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A desconstrução das evidências:
perspectivas feministas
e foucaultianas
A História nunca mais será
a mesma, a das
certezas e dos positivismos,
a das visões de mundo,
e das contradições a serem resolvidas.
A História hoje,
é uma disciplina
instigante, aberta
às questões e aos paradoxos,
perguntando, em lugar de concluir, cuja preocupação central
não é a descrição
ou a compreensão
de fatos ou
comportamentos esperados. A História, hoje,
busca os indícios
que carregam os
sentidos presentes
no momento analisado, os significados
que criam normas, verdades, regulando e prescrevendo
comportamentos e identidades.
A História, hoje,
é fator de desordem
do discurso, apontando a falácia
das hegemonias, a ilusão
da univocidade, os mecanismos que engendram suas
próprias condições de
produção, interpretação,
imaginação.
A História, hoje,
não tenta
esconder ou
driblar o conteúdo imaginativo de suas
narrativas; ao
contrário, reivindica a poderosa
força da
imaginação para detectar
o possível, o silenciado, os comportamentos
e relações humanas
que não obedecem
aos estereótipos e padrões;
aponta para um
universo onde
a fissura é a superfície,
pois reconhece como
construídos os paradigmas de “ mentalidades
hegemônicas” ou de “ visões de mundo”
, compartilhadas por uma maioria.. A própria
idéia de “maioria”
se torna
disseminação, aglutinações provisórias e
temporais.
A História , hoje,
de fato, é meta-
crítica política
de sua própria
instituição, enquanto
disciplina acadêmica
e discurso normatizador, alicerce
de tradições e costumes,
recriadora de valores e modelos, cuja justificação
está apenas em
sua constante
repetição.
Nestas condições de possibilidade e
imaginação pode-se adentrar
regiões desconhecidas apesar
dos moldes das representações
sociais em
que somos construídas, ensinadas,
preparadas para repetir
e re- instituir uma realidade
solidificada em cânones
interpretativos. Nada
mais difícil
que ultrapassar
horizontes epistemológicos, caminhos
trilhados apenas por quem não se conforma,
não abdica da idéia da transformação, da
mudança, da diversidade.
Assim. o fazer
história é mais
do que nunca
uma atividade política,
recusando a repetição do mesmo,
aquele murmúrio
infindável de
reafirmação da ordem,
de criação incessante
de um mundo
pensado de forma binária,
conjugado no masculino,
em articulações
de poder, nas economias
gerais do saber,
construtoras de hierarquias, diferenças
e desigualdades.
Mas que meandros criaram
este momento
profícuo de se fazer
“ histórias”, num
presente ainda de confrontações,
onde alguns campos são “ mais históricos”
que outros?
Foucault sonhava
“ [...]com intelectual destruidor
das evidências e das universalidades,
que localiza e indica nas inércias
e coações do presente
os pontos fracos,
as brechas, as
linhas de força;
que sem
cessar se desloca, não
sabe exatamente onde
estará ou o que
pensará amanhã, por
estar muito atento ao
presente; que
contribui, no lugar
em que está, de
passagem, a colocar
a questão da revolução, se ela
vale a pena
( quero dizer qual
revolução e qual
pena)” (Foucault,1988:242)
Entretanto, em
alguns círculos
acadêmicos fazer
a crítica das
representações constitutivas da produção
do conhecimento científico
e dos mecanismos de poder
por elas engendrados ainda
é problemático; da
mesma forma , tratar
dos processos de subjetivação binários
e hierarquizados na construção
histórica do humano
em corpos
sexuados é penetrar
um mundo
de evidencias intocáveis, de certezas
naturalizantes.
Falar em
epistemologia
feminista, em feminismos
, ao se propor a produção
de um conhecimento
situado e sexuado, nestes meios,
significa desafiar um
dos tabus mais
evitados, principalmente por
mulheres, que
temem ser consideradas “feias, mal
amadas, lesbianas, inadequadas”.
Para Foucault estava claro:
somente quem
aceitasse arriscar a vida,
poderia falar
de revolução. Não
me refiro aqui
a revoluções armadas
ou terrorismos,
a uma inversão simplória
de poderes – falo
de revoluções epistemológicas,
da criação de condições de imaginação
para uma transformação das
relações humanas, para além
de um binarismo simplificador,
cuja aparente evidência
em opostos
complementares,
mas diferentes,
arquiteta toda
uma economia
humana traçada em
linhas de poder
e força.
As feministas
em geral
vivenciaram este
desafio em seu
desejo de mudanças e transformação
das relações sociais
e este pode ser
talvez o único
ponto em
comum entre
a pluralidade dos movimentos
e correntes militantes
e teóricas feministas.. Cherrie Moraga, chicana,
crítica de um
feminismo branco
e pretensamente
hegemônico falava de feminismo
como “teoria
da carne”, a que
arranha e machuca ao anunciar transformações, apontando para
um comprometimento incontornável
com o político,
na prática dos feminismos.
Como sublinha Francine Descarries
“ Em
práticas de resistência,
os objetivos dos
movimentos das mulheres
levaram rapidamente militantes e intelectuais
à busca de uma
apreensão singular
da dinâmica sexuada
das relações sociais,
à desmistificar uma tradição
intelectual e científica
que as havia excluído
até então
de seus locais
de produção e a propor,
como Ti-Grace Atkinson, o trabalho
de teorização como um ato militante.
(Descarries, 2003 labrys 3 janeiro/ julho,)
Em suas práticas discursivas e não
discursivas, as feministas vem
desafiando as tradições intelectuais e evidencias normativas, trazendo a crítica até sua próprias teorizações e estratégias
políticas, vendo na
ciência não só
um discurso
sobre o real,
mas a própria
construção do real.
A instituição
das evidencias..
.
Em termos de uma
concepção tradicional de ciência, ou seja,
um discurso
produtor de
verdades sobre o
mundo, os saberes
só caminham em
linha ascendente,
do simples para
o complexo, do
primitivo para o civilizado,
num continuum ininterrupto. A ciência
seria portanto, O saber,
aquele que detém
a chave
explicativa da natureza,
do social, do humano.
Como bem sublinha Foucault,
« Não reconhecendo
na ciência senão o acúmulo
linear de verdades
ou a ortogenese da
razão, não reconhecendo
nela uma prática discursiva que
tem seus níveis,
suas bordas
, suas rupturas
diversas, não podemos descrever
senão uma só
divisão histórica,
cujo modelo
é reconduzida sem cessar
ao longo do tempo
para qualquer
forma de saber :
a divisão entre
o que
não é ainda científico
e o que o é
definitivamente. Toda
a espessura das interrupções,
toda dispersão
das rupturas, todo
desnível de seus
efeitos e o jogo
de sua interdependência
encontram-se reduzidos ao ato monótono
de uma fundação
que é preciso sempre
repetir.” ( Foucault, 1969: 245, 246)
“
De certa forma, a ciência seria o discurso
substituto do
dogma religioso,
baseando-se no mesmo sistema
de crenças, onde
os pressuposto axiomáticos substituem os dogmas,
onde a autoridade
do cientista supera a do
sacerdote.
O sistema é similar:
a enunciação de
verdades, cujo fundamento
enunciativo se sustenta no lugar de fala
de uma autoridade instituída,
com caráter universal
e incontestável; os
efeitos políticos
deste poderio discursivo tornam-se
maiores, na medida em que a construção social e histórica
destes enunciados desaparece, para dar
lugar à força simbólica
da própria enunciação.
O discurso, esta prática modeladora
de significados no
social e no político
é , portanto, força
que engendra a percepção
do real, ou seja,
aquilo que interpretamos
como real
é o que toma
forma e sentido
na nossa rede
de percepção, em
nossas condições de
imaginação, recortadas por
“verdades” circulantes
em discursos científico-religiosos,
que Foucault nomeia “ regime
de verdade”.
Esta imaginação esteve sempre
presente nas elaborações
e analises das ciências físicas e sociais,
vestidas, entretanto, do
manto da verdade
e da autoridade oriundas da univocidade do
“racional” como
expressão do real,
livro a ser
decifrado pela
ciência..
Os feminismos e Foucault, em
suas imbricações e
eventuais desencontros
foram marcos para
a mudança nas perspectivas
de se pensar e de se fazer
história e ciência,
apontando para suas
condições de produção,
compostas de todo um
aparato simbólico / político,
discursivo e não discursivo.
Foucault, neste caso, exerce a função
de autor, como
ele mesmo
define, precipitando, no sentido
químico da palavra,
o magma borbulhante das significações
sociais, como “ [...]o indivíduo
que se põe a escrever
um texto
no horizonte do
qual ronda uma obra
possível” (Foucault, 1971:10) expondo
as heterotopias discursivas do século XX, no sentido “ das formas
« que inquietam,
pois minam secretamente
a linguagem, [...] pois
quebram os nomes
comuns ou os entrelaçam,
arruínam de imediato a “sintaxe”
e não apenas
a que constrói as frases,
mas aquela, menos
evidente, que
“mantém juntas” [...]as palavras
e as coisas. ( Foucault, 1966:.10)
Nesta ótica, os feminismos
contemporâneos
são expressão desta
heterotopias, quebrando as palavras
e abrindo-as às suas significações políticas.
De fato, se tomamos o Segundo Sexo
de Simone de Beauvoir, publicado em 1949, como
a eclosão da
visibilidade dos saberes
engendrados pelas mulheres e pelos
feminismos, na contemporaneidade,
adentramos uma perspectiva
genealógica, na qual
se contempla um dos momentos
em que
as “palavras e as
coisas” se desfazem de sua
univocidade fictícia e em
que “mulher” deixa de significar o “outro” do humano
para reivindicar
sua posição de agente
histórico e
político, de sujeito,
enfim. Em
que “mulher”,
dotada de uma essência única e “ verdadeira”, desdobra-se em mulheres, seres localizados em
suas especificidades e experiências múltiplas.
A eclosão
de saberes nos
movimentos e
teorias feministas
não se dá em
um ponto
específico do tempo
apenas; é um
movimento, que
acompanha a dinâmica da vida
social e se contrapõe às pretensas
hegemonias ao reivindicar
existência, voz,
práticas instauradoras das diversidade. Vários
foram, portanto, os
momentos de desnaturalização
das relações humanas baseadas em uma essência
biologia, anunciados por incontáveis
vozes femininas, desvelando-se
as práticas políticas
de exclusão e de
dominação nela fundamentada. De Simone de Beauvoir (1949)
a Betty Friedan (1964), passando por
Nísia Floresta (fim
século XIX) e Virginia Wolf (início
do século XX) a construção da
diferença sexual
enquanto
diferença política,
na ciência e nas práticas
sociais, já
aparecem explicitadas.
a destruição
das evidencias.
Destruir as evidencias, propunha
Foucault. A natureza
sexuada do
humano, divididos em
opostos, hierarquizados segundo
sua essência,
esta dotada de razão e de criatividade, aquela de uma
vaga intuição e de uma passividade
receptora foi a evidencia maior
descontruída pelos
feminismos.
Este idéia, disseminada em
diferentes
práticas discursivas, entre
as quais as ciências,
como bem
explicita Gayle Rubin( 1975), instituiu a norma
do humano
conjugado no masculino,
articulado em hierarquia, reiterado pelos discursos
mais variados, criando, de fato, a desigualdade política
ao instaurar uma diferença.
Esta autora discute alguns pressupostos
de Freud e Lévy-Strauss, apontando como
suas elaborações
teóricas de pretensão universal
repousam sobre
construções e distinções
de gênero, apresentadas como
evidentes e naturais,
como a troca
de mulheres, ou
a inveja do pênis
e a sexualidade como
eixo e essência
do humano e suas
relações; esta evidencia da “ natureza
humana”, repousa, entretanto,
apenas em
sua própria
enunciação e engendra o
sistema ao enunciá-lo.. Como
diriam os positivistas: é porque
é.
Monique
Wittig, por sua vez indaga :
«
quem deu aos psicanalistas
seu saber ? Por exemplo, para Lacan, o que chama de ´discurso
psicanalítico ‘ a
experiência analítica´
ambos “ lhe
ensinam” o que ele
sabe. E cada um
ensina-lhe o que o outro
lhe ensinou (Wittig, février 1980 :47)
Foucault é um dos arauto desta percepção,
pois comenta que
“Se os dos grandes
vencidos destes últimos quinze
anos são o marxismo e a psicanálise,
é porque tinham uma
parte muito ligada,
não à classe
no poder, mas
aos mecanismos do poder.
“ (Foucault, 1970-1975 :724)
A ciência trabalha,
como vemos, com
representações generizadas,
representações sociais
que são
premissas “indiscutíveis”
de suas análises,
como mostram as
feministas nos mais
diversos campos
do saber. Emily Martin, por
exemplo, aponta nos
discursos sobre
a concepção
humana, os papéis do óvulo
( passivo, inerte,
receptor) e os
espermatozóides em
plena ação,
a reprodução, ipsis literis,
das representações sociais
sobre o feminino
e o masculino.(Martin, 1999) Anne
Fausto-Sterling expõe as representações binárias e a
imagem da “verdadeira” mulher
contidas nos enunciados
médicos sobre
a menopausa ou
a famosa “ tensão
pré-menstrual”, que reinstituem
na atualidade as imagens
do feminino, doente
de seu corpo
e presa de seus
hormônios, que
lhe dá e lhe
retira seu
lugar no social,
na cotação da bolsa
de valores da sedução
da procriação.( Sterling,1999)
A filosofia, como
analisa Genevieve Fraisse (1995), não
cessa de re-instaurar esta natureza
de duas formas: por
um lado,
utilizando sem cessar
metáforas sexuadas e hierarquizadas,
que sublinham o valor
do viril e do masculino
e por outro , recusando-se a pensar
as instaurações políticas de gênero,
pois já
que “naturais”,
não apresentam interesse
para análise.
Assim, por
exemplo, a existência
de esferas públicas e privadas
no social são
tomadas como
axiomas, baseadas na diferença “natural”
entre os sexos;
Carole Pateman (1993), porém,
. analisa com brilho
a genealogia destas categorias,
a priori histórico de muitos trabalhos
e teses.
A apropriação simbólica e material
dos corpos e do trabalho das mulheres, explicitada por
Colette Guillaumin,(1978) a noção de patriarcado
como sistema
, como mecanismo
de poder e de instituição
do real, imbricado ao capitalismo mas
a ele não
redutível , como explicita Christine
Delphy (1970) com a
categoria “modo
de produção doméstico”,
são obras
feministas descontrutoras de realidades
criadas e cristalizadas pelas ciências
e pelas práticas socais e apresentadas
como “naturais”
na divisão do trabalho
formal e das tarefas
do quotidiano.
No fim dos
anos 1970, a
reflexão de Monique Wittig contribui a criar
o solo sobre o qual se apoio a crítica pós-moderna de todas as evidencias e de todos os naturalismos.
Nomeia “ pensée straight’ o quadro de pensamento
binário e
heterossexual e esta categoria
exprime de forma densa a íntima relação
entre o pensamento
e suas condições
de produção, pois
pensar, é também pensar historicamente, um
ato ancorado em
um horizonte
possível de
interpretações e de interpelações.
A “pensée straight » para esta autora,
é assim o fundamento de todas as naturalizações
e evidencias, escondendo sua construção histórica
sob o universal de um humano, inventado
segundo
normas e valores
locais e temporais.
Wittig explicita:
“
Não posso senão sublinhar o caráter opressivo
que reveste a “ pénsée straight”
em sua tendência a imediatamente
universalizar sua
produção de conceitos,
a formar leis
gerais que
valem para todas as
sociedades, todas as épocas,
todos os indivíduos.
É desta forma que
se fala de troca
de mulheres, da diferença
de sexos, da ordem
simbólica, do inconsciente, do desejo,
do prazer, da cultura,
história, categorias
que apenas
tem sentido atualmente,
na heterossexualidade ou
no pensamento da diferença
dos sexos como
dogma filosófico e político.”
(février 1980 :49 )
A « pensée straight » é, portanto, um quadro de pensamento
histórico, cujos
conceitos criam uma
certa realidade e a inauguram
como fundadora do humano
em uma iteração incessante.
Desta forma, não é suficiente desnaturalizar
o natural, mas,
sobretudo mostrar
os mecanismos históricos,
materiais, simbólicos, imaginários, que
criam as relações
sociais e a própria
realidade. Neste quadro
de pensamento, a reprodução
é o eixo do humano,
materializando-se em uma heterossexualidade
compulsória, hierarquizada,
cujo referente é
o masculino.
Os feminismos tem sido, assim,
ponta de lança
para a crítica
da ciência , das verdades
instituídas, dos valores transformados em
leis, apontando para
a historicidade absoluta do humano e dos sentidos
criados em
práticas discursivas, marcadas
de tempo e de espaço
e por elas
universalizadas. Fala-se inclusive de “ o feminismo”, ignorando a pluralidade
e a riqueza das análises
produzidas em
milhares de textos,
marcando a produção do conhecimento
no feminino da mesma
essência única
que se atribui às mulheres.
De fato “ o homem”
designa o universal, o humano,
“os homens”, as
suas divisões
individuais; a “ mulher”
aponta para uma espécie
do humano, o “outro”,
e “as mulheres” apenas
o quantitativo.
A ausência das análises
e da epistemologia
feminista atuais
da academia e da economia
do saber institucional, o anonimato da intensa
produção feminista em todos os campos do conhecimento,
sua apropriação
acadêmica, sem
referencias, sem
indicação de autoria demonstra de maneira
clara a falácia
histórica da construção
dos saberes; neste
sentido, a leitura
do artigo crítico
de Nicole Claude Mathieu sobre
“A dominação
masculina” de Pierre Bourdieu é incontornável.
Historiadores do futuro
poderiam afirmar, a partir
dos compêndios
acadêmicos e dos programas
dos cursos universitários,
que as mulheres
não participavam da produção
do saber, como
vem fazendo a história em suas narrativas tradicionais. E
como costumo afirmar, “ o que
a história não
diz, não existiu”. Esta ciência “verdadeira”, ancorada
em premissas axiológicas,
em representações
sociais naturalizadas é ensinada
nas escolas, está presente na
educação em geral.
A este respeito,
Foucault comenta que
“ ´[...]ela segue, em
sua distribuição,
no que permite e no
que impede, as oposições
e as lutas sociais
Todo sistema de
educação é uma
maneira política
de manter ou
de modificar a apropriação
dos discursos, com
os saberes e os poderes
que carregam com
eles.” (Foucault, 1971:46)
Ignorar a produção
feminista do saber
é tentar manter uma ordem discursiva
androcêntrica..Até o advento da “história
das mulheres”
tudo se passava na narrativa
histórica como
se elas fossem
invisíveis participantes das relações
sociais, matrizes,
objetos de troca
e de uso, parte
dos móveis e
utensílios necessários,
porém estáticos,a
receptivos, passivos.
A própria história
das mulheres, em
algumas vertentes, padece dos
limites do quadro binário
de pensamento, apontando
para as mulheres , na
história, apenas
em seus
papéis tradicionais , dentro de seu
“ destino biológico” .
que diferença
é esta?
Em seu questionamento sobre
a instituição dos
corpos sexuados
e seus corolários
de atributos e características
sociais, os feminismos
solaparam, assim, a base
arenosa da evidencia considerada a mais clara e incontestável: a divisão biológica
do humano
em feminino e
masculino e este
destino biológico procriativo, atribuído às
mulheres, aí
nomeadas “ a mulher”.
Desta forma, considero
que os
feminismos, em seus
desdobramentos diversos , abalando
as certezas ancoradas no que
seria o mais
sólido, a natureza,
criaram o solo para a crítica sistemática
das verdades científicas, no que se configurou o chamado pós-modernismo. Trabalhando
a noção de “diferença dos sexos”,
os feminismos apontam
para a construção política
de modelos
humanos cuja base,
o sexo e a
sexualidade, são
a parte que
passa a representar
o todo, arbitrariamente.
Se no vórtice das desigualdades, as
raças se definiram pelas características
externas da pele
e dos traços, derramando-se em arcabouços
culturais ou
fenótipos ditos
“ primitivos” ,no caso
dos sexos, feminino
/ masculino, a naturalização
de uma diferença construída alicerça, na
exterioridade genital,
características internas apontadas
como inatas, como constitutivas da identidade
primária do
humano.
A desigualdade de gênero
precede a de raça na ordem
do discurso, pois
se é mulher ou
homem antes
de ser branco, negro
ou amarelo, azul ou roxo. No ápice das desigualdades
se é, portanto, mulher,
negra, lésbica,
pobre, gorda,
velha, feia, etc.,
numa escala que
parte do “ natural”,
da norma, para
as diferentes formas
de “ diferença”.
Igualdade e diferença são
categorias de extrema
atualidade nas
ciências sociais,
cuja imbricação é uma expressiva
elisão do binômio identidade / diferença,
como bem
explicita a filósofa Géneviève Fraisse; (1995) De fato,
o par de
igualdade é desigualdade , esta última
enquanto resultado
de uma política da
diferença. Uma desigualdade instaurada no
político, como fundamental
na taxionomia do humano,
é enraizada, assim, na
noção de diferença
entre o feminino
e o masculino; esta categoria
ancora-se na noção de “natural”,
que toma
uma parte do humano- seu aparelho genital-
como sendo a expressão de sua
totalidade. O valor
social que
cimenta esta divisão
binária é a
reprodução, traduzida em
heterossexualidade compulsória,
como afirmam Monique Wittig( 1980)
e Adrienne Rich (1980), entre
outras.
Ao mesmo tempo, atrela
à “ natureza” uma série de características
socialmente construídas, criando
uma escala binária
de atributos, cujo
pólo positivo
encontra-se fixado no masculino.Porém, só existem
diferenças
lá onde se estabelece
um referente
e a “ diferença” dos sexos
aponta apenas para
uma construção social de um parâmetro corpóreo, fundamento
de hierarquias.
O referente assim,
é modelo desdobrado em
homem, branco,
ocidental, jovem,
de posses, origem
de uma cascata de desigualdades;
classificou-se enquanto “outro” todas /os que
não se adequassem ao perfil do referente.
A igualdade na
diferença, a meu
ver, é uma expressão
antinômica, já que é a própria noção
e instituição de
diferença que cria a desigualdade
entre os seres.
Quando esta
diferença é apresentada como “ natural”,
sua construção
social desaparece da ordem do discurso
e ancora crenças e
tradições que organizam
o feminino e o masculino
em outro
binômio: inferior
/ superior, instituídas em sistemas de
dominação. Foucault explicita o
que entende por
dominação:
« [...] nas relações
humanas, há todo
um feixe de relações
de poder, que
podem se exercer entre
os indivíduos, no
seio de uma família,
em uma relação
pedagógica, no corpo
político. Esta análise
das relações de poder
constitui um campo
extremamente complexo.
Encontra, às vezes,
o que podemos chamar
fatos, ou
estados de dominação,
nos quais
as relações de poder,
em lugar de serem móveis
e de permitir aos diferentes
parceiros uma
estratégia que as
modifique, encontram-se bloqueadas e fixas. Quando
um individuo ou
um grupo
social consegue
bloquear um campo
de relações de poder,
a torná-las imóveis e fixas e a
impedir uma reversibilidade do movimento
[...] estamos diante do que se pode chamar de estado de dominação
(Foucault, 1980-1988: 710/711)
A naturalização das relações
entre o feminino
e o masculino criam
este tipo de “ estado
de dominação”. As desigualdades
encontram-se , deste modo, fundadas
num discurso de “evidência”,
ocultando-se , desta forma, que a própria
idéia de diferença
pressupõe todo um aparato valorativo,
onde o
sexo biológico é tomado como
parâmetro principal na classificação
do humano.
As epistemologias feministas
e os movimentos de
mulheres são expressão
de práticas de
liberdade e de liberação;
em alguns
países os estados
de dominação são
quase herméticos,
mas mesmo
assim é possível
trabalhar ass fissuras
no sistema Em
outros, mais
permeáveis, como
os ocidentais, a dominação
se faz, não pela
força, mas
pela repetição,
pela educação,
pela religião,
por assujeitamentos diversos
que flexionam as auto-representações nos quadros binários
habituais. Dos
discursos midiáticos à atividade
legislativa, os corpos
das mulheres são
criados enquanto
sexuados,
apropriados, destinados à procriação
e à sedução, como bem explana Susan Bordo
(labrys 4, 2003)
O referente é o masculino,
o sujeito que
exige, para compor
sua identidade
, a existência de
um outro desigual,
feito de oposição,
de uma suposta complementaridade,
que apenas acentua
a disparidade entre o feminino
e o masculino nas
práticas políticas,
em seu
sentido mais
amplo. De fato
a “igualdade” hoje,
para as mulheres,
significa dupla ou
tripla jornada
de trabalho, salários
inferiores para
tarefas iguais, ínfima
representação política,
e corpos submetidos a uma violência social
naturalizada, como a doméstica ou a
prostituição, a pedofilia. E a
luta pela igualdade
se faz sob o
signo da diferença,
solo construído
sobre o qual
se instauram as assimetrias e as desigualdades
sociais.
Neste sentido, os feminismos
se pluralizam, em
diversos graus de
comprometimento com os quadros
de pensamento
habituais, como
o binarismo explicitado na expressão sexo/
gênero, ou
o diálogo com
narrativas universalizantes, como a psicanálise
, presas de
condições de inteligibilidade coercitivas. Os feminismos
vem fazendo teorias, porém, não como quadros de pensamento
rígidos,
modelares, substitutivos;
os feminismos, hoje,
ao teorizar, fazem uma poética,
como sublinha Linda
Hutcheon, (1991: 29-30) “aberta e em constante mutação”,
enunciados
provisórios, sem
a ânsia das respostas
e das definições, sem
medo dos paradoxos, traçando heterotopias ao
decodificar as artimanhas
do poder sobre
o simbólico / material do relacionamento
humano.
Estaria Foucault pensando nas feministas
quando afirmou
que:
“ papel do
intelectual não
é mais de se colocar
um pouco
antes ou
um pouco
de lado para
dizer a verdade muda a todos; é ao contrário,
lutar contra
as formas de poder
onde é ao mesmo
tempo objeto
e instrumento na
ordem do “saber”, da “verdade”,
da “consciência” , do “discurso”. É assim
que a teoria
não exprimirá,
não traduzirá, não
se aplicará à uma prática, ela é uma prática. Mas local e regional,
nunca totalizadora.
Luta contra o poder,
luta para
fazê-lo aparecer e estocá-lo, ali
onde é o mais
invisível e o
mais insidioso. “ (Foucault, 1970-75: 308/309)
Neste grande, imenso
dispositivo da sexualidade
identificado por Foucault , em que o sexo se torna
o eixo da
existência, da identidade
, atraindo todos os olhares
e investimentos
individuais e sociais,
não se pode esquecer
que sua
definição é , de início,
binária: a heterossexualidade
é portanto, a norma,
já comentada por
feministas como
Monique Wittig e Adrienne Rich, nos anos 1970
; identificam na heterossexualidade compulsória a prática social fundadora do “natural”
da divisão binária
dos sexos e de
sua hierarquização.
Foucault expõe as tecnologias
do sexo, fundadora dos corpos normatizados e disciplinados,
mas seu
discurso permanece generalizante
. Diz ele :
“O poder seria essencialmente o que,
ao sexo, dita
sua lei.
O que significa,
antes de tudo, que
o sexo se
encontra colocado por
ele em
um sistema
binário: lícito
e ilícito, permitido
e proibido. O que
significa que o poder
prescreve ao sexo uma “ordem”, que funciona
ao mesmo
tempo como forma
de inteligibilidade: o sexo se
decifra em relação à lei. [...] a tomada
de poder sobre
o sexo se faria
pela linguagem ou
melhor, por
um ato
de discurso, criando, ao
ser articulado, um
estado de direito.
[...] a forma pura
do poder, seria encontrada na funçao do legislador,
e seu modo
de ação seria, em
relação ao sexo,
do tipo jurídico- discursivo. (Foucault,
1976:110)
A sexualidade criada
pela linguagem,
em matrizes
de inteligibilidade, a lei como materialização em
normas, aqui
é explicitada. Foucault vê também, nas tecnologias
do sexo, a
criação do “ sexo
verdadeiro” e nisto está clara
a oposição heterossexualidade
/ homossexualidade. Mas
e a própria
constituição da heterossexualidade?
Teresa de Lauretis ,( 1987) nos
expõe as tecnologias de gênero,
que inventam
corpos sexuados
nos diferentes
discursos sociais
e lhes atribuem diferenças
incontornáveis, em hierarquia e assimetria. De fato,
o binarismo primário é o feminino - masculino
, a construção da heterossexualidade
e da norma em
termos de
natureza. Neste sentido,
antes de terem
sexualidade, os corpos
devem se tornar sexuados.
As tecnologias do gênero
compõem os corpos
humanos em uma forma
binária e neste sentido,
como sublinha Judith Butler (1990),
não existem gêneros
fora de
expressões de gênero,
ou seja, é o social,
com seus
sentidos, valores
e escolhas que
define o sexo como
prioritário nas expressões
do humano. É assim,
que para
Butler, é o gênero que
constrói o sexo, invertendo a
proposição sexo
/ gênero, que
deixa intacta
e sem
questionamento a naturalização
da diferença.( Butler,1990)
Desta forma, fica claro que a diferença entre
os sexos é
criação político
- discursiva da economia binária
dos gêneros “naturais”,
cujo fundamento
é a procriação.
Como método, a
crítica feminista
da produção do conhecimento
trabalha num
constante re- significar de
suas próprias proposições
e tem como ponto de partido o que
Sandra Harding chama de “objetividade forte
“ (Harding, 1998) ou seja , a constante reflexão
sobre as
condições de produção do conhecimento,
incluindo as suas próprias, explicitadas
em saberes
localizados e específicos, no tempo e no espaço.
Teresa de Lauretis sublinha a noção
de experiência, incontornável para
os feminismos, “
um complexo de
efeitos significativos,
de hábitos , disposições,
associações e percepções”
( De Lauretis, 1987:.18) “ um processo
pelo qual todos
os seres sociais
são construídos” ( 18)Localizando
sua produção de saber e assentando-a na experiência,
os feminismos escapam assim às generalizações
abusivas , às características biológicas
universalizantes com as quais se institui a representação
DA mulher, inclusive
em seus
próprios
discursos.
De fato, quando a
crítica feminista
se anuncia, é o domínio do arquivo
foucaultiano que se desvela,
ou seja
“[...] o conjunto de regras,
que em
uma dada época
e para uma sociedade
determinada, definem os limites
e as formas do dizível [...] quais são os enunciados destinados a não
deixar traço?
Quais são
destinados, ao contrário, a entrar na memória dos
homens ( pela
recitação ritual, a
pedagogia, o ensino,
a distração, ou
a festa, a publicidade)?
Quais são
anotados para poder
ser reutilizados e com que fins?[...](Foucault, 1954-1969:681)
A história das
mulheres tem aberto
este arquivo,
localizando em
seus silêncios
e suas fissuras
o espaço de ação
do poder instituidor dos
corpos sexuados
em hierarquia,
discursos recitados em
ladainhas pela
tecnologias do gênero.
Acrescenta Foucault, a respeito das perspectivas
do arquivo:
“Quais são os enunciados
reconhecidos como válidos
ou discutíveis
ou definitivamente
invalidades? Quais os tipos
de relações são
estabelecidas entre o sistema de enunciados
presentes e o
corpus de enunciados
passados?[...] Que
indivíduos, que
grupos, que
classes tem acesso
à que tipo
de discurso?Como é institucionalizado a
relação do discurso
com aquele
que o pronuncia, com
aquele o recebe? Como
se desenvolve, entre classes,
nações, coletividades
lingüísticas, culturais ou étnicas, a luta
pela tomada
dos discursos? (Foucault, 1954-1969:
682)
Poderia ser aqui uma feminista
falando da exclusão das mulheres da ordem
do discurso
acadêmico, político,
social e a desqualificação da reflexão
feminista no sistema
de apropriação social
simbólico – discursiva. .
A crítica feminista
da realidade em
que vivemos
poderia ela mesma
ser uma das heterotopias descritas por Foucault, entre
aquela de crise e aquela do desvio: dentro
da norma e em
processo de ruptura,
em crise e
fora da norma,
lá
onde, como aponta Foucault, “ [...]estão os indivíduos cujo
comportamento é desviante em relação à média ou à norma exigida”.( Foucault, 1980-1988: 757)
Este é o sujeito
feminista, nomeado ec- centric
subject por Teresa de Lauretis,
dentro de suas condições
de produção e de sua
experiência designada enquanto mulher
; fora delas, ao
indicar as linhas de
força e de poder que
constituem o humano
em corpos sexuados.(De
Lauretis, 1990)
E a história, afinal?
A história encontra-se valorizada
enquanto disciplina,
já que
todas as outras reconhecem, em
maior ou menor grau, a
incontornável historicidade de suas
proposições. Enquanto
historiadoras feministas, procuramos
não o ecoar monótono da repetição
do mesmo, mas
as vibrações dos
acordes múltiplos
de uma história possível,
instauradora de diversidade, não
da diferença.
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