História feministas, história do possível Mesa redonda, Colóquio Feminista 2014 , UnB tania navarro swain Sou uma historiadora feminista, logo, iconoclasta. Gosto dos desafios, das descobertas, do novo que aparece sob a poeira deixada pelo tempo. Meu trabalho é problematizar o passado, é desfazer as narrativas mestras que ignoram aquilo que não interessa aos poderes e aos regimes de verdade do presente. O que proponho é a história do possível, daquilo que ficou oculto pela ideologia patriarcal que nos faz crer em uma diferença sexual hierárquica existente desde o princípio dos tempos. A história do possível é aquela do que aconteceu, deixou vestígios materiais e simbólicos, no entanto foi ignorada, foi considerada impossível. Os historiadores, enclausurados em um imaginário androcêntrico, não conseguem pensar e nem ver aquilo que se abre à pesquisa, um mundo onde o feminino atuava como sujeito político e de ação. Esta representação é muito assustadora para o sistema patriarcal, pois quebra a naturalização das relações de força e dominação estabelecida pelo masculino. Veja-se o caso das amazonas. Se no século XVI e XVII eram seres plausíveis, logo porém, foram relegadas ao mito, pois é impossível existirem mulheres guerreiras!! [1] A história do possível é aquela que busca o desconhecido: nos milênios de existência humana, e a multiplicidade é premissa básica. O tempo é a matéria da história e sua característica principal é o dinamismo. As questões de Foucault aqui tem toda sua pertinência: do que estou falando, para quem, de que lugar. Ou seja, a pesquisa histórica está viciada desde seus pressupostos, pois deixa de lado a metade da humanidade e fala dos homens, para os homens, sobre os homens. As narrativas históricas tradicionais não me convencem nem me instigam. São eternas repetições do Mesmo: contam intrigas, lutas pelo poder, guerras, sempre conjugadas no masculino.Mesmo quando adentramos as mentalidades, é a história do viril que se perfila. É “o homem” que pensa, que cria, que inventa, que descobre. Nenhum espaço é dado às mulheres, metade da humanidade enterrada nas lacunas e dobras do discurso histórico. A própria divisão temporal de períodos arbitrários já deveria ter sido abolida há muito tempo das escolas e da academia, pois demonstra apenas o etnocentrismo e o sexismo / racismo contidos nestas narrativa. Antes dos gregos, nada. Mil anos de Idade Média como se fossem dez, sem levar em conta as particularidades temporais e espaciais. E assim por diante... A história androcêntrica é uma história do baixo ventre: tudo se passa em torno do sexo, sexualidade e do poder que lhes dá a importância conferida ao masculino: dominação, submissão, força, conquista, assujeitamento de outrem, principalmente das mulheres e são nesta perspectiva, direitos imprescritíveis. De fato, para contarem sua história, os homens precisaram reduzir as mulheres, oposto sem o qual não existiriam enquanto tal, a duas funções: a maternidade e a disponibilidade de seus corpos em toda ocasião. E assim conseguiram apaga-las da cena política e da memória social. Este tipo de história é anacrônico, pois desde suas pretensões de ciência, instalando-se como disciplina acadêmica no século XIX, até os dias de hoje, só vemos desfilar nas narrativas os atos e feitos dos homens, como os únicos construtores do social. Mesmo com a interferência da história das mulheres, o que se tem mais feito é a introdução do feminino nos eventos e situações já descritas; a aparição da categoria gênero não inovou neste sentido, pois mantém inquestionável, ao longo de milênios, uma divisão do humano baseada na genitália. Ou seja, o sexo permaneceu o eixo primário da percepção e da elaboração do tecido histórico. A percepção de Judith Butler para quem o gênero construía o sexo, em sua valoração e práticas, parece não ter vingado em história.[2] Ora, a história, assim como todas as ciências, é elaborada a partir de suas condições de produção, ou seja, condições de possibilidade e de imaginação para a investigação. Toda narrativa histórica compreende os valores e significações de quem a está elaborando. Que perguntas fazer? Que temas abordar? Que sujeitos escolher, que problematizações levantar? O importante hoje é que haja a explicitação da escolha e da metodologia na análise dos vestígios, abandonando todos os preconceitos, como por exemplo, a divisão binária da sociedade “desde o início dos tempos”. O que se tem visto, porém, é uma universalização das relações do presente ou de um passado recente em relação à toda a humanidade, não só no tempo, como no espaço. Ou seja, uma eterna repetição da superioridade masculina em todos os domínios e da expulsão das mulheres da história e da memória social. Tudo se passa como se antes da Grécia de Péricles nada houvesse acontecido. Mesmo quando se trata da Grécia, quem fala das Tesmoforias, (festival das Tesmoforias, uma celebração anual dedicada a fertilidade e a Deméter) dos Grandes Mistérios de Eleusis, celebrados pelas mulheres, ou Haloa, festa feminina também em honra de Demeter, celebrada unicamente por mulheres? [3] Quem ousa falar das amazonas na Trácia e na Lídia, de Artemísia, rainha das amazonas, que combateu os gregos ao lado de Dario? Dario é personagem histórico, Artemísia é mito. A história esconde assim, em suas narrativas aquilo que poderia perturbar a ordem patriarcal, ou seja, a dominação das mulheres pelo conjunto dos homens, por “natureza”. Na organização intrincada de fatos que compõem as narrativas históricas, podemos encontrar quatro momentos: a- o acontecimental, aleatório, que deixa porém,vestígios esparsos ; b- o de elaboração discursiva sob formas diversas ( imagens, documentos, relatórios, etc.) ; c- o da leitura e seleção destes últimos para dar corpo à sua narração interpretativa, dita “histórica” ; d- o de uma história cujo lócus de enunciação se expõe, assim como suas condições de produção e de imaginação, isto é, uma história que não busca a verdade, mas tenta decodificar em sua análise, o regime de verdade em que se inserem os enunciados, com seus valores, normas e significados. O primeiro momento concerne à explosão dos eventos, o fortuito onde se produzem os fatos humanos: uma infinita diversidade, fragmentos impossíveis a apreender em sua pluralidade social e suas maleáveis significações temporais. É onde os seres humanos adquirem suas faces e contornos, habitados por sentidos e valores cuja marca é a historicidade. Assim, nada pode justificar o universal de relações binárias e hierárquicas em toda parte e desde sempre; não há nenhuma razão plausível para que os papéis sociais sejam sempre idênticos, de maneira a- temporal. Sobretudo para a narrativa histórica, cujo fundamento é a temporalidade e a dinâmica do social. É neste nível que se pode encontrar os vestígios e o sabor do novo, distante da monótona narrativa do Mesmo, da divisão binária, da diferença, da reprodução como vórtice das relações humanas. O gosto da história do possível, da descoberta. Mas a comunidade discursiva, o “ nós” patriarcal comanda e enclausura em uma visão única os incontáveis arranjos sociais a partir da dominância representacional do sexo e da heterossexualidade reprodutiva. Assim, deste nível primário do acontecimental, no domínio da educação e da divulgação, surge apenas “o homem” como sinônimo de humano e sujeito de ação. Toda significação é, portanto criada em função do masculino e para a memória social as mulheres não teriam participado dos acontecimentos humanos senão como espectadoras ou moeda de troca. É deste modo que a ação político-social das mulheres é obscurecida pelo etnofalocentrismo da narrativa histórica que se ocupa apenas dos fatos e gestos masculinos. Entretanto, os intrincados acontecimentos sociais, ilimitados e infinitamente complexos deixaram uma profusão de pistas, traços, monumentos, pinturas, grafismos que exprimem os mistérios de mundos inesperados. É a partir destes que se encontra o segundo momento da história, o da seleção dos vestígios, das obras e dos registros, que expõem um possível inventário contingente dos acontecimentos. Assim se em uma dada época, os fatos são consignados sob formas diversas, os registros serão escolhidos para compor um corpus discursivo que, no terceiro momento, abre espaço para a interpretação, segundo as condições de possibilidade da época em que é elaborada. É este último que forma a narrativa histórica cuja principal característica é a parcialidade e a exclusão, apesar da alegação de veracidade com a qual se reveste. Com efeito, são as representações sociais e os valores do narrador que ordenam este discurso com foros de verdade. São estas narrativas sobre o humano, chamadas “história” e todos seus derivados, como a história da arte, da literatura, da linguagem, da política que compõem a memória social e as representações “verdadeiras” das relações sociais. Os sentidos e verdades que circulam no presente são derramados sobre um passado obscuro do qual quase nada sabemos. As mulheres aparecem na história como figurantes de segunda classe, passivas, inativas, ocupadas com suas rendas e sua esfera de domesticidade. Assim, sob o domínio do patriarcado, quando se proclama « o homem descobriu, o homem criou » não está se falando do humano, mas sim dos seres conjugados no masculino. É uma premissa que paira no ar e investe o imaginário social : por exemplo,a instituição que se ocupa de preservar as pinturas parietais da Serra da Capivara, Piauí, se chama “Fundação do Homem Americano”[4] o que sustenta o pressuposto do masculino universal. Mas as imagens que lá se encontram são vestígios brutos da história do Brasil. Quem pode assegurar que estes magníficos desenhos datados de milhares de anos é obra masculina? De que realidade falamos, que relações emergem destas imagens? Na Serra da Capivara, a imensa maioria das pinturas não apresenta marcas sexuais: o sexo aí não teria a mesma importância que no presente? Na narrativa interpretativa sobre estas imagens, Anne Marie de Pessis, que trabalhou nas escavações estima que: « Considerando a natureza das atividades representadas pelas figuras sem diferenciador sexual, pode-se pensar que se trata de uma sociedade em que a divisão sexual do trabalho inexiste e, portanto, em que a mulher participaria de todas as atividades que em outras sociedades são reservadas aos homens.”[5] Entretanto, “as sociedades primitivas”, igualitárias, que se oporiam ao patriarcal “civilizado” e hierárquico são remetidas à sua condição inferior. É assim que a igualdade naufraga face à diferença. O que diz a história a respeito das milhares de figurações femininas que aparecem na Europa, Ásia, África e dos povos que durante milênios reverenciavam o feminino? Nada. Ou apenas falam de um “matriarcado”, lócus de desordem e de caos. Os colonizadores portugueses, em sua época (século XVI) afirmavam, em seus relatos, o espanto diante da liberdade e da atividade feminina em todos os setores das sociedades indígenas encontradas no Brasil, que escapam das dobras discursivas dos pressupostos androcêntricos. A sexualidade era livre, as mulheres escolhiam seus parceiros e deles se separavam segundo sua própria vontade. A história do Brasil ensinada e repetida nas escolas leva em conta estes testemunhos? Os vestígios deixados pelas atividades humanas revelam a pluralidade das formações sociais e suas divisões de trabalho e funções. Como eram as relações sociais nestas épocas? É evidente que as significações sociais das denominações “mulheres” e “homens” eram outras, bem diversas do sentido hierárquico que se lhes atribui o sistema patriarcal. Como Rosi Braidotti, poderíamos talvez chamá-las de “figurações do humano”.[6] Enfim, quando passam a existir nas narrativas históricas, as mulheres são remetidas ao sexo, ao ventre, a uma especificidade “feminina” para melhor desacreditá-las em seu lugar de poder. Dentre os maoris, os iroqueses, os celtas, os germanos, os pictos, os “bárbaros”, as mulheres detinham um alto status social de sujeitos políticos: seria esta a razão para serem chamados de “bárbaros”? O silencio dos historiadores é sistemático quando as fontes se referem aos atos e realizações das mulheres. Entretanto, a presença destas tanto na cena artística quanto política aparece em inumeráveis vestígios discursivos e imagéticos quando não foram destruídos de propósito, como a obra poética de Safo, considerada em sua época uma das maravilhas do mundo, da qual nos restaram alguns versos truncados. É claro que o primeiro momento histórico, aquele dos acontecimentos está perdido para sempre em sua totalidade. Mas em seus vestígios podemos cartografar o humano sob aspectos que a história silenciou e ocultou à memória social. Tudo se passa como se o discurso interpretativo fosse o espelho dos fatos para a memória social, amputada de suas condições de produção e de sua historicidade. Em conseqüência, a história narrada no masculino aparece como a descrição “verdadeira” das relações societais nas quais as mulheres teriam contribuído apenas com o produto de seus ventres, relegadas a um sexo utilitário, a um “natural”, cuja construção se oculta. São as feministas que começaram a revelar a presença ativa das mulheres, sujeitos políticos em todas as épocas e a questionar a construção cultural dos papéis históricos femininos e masculinos.. As historiadoras feministas, assim, inauguram outro momento – o quarto- para a pesquisa e a escrita da história: a decodificação das possibilidades sociais submersas pelas três outras. É a ocasião da descoberta de uma humanidade que não teria sido regida pelos genitais, pela sexualidade, pelas formas do corpo, da cor da pele: é uma outra narrativa a partir de um olhar feminista sobre os documentos históricos e sua historiografia enviesada pelo sexo. É a descoberta de faces diversas, inusitadas, que povoaram o caminhar humano, ocultas à pesquisa pelos moldes interpretativos do patriarcado. Desta forma, a dissolução das narrativas históricas masculinas, universalistas e binárias, contribui para a construção de uma nova memória social, de um novo sujeito feminino, político, filosófico, artístico, que não é mais o “outro”, nem o “diferente”, mas que esboça no espaço exterior, um espaço de movimento e criatividade. De fato, para as feministas, o corpo das mulheres não é mais uma prisão identitária mas uma superfície de transformações do pensamento e da apreensão do mondo, fora do esquema binário sexuado. Quando se recusa a “natureza” dos seres se lhes confere uma plasticidade “ impossível” nas condições de imaginação patriarcais. Este quarto movimento é assim uma pesquisa sobre a diversidade das relações humanas que se desfaz dos estereótipos e das premissas androcêntricas e binárias. Desta maneira, pode-se pensar uma história que nos mostre as possibilidades de um mundo outro. As feministas são os arautos de uma nova memória social que abre às meninas o presente e lhes confere um passado, no qual podem encontrar modelos de ação. Desta maneira, uma história “fora” das perspectivas sexuadas mostra as possibilidades de um mundo outro. Somos, feministas, “forasteiras de dentro”, como quer Linda Hutcheon, aventureiras do novo.[7] A história mata simbolicamente as mulheres ao condena-las aos limites de um corpo reprodutor . A filosofia, por sua vez, transborda de ódio e de medo das mulheres, em seus rompantes misóginos que mal escondem o desejo de aniquilação de outrem para melhor reforçar o “nós” da classe dos homens. A história criou um imaginário social tão arraigado que temos ainda que argumentar, explicar, mostrar que a narrativa não corresponde aos fatos e que se mulheres e homens são figurações atuais do social, mas que podem ter sido totalmente outras, onde o sexo não é rei e onde o binário pode ter sido múltiplo. Uma história do possível. [2] Butler, Judith, Butler, Aigainst proper objects ; Feminism meets queer theory, Elisabeth Weed and Naomi Chaor, (ed)Indiana University Press, Indiana/Bloomigthon, 1997[3] Foucaurt, Paul. Les mystères d´Eleusis, Paris : Auguste Picar Editeur, 1914 [4] Para mais detalhes sobre as imagens da Serra da Capivara, ver tania navarro swain. Labrys, estudos feministas/ études féminises, n. 20/21 [5] Anne Marie de Pessis. Images de la pré-histoire, Fundham/Petrobrás, 2003. pg 236
[7] Hutcheon, Linda. Poética do pós modernismo, história, teoria,
ficção. Rio de Janeiro:Imago Ed. 1991.
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