Heterotopias: : cousas e lousas

 

Quando houver muita racionalização, loucure-se” web

« Este livro nasceu a partir de um texto de borges.[...] Este texto cita ‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde está escrito que ‘ os animais se dividem em: a) pertencendo ao Imperador. B) embalsamados,  c) domesticados, d) leitões, e)sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i)que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k0 desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) e etc., m) que veem quebrar o jarro, n) que de longe parecem moscas.” (Foucault, 1966:7)

 

O extraordinário e humorístico texto da enciclopédia chinesa remete-nos a um sentido fora de nosso quadro de inteligibilidade. Nele, a ausência de significação é em si uma significação.

O absurdo incomoda, pois se sabe que  lá existe  um território inexplorado.  A falta de sequencia, de trajetória, de ligação entre os objetos desconcerta, pois desestabiliza uma lógica limitada que exige para se explicitar, a  ordem contida nos moldes aceitos  da razão.

Mas o cérebro é lócus de desordem, pois a criação não vem senão da ebulição e do cruzamento de sinapses à um ritmo alucinante que pode dar lugar a inovações maiores. É às vezes esta mistura de dados, esta reversão de hierarquias, a eliminação das arcadas hieráticas do conhecido, ou a supressão  das linhas tortuosas das verdades que cria algo de mais dinâmico, de aleatório no espaço infinito do imaginário, transmutado em pensamento criativo.

A heterotopia aparece neste quadro atormentado de desordem. É uma noção fora das trilhas batidas do pensamento. Pode-se torce-la, dobrá-la, raspá-la, sacudi-la em todas as direções e ela permanece sempre insolente, irreverente.

Onde se encontra, desta forma, este lugar sem lugar, este  espaço que não se localiza em parte  nenhuma? Esta categoria se define por sua in-definição, pelo paradoxo que palpita  assim que se tenta classificar uma ideia ou um objeto, pois os limites, deste modo,  criados fazem da heterotopia um reflexo que se dissipa.

Um lugar sem lugar pode ser uma corrente, portanto a heterotopia poderia ser um fluxo que se transforma em matéria e volta a ser fluxo ( neste caso, estaria ela no domínio da física abstrata?) Seria a heterotopia matéria ou onda? O quark, matéria/ onda, seria por sua vez uma heterotopia? A mistura dos domínios de conhecimento, o cruzamento de ideias está no coração da heterotopia.

Mas volta a questão: o que é a heterotopia? Impossível de defini-la, pois uma definição estabeleceria as bordas impensáveis para um espaço  livre. Seria mesmo um espaço livre? Não, pois é um lugar fora do espaço. Então, a heterotopia  não é um lócus onde se encontra algo, pois sua existência não é senão conjectura. Seu espaço é portanto a invenção. Mas tem o sabor do paradoxo, o mistério do desconhecido, o aroma do outono.

A noção de espaço e de criatividade se encontra assim no centro da questão. Que diz Foucault a este respeito?

Segundo ele, a idade média criou o espaço de localização, da hierarquia dos lugares, de seu binarismo et das oposições. Mas já no século XVII, com Galileu, o espaço torna-se infinito e seu movimento contínuo. Diz ele:

“ [...] o lugar de uma coisa não era mais que um ponto em seu movimento, assim como o repouso de algo não era mais que seu movimento indefinidamente reduzido.” (web,1984)

Na atualidade, entretanto, a localização definiria o espaço sobre as relações de vizinhança, de intersecção de elementos que se pode descrever “[...] como séries, árvores,  armações” (idem)

A localização substitui então o infinito. Foucault estabelece a posição como um lugar, lugar de fala ancorada nas práticas discursivas definidas, como explicita na arqueologia do saber. Quem fala, de onde, para quem, sobre o que, é a formulação clássica na Ordem do Discurso.

Entretanto, para ele, a localização e seu binarismo  não foi ainda de- sacralizada, pois as oposições decidem a posição: o espaço público  e o espaço privado, o espaço de lazer e o do trabalho, o espaço da família e do social, etc. ((web,1984) Acrescento o espaço do feminino e do masculino, onde à oposição acrescenta-se a hierarquia.

Foucault cita Bachelard para indicar uma dimensão presente ao espírito: o espaço fluido e etéreo da ‘revêrie’, do sonho, das paixões, o espaço de cima, aquele dos cumes, o espaço da água viva, do movimento, ou o espaço de baixo, sombrio e rochoso, todos os espaços dotados de qualidades intrínsecas, entre os quais o espaço da percepção do mundo e de si mesmo.

Desta maneira, às condições de possibilidade  de uma prática discursiva dada –o aqui e o agora-  se mesclam as condições imaginárias do espaço das representações sociais.

Assim, a partir destas noções, a heterotopia é para Foucault um lugar sem lugar, mas não é um espaço irreal, pois pode talvez ser identificado em suas ramificações e suas interseções, em suas condições de produção e de possiblidade.

Aprecio esta noção de heterotopia, já que ela pode se aplicar a inúmeros domínios, objetos, circunstancias sem nada perder de sua paradoxal potencia. Como Foucault desenvolveu  pouco esta categoria, temos toda a latitude para elaborá-la, administrá-la, examiná-la, recriá-la. Mas a cada momento, ela escapa e deixa-nos mais uma vez insatisfeitas.

A metáfora do espelho, lembrada por Foucault é aquela que me agrada mais:

“ No espelho, vejo-me lá onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície, estou lá, lá onde não estou, uma espécie de sombra que  dá a mim mesmo minha própria visibilidade, que me permite me olhar lá onde estou ausente – uma utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho existe realmente, e onde há, no lugar que ocupo, uma espécie de efeito de retorno; é a partir do espelho que me descubro ausente do lugar onde estou, pois vejo-me alhures. (web)

A heterotopia dos corpos coloca-se aqui como uma refração da subjetividade, metáfora  para indicar uma  mudança de trajetória. Na heterotopia, não há caminhos  sem desvios ou fixação de destinos. De fato, o que importa é como me vejo e como percebo o meio em que me encontro? Minhas condições de produção seriam inteligíveis à minha percepção?

Escolhi Donna Haraway como interlocutora sobre esta questão. A visão não se subtrai às suas condições de produção e esta autora, sublinhando este sentido, indica que a inteligibilidade se faz a partir de um ponto de vista situado, que nos permite levantar a seguinte questão: como aprendi a me perceber?

Assim ela se exprime:

“ A visão é sempre uma questão de poder ver e talvez da violência implícita em nossas práticas visuais. Com que sangue  foram  moldados meus olhos?”(web, 1988)

Para esta autora feminista, não estamos presentes à nós mesmos de imediato. Existe todo um conjunto semiótico e tecnológico que liga a significação ao corpo. E neste sentido, a identidade de si é um “perverso sistema visual”.(web, 1988: 585)

Ela percebe as tecnologias como maneiras de viver e a ordem social como sendo práticas de visualizações, isto é, práticas discursivas que comandam a direção, a amplitude, a profundidade do olhar. Ou seja: como devo ver, de que lugar olho, o que devo olhar, com quem olho, quem tem mais de um ponto de vista, quem se torna cego, quem interpreta o campo visual? Quais são os outros poderes sensoriais que desejo desenvolver?

Para Harway estas questões mostram que a percepção é distorcida:

“ Os discursos moral e político seriam o paradigma para o discurso racional sobre o imagético e sobre as tecnologias da visão”.(web,1988:587)

Foucault considera que a heterotopia não tem lugar, mas que não é por isso menos real. Sua ancoragem material, em práticas discursivas precisas, dão-lhe forma e funcionamento. Para ele, a heterotopia abrigaria de certa forma “a diferença”, o fora do comum ou fora da norma, fora da ordem das coisas. Neste sentido, Foucault elabora uma rápida tipologia e dá exemplos. Precisando porém que para o contemporâneo existe uma heterotopia do desvio.

«[...] aquela na qual se coloca os indivíduos cujo comportamento é desviante em relação à média ou à norma exigida”. São as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas; são, claro, também as prisões et seria necessário sem dúvida acrescentar os asilos para velhos[...]”(web, 1984)

Estes exemplos não me satisfazem. A heterotopia não poderia abrigar “a diferença”, pois esta última exige um referente para existir, portanto, uma definição, limites, obstáculos, mas também o aspecto integrador destes “desvios” para o funcionamento da norma. A “diferença” é, a meu ver, uma contra-heterotopia, pois existe não para criar o novo, mas para reafirmar o existente, o referente, a hierarquia, os contornos inteligíveis da sociedade e do humano.

Foucault  acrescenta um outro exemplo :os prostíbulos que seriam assim um espaço de ilusão ou de compensação.

Aqui, a questão é: ilusão para quem, compensação para quem? Os prostíbulos, dos quis Foucault lamenta a privação, ao contrário, criam não uma ilusão, mas um lócus de dominação paroxístico, de bonomia e de condescendência, de naturalização da violência psicossexual, da camaradagem patriarcal, uma a mais. Os prostíbulos são parte da rede que constitui os fundamentos do patriarcado, dos quais a prostituição é um dos pilares mais poderes os. Estes locais bem definidos, os prostíbulos, faziam e fazem das mulheres as servas do sexo e da sexualidade masculina, e nisto, não há, a meu ver, nenhuma possibilidade de heterotopia.

Na tipologia de Foucault, os prostíbulos seriam uma heterotopia de função, mas para um olhar feminista, esta função está a serviço do poder patriarcal, pois longe de criar algo novo, reforça as normas e é delas constitutiva. Desvio, diferença, compensação, função, ilusão, estas imagens povoam a construção foucaultiana da categoria “heterotopia”, mas de fato a empobrecem.

Para onde foi a heterotopia do não lugar, da não definição, da ausência de limites? Se pode existir nestes exemplos, muitas questões se perfilam: a heterotopia está a serviço do poder? A beleza e a complexidade do paradoxo perdem assim sua força de transformação e toda criatividade.

Onde foi a heterotopia que prometia asas, muito além das coerções e das diferenças que não fazem senão enclausurar e reduzir o humano à seu corpo e seu sexo, suas funções? Onde se encontra este lugar sem lugar onde tudo é possível, da qual a invenção é a chave?

Entretanto, Foucault apresenta outros exemplos como o teatro, o cinema, que da mesma forma que o espelho, reenviam o olhar de um ponto irreal para a realidade que anunciam. Assim se expressa:

«  A partir de este olhar que de alguma forma se volta para mim, do fundo deste espaço virtual que está do outro lado do espelho, volto-me  para mim e recomeço a dirigir meus olhos para mim mesmo e a me reconstituir lá onde eu estou.”( Web,1984)

Este olhar heterotópico, que pode se voltar para si mesmo ou sobre o social  (o espelho ou o cinema) levaria a uma reversão de práticas discursivas que os engendram? Esta é a brecha que abre a heterotopia  para o deslocamento de si, para a criação de redes, de concomitâncias, de dissemelhanças, de “monstros” fora de todo lugar inteligível, poder de criação, tal como o cyborg descrito por Donna Haraway.

‘[“…] um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura da realidade social, bem como uma criatura de ficção.” "(web,1988 :291 )

Existe, entretanto não está aí.

Entre estes exemplos, vejo igualmente  pinturas de contornos heterotópicos: a análise que faz Foucault das “meninas” de Velazquez mostra os olhares diversos na perspectiva do quadro, reais e irreais – mas que coloca em evidência o olhar principal que compõe a obra, aquele que está fora do quadro, observando-o.

Invisível, não é menos real, já que dá sentido e inteligibilidade ao quadro.

Percebo igualmente os feminismos como heterotopia. Na multiplicidade e na dissemelhança, os feminismos se constroem enquanto sujeitos políticos, ao mesmo tempo em que p sujeito “mulher” se revela um ser fluido, fundado socialmente, à partir de práticas discursivas diversas.

«  Ser mulher », portanto é um produto e sua desestabilização é necessária para que o biológico, o sexo, o corpo feminino não sejam mais amarras e limites ao seu desabrochar. Feminismos e feministas se confundem pois se reenviam o reflexo de um espelho onde se encontra o esboço de uma ficção objetivada nas práticas de invenção e de mudança do social.

Donna Haraway considera que:

«  Os movimentos internacionais das mulheres tem construído a “ experiência das mulheres”, tanto encobrindo quanto descobrindo seu crucial e coletivo objeto. Esta experiência é uma ficção e feita por uma apreensão imaginária, pela opressão e outras possiblidades. O cyborg é matéria de ficção e experiência vivida, que modifica o que conta como experiência de mulheres no fim do século XX.”  (web,1988:291)

A categoria « gênero », que, aliás, atualmente tende a substituir a de feminismo, não consegue ultrapassar o binário, os órgãos genitais enquanto delimitação de identidades sexuadas, pois tornou-se descritiva e universalizante, sem penetrar em profundidade o processo que cria o binário, ou mesmo colocar em questão a inexistência dos gêneros sexuados nas práticas discursivas mais diversas, ao longo da história da humanidade.

Haraway  afirma que:

“Gênero é um campo de diferença estruturada e estruturante, no qual as maneiras  de  localização extrema do corpo  individualizado vibra no mesmo campo com as emissões em alta tensão global. Incorporação feminista, então, não se trata de localização fixa ou corpo reificado, fêmea ou outro, mas  trata  de nódulos e campos, inflexões e orientação, e a responsabilidade com a diferença nos  campos material e semiótico de significação.” (web,1988:588)

É assim que os feminismos avançam na desconstrução das identidades seja qual forem suas raízes. A heterotopia excede o gênero, assim como toda pretensão de identidade sobre os corpos, o físico, a sexualidade.

Não há heterotopia – a que recusa os limites e significações já dadas – quando a matriz de inteligibilidade permanece intocada. Enquanto houver reivindicação  identitária, baseada  no biológico ou na sexualidade, a heterotopia estará ausente, já que a norma é o referente.

A diferença ou a diversidade nas práticas sexuais não serão jamais heterotopia, pois não saem da moldagem do sexo. Foucault explicou como a importância dada ao sexo e à sexualidade os consagram enquanto motores e centros da vida inteligível. O corpo sexuado bane a heterotopia.

Não há, neste caso, quebra da norma, quando a identidade sexual ou sua reivindicação se instalam. Quer seja mulher, homem, gay feminino ou masculino, trans, o que se percebe destas categorias é o desejo de inserção na norma mais ou menos ampliada e acolhedora. Não há uma subversão das evidencias ou uma modificação dos moldes de pensamento ordenados pelo biológico. Não há um pensamento ficcional para além dos limites de ancoragem do corpo sexuado.

Donna Haraway estima que:

“Não estamos imediatamente presentes para nós mesmos. O conhecimento de si requer uma tecnologia semiótica-material para ligar significações e corpos. Identidade de si é um sistema visual perverso. [...] Subjetividade é multidimensional; portanto, é visão. O self conhecedor é parcial em todos os aspectos, nunca acabado, inteiro, original e apenas presente; é sempre construído e costurado em conjunto imperfeitamente, logo, capaz  de reunir-se a outrem e olhar conjuntamente sem reivindicar o ser outro.” (web, 1988:586)

Foucault considera que estamos  «  na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, na época do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso.” (web,1984: 46-49)

Somos também na época da heterotopia liberada de toda tipologia para dar nascimento aos « monstros », aos seres que não fazem de seus corpos e de seus sexos o centro de sua existência. Monstros, pois ininteligíveis, incompreensíveis, irreais em um mundo quadrado e obtuso que não vê mais longe que seu baixo ventre.

Para Haraway, os feminismos aprofundam a crítica do espaço social generizado, para permitir às significações díspares, às vozes e aos olhares múltiplos, de se colocar como metáforas de si e do social. (web, 1988: 589)

Feminista, sou, portanto, mulher real, porém um reflexo de mim mesma, pois sou apenas um projeto, uma invenção de mim mesma, em um processo contínuo. O reflexo que vejo no espelho é um fantasma, já que não existe mais; mas é também um esboço de mim, em construção.

Eu sou assim mulher, feminista, uma heterotopia de mim. Locus de criação, de invenção, de um imaginário que constrói e se  mescla à realidade: os corpos heterotópicos se dissolvem na imagética de um mundo possível sem gêneros e sem referentes.

Diz Haraway:

“Gostaria de traduzir a dimensão ideológica de ‘factividade’ e de ‘orgânico’ numa bizarra entidade chamada ‘ator material-semiótico’. Este estranho termo tenta desenhar o objeto de conhecimento como parte ativa e geradora de sentido do aparato da produção do corpo [...]” (web,1988: 596)

 Os limites dos corpos inteligíveis são portanto desenhados pelas práticas, pois não preexistem a elas. Os corpos são constituídos, cerceados, cercados, circunstanciados de tal forma que acirram os desejos de transformar, descabelar a razão, açoitar as verdades. Mergulhar profundamente na insondável invenção de ser. De corpos sexuados, passar a corpos fluídos, livres, esboços de uma nova realidade. Corpos desobedientes, inconformes,  inconformados.

Utopia? Não heterotopia.

 

Referencias

Michel Foucault.. 1984 "Of Other Spaces, Heterotopias."  Architecture, Mouvement, Continuité 5 (1984): 46-49. .http://foucault.info/documents/heterotopia/foucault.heterotopia.en.html

______________ 1966.  As palavras e as coisas,

Donna Haraway. 1988. Situated  knowledge: The science question n feminism and the privilege o f partial perspective. https://faculty.washington.edu/pembina/all_articles/Haraway1988.pdf