Lesbianismos, cartografia de uma interrogação

 

Resumo

O lesbianismo vem sendo tratado pela história e pelo discurso social como uma curiosidade ou como um estigma a ser revelado/escondido. Num mundo em que o binário heterossexual é a norma, a ameaça do lesbianismo é a recusa do contrato sexual instituído pela heteronormatividade. Mas, afinal, o que seria uma identidade lesbiana? Que sentidos se escondem numa categoria que supõe uma homogeneidade grupal baseada em uma sexualidade plural?

Palavras-chave: lesbianismo, identidade, contrato heterossexual.

Abstract

Lesbianism is being treated by history and social discourse, as a curiosity or a stigma that should be revealed and/or hidden. In our normative binary heterosexual world, lesbianism represents a threat to the sexual contract which heteronormativity institutes. But then,, what would be a lesbian identity?. What are the meanings behind such a category which supposes groupal homogeneity in a plural sexuality?

Key-words: Lesbianism, Identity, Heterosexual Contract

 

Cena de  “ Le cahier volé”, de Régine Desforges:1978

«  Não somente, me diz Alain, você  é uma lésbica imunda, mas você ataca os rapazes... Pare de sorrir assim. Mas ela está caçoando de nós! ...Você deveria ser arrastada nua pelas ruas... (116) Você vai deixar Mélie e nunca mais a rever enquanto não te dermos autorização.. Senão, você lamentará ter nascido. Teus pais poderão fazer as malas. Você será expulsa de todas as escolas....Se você ficar aqui, ninguém falará com você, as pessoas te insultarão na rua, você terá vontade de morrer (117/118)... Você é uma vergonha para tua família, não merece nossa bondade.(190.) ... Não ouço mais nada, mas para minha vergonha, as lágrimas me correm pelo rosto.

Cenas de um romance, cenas de uma história real, de uma menina de 15 anos, que viveu uma história de amor e sofrimento com uma de suas colegas de colégio. Estigmatizada e molestada por rapazes de sua idade, cuja única autoridade fundamentava-se  no fato de se considerarem os representantes autorizados da ordem social androcêntrica. Como permitir tal desvio, tal  ameaça?  Anos 70. E hoje?

Cenas de um quotidiano ainda vivido por tantas mulheres, jovens e menos jovens, histórias de amor e emoção sufocadas pela heteronormatividade. Que sentidos habitam a violência das palavras, dos gestos, que sentidos percorrem os pesados silêncios sobre o amor entre as mulheres?

Existe, hoje, uma espécie de curiosidade, ou mesmo uma  pressa em delimitar , definindo, o que seria o lesbianismo, inclusive pelas próprias mulheres que se dizem lesbianas. Explicar, explicitar, traria maior realidade, maior credibilidade ou justificação para relações que, eu diria , são apenas parte da infinita possibilidade de agenciamento do humano?

É claro que uma visibilidade é desejável, na medida em que afasta os estereótipos e contribui a desestabilizar os preconceitos, cultivados em um imaginário patriarcal e heteronormativo. Neste momento, entretanto, em que há um apelo à fixação de identidades sexuais múltiplas, a uma crescente exposição de relações homossexuais/eróticas, existe, também, a premência de uma quebra identitária; recusa-se a aceitação de  um sujeito coeso, permanente, cujo fundamento estaria no vórtice de uma sexualidade devoradora e constitutiva dos seres. Trata-se de fato, do  dispositivo da sexualidade, ( Foucault,1976)) em ação,  teia composta das diferentes dimensões que compõem as relações sociais, mantida por todos os poderes que a urdem, determinando os modelos dos corpos e das auto representações . Quer seja de ordem econômica ou imaginária, a sexualidade, enquanto eixo da identidade e da existência social, apresenta-se como uma injunção ao “prazer”, imediato, constante, exigente. E sem fim...

Pode-se falar de erotismo, para se escapar ao império da sexualidade; permanece, porém, a tônica de um fundamento no sexo, pois, o que é assim apontado, são práticas ligadas ao exercício  de uma certa sexualidade. Como se pode criar um núcleo identitário em torno de práticas que podem variar não só no tempo e no espaço, mas em relação aos próprios indivíduos e seus desejos? A questão que se coloca e que vem sendo evitada é: porque o sexo é o denominador em torno de qual se substantivam os seres?

O que continua a me espanta é esta necessidade de ancoragem grupal: os atos necessitam de um aval identitário para que possam ter um sentido? E se o sentido estivesse na própria transitoriedade do sujeito e na transumância dos elementos que supostamente o compõem?As tipologias que se elaboram a respeito das possíveis relações homossexuais evidenciam a sua multiplicidade. Mas por que reivindicar espaços de identidade sexual, senão por imposição de um certo quadro de pensamento, ordenado pela própria sexualidade, como instrumento de disciplina e domesticação do humano? As tipologias, apesar de serem vertentes de visibilidade, são também lócus de exclusão e de luta em torno de “verdades”. Quem é a/o “verdadeira/o” homossexual?

.um pouco de história.

A origem da palavra é conhecida de todos: de Lesbos, ilha onde morou Sapho, considerada a décima musa grega , poeta  do amor entre as mulheres. Neste mundo grego-oriental do século VI a.C.,  era sacerdotisa de Afrodite e participava dos ritos de iniciação e de renovação simbólica da cidade. (Bonnet,1995:33) Poderosa, louvada em sua época ela qualidade de sua obra, esquecida ou  vilipendiada em seguida, seus poemas em fragmentos atravessaram os tempos para cantar seus amores e seu desejo pelas mulheres .

Já mais próximo de nós, no século XVI,  os amores entre as mulheres eram considerados destituídos de importância: não eram sexuados, pois apenas o sexo masculino , o falo e sua semente  dariam sentido, valor e materialidade ao sexual. Marie-Jo Bonnet explica que

 “O desinteresse  da religião cristã por este ramo feminino da luxúria é coerente. Com efeito, porque condenar um prazer insignificante? E pode-se falar mesmo de prazer quando há falta do instrumento essencial?” (Bonnet, 1995:35)

 Entretanto, mulheres que se vestissem de homem podiam ser condenadas à morte, (idem:35/36) pois esta atitude representava então um elemento de perturbação na ordem do social, logo,  do mundo.

No século XVII seu nome reaparece com brilho, desta vez para designar mulheres escritoras, cultas, as “Précieuses” , adjetivo que se fez logo acompanhar de “ridicules”; Madeleine de Scudéry torna-se a primeira  Sappho à época , nome que passará a designar toda mulher  que  brilha no mundo  das letras, mas sem as conotações sexuais anteriores. (Bonnet, 1995:77) Sapho é “liberada” de seu lesbianismo, é “recuperada” a partir do relato de Ovídio sobre sua vida, que a faz se suicidar por ser desprezada por um homem.[1]

No Brasil do século XIX uma mulher com aparência e vestimentas masculinas podia ser condenada ao hospício, como relata M.Clementina P.Cunha, pois “[…] há pouca hesitação para a internação de mulheres, decidida por seus maridos, pais, irmãos à menor “suspeita”ou desconforto causado por seu comportamento.”(Cunha, 1989:129) Crime ou loucura, a recusa das mulheres de assumir seu papel “natural”  de mães e esposas leva-as à morte, à prisão, ao internamento, à exclusão , caso sua atitude ameace o institucional e o normativo . O celibato é da mesma forma um sintoma da desordem e sua punição pode ser a marginalização, além do ridículo e da derrisão.

  As próprias fontes históricas nos oferecem exemplos saborosos. Um dos que mais me agrada é o das índias e índios brasileiros, que, à época do “ descobrimento”, faziam o espanto dos portugueses: escolhiam o sexo/papel social/ sexualidade que iriam adotar, independente de sua configuração biológica. Um dos primeiros colonizadores, Gandavo, indica que ,

"[...] algumas indias ha que tambem entre ellas determinam de ser castas, as quaes nam conhecem homem algum de nehuma qualidade nem o consentirão, ainda que por isso as matem. Estas deixam todo exercicio de mulheres [...] e vão à guerra com seus arcos e flechas e à caça, perseverando sempre na companhia dos homens e cada uma tem uma mulher que a serve com quem diz he casada e assi comunicam e conversam como marido e mulher."(Gandavo, ‘ed.1964: 58 e 128)

De toda forma, neste século XVI de Gandavo, não havia uma palavra para  nomear a sexualidade/erotismo entre mulheres, que era assim assimilado ao homossexualismo masculino: as mulheres que tinham relações afetivas/sexuais eram então chamadas de “sodomitas”.(Bellini, 1987)  E “lesbianismo”  designa… o quê, propriamente? Relações sexuais, sentimentos, atração entre mulheres? Todas as opções ou apenas uma ? Se o sentimento ou a atração não se concretiza em atos pode-se falar de lesbianismo?

No rol dos historiadores, Georges Duby, um dos mais célebres e conceituados da atualidade, um dos coordenadores da coleção francesa  da História das Molhares, não cessa de fazer alusão à relações lesbianas em sua documentação. Seus comentários, porém, são desqualificadores e totalmente ilustrativos de suas próprias representações sobre o lesbianismo. Explica ele que,, no século XII,  um longo sermão em vinte versos, de um certo bispo,  cria metáforas guerreiras para  descrever estes “ jogos realizados entre mulheres” , “ o fogo que as devora e as leva ’, ao  pecado ‘ contra natureza’ o ‘ mais execrável’ de todos” ;  afirma  Duby , então,  quase poder ouvir os cavaleiros presentes morrendo de rir, ao imaginar o que as mulheres fariam entre elas.( Duby, 1996, :16) Ou seja, neste comentário “singelo”,

Duby se encarrega de nortear a recepção da/o leitor: as relações entre as mulheres não despertam senão o riso e a chacota. Assim, atribui ao imaginário/representações sociais do  XII, suas próprias considerações/medos/rejeições.

As lesbianas seriam mulheres?      

As práticas, em determinados momentos, engendram definições, criam personagens desviantes ou anormais, na medida em que deles fazem uma tipologia e um objeto de análise/estudo; o sujeito “ abjeto” de Judith Butler(1999: 156) não é senão a corporificação , a condensação em indivíduos de uma “essência” desviante.   As  definições, por sua vez, instalam-se em um universo de sentidos presente, feito de imagens, memória social e individual, representações que instauram significações, instituem valores .

Os discursos sociais – e aí se compreende tudo que é dito, escrito e veiculado por uma certa sociedade, em determinado momento - percorre caminhos de explicitações e interdições, porém pode-se vislumbrar uma infinidade de sentidos possíveis, silêncios constitutivos da linguagem. Quando se fala, assim, de heterossexualidade, a pluralidade das vinculações sexo/gênero é ao mesmo tempo revelada e obscurecida.

Se o propósito é destruir as evidências (Foucault, 1971:53) e a pretensa univocidade dos sentidos instituídos, a tarefa é multiplicar as questões, alimentar o múltiplo no perfil das relações e da tipologia social., desvelando os valores  explicitados

Assim, o ato de nomear é um movimento de criação: quando se diz “lésbica” faz-se aparecer um personagem, e seu perfil obedece às características traçadas pelo momento de sua enunciação. Aliás, esta palavra, utilizada para nomear relações fora de suas significações históricas,  não passa de um anacronismo vazio. Quando se diz “lésbica” emergem os sentidos pejorativos que vem acompanhando esta palavra; é, aliás, por este motivo, que prefiro utilizar a palavra “ lesbiana”, capaz de conter outras representações  e imagens.

Nesta perspectiva, vemos que as palavras e sua significação não escapam à historicidade na construção de seus sentidos: o que hoje se compreende ao se enunciar “ lesbianismo” não é a mesma coisa que em outras épocas , lugares e sociedades. A antropologia feminista disto tem mostrado os indícios, apontando para outros agenciamentos sexo/gênero ( Mathieu (1991), Rubin(1975). Stratehrn (1998)).

 De acordo com o dicionário (Larousse,1979:507 ) “Lésbico: diz -se do amor sexual de uma mulher a outra”. Amor ou sexo, qual destes itens define o lesbianismo? O sentimento ou a prática de uma certa sexualidade? O que é ser lésbica? Como criar uma identidade individual ou de grupo em torno de uma preferência eventual ou sistemática?

Que classificação é esta que em sua ambigüidade atravessa o meu ser? Em que medida tais definições não reduzem ou aniquilam o potencial subversivo  de transformação das delimitações de gênero? Sobre a homossexualidade, o dicionário permanece  ambíguo:  “Homossexual: relativo a afinidades ou atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo” (idem, 443). Afinidades? Seríamos todos homossexuais quando descobrimos afinidades com pessoas não necessariamente de sexo oposto?

    “Ser homossexual”. Porque não é o mesmo que “ser professora” ou “ser atleta” ou  “ser vegetariana”? A profissão define um papel do ser, do indivíduo na sociedade; uma atividade qualquer, uma prática, demonstra uma predisposição, uma inclinação, uma decisão. Porque uma prática sexual definiria O SER propriamente dito? Porque esta seria mais definidora que outras, em termos de inclusão ou exclusão social? Que imaginário é este que erige a sexualidade em árbitro da essência do humano?

O que se nota é que no imaginário e no discurso que o explicita existem variáveis definidoras de um espaço onde  a prática intensa da sexualidade  prolifera pela ação do já mencionado “dispositivo da sexualidade: “[…] um conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões reguladoras, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” , que segundo sua definição(Foucault,1988:244) “[…] funciona segundo técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder […] com a finalidade de “[…] proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar  o corpo de modo mais e mais detalhado, e de controlar as populações de maneira  cada vez mais global.” (Foucault, 1976:140/41)

Assim, a questão que me interpela aqui se refere à  identidade enquanto um núcleo de coerência, a sexualidade como parâmetro de inserção social e eixo desta coerência interna, a norma como paradigma do comportamento, forjado no imenso cadinho das representações sociais, de um mundo conjugado no masculino.

O lesbianismo, no discurso social, aparece obscurecido ou negado enquanto prática ligada ao humano, ou desqualificado enquanto mutilação do ser mulher, reles imitação do macho. As conotações que acompanham o epíteto “lésbica” são sempre negativas: mulher-macho, paraíba, mulher feia, mal amada, desprezada. As imagens revelam assim ou uma caricatura do homem ou uma mulher frustrada, uma mulher que foge ao paradigma da beleza , da “feminilidade” e  escolhe a companhia feminina por não atrair os homens. Uma das referências sociais para se delimitar o lesbianismo, portanto,  refere-se a uma comparação ou a uma possível relação com os homens. Mesmo nos espaços onde se cruzam homossexuais femininas e masculinos a hierarquia de gênero se estabelece:, constantemente.

A produção do imaginário disto nos dá um indício: por exemplo, a série de tv Queer as folk ( os assumidos, no Brasil), divulgada pela televisão a cabo, apresenta as lesbianas ( apenas duas) como uns apêndices incômodos do grupo masculino, sem iniciativa, sem imaginação, apenas preocupadas com a maternidade, com filhos e fraldas, suplicando por um sêmen amigo, que as insira no mundo das mães. Ou seja, as lesbinas, no caso, apenas repetem, em outro registro,  o “destino” das mulheres, em uma relação também normativa. Onde a subversão lesbiana, pilar da desestruturação da ordem do pai, aquela que rejeita o pacto heterossexual e heteronormativo?

Justamente por esta recusa Monique Wittig (Wittig, 1980) afirmava que as relações lesbianas representavam a quebra de um pacto heterossexual simbólico/material. Afirma esta autora que a categoria sexo, instituída socialmente, é responsável pela existência de um “grupo natural” , constituído pelas mulheres, em uma singularidade abusiva: “A mulher”.( Wittig.1980: 75 passim) Diz ela:

“A categoria sexo não existe a priori, antes do social. [...]  é a categoria política que funda a sociedade como sendo heterossexual .[...] uma das que determinam como ‘ natural’  a relação que está na base da sociedade (heterossexual)[...]  é o produto de uma sociedade heterossexual que impõe às mulheres a rígida obrigação da reprodução da ‘espécie’, isto é, a reprodução da sociedade heterossexual.” ( Wittig, 1992: 5-6)

Esta mesma construção imaginária de opostos faz com que as mulheres, cuja especificidade é seu corpo, passem a existir apenas em relação aos homens. E neste caso, sublinha Wittig, recusando o contrato heterossexual, as lesbianas escapam à esta coerção; logo, afirma, “as lesbianas não são mulheres”.(Wittig, février 1980:53) O potencial subversivo do lesbianismo é aqui explicitado em toda sua pujança, para a desconstrução de um binário sexual “natural”.

. o comtinuum lesbiano

Mesmo feministas contemporâneas , como Simone de Beauvoir, não conseguem se desvincular da heterossexualidade como referente e norma: é isto que aparece como  matriz de inteligibilidade do capítulo do Segundo Sexo sobre o lesbianismo . ( Navarro-Swain, (1999) A naturalização da heterossexualidade, (ponto frágil de muitas teorizações feministas e principalmente da categoria “ gênero”), apesar de denunciada, entre outras, por Adrienne Rich (1981) e Monique Wittig, nos anos 80, só começa a tomar vulto no discurso teórico feminista na década de 90.

Para Adrienne Rich a existência do lesbianismo é, ao mesmo tempo “[…] a transgressão de um tabu e a rejeição de uma forma de vida obrigatória.” (Rich, 1981:32)  E acrescenta :

“ A destruição dos traços, das memórias, das cartas atestando as realidades do lesbianismo deve ser tomada muito a sério como um meio de preservar a heterossexualidade compulsória […]” (idem)

 De fato, perde-se o registro, apaga-se da memória o que vem deslocar, perturbar a ordem do discurso, a ordem do Pai. A heterossexualidade compulsória aparece assim como mais uma construção cultural , que conduz, domesticando os impulsos, à uma atração “ natural” entre os sexos “opostos”. ( Coloco “opostos” entre aspas pois isto é mais uma construção cultural/valorativa)

A existência das Amazonas, tantas vezes comentada pelos Antigos, é sistematicamente condenada ao mito, ao domínio das impossibilidades, pois, como sublinha Geneviève Pastre:

 “[…] houve uma redução do campo não somente do possível , mas também do vivido e uma espécie de afunilamento na direção de uma só passagem[…]  em vez de ser estocada, a informação deixou de estar disponível, foi eliminada e passou-se a considerar como produto da imaginação  […] o que havia sem dúvida existido[…] espelho de realidades ricas e complexas.”(Pastre,1987:44)

E o que a história não diz…. nunca existiu! (Navarro-Swain, 2000: 13) A regra  geral é o silêncio: silenciar para melhor apagar , para melhor esquecer, para conjurar o perigo daquelas que escapam à norma de uma heterossexualidade tão “natural” e evidente, que mesmo entre as feministas demorou muito a ser questionada. Entretanto, como uma das pioneiras, há mais de 20 anos Adrienne Rich apontava para a disciplinarização sexual, denunciando a “obrigação da heterossexualidade”, suprema divisão binária do mundo.

Além disso, denunciava a desvalorização e o esquecimento do que caracterizava como um continuum lésbico, as relações mais diversas e profundas entre as mulheres durante toda a vida:  amizade, maternidade, parentesco, etc.. Carrol Smith Rosenberg, historiadora, relata as relações amorosas/de amizade entre as mulheres mórmons, do século XVIII, deixando-nos vislumbrar um universo inimaginável neste contexto. (Smith-Rosenberg, 1975) [2] Eis o lesbianismo não necessariamente vinculado do sexo, caracterizando todos os laços que uniram e separaram as mulheres

Ti Grace Atkinson, por sua vez, defendia o “lesbianismo político”, aquele que uniria as mulheres na recusa do patriarcado e da dominação masculina, mesmo que isso não implicasse em um relacionamento sexual. Para esta autora, este tipo de lesbianismo seria essencial para a edificação de uma sociedade onde o sexo não seria mais o eixo da vida, no plano individual ou político.(Atkinson, 1975:155)  Eis, mais uma vez, um lesbianismo que não inclui a sexualidade em sua definição.

O lesbianismo contemporâneo, adotado como postura política, em oposição à dominação masculina , encontra-se hoje no domínio da memória, da história do início do feminismo. Entretanto, atualmente, teóricas da importância de Judith Butler(1990) , de Christine Delphy (1991),  Teresa de Lauretis (1987), de Donna Haraway, ,(Haraway,1991) de Gloria Anzaldua (1999), não hesitam a sacudir as evidências da heterossexualidade.

 O sexo biológico, natural? Esta questão torna-se central hoje nos estudos de gênero , ou melhor, feministas[3] e diante de sua crescente desconstrução, como reivindicar uma identidade em torno de uma categoria cujos limites são fluidos? O que é o feminino, o sexo feminino? Não seria melhor deslocar a questão para o processo de formação do feminino? Enfatizar não a diferença entre os sexos – o já- dado, o “biológico irredutível” - mas o processo social de sua diferenciação,  (Mathieu,1989 :256)? É nos processos de construção dos corpos sexuados, constituídos por valores e normas históricas que se encontra o nó Górdio: ao rompê-los, apontá-los, que poderemos quebrar os grilhões das auto-representações identitárias, tão fictícias quanto fortes. Como sublinha Haraway (Haraway,1991 ;:345), os corpos são apenas “projetos de fronteira” que se materializam de acordo com as práticas e as normas  que nos são impostas ou às quais nos assujeitamos.

A prática heterossexual que Tereza de Lauretis nomeia “Sex Gender System”, seria “[…] um construto sócio -cultural, un aparelho semiótico e um sistema de representações” (Lauretis,1987 :3) que confere uma significação à sexualidade em uma rede de valores. Sobre o binário “natural” do sexo biológico eleva-se um edifício de hierarquias e assimetrias,(Delphy,1991:91), um sistema simbólico fundado sobre sua representação, que adquire a evidência da enunciação repetida, da tradição cultivada, de uma memória cuidadosamente elaborada em história.

 Afinal, a ênfase dada à diferença física é relativa às matrizes de sentido que presidem  a construção cultural dos gêneros, como por exemplo, a reprodução enquanto critério máximo de “naturalização” do binômio sexo/gênero. Se por um lado, a contestação da heterossexualidade contribui para um aprofundamento do debate na modificação das estruturas mentais e representacionais, o próprio lesbianismo é uma questão enquanto categoria, pois na dissolução das identidades em frações infinitesimais , no processo de construção dos corpos,  o que significa ser lesbiana?

 De fato, se o discurso social, a prática ou a preferência sexual constrói um ser social - a lesbiana - a prática heterossexual constrói a fêmea , igualmente um ser social, cujo  naturalização torna inquestionável o biológico . Mas o leque de práticas que compõem esta categoria - a sexualidade-  tem suas polaridades enfatizadas segundo a importância que recebem da rede de sentidos na qual estão inseridas. Ou seja, sexualidade enquanto essência do ser, heterossexualidade enquanto normalidade do humano.

As matrizes de sentido que balizam nossa interpretação do mundo impedem-nos de perceber a construção social e lingüística do que consideramos inevitável e natural, como o sexo biológico e as práticas sexuais.. Assim, em várias autoras feministas como Haraway, Butler, de Lauretis, Baidrotti, entre outras, a crítica do sexo biológico, enquanto dado natural, e do gênero como categoria fundamental  de análise social, ganham importância e penetram o debate geral do feminismo, traduzindo a inquietação “pós-moderna” de identidades múltiplas e disseminadas. E esta questão se refere igualmente ao lesbianismo.

 Isto significa que, na economia do desejo, a homologia entre o sexo e o gênero – a “necessária” compatibilidade do biológico e do social - tende a se desfazer e isto não apenas nos quadros exóticos dos estudos antropológicos; esta quebra se faz também sob nossos olhos na expansão de sexualidades múltiplas.

Nesta ótica, assim como os estudos feministas se debruçavam sobre “o que é uma mulher? podemos repetir nossa indagação primeira : o que é uma lesbiana?” E as questões continuam a  se desdobrar: Mulheres que amam mulheres? Que fazem sexo com outras mulheres? Que se sentem atraídas, mas não ousam o  sexo? Que amam outras mulheres e fazem sexo com homens?  A própria bissexualidade que hoje se desvela torna irrelevante as definições em torno de práticas.(Navarro-Swain,1998 )

 questões de poder

A crítica feminista atual se debruça sobre os quadros de pensamento que ordenam as categorias sexo/ gênero na produção do saber e os efeitos de poder que assim são engendrados. Isto significa que a pesquisa teórica se volta para a genealogia do quadro binário e sua pregnância sobre o imaginário social e suas representações.

Neste sentido, o sexo biológico é posto em questão enquanto elemento pré-discursivo, natural, pois o lugar que lhe é dado faz parte de um sistema de sentido dado. Assim, perde sua evidência enquanto significante geral das relações sociais, solo da divisão binária da sociedade de um feminino e masculino “ naturais”. É assim que o gênero, estabelecido socialmente na heterossexualidade, constrói o sexo biológico: não em sua materialidade, mas em sua apreensão mediatizada pelas constelações de sentido, pelas  redes de representações sociais que o definem enquanto diferença incontornável e que se apóiam sobre

 “[…] sistemas de pensamento mais amplos, ideológicos ou culturais, sobre um certo estado do conhecimento científico, assim como sobre a condição social e a esfera da experiência privada e afetiva dos indivíduos.(Jodelet,1989:35)

Os discursos médicos, jurídicos, religiosos, educacionais, bem como o senso comum, são unânimes na afirmação do sexo biológico como um dado incontestável da natureza. Mas como sublinha Foucault, a respeito do sexo . Butler(1990) indica como a exposição aberta de uma identidade “invertida” , a performance das “drag queens” ou “drag kings” desmascara os efeitos de homologia sexo/gênero, na medida em que demonstra claramente o artifício que representa a aparência do SER mulher ou homem, seu caráter construído socialmente e arbitrariamente. Para Foucault,

« […] deve-se falar como de algo que não devemos simplesmente condenar ou tolerar, mas sim gerir, inserir em sistemas de utilidade, regulamentar para o bem de todos[…] O sexo não se julga apenas, administra-se. Está no âmbito do poder público. »(Foucault, 1976:34/35)

Em que medida uma definição de relações homossexuais, de relações múltiplas entre mulheres, já marcadas pela experiência de gênero, não faz parte deste “gerenciamento”, do dispositivo da sexualidade em ação? Desta rede social , elástica,  que exige porém,  delimitações e tipologias para melhor disciplinar, para melhor dispor de um poder de coação invisível que transita do imaginário à necessidades materiais ( roupas, boates, consumo específico, etc, etc)?

 O que é afinal o lesbianismo em uma teia de sentidos dominada pela heterossexualidade e pelas relações assimétricas de gênero?  Práticas “desviantes”, ligadas à sexualidade? Sentimentos que se dirigem às pessoas do mesmo sexo? Uma erótica particular? Uma escolha política, como nos primeiros tempos do feminismo, as heterodykes? Ou práticas de recuo e de frustração diante dos homens como aparece em de Beauvoir?

Não há uma resposta possível, não há, em substancia, algo que possa definir o lesbianismo de uma forma homogênea ; de fato, aqui pensamos em “ lesbianismos”, em multiplicidades, tão numerosas quanto as próprias mulheres, assim construídas socialmente. Não há um referencial estável, uma prática única, sólida, partilhada por todas que se dizem lesbianas.

O que é finalmente ser lésbica?  É o exercício da sexualidade, finalmente, que torna uma relação especial entre todas? De toda forma, a prática sexual nunca terá o mesmo perfil para todas , nunca responderá às mesmas expectativas , com os mesmos  resultados. Quem sabe a emoção despertada possa ser um indício, emoção restrita ou plural, num outro caminho livre de definições. O que é o feminino, o que é ser mulher?

Não existem respostas fora do social. Apenas um emaranhado de sentidos e representações que constituem o mundo: estratégia, opção, passagem, destino, recusa , cansaço , emoção. E sofrimento. Cada qual seu desenho, sua fluidez. No horizonte, a subversão. A volatilização da essência é a libertação da norma, da disciplina, da exclusão.

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Dados biográficos :

tania navarro swain é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre  na Université du Québec à Montréal, (UQAM), onde foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Ministra um curso de Estudos Feministas na graduação e trabalha na área de concentração com a mesma denominação na pós-graduação. Publicou recentemente um livro pela Brasiliense, “O que é o lesbianismo”, 2000 e organizou um número especial “ Feminismos: teorias e perspectivas” da revista Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente um livro “ História no Plural”,  além de vários artigos em revistas nacionais e internacionais. Criou e organizou a revista Labrys, Estudos Feministas, com o seu Grupo de Estudos Feministas- GEFEM.


 

[1] .Ovidio, Heroïdes, XV, Paris, Les Belles Lettres, 1965. Livro citado por Marie-Jo Bonnet, que faz algumas citações e mostra como o sucesso de suas numerosas traduções mostra que esta história, que serve de base biográfica para Sappho  e que apaga todas as especificidades sexuais da poeta , cumpre nesta época uma outra função, a de desvalorizar a mulher letrada e através dela, as Précieuses. (Bonnet :75)

[2] sobre esta autora ver o número 3, vol.12 , Autumn 200 de Signs, dedicado a esta autora e o artigo de Navarro-Swain, Tânia:. Unveiling Relations:Women on Women- On Carrol´s Smith Rosenberg´s Research

[3] A crítica aos estudos de gênero refere-se ao caráter relacional de construção social do feminino e do masculino , obscurecendo ou deixando completamente de lado a hierarquização e a assimetria desta configuração.