituídas de valores de gênero, de hierarquias “naturais”, de sexualidade como fragor do existir. Por uma vida não fascista, desvela-se assim a perversidade de economias centradas na violência e na dominação, enquanto em aparência não cessam de louvar a vida. Quebra-se assim os grilhões que fazem da sexualidade motivo e razão de viver, e da vida   a justificativa  “natural”  do existir.  

 

 

Referencias

>GUILLAUMIN,Colette.1992. Sexe, Race et pratique du pouvoir, l´ídée de nature, Paris, Ed.Côté-femmes.

IRIGARAY, Luce.1977. Ce sexe qui n´en est pas un. Paris, Editions de Minuit.

FRAISSE, Geneviève.1996. La différence des sexes. Paris :PUF

FOUCAULT, Michel.1988 Microfísica do poder, Riode de Janeiro:Graal

FOUCAULT, Michel.1976. Histoire de la sexualité I.La volonté de savoir. Paris :Gallimard

FOUCAULT, Michel.1984. Histoire de la sexualité ÍI. Lusage des plaisirs.Paris :Gallimard

FOUCAULT, Michel.1994. Dits et écrits III(1976/79) Paris, Gallimard

BARBIN, HERCULINE. 1983.Diária de um Hermafrodita. (apresentação de Michel Foucault) Rio de Janeiro:Francisco Alves_

MACKINNON, Catherine.1987..Feminism Unmodified. Discours on Life na Law. London. Harvard University Press

NOUVEL OBSERVATEUR, 2008, Paris, 27 nov./3 déc.

Nota biográfica:

tania navarro swain é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre .Na Université du Québec à Montréal, (UQAM), foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Criou, na Universidade de Brasília, curso de Estudos Feministas na graduação e na pós-graduação,.área de concentração, com a mesma denominação, abrangendo Doutorado e Mestrado, a primeira no Brasil, iniciada em 2002. Publicou, pela Brasiliense, “O que é lesbianismo”, 2000 , organizou um número especial “Feminismos: teorias e perspectivas” da revista Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente os livros “História no Plural” e "Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas"  publicado em 2005 pela editora das Mulheres; tem mais de 60 publicações em revistas nacionais e internacionais, bem como capítulos de livros.É editora da revista digital Labrys, estudos feministas".
 


[1] Todas as citações de Foucault, nos casos pertienentes, estão traduzidas livremente.