Identidade, identidades
- goiania,
setembro 2003-09-22
A categoria identidade tem se
tornado, atualmente,
um eixo
preferencial de debates
disciplinares e interdisciplinares..
Fala-se em identidade supondo-se uma essência
do indivíduo, um
encontro consigo
mesmo: diz-se "em
busca de sua
identidade" e supõe-se
a busca de um
tesouro oculto,
prestes a eclodir
ao ser liberado; fala-se também,
em outra perspectiva, de identidades
plurais, em
multiplicidades identitárias , em
desdobramentos de identidade;
considera-se identidade o pertencimento
a um grupo
ou a um
espaço geográfico.
Identidade é usada
igualmente como
sinônimo de raízes, parte
oculta de um “eu” originário.
Com estas noções
usualmente encontram-se outras
categorias, que com elas reiteram a binariedade do
sistema de apreensão
e construção do real
em opostos:
por exemplo,
identidade/ diferença,
diferença/ igualdade,
igualdade/ liberdade,
identidade / liberdade..
Estes desdobramentos nos
fazem percorrer um
caminho que
vai do epistemológico ( identidade/ diferença)
ao político (
igualdade/ diferença;
identidade/ liberdade),
num atalho em
que a diferença
permanece como o referente,
origem das desigualdades e hierarquias.
Este encontro
com o múltiplo
e o diferente, entretanto,
não nos
faz exceder nosso
horizonte epistemológico habitual:
se encontro um locus
de estabilidade e inteligibilidade
identitário , estou , ao mesmo
tempo, criando campos
adjacentes de
exclusões, delimitando o espaço
entre eu e o outro, reivindicando neste movimento,
um lugar
para “mim”
superior ou igual aos outros,
meus referentes.
Eu sou, portanto,
em relaçao a algo,
a outrem, além
da busca de uma coerência
interna perdida, meu
"verdadeiro eu".
Em uma perspectiva
histórica feminista
, podemos perceber que , quanto às
mulheres, ( mais
de metade da
humanidade, não
esqueçamos!) sua posição
de sujeito/agente no social
foi obscurecida , na análise
e na narrativa da História:
a procriação seria
seu destino natural
/ social , que
traçava e seu ser
em torno
de uma especificidade corpórea, cuja
função produtiva
se fixa na idéia
da diferença incontornável.
A identidade
das mulheres, portanto,
ancorada em seus
corpos sexuados,
realiza-se em um
movimento de
oposição a seu
referente /outro
masculino, essencializada
em uma tarefa
social, a maternidade.
Esta tarefa “ natural”
cria um
campo de silêncio
em torno
das ações políticas
das mulheres, em
seu sentido
mais amplo,
que abrange inclusive
o domínio socioeconômico.
A idéia comum
de uma separação rígida
e constante, nas mais
diversas culturas, entre
o público e o privado
funda-se nesta naturalização de papéis.[1]
Esta questão foi colocada
há mais de 50 anos
por Simone de Beauvoir quando perguntou: o que
é uma mulher?[2]
Esta pergunta desafiava a
naturalização dos papéis femininos
e, ao mesmo tempo, apontava
para a constituição
de um sujeito-mulher, que não fosse
constituído apenas
por uma essência
ou pela
referência a um
outro masculino.
Seria este um
sujeito dotado de tal
coerência que
lhe daria um
status de autonomia?
Não estaria porém,
em contradição com a desnaturalização
do humano, já
que se colocava em
evidência os aportes sociais à construção de indivíduos também
sociais?
O fato é que
o estabelecimento da categoria mulher-sujeito revelou-se, ao longo dos debates
feministas,
ainda mais problemático
diante da quotidiana constatação da multiplicidade das
experiências deste ser
mulher, na própria
tessitura dos movimentos
das mulheres e seu
quotidiano de lutas e reivindicações.
Constatou-se que "a mulher"
não existe; existem mulheres
e enquanto
indivíduos ou
grupos tem uma trajetória
singular.
Fortes de seu dinamismo
crítico, as teorias
feministas não
hesitam em questionar
a categoria "mulher",
não apenas
em sua
"diferença" em relação ao
outro masculino,
mas em
relação às próprias
mulheres e igualmente
quanto ao próprio
sujeito que se procurava construir.
O que isto
significa? Em 1978, Monique Wittig
[3]escrevia que
não existem “mulheres”
( muito menos “
a mulher”) fora
dos construtos que as forjam.
Apontava à época, a coerção
à heterossexualidade como
o ponto nodal da domesticação
das mulheres ao destino
de seus corpos
reprodutivos, ao assujeitamento
criador “ da mulher”
, a verdadeira, a mãe e a esposa.
Mulheres criadas
desde a
infância no assujeitamento à representação
“da mulher”, no singular,
categoria que
engloba, unifica, compõe uma única
imagem do “ ser mulher”, cujo
sentido é unívoco, linear, composto em termos de sedução e/ ou reprodução. “Secretaria
da mulher”, “história
da mulher”,
direitos “ da mulher”,
dia “da mulher”.
Quem é esta? Que
fantasma é este
que nos
persegue sob o signo
do mesmo?
De fato,
intriga-me a reiteração do singular ao se nomear as mulheres (até
por certos discursos sobre
gênero ou
mesmo feministas);
parece-me uma estratégia da ordem androcêntrica para solapar a diversidade
que habita o
humano classificado
como feminino:
“ são todas iguais!”.
Se “o homem” refere-se ao humano
em geral,
a “ mulher” , singularidade reiterada
incessantemente, reagrupa e ressencializa todas as mulheres, fazendo seu
referente único
o masculino.
Falar de igualdade
para “ a mulher”
significa talvez
obstruir , velar, na pluralidade
das experiências, a
opressão que habita
o cotidiano das mulheres.
É neste sentido que Geneviève
Fraisse[4](390) aponta um
outro binômio,em
lugar de igualdade/
diferença: o de liberdade/
diferença, pois, como afirma, é na especificidade do
ser mulher que
sua liberdade
lhe é negada ou
retirada. Monique Wittig afirma
que é a idéia
de diferença é política,
e neste sentido aponta que
a transformações de relações econômicas não
são suficientes,
pois “ é preciso
operar uma transformação
política dos conceitos-chave, isto
é, dos conceitos que
são estratégicos
para nós.”[5]
A transformação
política iniciou-se em
primeiro lugar,
com o estabelecimento
da categoria social
“mulher” enquanto
sujeito/agente
da história e de
sua história.
Em seguida,
os próprios feminismos
atacaram este sujeito
dando lugar às experiências
múltiplas das mulheres, na história
passada e presente.
Entretanto, a
idéia de identidade
permanece e desviando-se da “ diferença”[6],
a categoria “gênero”
irrompe como instrumento
de análise política.
Num
primeiro momento revela-se eficaz,
expondo a construção social
dos papéis sexuados. Num segundo momento,
porém, a crítica
feminista percebe nela a
armadilha da identidade/diferença.
O sistema sexo/gênero, como denominou
Gayle Rubin[7] em
1975 mantém a estrutura binária
dos opostos e, sobretudo,
mantém intocada a categoria
“ sexo”, enquanto
dado natural,
a ser observado
em relação
a gênero, cultura.
O antigo binômio
natureza/cultura
de Levi Strauss é assim retomado,
perenizando a perspectiva dos
opostos constitutivos da realidade;
nas análises de
gênero pode-se então
perceber a reiteração de uma ordem,
a iteração do mesmo sob
a aparência do múltiplo.
A diferença, enfim,
reencontrada na oposição binária sexo/gênero, a natureza
fixada em
aparelhos genitais
diferentes. Quem
é o referente, quem
é o modelo, quem
é diferente? Como
pode o gênero ser
relacional, sem fincar
na natureza a oposição
entre os sexos,
sem remeter
à uma “ natural” divisão
do trabalho, sem retomar, na “ diferença” sexo/ cultura,
a base biológica das hierarquizações? Para onde foi a subversão
das feministas dos
anos 1970, que
previam a eliminação dos gêneros,
como o caminho
para a eclosão
do humano?
Hoje se torna
evidente a domesticação
da categoria gênero,
na medida em
que não
se libera da “ pensée straight”, do pensamento binário,
da heterossexualidade compulsória, dos modelos
que são
aplicados à história sem a análise
de seus pressupostos, de sua genealogia,
tal como,
por exemplo,
público/ privado.
Modelos naturalizados, que nos repetem a mesma história dos gêneros,
a história do Mesmo.
Como diz Judith Butler, não
existe gênero
fora das expressões
de gênero, subvertendo assim
o sistema sexo/ gênero,
campo das análises que utilizam a categoria “gênero”. Afinal, se o
gênero é uma variável
cultural, pode se aplicar a configurações
sexuadas / sexuais diversas.
É o gênero, então, como explica Butler, que determina o sexo.[8]
O que
interessa perceber, neste sentido,
são os processos
que criam os corpos
como matrizes
sexuadas, em universos
culturais diversos,
onde o sexo biológico
não possui necessariamente a
importância que lhe damos.
Ou seja, são
as configurações sociais
do sentido dado
à “diferença”, à “identidade”
, como categorias
vinculadas ao sexo e à sexualidade,
que determinam os perfis do humano. Não o
sexo “ verdadeiro”,
denunciado por Foucault[9],
mas o sexo
político, criado
pelo gênero
em sua materialização
social. Nesta ótica, o gênero
“ relacional” não é
senão a reedição
da “ diferença” , perdendo,
em seu
trajeto, a
perspectiva subversiva da eliminação
das diferenças. Sem
esquecer que
o termo “relacional” deixa supor uma igualdade na oposição,
obscurecendo mais uma vez a hierarquização constitutiva
da noção de “ diferença dos sexos”.
Na “diferença
sexual” residiriam as
características sociais? Se não,
qual a evidência,
qual a
importância da manutenção
da polaridade “sexo biológico” na construção
dos gêneros? Se o
sexo biológico é mantido como
uma base estável sobre a qual se
erigem as modalidades de gênero , em que nos afastamos
da naturalização dos papéis sociais?
A
proposta de “igualdade na diferença”
tem trazido uma maior visibilidade das mulheres
enquanto agentes
no social;
entretanto, certas
conquistas políticas
não foram suficientemente
fortes para
transformar a divisão social
do trabalho em
termos econômicos
e políticos strictu sensu.
As mulheres votam, mas
tem uma representatividade política mínima;
as mulheres trabalham no mercado formal,
mas continuam a ganhar
menos que
os homens, em
tarefas iguais.
A mídia continua a
construir e divulgar as imagens
“da mulher”, sujeito
unificado , singular, reagrupando
todas as mulheres em
torno da modelagem dos corpos, da sensualidade,
da sedução, ao lado
da “verdadeira mulher”, a mãe e esposa.
Em nome da diferença, as mulheres
continuam atreladas a seus corpos, construída em
função de outrem.
O que significa, neste caso, a busca
de uma identidade,
já que a própria
definição do sujeito
depende de seu
referente oposto? “ A mulher
é um homem
inacabado,
imperfeito”. Quantos
filósofos, quantos “ cientistas”
não repetiram esta frase,
incansavelmente, buscando nesta recitação o fundamento
de sua própria
importância?
O que
fazer, então, se a identidade “ mulher”
ou no melhor
dos casos “
mulheres” nos
enclausura no sistema sexo/gênero,
ancorado ainda no
natural e na especificidade que
há mais de 50 anos
os feminismos vem combatendo
como fonte da desigualdade
e da opressão?
A riqueza da epistemologia feminista
está em sua
incessante auto-crítica, excedendo
seus próprios
pressupostos a fim de criar
, na linguagem e na experiência,
saídas para
um pensamento agrilhoado a seus
pressupostos. É assim que a identidade
, quer seja ela
individual ou
de grupo passa
a ser questionada, no
mesmo movimento
em que
se questiona, em diferentes
campos disciplinares,
a coerência de um
sujeito, dotado de um
núcleo fundador,
de um ponto
nodal de reconhecimento de si.
Se “ as mulheres
“ são criação
do social, de seu
simbolismo, de
sua linguagem,
das representações que
fundam práticas de desigualdade
e opressão, porque continuar reivindicando esta identidade,
construída, reiterada sem
cessar pelos mídia,
pela história,
pela tradição?
O desdobrar-se em “identidades
múltiplas” não é
suficiente., em
meu entender,
para abrir perspectivas.
Permanece, neste caso, subjacente,
a idéia de um
núcleo central
de coerência ,abrigado pela
idéia do sujeito,
origem de seus
atos.
Foucault, entre
outros, propõe a
idéia de disseminação
do sujeito, transformado em
lugar de fala,
de ação.
[10] Íris Young reflete
sobre este paradoxo:
elimina-se a categoria “mulheres”, criação
social, mas
então o que
fazemos nós,
feministas, em
nossas lutas pelas mulheres
e sua liberdade?
Ela aponta o conceito
de serialidade – indivíduos em
séries, sem algo realmente
em comum ( a experiência singular
de cada mulher)
que sofre uma precipitação –
no sentido químico
do termo – e se transforma-se
em grupo, quando uma ação política qualquer
é requerida. [11]
Esta interpelação
que tende a
desconstruir a categoria
“mulheres”, fixando-as em
suas experiências
singulares de mulheres,
seres marcados no social
pelo feminino,
com toda
sua carga
simbólica e valorativa no social,
nos torna os sujeitos excêntricos
de Teresa de Lauretis [12]
aquelas que, ancorados em uma densa materialidade – mulheres- excedem-na,
para melhor desconstrui-la.
Porque negar o paradoxo, já que somos habitadas
por ele,
tingidas de morte nossas
vidas? As identidades
não passam de construções
passageiras, fluidas, com
pousos esporádicos,
lá onde
o presente se torna
passado; em
processo, eu sou apenas
um projeto de
mim, aquela que
já passou e que
ainda não
é. Que não
será nunca, sendo.
As marcas identitárias
são
apenas pousos
momentâneos, que
traçam meu perfil
no passado.Neste caso,
a busca da identidade
poderia ser
substituída pela procura
da liberdade: livre
de raízes, de coerções, de modelos,
estou em permanente
fluxo. Assim
como os quarks, sou matéria
e onda, fluidez e
espessa concretude nas contingências
do social.
O mundo de hoje,
suas guerras,
integrismos, fanatismos
de toda ordem
nos mostra
que as mulheres
precisam antes de
tudo, de liberdade:
política,
econômica, mas
igualmente de uma liberação
das disciplinas e assujeitamentos produzidos pelo simbólico, pelas representações
sociais, pelos
pressupostos de construção da
realidade. Pelas matrizes
identitárias que fazem do feminino
um corpo,
um sexo
e uma função.
[2] de Beauvoir, Simone. 1966. Le Deuxième Sexe., Paris ,
Gallimard , 2 vol. ( 1a edição
em 1949)
[3] Wittig,, Monique 1980 La pensée straight. Questions
Féministes, Paris, Ed. Tierce, février, n.7.
[7] Rubin , Gayle, 1975 . The traffic in Women: Notes on
the “political Economy of Sex” in Reiter,
Rayna,
R. Toward an Anthropology of Women, New York an London, Monthly
Review Press
[8] Butler , Judith,. 1990. Gender Trouble. Feminism and the Subversion
of Identity , New York . Routledge.
[9] ver, por exemplo, em Foucault, Mchel, 1982. Herculine Barbin, Diário de um hermafrodita. Rio de
Janeiro, Francisco Alves
[11]Young, Iris.M. 1996. Gender as Seriality : Thinking about
Women as a Social Collective,
Joeres, Ruth-Ellen B., Laslett, Barbara (ed) The Second Signs Reader:
feminist Scholarship, 1983-1996, Chicago-London, University of
Chicago Press