Lesbianismo: identidade ou opção eventual?

 

Quem é você? Heterossexual? Quem somos nós? Homossexuais?

Quem sou eu que não sou você?

Como se pode atribuir uma identidade a partir de uma prática, de que forma o desejo e a sexualidade se tornaram atributos essenciais do ser?

Todas as definições criam um campo de significações e neste espaço surgem imagens e representações  que simbolizam os sentidos delimitados. O discurso percorre caminhos de explicitações e interdições, porém pode-se vislumbrar uma infinidade de sentidos possíveis , silêncios constitutivos da linguagem. Quando se fala assim de heterossexualidade, a pluralidade das vinculações sexo/gênero é ao mesmo tempo revelada e obscurecida.

Se o propósito é destruir as evidências [1] e a pretensa univocidade do sentido dado , a tarefa é multiplicar as questões , alimentar o múltiplo no perfil das relações e da tipologia social. De fato, não se deve esquecer que as palavras e as definições estão envoltas num halo conotativo, cujos valores são explicitados na própria denominação. O ato de nomear é um movimento de criação: quando  se diz “lésbica” faz-se aparecer um personagem cujo perfil obedece às características traçadas pelo momento de sua enunciação.

 No século XVI não havia uma palavra para  nomear o sexo entre mulheres, que era assim assimilado ao homossexualismo masculino: as mulheres que tinham relações sexuais eram então chamadas de “sodomitas”.[2]  E “lesbianismo”  designa… o quê, propriamente? Relações sexuais, sentimentos , atração entre mulheres? Todas as opções ou apenas uma ? Se o sentimento ou a atração não se concretizam em atos pode-se falar de lesbianismo?

De acordo com o dicionário, [3]“Lesbico: diz -se do amor sexual de uma mulher a outra”. Amor ou sexo, qual destes ítens define o lesbianismo? O sentimento ou a prática de uma certa sexualidade? O que é ser lésbica? Como criar uma identidade individual ou de grupo em torno de uma preferência eventual ou sistemática?

Que classificação é esta que em sua ambiguidade atravessa o meu ser? Em que medida tais definições não reduzem ou aniquilam o potencial subversivo  de transformação das delimitações de gênero? Sobre a homossexualidade, o dicionário permanece  ambíguo:  “Homosexual: relativo a afinidades ou atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo” .[4] Afinidades? Seríamos todos homossexuais quando descobrimos afinidades com pessoas não necessariamente de sexo oposto?

“Ser homossexual”. Porque não é o mesmo que “ser professora” ou “ser atleta”? A profissão define um papel do ser, do indivíduo na sociedade ; uma atividade qualquer demonstra uma predisposição, uma inclinação. Porque o sexo definiria O SER propriamente dito? Porque uma prática seria mais definidora que outras, em termos de inclusão ou exclusão social? Que imaginário é este que erige a sexualidade em árbitro da essência do humano?

O que se nota é que no imaginário e no discurso que o explicita existem variáveis definidoras de um espaço onde  a prática intensa da sexualidade  prolifera pela ação do que Foucault chama de “dispositivo da sexualidade: “[…] um conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões reguladoras, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições fisolóficas, morais, filantrópicas” , que segundo sua definição [5]

“[…] funciona segundo técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder […] com a finalidade de “[…] proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar  o corpo de modo mais e mais detalhado, e de controlar as populações de maneira  cada vez mais global.” [6]

A problemática que nos interpela  aqui delimita-se em torno de questões tais como a identidade enquanto um núcleo de coerência, a sexualidade como parâmetro de inserção social, a norma como paradigma do comportamento forjado no imenso cadinho das representações sociais de um mundo conjugado no masculino.

De fato, existe uma profunda esquizofrenia social em torno do lesbianismo , seja para obscurece-lo ou negá-lo enquanto prática corrente, seja para desqualificá-lo enquanto mutilação do SER mulher. As conotações que acompanham o epíteto “lésbica”, são sempre negativas: mulher-macho, paraíba, mulher feia, mal amada, desprezada. As imagens revelam assim ou uma caricatura do homem ou uma mulher frustrada , uma mulher que foge ao paradigma da beleza  e da “feminilidade” e  escolhe a companhia feminina por não atrair os homens.

A origem da palavra é conhecida de todos: de Lesbos, ilha onde morou Sapho, considerada a décima musa grega , poeta  do amor entre as mulheres. Neste mundo grego-oriental do século VI a.c.,  era sacerdotisa de Afrodite e participava dos ritos de iniciação e de renovação simbólica da cidade. [7] Poderosa, louvada em sua época ela qualidade de sua obra, esquecida ou  vilependiada em seguida, seus poemas em fragmentos atravessaram os tempos para cantar seus amores e seu desejo pelas mulheres

No século XVII seu nome reaparece com brilho, [8].   desta vez para designar mulheres escritoras, cultas, as “Précieuses” adjetivo que se fez logo acompanhar de “ridicules”; Madeleine de Scudéry torna-se a primeira  Sappho à época , nome que passará a designar toda mulher  que  brilha no mundo  das letras, mas sem as conotações sexuais anteriores. [9] Sappho é “liberada” de seu lesbianismo, é “recuperada” a partir do relato de Ovídio sobre sua vida, que a faz se suicidar por ser desprezada por um homem.[10]

Já no século anterior,( XVI ) os amores entre as mulheres eram considerados destituídos de importância: não eram sexuados, pois apenas o sexo masculino , o falo e sua semente  dariam sentido e valor ao ato sexual. Marie-Jo Bonnet explica que “O desinteresse  da religião cristã por este ramo feminino da luxúria é coerente. Com efeito, porque condenar um prazer insignificante? E pode-se falar mesmo de prazer quando há falta do instrumento essencial?”[11] Entretanto, mulheres que se vestissem de homem podiam ser condenadas à morte , [12] pois esta atitude representava então um elemento de perturbação na ordem do social, logo,  do mundo.

No Brasil do século XIX uma mulher com aparência e vestimentas masculinas podia ser condenada ao hospício, como relata M.Clementina P.Cunha, pois “p…] há pouca hesitação para a internação de mulheres, decidida por seus maridos, pais, irmãos à menor “suspeita”ou desconforto causado por seu comportamento.”[13] Crime ou loucura, a recusa das mulheres de assumir seu papel “natural”  de mães e esposas leva-as à morte, à prisão, ao internamento, à exclusão , caso sua atitude ameace o institucional e o normativo . O celibato é da mesma forma um sintoma da desordem e sua punição pode ser a marginalização, além do ridículo e da derrisão.

Para Adrienne Rich a existência do lesbianismo é, ao mesmo tempo “[…] a transgressão de um tabu e a rejeição de uma forma de vida obrigatória.” [14]  E acrescenta

“ A destruição dos traços, das memórias, das cartas atestando as realidades do lesbianismo deve ser tomada muito a sério como um meio de preservar a heterossexualidade compulsória […]” [15]

De fato, perde-se o registro, apaga-se da memória o que vem deslocar, perturbar a ordem do discurso, a ordem do Pai.

A existência das Amazonas, tantas vezes comentada pelos Antigos, é sistematicamente condenada ao mito, ao domínio das impossibilidades, pois, como sublinha Geneviève Pastre

“[…] houve uma redução do campo não somente do possível mas também do vivido e uma espécie de afunilamento na direção de uma só passagem[…]  en vez de ser estocada, a informação deixou de estar disponível, foi eliminada e passou-se a considerar como produto da imaginação  […] o que havia sem dúvida existido[…] espelho de realidades ricas e complexas.”[16]

E o que a história não diz…. Nunca existiu!  A regra  geral é o silêncio: silenciar para melhor apagar , para melhor esquecer, para conjurar o perigo daquelas que escapam à norma de uma heterossexualidade tão “natural” e evidente que mesmo entre as feministas demorou muito a ser questionada. Entretanto, como uma das pioneiras, há cerca de 20 anos Adrienne Rich apontava para a disciplinarização sexual, denunciando a “obrigatoriedade do heterossexualismo”, suprema divisão binária do mundo.[17] Além disso, denunciava a desvalorização do que caracterizava como um “continuum lésbico”, as relações mais diversas e profundas entre as mulheres durante toda a vida:  amizade, maternidade, parentesco, etc.

Ti Grace Atkinson, por sua vez, defendia o “lesbianismo político”, aquele que uniria as mulheres na recusa do patriarcado e da dominação masculina, mesmo que isso não implicasse em um relacionamento sexual. Para esta autora, este tipo de lesbianismo seria essencial para a edificação de uma sociedade onde o sexo não seria mais o eixo da vida,  no plano individual ou político. [18]

O lesbianismo contemporâneo, adotado como postura política  em oposição à dominação masculina , encontra-se atualmente no domínio da memória, da história do início do feminismo. Entretanto, atualmente, téoricas da importância de Judith Butler , de Christine Delphy,  Teresa de Lauretis, não hesitam a sacudir as evidências da heterossexualidade.

 O sexo biológico, natural? Esta questão torna-se central hoje nos estudos de gênero , ou melhor, feministas[19] e diante de sua crescente desconstrução, como reivindicar uma identidade em torno de uma categoria mal delimitada?

 O que hoje é ser lésbica? Esta é a questão que aqui nos interessa.   

 De uma forma  muito geral e com a pertinência que podem conter as generalizações, o lesbianismo aparece no movimento feminista como a radicalização extrema  na recusa  de um mundo patriarcal , propondo o separatismo na vida social,  a criação de espaços de onde os valores masculinos seriam extirpados , uma utopia moderna  onde a violência e o poder não teriam lugar  de existência ou expansão.

Na recusa do domínio masculino e da submissão feminina ligados às imposições de gênero , as comunidades lésbicas canadenses e americans, por exemplo,  excluíram os homens de seu cotidiano. Neste sentido o questionamento  da heterosexualidade aparece como uma prática antes mesmo de retornar em força, na descontrução das identidades.

À afirmação da categoria “mulher” enquanto sujeito seguiu-se, nas teorizações feministas, sua disseminação: “mulheres” no plural, levando-se em conta não apenas as diferenças intergênero ( feminino/ masculino)  mas igualmente intragênero.( dentre as mulheres: etnia, classe, idade, aparência, preferência sexual) .

 Igualdade, diferença,  gênero ,  categorias problematizantes que compõem e atravessam as diferentes teorias feministas deste século em torno do  que finalemente é este “ser mulher “, ou “mulheres”, o que é o feminino, o sexo feminino? O lesbianismo reaparece nos anos 80 como parte da reflexão que interroga a categoria “gênero” em seu fundamento maior: a divisão binária e “natural” da sociedade em dois sexos, pressupondo assim a heterosexualidade.    O que se problematiza é a desnaturalização do próprio sexo biológico como marco definidor das relações sociais e sexuais.

 Meu argumento é que nem o sexo biológico nem o gênero nem as práticas sexuais podem dar uma defnição do ser humano, atestando uma essência qualquer ou uma substância estável de homogeneidade individual. Como sublinha Nicole Claude Mathieu, a ênfase desliza da diferença entre os sexos para o processo de diferenciação social dos sexos e da criação de corpos sexuados.[20] E assim acrescenta, “[…] é a idéia da heterogeneidade entre sexo e gênero que leva a pensar não que a diferença de sexos é ‘traduzida’pelo gênero, mas que o gênero constrói o sexo.[…] entre sexo e gênero se estabelece uma correspondência socio-lógica e política.”  Para Haraway,[21] os corpos são  nós geradores materiais e semióticos cujas fronteiras se definem na interação social. Mas como objeto de saber, não existem enquanto tal antes de sua criação, são “projetos de fronteira” que se materializam de acordo com as práticas normativas e dão origem aos corpos sexuados, à instalação de diferenças na construção do binômio natureza/ cultura. A heterossexualidade é assim posta em questão.

 Afinal, a ênfase dada à diferença física é relativa às matrizes de sentido que presidem  a construção cultural dos gêneros, como por exemplo, a reprodução enquanto critério máximo de “naturalização” do binômio sexo/gênero. Se por um lado, a contestação da heterosexualidade contribui para um aprofundamento do debate na modificação das estruturas mentais e representacionais, o próprio lesbianismo é uma questão enquanto categoria, pois na dissolução das identidades em frações infinitesimais , o que significa ser lésbica?

 De fato, se a prática ou a preferência sexual constrói um ser social - a lésbica - a prática heterossexual constrói a fêmea , igualmente um ser social cujo  naturalização torna inquestionável o biológico . Mas o leque de práticas que compõem esta categoria - a sexualidade-  tem suas polaridades enfatizadas segundo a importância que recebem da rede de sentidos na qual estão inseridas, o que Butler chama de “matrizes de inteligibilidade”. [22]

  A apreensão do mundo e dos seres se faz assim num quadro de pensamento ordenado por certas categorias, por imagens e representações sociais que designam os lugares e os papéis em sua atividade incessante de constituição e criação do real. O imaginário instituinte, tão bem descrito por Castoriadis [23] se inscreve deste modo em um tempo e um espaço determinados e torna as categorias instituídas evidentes, indiscutíveis.

Este é o caso do sexo e da sexualidade, tantas vezes confundidos e imbricados cujo pregnância sobre o social repousa somente na importância que lhes damos. Entretanto, as matrizes de sentido que balizam nossa interpretação do mundo impedem-nos de perceber a construção social e linguística do que consideramos inevitável, natural e biológico.

Assim, em várias autoras feministas como Haraway, Butler, de Lauretis, Baidrotti, entre outras, a crítica do sexo biológico enquanto dado natural e do gênero como categoria fundamental  de análise social ganham importância e penetram o debate geral do feminismo traduzindo a inquietação “pós-moderna” de identidades múltiplas e disseminadas.

 Isto significa que, na economia do desejo, a homologia entre o sexe e o gênero tende a se desfazer e isto não apenas nos quadros exóticos dos estudos antropológicos; esta quebra se faz também sob nossos olhos na expansão de sexualidades múltiplas.

Nesta ótica, assim como os estudos feministas se debruçavam sobre “o que é uma mulher? podemos repetir nossa indagação primeira : o que é uma lésbica?” E as questões continuam a  se desdobrar: Mulheres que amam mulheres? Que fazem sexo com outras mulheres? Que se sentem atraídas mas não ousam o  sexo? Que amam outras mulheres e fazem sexo com homens?  A própria bisexualidade que hoje se desvela torna irrelevante as defnições em torno de práticas.[24]

O lesbianismo não pode ser um definidor de identidade já que não pode nem ao menos ser definido enquanto categoria. Tema espinhoso e quase sempre ausente  nas teorias feminstas que nos precedem, ocupadas com os problemas derivados da divisão binário do social aparece entretanto , em um capítulo especial da obra máxima de referência do feminismo contemporâneo: o Segundo Sexo de Simone de Beauvoir.[25] Neste ano do Cinquantenário de sua publicação é interessante observar suas reflexões sobre o lesbianismo que de Beauvoir desenvolve.

 Neste livro pioneiro, De Beauvoir perfura o horizonte epistemológico de sua época demonstando a construção social das categorias mulher/homem; porta-voz autorizado de sua época, o peso de sua legitimidade intelectual atravessou os estudos feminstas e marcou , de alguma forma, a circularidade que liga as teorias e as práticas. Entretanto, enreda-se nos sentidos que esclarecem e ao mesmo tempo escondem a seus olhos as ambiguidades das representações sociais, onde a  lógica do desejo masculino é que define o lesbianismo, em um mundo marcado pelo binário heterossexual da norma disciplinar.

O texto de De Beauvoir sobre o lesbianismo insere-se em um sociograma dado,

“este conjunto informe, instável” que representa uma “atualização do imaginário social em sua própria indecidabilidade.”[26]

Com efeito, a indecisão argumentativa vinca este discurso que navega nas águas do senso comum, da “autoridade” dos testemunhos  mas apresenta em certos momentos  uma análise aguda das imagens construídas sobre preconceitos.

A frase-choque do capítulo sobre o lesbianismo e que acompanha a desnaturalização do social seria esta: “Na verdade, nenhum fator é jamais determinante; trata-se sempre de uma escolha efetuada no coração de um conjunto complexo e repousando sobre uma livre decisão; nenhum destino sexual governa a vida do indivíduo; seu erotismo traduz ao contrário sua atitude global quanto à existência.”[27]Muito atual esta afirmação que separa o erotismo ( aqui entendido como sexualidade) e o sexo biológico num quadro de apreensão do mundo; afirmação da liberdade e da escolha  na coerência da pessoa, do indivíduo face ao social. O lesbianismo seria assim uma escolha pessoal , “existencial”.

Por outro lado, suas considerações sobre o amor entre as mulheres, que aqui se confunde com a sexualidade, criam um universo erótico onde o binário desaparece em todos seus aspectos de oposição para ressaltar a interação entre dois seres:

“[…] as carícias destinam-se menos a apropriar-se da outra do que recriar-se lentamente através dela; a separação é abolida, não há luta, nem vitória, nem derrota; em uma mesma e exata reciprocidade cada uma é ao mesmo tempo o sujeito e o objeto, a soberana e a escrava, a dualidade e a cumplicidade.”[28]

Neste idílico universo, suas considerações tem o mérito de contemplar a quebra da representação social de um mundo divido em dois, de hierarquia e assimetria que estão ligadas à heterossexualidade obrigatória. Num sopro utópico vemos assim se desenhar o lesbianismo como um locus de não violência e de harmonia. Adrienne Rich contradiz  esta perspectiva e suas reflexões sobre o lesbianismo trazem o gosto amargo de um imaginário social que impregna todas os relacionamentos com seus esquemas de luta e de dominação: “ Isto inclui também a reprodução dos papéis, o ódio de si mesmo, a depressão, o alcoolismo, o suicídio e a violência entre mulheres.”[29]

O lesbianismo aparece também como o fracasso de uma sexualidade “normal”, último refúgio das mulheres cujo físico ingrato não atrai os homens. “Desgraciosa, mal formada, uma mulher pode tentar compensar sua inferioridade adquirindo  qualidades  viris.”, dirá de Beauvoir.[30] E acrescenta: “O desdém masculino confirma a feia no sentimento de sua falta de beleza ; a arrogância de um amante ferirá a orgulhosa. Todos os motivos de frigidez nos quais pensamos: rancor, inveja, medo da gravidez, traumatismo provocado por um aborto, etc, encontram-se aqui.”[31]Tornar-se lésbica é portanto uma saída para a inveja, a feiura, as famosas “mal amadas”que se voltam para o mesmo sexo pela impossibilidade de ter relações ‘normais” ou por frigidez pura e simples. “ Nada  dá uma impressão maior de estreiteza de espírito e de mutilação que estes clans de mulheres liberadas” diz de  Beauvoir.[32]

Se em seu discurso encontramos a escolha do lesbianismo atribuída a este tipo de fatores , estes mesmos epítetos vão povoar as considerações sobre as feministas durante décadas, estas “viragos”que não podem senão detestar os homens.  No afã de explicar porque uma mulher se torna lésbica, de Beauvoir  mergulha na norma da heterossexualidade. Desta forma acrescenta: “ Da mesma forma que a mulher frígida deseja o prazer  ao mesmo tempo que o refusa, a lésbica gostaria muitas vezes de ser uma mulher nornal e completa, mesmo não o querendo”.[33]

 O peso deste senso comum em de Beauvoir parece espantoso, mais isto apenas demonstra o poder das representações no discurso social, no imaginário que habita tudo o que é dito, escrito, publicado, discutido, enunciado em um estado de sociedade específico. O traço mais marcante deste texto p oderia ser a referencia maior e constante ao homem, às relações heterossexuais e sua ‘normalidade”em suas reflexões sobre os lesbianismo. “[…] muitas vêzes é a natureza das experiencias heterossexuais que decidirá a mulher “viril” a assumir ou repudiar seu sexo.” E igualmente: “[…] existe entre elas, como na mulher frígida a repulsa, o rancor, a timidez, o orgulho […] ; ao seu rancor feminino acrescenta-se um complexo de inferioridade viril […]” .

Para delimitar a imagem da lésbica, parece necessário ancorar uma certa representação DA mulher: assim se ela denuncia a construção da imagem da “verdadeira mulher” ”[…] produto artificial que a civilização fabrica Com efeito, o enunciado que foi e será ainda repetido dezenas de vezes “não se nasce mulher, torna-se”, é negado por este gênero de argumentação na medida em que se desenha nitidamente uma “natureza”feminina, uma feminitude que se afirma não somente em relação a masculino, mas também em oposição äs “atitudes viris” das lésbicas. A inversão, palavra empregada muitas vezes por de Beauvoir sublinha a noção de uma ordem transtornada.

Esta rápida análise do capítulo sobre o lesbianismo no Segundo Sexo , obra básica na fundamentação do feminismo a partir da segunda metade deste século, ilustra as dificuldades do trabalho crítico no mundo de representações sociais que compõem a normatividade, os valores e as hierarquias a eles assimiladas. Desmascarando a construção social dos papéis sexuados , de Beauvoir  não hesita em falar da “verdadeira mulher”  face à qual se encontram as lésbicas, cuja sexualidade seria infantil, incompleta,

“[…] se sua sensibilidade erógena não é desenvolvida, ela não deseja as carícias masculinas”.[34] “ […] inacabada enquanto mulher, impotente enquanto homem seu malestar se traduz às vezes através de psicoses.” [35]

De seu lugar de fala privilegiado, de Beauvoir interina as representações e os preconceitos sobre o lesbianismo e reforça o biológico enquanto “natureza’  em oposição à construção dos papéis sociais.

A crítica feminista atual se debruça sobre os quadros de pensamento que ordenam as categorias sexo/ gênero na produção do saber e os efeitos de poder que assim são engendrados. Isto significa que a pesquisa teórica se volta para a genealogia do quadro binário e sua pregnância sobre o imaginário social e suas representações.

Neste sentido, o sexo biológico é posto em questão enquanto elemento pré-discursivo, natural, pois o lugar que lhe é dado faz parte de um sistema de sentido dado. Assim, perde sua evidência enquanto significante geral das relações sociais, solo da divisão binária da sociedade.

A prática héterosessexual que Tereza de Lauretis nomeia “Sex Gender System”, seria “[…] um construto socio-cultural, un aparelho semiótico e um sistema de representações” [36] que confere uma significação à sexualidade em uma rede de valores: sobre o binário “natural”do sexo biológico eleva-se um edifício de hierarquias e assimetrias,[37], um sistema simbólico fundado sobre sua representação que adquire a evidência da enunciação repetida, da tradição cultivada, de uma memória cuidadosamente elaborada em história.

 Para de Lauretis[38] a instituição da heterossexualidade obrigatória chama-se heterosexismo, categoria que fundamentaria o binário universal como base de elaboração do gênero. Para esta autora, o heterosexismo “recupera o potencial epistemológico radical do pensamento feminista no interior da casa do senhor.” [39]Quebrar o binário seria assim abrir as portas de um sistema de significações que obscurecem o múltiplo em uma coesão identitária em torno do sexo biológico. E isso nos leva à questão da identidade, questão que anima o debate atual.

 Se deixamos de lado as “evidências”naturais que encontrarm seu sentido no cultural, se nos desembaraçamos da essência do ser, da ilusão du sujeito fundador de seus discursos e de suas práticas, encontramo-nos diante do múltiplo cuja identidade delimita-se apenas pelas imposições do social. De fato, o que é o feminino, o que é o masculino quando a categoria do gênero se insere igualmente no processo de produção do corpo, um apparatus construído pelo imaginário heterosexual, binário? [40]   Com efeito, Butler considera que não existe identidade de gênero atràs da expressão do gênero; esta identidade em seu entender, seria constituída pela expressão da qual ela deveria ser o resultado. Assim, para Butler, a continuidade identitária

“[…] não é feita de características lógicas ou analíticas da personalidade mas socialmente instituída e mantida nas normas de inteligibilidade”.[41]

Nesta ótica, os mecanismos de construção de uma identidade generizada, estabelecida em bases relacionais de sexo, gênero, prática sexual e desejo, derivam de normas reguladoras da heterossexualidade obrigatória. A “verdade do sexo”em suma. O que acontece com as práticas que fogem à esta verdade, que opõem o múltiplo à unidade, a dispersão à coerência do eu dotado de gênero?

 O que é afinal o lesbianismo em uma rede de sentidos dominada pela heterossexualidade , tal como se apresenta em grande parte das teorias feministas? Práticas desviantes, ligadas à sexualidade? Sentimentos que se dirigem às pessoas do mesmo sexo? Uma erótica particular? Uma escolha política, como nos primeiros tempos do feminismo, as heterodykes? Ou práticas de recuo e de frustação diante dos homens como aparece em de Beauvoir?

 Não é possível esquecer a frase de Wittig : “uma lésbica não é uma mulher”,[42] definição em negativo, locus maior de resistência ao patriarcado. Mas esta própria designação  supõe um quadro de epistemológico que coloca o lesbianismo num conjunto de práticas cuja referência axial é a sexualidade e o sexo. A visibilidade lésbica, as maneiras de se vestir , de ser diferente, de sublinhar uma singularidade não fazem senão interinar a ordem binária na medida que expõe uma diferença e a diferença supõe um modelo.

 Assim, a questão espinhosa de “sair do armário”, de “ser ou não ser”não se coloca que se a heterossexualidade é obrigatória e que a homoliga sexo/gênero, sexualidade/ desejo define a normalidade em sua exata correspondência.e de espaços de exclusão afirmam uma normalidade que apaga o múltiplo e naturaliza o binário. O “apparatus”de construção do corpo enquanto significante geral do ser define as fronteiras do sexo biológico do qual não nos desfazemos sem ameaçar a ordem instituída.

É assim que o gênero estabelecido socialmente na heterossexualidade constrói o sexo biológico: não em sua materialidade, mas em sua apreensão mediatizada pelas constelações de sentido, pelas  redes de representações sociais que o definem enquanto diferença incontornável et que se apoiam sobre

“[…] sistemas de pensamento mais amplos, ideológicos ou culturais, sobre um certo estado do conhecimento científico, assim como sobre a condição social e a esfera da experiência privada e afetiva dos indivíduos.”[43]

Os discursos médicos, jurídicos, religiosos, educacionais bem como o senso comum são unânimes na afirmação do sexo biológico como um dado incontestável da natureza. Mas como sublinha Foucault, a respeito do sexo

« […] deve-se falar como de algo que não devemos simplesmente condenar ou tolerar, mas sim gerir, inserir em sistemas de utilidade, regulamentar para o bem de todos[…] O sexo não se julga apenas, administra-se. Está no âmbito do poder público. » [44]

Assim, a  norma heterossexual , a disciplinarização da prática sexual dentro de padrões delimitados por valores morais historicamente datados além de tornar-se instituição normatizadora , adquire caráter de verdade, de sexo e sexualidade verdadeiros, nucleares, de expressão máxima do ser humana .

Neste sentido, desafiar os padrões , assumir a representação social da inversão e o nome dado às práticas ‘desviantes” legitima de certa maneira, a norma que determina as zonas de exclusão. Muitas vêzes, aliás, os casais de lésbicas reproduzem uma divisão generizada de papéis, num mimetismo cujo efeito de espelho é uma “mise en abîme” da assimetria e da hierarquia. A outra face da exposição aberta de uma identidade “invertida” é, como analisa Butler, seu aspecto performativo.

A performance, para esta autora, das “drag queens” ou “drag kings” desmascara os efeitos de homologia sexo/gênero, na medida em que demonstra claramente o artifício que representa a aparência do SER mulher ou homem, seu caráter construído socialmente e arbitráriamente.  De toda maneira, tentar traçar um perfil Da lésbica ou Das lésbicas é uma tarefa impossível pois não há substancia à qual se prender, não há um bloco homogêneo e monolítico de coerência, não existe experiência unívoca que possa tomar o lugar de um referencial estável. Além disso, a própria noção de casal não é evidente, quer seja heterossexual ou homossexual: é a sexualidade que o define? O sentimento? A coabitação? Laços institucionais? Nenhuma resposta positiva compreende em si a noção de casal e seu conjunto pode ser desdobrado em séries inumeráveis.

 É muito fácil cair no essencialismo quando se reivindica uma identidade, quando se liga o ser à uma prática, à uma atração, à um gosto, nem tão particular assim. Uma definição já é um cerceamento, é demarcar um domínio que logo dará origem à novas exclusões. A necessidade de se dizer, de se explicar, de se traduzir pela sexualidade faz parte de notre quadro de pensamento, da época pós-psicanalítca; de fato, a questão que se colocaria é: porque temos necessidade de uma identidade senão para responder às exigências de uma moldura binária de pensamento ?

Tomarei aqui no que diz respeito à identidade  lésbica as considerações que Braidotti tece sobre a identidade das mulheres em  geral: “[…] um conjunto de experiencias múltiplas, complexas, potencialmente contraditórias, atravessadas por variáveis como classe, idade, maneira de viver, preferências sexuais, etc.” .[45] Acrescentaria o espaço e tempo vividos, a linguagem e a língua e as constelações de sentido nas quais se constróem e se auto-representam os indivíduos. Uma identidade portanto em construção, móvel, fluida, nômade, transitória; uma identidade somente retrospectiva, que indica onde estivemos e não estamos mais, no que Braidotti chama a “cartografia nômade” do ser.[46] A identidade nômade é assim uma posição de sujeito ocupada em uma situação, em uma sociedade dada. E nesta ótica, eu não sou lésbica e vocês não são mulheres; de toda maneira não existe lésbica onde não existem mulheres. Não há cópias pois os modelos se esgotaram em sua busca de essência e de transcendência, em sua busca do ponto nodal e definitivo de significação, pois deus se suidiciou ao modelar o homem à sua imagem e semelhança.

Neste mundo instituído por representações, a identidade é uma ficção e a incerteza e o paradoxo  são as conquistas maiores de nosso tempo para desmascarar as verdades de todos os tempos. Faço minhas as palavras de Christine Delphy:

“[…] não se faz avançar o conhecimento sem, em um primeiro momento, aumentar o desconhecimento, alargar as zonas de sombra, de indeterminação; para avançar, é preciso antes de tudo renunciar a certas evidências […] que nos impedem de colocar questões , o que é senão a única, mas ao menos a mais segura maneira de chegar às respostas.” [47]

 Na disseminação da identidade, lesbianismo e feminismo não se encontram em polos opostos ou em termos de positivo/negativo, pois as posições de sujeito pontuais e locais serão palco de configurações identitárias na criação de estratégias de dissolução e resistência à violência da norma .

O que é finalmente ser lésbica?  É o exercício da sexualidade, finalmente, que torna uma relação especial entre todas? De toda forma, a prática sexual nunca terá o mesmo perfil para todas , nunca responderá às mesmas expectativas , com os mesmos  resultados. Quem sabe a emoção despertada possa ser um indício, emoção restrita ou plural, num outro caminho livre de definições.

Não existem respostas. Apenas um emaranhado de sentidos e representações que constituem o mundo: estratégia, opção, passagem, destino, recusa , cansaço , emoção. Cada qual seu desenho, sua fluidez. A volatização da essencia é a libertação da norma, da disciplina, da exclusão.


 

 [1] Michel Foucault (1971) L’ordre du discours, Gallimard, Paris, pg.53

[2]  ver em Ligia Belline (1987) A coisa obscura, , sodomia e inquisição no Brasil colonial,

 São Paulo, Ed. Brasiliense. .

[3]  Koogan Larousse (1979) direção de Antonio Houaiss, Ed. Larousse do Brasil, Rio de Janeiro, pg 507

[4] idem, ib. pg.443

[5]  Michel Foucault. (1988) A microfísica do poder, Graal, Rio de Janeiro, pg 244

[6]  Michel Foucault ( 1976) Histoire de la sexualité, la volonté de savoir, Gallimard, Paris, pg. 140/141

[7] , Marie-Jo Bonnet.( 1995) Les relations amoureuses entre les femmes, Paris, Ed.Odile Jacob,    pg. 33

.[8] Ovidio, Heroïdes, XV, Paris, Les Belles Lettres, 1965. Livro citado por Marie-Jo Bonnet, que faz algumas citações e mostra como o sucesso de suas numerosas traduções mostra que esta história, que serve de base biográfica para Sappho  e que apaga todas as especificidades sexuais da poeta ,cumpre nesta época uma outra função, a de desvalorizar a mulher letrada e através ela, as Précieuses. (Bonnet :75

[9] Marie Jo Bonnet, op.cit. pg.77

[10] [10] Ovidio, Heroïdes, XV, Paris, Les Belles Lettres, 1965. Livro citado por Marie-Jo Bonnet, que faz algumas citações e mostra como o sucesso de suas numerosas traduções mostra que esta história, que serve de base biográfica para Sappho  e que apaga todas as especificidades sexuais da poeta ,cumpre nesta época uma outra função, a de desvalorizar a mulher letrada e através ela, as Précieuses. (Bonnet :75)

[11] Marie Jo Bonnet, op.cit. pg.35

[12]  idem, ibid. pg.35/36

[13] Maria Clementina Pereira. Cunha “Loucura, gênero feminino: as mulhres do Juquery na São    Paulo do início do século XX, p. 121 a 144 In Revista Brasileira de História, A mulher no     espaço  público, SP, vol 9 n018 , 1989, pg.129

[14] Adrienne Rich (1981) La contrainte à l'hétérosexualité et l'existence lesbienne, Nouvelles     Questions Féministes, Ed. Tierce, mars , n01, p.15-43, pg.32

[15] Idem, ibid.

   [16]  Geneviève Pastre. (1987) Athena ou le péril saphique.  Octaviennes, Paris, pg.44

[17] Adrienne Rich, op.cit.

[18]Ti Grace Atkinson. ( 1975) Odyssée d’une amazone, Paris, Des Femmes, pg. 155

[19] A crítica aos estudos de gênero refere-se ao caráter relacional de construção social do feminino e do masculino , obscurecendo ou deixando completamente de lado a hierarquização e a assimetria desta configuração.

[20] Nicole Claude Mathieu, op. cit.pg 256

[21] Donna J. Haraway, (1991). Ciencia, Cyborgs Y Mujeres. La reinvención de la naturaleza,  Valencia : Ediciones Catedra., pg.345

[22] Judith Butler, op.cit.pg.17

 [23]  Cornelius. Castoriadis (1995). A Instituição Imaginária Da Sociedade, Rio de Janeiro,  Editora Paz e Terra.

[24]  ver em Tania Navarro Swain, Au déla du binaire : les queers et l’éclatement du genre, in Lamoureux,Diane (org) Les limites de l’identité sexuelle, Montréal, Ed. Remue Ménage, 1998, 195 p. pgs135 a 150

[25] Simone De Beauvoir,. (1966). Le Deuxième Siècle. L’expérience vécue, Paris : Gallimard, pgs. 170/194

[26], Régine Robin( 1979)  Le cheval blanc de Lénine : ou l'histoire autre, Bruxelles,

Complexe, pg.58.

[27] Simone de Beauvoir,op.cit.pg.185

[28] idem,ib.pg.184

[29] Adrienne Rich. Op.cit. pg32

[30] idem,ib. pg 171

[31] idem,ib. pg 178

[32] idem, ib. pg.192

[33] idem,ib. pg. 179

[34] idem,ib. pg.171

[35] idem, ib.

[36], Teresa De Lauretis (1987). Technologies of gender, essays on theory, film and fiction     Bloomington, Indiana, Univ. Press, pg.3.  

 [37],Christine Delphy 1991). «  Penser le genre, quels problèmes ? » , in  Hurtig, Maire Claude et     alli. Sexe Et Genre. De la hiérarchie des sexes. Paris : Ed. du CNRS, pg.91

[38] Teresa de Lauretis, op.cit. pg.5

[39] idem,ib. pg.2

[40] Donna Haraway, op.cit. pg. 357

[41] Judith Butler, op.cit. pg.25

[42] Monique Wittig  (1980) La pensée straight. Questions Féministes, Paris, Ed. Tierce, février,                                      n.7., pg.53

[43],Denise Jodelet (1989). Les representations sociales, un domaine en expansion, dans Denise

                                   Jodelet (dir) Représentations sociales, Paris, PUF pg.35.

[44] Michel Foucault, Histoire de la sexualité, opc.cit. pg34/35

[45] Rosi. Braidotti (1994).  Nomadic Subjects.Embodimentand sexual difference in contemporray feminist theory, New York : Columbia University Press,pg.4

[46] idem,ibid. pg,35

  [47]Christine Delphy.(1991).op.cit., pg 96