Para além do sexo, por uma estética da liberação

 

Na Terra da Memória, o tempo é sempre Agora

Stephen King

 

O dispositivo da sexualidade, aqui e agora, cria, em práticas discursivas e não discursivas, as moradas, os grilhões, as prisões que nos encerram.

Eixo de socialização, de identidade, de pertencimento, distribuindo o humano em patamares de desirabilidade segundo a idade, o peso, os contornos corporais, o sexo institui um mercado do humano, cujos valores são variáveis. Juventude, beleza estão em alta convocando todo um aparato econômico para manter ou construir estes aspectos, recriando e produzindo o  dispositivo da sexualidade.

 Desaparecem os rostos, são as formas e as sugestões de posse e desfrute  que orientam o olhar e compõem os corpos em pedaços mais ou menos apreciados/ valorizados. Promessas de abismos, virtualidade de nirvanas, corpos transformados em  sexo substituem os paraísos prometidos às almas, recompensas eternas de ações louváveis. Bem e mal se perdem e se confundem: o sexo agora agrupa todos os valores, todos os desejos, todas as aspirações, todas as verdades e essência  do ser. Está o sexo, desta forma, muito além de uma conjunção carnal: é  nexo de inteligibilidade, onde potência se conjuga com poder, onde a carne se constrói em corpos sexuados, distribuídos em domínio e hierarquia, na instituição de diferenças.

O dispositivo, incitador e criador do que hoje entendemos por sexualidade, para Foucault é:

“[...] um nome que  se pode dar a um dispositivo histórico: não a realidade subjacente, sobre a qual se exerceriam controles difíceis, mas uma grande rede de superfície onde a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências se encaixariam uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e poder” (1976:139)

Dispositivo, portanto, marcado de historicidade, de composições múltiplas, identificável em seu processo de  produção, como o fez Foucault , fruto de relações sociais e de suas configurações específicas. Isto significa que o sexo e a sexualidade não tiveram a mesma a mesma pregnância e o mesmo perfil, em todas as formações sociais. Não são portanto, dados essenciais do humano , mas expressões sociais  variáveis.

Este sexo genital, porção de corpo, está, nesta perspectiva, centrado no vórtice de uma rede de significações, históricas,  construídas, transformado assim  em categoria, expandindo seu alcance para muito  além de amplexos e carícias. O sexo, desta forma,  é um significado social, o sexo-significação, como sublinha Foucault, que se institui em pedagogias sociais, na confluência das tecnologias políticas de incitação e proliferação da sexualidade. De fato, não seria o sexo um ponto biológico sobre o qual se apoiariam as diferentes práticas sexuais, mas um agregado  constituído pelo dispositivo da sexualidade, que produz e induz ao desejo do sexo. Diz Foucault:

«  Criando este elemento imaginário que é  ´o sexo´ o dispositivo da sexualidade suscitou um de seus princípios internos de funcionamento, os mais essenciais: o desejo do sexo – desejo de tê-lo, desejo de a ele aceder, de descobri-lo, de liberta-lo, de articula-lo em discurso, de formulá-lo como verdade. Constituiu-se o ´sexo`, ele mesmo, como desejável. (Foucault, 1976:207)

Fundamento do ser, objeto de desejo,  ao ser desprovido porém, de suas condições sociais de produção e imaginação, o “sexo” nada é senão uma parte do corpo humano, cuja importância se define pela sua própria historicidade. Investido de sentidos, entretanto, atravessado por instâncias que atrelam verdade e poder, o sexo se torna o todo, do qual o humano é parte  e as estratégias históricas que lhe dão forma dividem e classificam o humano em grupos ou indivíduos, segundo sua genitália. A representação do sexo substitui, então, sua própria realidade biológica.

O desejo do sexo, assim,  não é “natural”,   é construído socialmente como uma necessidade, e de fato, desejar o sexo não significa nada, pois o que se deseja é uma prática e seus efeitos, sejam eles de prazer ou poder.  Foucault considera que o sexo é

[...] o elemento mais especulativo, mais ideal, o mais interno também, em um dispositivo de sexualidade que o poder organiza  em suas intervenções sobre os corpos, sua materialidade, suas forças, suas energias, suas sensações, seus prazeres ( idem:205)

Entretanto, o poder que emana deste amplo dispositivo da sexualidade não apenas se apossa dos corpos,  na promessa de prazeres inefáveis, subtraindo ou acrescentando forças. Sobretudo, este dispositivo que cria sexo em práticas de sexualidade institui os próprios corpos   em suas tramas de sentido, em suas representações sociais, impondo a forma binária, feminino e masculino, como o fundamento da norma, natural, heterossexual, como corpos a apropriar e corpos a serem apropriados.

Cria-os, em mundos separados, em instâncias valorativas diversas, em atuações e objetivos distintos, onde a complementaridade é apenas ilusória, efeito de discurso representacional. Nada há de complementar, de fato, entre feminino e masculino, na norma heterossexual: o que existe é divisão, posse, um poder sobre o feminino que o masculino adquire em sua própria construção social. O estupro é a forma mais exemplar de apropriação, na medida em que o prazer sexual conseguido na violência é ínfimo comparado ao prazer inefável da posse e da dominação, não apenas de um sexo, mas sobretudo, do ser por ele representado.  Diz Foucault:

“Não há uma estratégia única, global, valendo para toda sociedade e atuando de maneira uniforme sobre todas as manifestações do sexo; a idéia, por exemplos que se procurou muitas vezes , por diferentes meios, à reduzir o sexo à sua função reprodutora, à sua forma heterossexual e adulta,e  à sua legitimidade matrimonial  não revela, sem dúvida os múltiplos objetivos visados, os múltiplos meios empregados nas políticas sexuais que se remetem aos dois sexos,  à idades diferentes, às diversas classes sociais.” (Foucault, 1976:136))

A representação do sexo, aqui, é a justificativa da diferença que consagra a hierarquia e a dominação, onde o feminino é frágil, inseguro, dependente, irracional. Daí a  materialidade da violência e da apropriação dos corpos conjugados no feminino, a inferiorização hierárquica “natural”, que se expressa nas famílias, no espaço público, nas chefias,  nos cargos de decisão, nos salários desiguais para trabalhos iguais.

Esta repartição não escapa a Foucault, apesar de não desenvolver especialmente este tema. Assinala,  entretanto, que a sexualidade, da qual os corpos das mulheres são inundados, é fruto do dispositivo em ação,

“ [...] é um ponto de passagem particularmente denso para as relações de poder: entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e alunos[...]utilizável para o maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de confluência às estratégias mais diversas. (idem) (Foucault, 1976:136)

Colette Guillaumin, neste sentido, é incisiva em sua análise da apropriação social do feminino e em sua perda de substância enquanto sujeito: “ as mulheres são um sexo, mas não possuem um sexo. Um sexo não pode possuir a si mesmo”   ( Guillaumin, 1978:7) .

Foucault(1976:137)  sublinha a histerização do corpo das mulheres como uma das estratégias do dispositivo, cuja essência estaria atrelada a uma certa patologia de carência, de castração,  de privação, pois o sexo seria.

“[...]o que pertence por excelência ao homem e falta à mulher ; como o que pertence em comum ao homem e à mulher. mas ainda como o que constitui totalmente o corpo da mulher,  ordenando-o todo às funções de reprodução e perturbando-o sem cessar pelos efeitos desta mesma função; a histeria é interpretada, nesta estratégia, como o jogo do sexo enquanto  ´um` e ´outro`, todo e parte, princípio e falta.”(Foucault,1976 :201/202)

Constroem-se corpos  em sexo-mulher, sexo-feminino, segundo-sexo, a mulher, singular que apaga toda a multiplicidade de humano transformado em corpo unificado, em pura biologia funcional: seu destino é a procriação da espécie, sua função é a maternidade . O sexo social é instituído na politização da anatomia, como afirma Nicole Claude Mathieu. (1991) ) desdobrando-se na divisão do público e do privado, este último destinado às mulheres,  que as confina e  desqualifica para o espaço público. Os sentidos contidos na linguagem são explícitos: Mulher pública não tem a mesma conotação  que  homem público  e remete claramente à sexualidade feminina apropriada..

Deste modo, o dispositivo da sexualidade em seus múltiplos tentáculos e em suas estratégias e técnicas  investe na construção do binário não apenas patologizando os corpos das mulheres, mas e sobretudo, criando esferas distintas de pertencimento, de atuação e poder, em torno do feminino ou do masculino ;  desde a infância e na adolescência, o dispositivo da sexualidade em ação utiliza pedagogias corporais que criam diferenças e instituem o feminino e o masculino em sexos e corpos separados, já que “diferentes”. Cria materialidades em torno destas categorias organizadas de forma binária e hierárquica, pois, de fato, somos mulheres e homens no social, assim instituídos, assim assujeitadas/os. Ou não.

Beleza e juventude são condições sine qua non da “verdadeira” mulher. Falta de graça, formas imperfeitas e é o desterro, a marginalização social. Para os homens, entretanto, não há padrões corporais, desenhos especiais aos quais tenham que se adequar  –  seus perfis são múltiplos, não se concentram em características pré-determinadas, não arriscam suas vidas em cirurgias absurdas, não utilizam roupas e calçados que impeçam seus movimentos e conforto, a idade não representa problema; apossam-se sem cerimônia dos espaços públicos de passeio e diversão, investem os bancos, as pernas abertas, espalhados, à vontade. As mulheres, por sua vez, encolhem-se para evitar o contato, pernas cruzadas, protegendo do olhar o que as define e qualifica e as torna vulneráveis: o sexo. Apoderam-se os homens do lúdico e do gratificante, empurrando as mulheres para sua especificidade: o doméstico, as crianças, as panelas ou ...a sedução,  bocas e olhares sensuais, mais um prazer a ser desfrutado, tristes trejeitos de corpos expostos para serem desejados.

A sexualidade se cria assim já, desde a infância,  em instâncias binárias de poder específicas em cujo ápice se encontram  aqueles que podem desejar e  se apropriar de corpos/ sexos colocados à sua disposição. Na “iniciação” ao sexo dos meninos, na compra de um corpo,  percebe-se,  não apenas a incitação à apropriação do feminino, mas o processo político de diferenciação do humano, expresso em sexo social e em sexualidade.

A criação da diferença, em suas condições específicas de produção, constitui, assim, uma tecnologia política de poder, justificado pela construção dos corpos instituídos em biologia de forma binária. O bio-poder, afinal, em seus discursos de verdade não cessa de reiterar realidades corporais, em torno de essências biológicas; fixa  papéis e funções pré-determinados ontologicamente, desenha materialidades tomadas como a verdade do ser.

Para Foucault, o sexo é vetor de valores e articulador de relações sociais:

“[...] a noção de ´sexo`permitiu agrupar segundo uma unidade artificial elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações, prazeres e  permitiu o funcionamento desta unidade fictícia como princípio causal, sentido onipresente, segredo a ser descoberto em toda parte: o sexo, portanto, pode funcionar como significante único e significado universal. ( Foucault, 1976 :204)

Restritas as possibilidades de polissemia,  o sexo passa a ser significado como essência, como identidade, como causa e motor de ação. O sexo social – mulher e homem – aparece como “natural”, perdida sua historicidade.  Inverte-se aí a questão, pois como vimos, este sexo categorial  é criado em condições de produção e imaginação específicas e históricas, levado porém, ao domínio da natureza, da espécie, do indiscutível, do sempre foi assim, , escondido para melhor ser encontrado no desabrochar de um feminino /masculino imutáveis, já que ditos ontológicos. Quem não tem em mente o homem das cavernas arrastando uma mulher pelos cabelos? Esta imagem é típica de uma representação social de violência e posse enraizada no imaginário, repetida pela mídia e pela história, recriada sem cessar na materialização das relações humanas binárias.

É este deslizamento dos sentidos produzidos aqui e agora para o domínio do atemporal que fazem do sexo social um  destino biológico restrito para as mulheres, fechadas na concha de seu sexo, atreladas a tarefas de maternagem e cuidado.

O discurso do “natural”, de fato, instala o Mesmo na história e na imaginação, retirando das mulheres a presença, a capacidade, a atuação no político e na história. O sexo feminino segue imutável ao longo dos séculos, entre fraldas e panelas, segundo uma história androcêntrica ,naturalizante e a-temporal na qual o genital e o biológico determinam as funções sociais. Em sua análise da construção dos corpos sexuados, Judith Butler insiste sobre a naturalização do desejo heterossexual, cuja identificação à essência do sujeito generizado é

“[...] um efeito discursivo sobre a superfície dos corpos, uma ilusão de um gênero organizado do interior, uma ilusão discursiva que regula a sexualidade no molde da heterossexualidade reprodutiva.”(Butler, 1990:136)

As críticas feministas à naturalização das relações humanas, a uma história concebida e narrada sobre e pelo masculino abre o horizonte de percepção para sociedades plurais, constituídas por  formas que  não se fixam no biológico. Buscar no passado estas formulações é o que chama a escrita de uma história feminista, de uma história do possível: o olhar se volta para espaços e temporalidades diversas sem a forma e o modelo do binário.

Uma história das práticas sociais/ sexuais em suas condições de imaginação e produção especificas mostra, desta maneira, o múltiplo das formações sociais, cuja organização nada pode assegurar que se faça em torno do sexo ou da sexualidade. Esta é a história do possível, da construção do humano em seres sociais, sem a pressuposição do natural e do sexo enquanto medida do humano. O trabalho de Saladin d´Anglure (2006), sobre os Inuits, de Gayle Rubin(1975), entre outros, revelam, por exemplo, relações sociais onde o sexo biológico não determina o pertencimento social de seus indivíduos.. O pressuposto, aqui,  é que  o sexo social ancora nos corpos um sexo biológico ou como diria Judith Butler, é o gênero que constrói o sexo, assim forjado em práticas sociais. Incontornavelmente históricas e plurais. Em suas palavras:

« […] o gênero não está para a cultura como o sexo está para a natureza; o gênero é a significação cultural/discursiva pela qual a ‘natureza sexuada’ou o ‘sexo natural’ é produzido e concebido como um elemento pré-discursivo, uma superfície neutra, sobre a qual a cultura pode trabalhar.” (Butler, 1990:7)

            O regime de verdade atual, definido por Foucault,  no qual ainda se produz um conhecimento universalizante, vem expressando, em valores e representações, uma interpretação do mundo: inunda o passado  dos sentidos e significações construídos em história  ou seja, construindo corpos a partir de seu significado social presente, instituindo diferenças a partir de um modelo arbitrário, homogeneizando as relações humanas em torno do sexo, normatizando práticas sexuais a partir de uma heterossexualidade referencial, tida como universal e natural, em torno da procriação.

Injunção divina? Os integrismos diversos se unem para melhor oprimir brandindo a norma.  A história se fecha em torno do Mesmo, repetindo à exaustão o binário, numa temporalidade sem tempo, sem marcas, sem contornos: masculino e feminino se reproduzem nos discursos do natural, que roubam das práticas sociais sua historicidade.

Se a sexualidade é polimorfa, na visibilidade permitida hoje no Ocidente, as significações do sexo, enquanto significante geral, estacionam na iteração de representações sociais, que compõem as imagens da mulher verdadeira, aspirando e revolvendo em torno do desejo masculino. A representação do sexo, então, além de construir corpos e molda-los em formas pré-concebidas, é caminho de assujeitamento, pois só se encontra na ordem do discurso quem dele não destoa. Só é verdadeira, a mulher, no singular, que seduz e procria.

Desta forma, o sexo social , ao criar o  sexo biológico institui no mesmo movimento as instancias de poder em que se politizam as relações humanas. Verdadeira mulher, verdadeiro homem, estas imagens estão atreladas ao verdadeiro sexo, a este construto ideal, a este aparato anatomo-político que dobra a multiplicidade do humano em patamares binários de verdadeiro/ falso, de dominador / dominado, de referente e diferente.

É assim que nas estratégias de controle e disciplina,  a própria construção dos corpos sexuados femininos e sua “diferença” constitui tática política de exclusão e dominação, que se reproduz no discurso da ciência e sobretudo, das narrativas de uma história imutável, sem historicidade, sem memória, expandindo-se na dinâmica do dispositivo da sexualidade, nas generalidades dos significados que habitam as noções de cultura, identidade.Os direitos humanos das mulheres, por exemplo, não podem ser esquecidos ou apagados em nome de normas culturais ou religiosas,em preceitos da ordem do “natural”. Mas afinal, são apenas mulheres....

 O dispositivo amoroso

A domesticidade e a procriação como destinos biológicos das mulheres vem sendo afirmada e repetida nas diferentes instâncias de poder e dos discursos sociais, com uma ênfase especial no século XIX e XX nos quais as mulheres foram construídas como a mulher nas práticas médicas, psiquiátricas, psicanalíticas, biológicas, e no surgimento/consolidação das ciências humanas enquanto tal.

Aparato de produção de conhecimento e de verdades, as ciências solidificam a imagem e a representação da diferença no sexo e também na raça, peles negras, sexo feminino, âncoras que fixam as mulheres  em seus lugares “naturais”; brancas ou negras, escravas ontem, subordinadas hoje, inferiores sempre.

Entretanto,  entre as mulheres, diferenças e assujeitamentos também são produzidos. Como diz Margareth Rago, “os feminismos vieram para libertar as mulheres DA mulher”. Nesta ótica, não apenas as mulheres reagem e atuam de forma singular face às normas do sexo-categoria e isto é apagado dos discursos sociais sob a denominação “a mulher” ;  igualmente o  dispositivo da sexualidade se desdobra em estratégias diferenciadas ao fundamentar e criar feminino e masculino.

Foucault, neste sentido, observa que

“ Se é verdade que a ´sexualidade é o conjunto de efeitos produzidos nos corpos, os comportamentos, as relações sociais por um certo dispositivo oriundo de uma tecnologia política complexa, é preciso reconhecer que este dispositivo não atua de maneira simétrica aqui e ali, que não produz, portanto,  os mesmos efeitos.(Foucault, 1976:168)

 Assim, podemos distinguir dentro do dispositivo da sexualidade duas tecnologias políticas de construção do feminino: a primeira, identificada como heterossexualidade compulsória ( Adrienne Rich (1981)e Monique Wittig (1980)) e a segunda,  que eu nomeio dispositivo amoroso, criando e investindo os corpos femininos em  assujeitamento e controle. São duas instâncias que se desdobram e se entrelaçam simultaneamente. A heterossexualidade compulsória não é apenas a injunção a uma sexualidade unívoca: é todo o aparato de construção do feminino, em torno do sexo-categoria, da castração, da falta. É também a obrigação social de seduzir, de ter como objetivo principal o casamento, cerimônia investida de todos os louvores, “ o dia mais importante de minha vida”.

A heterossexualidade compulsória, para as mulheres é todo o aparato do dispositivo da sexualidade em ação, numa economia do desejo de outrem, do prazer de outrem, da sedução de outrem. A injunção à beleza é mais forte que a própria vida, e os distúrbios alimentares não deixam dúvidas a respeito. Seduzir e agradar são até mesmo colocados como poderes para as mulheres, insidioso discurso que inverte os termos da apropriação para melhor exerce-la. Do mesmo modo, classificar a prostituição como trabalho é justificar a degradação para melhor manter as mulheres prostituídas em seus devidos lugares, de corpos e orifícios disponíveis. Esta é uma tática política que mantém e reproduz a apropriação social dos corpos das mulheres.

A heterossexualidade compulsória e a prostituição, nesta ótica, são o sistema patriarcal em ação modelando corpos femininos em torno da diferença, da procriação, da posse,  atribuindo-lhes  papéis e funções numa economia do dever. Mesmo atuando no espaço público, as mulheres padecem deste sistema quando atribuem a si mesmas as tarefas domésticas, pelo simples fato de serem mulheres. De fato, as tarefas em si não são desqualificadas: os famosos e requisitados cozinheiros, cabeleireiros, estilistas são homens; a desqualificação vem quando são realizadas por mulheres.

Por outro lado, e imbricado estreitamente a este sistema, o dispositivo amoroso atua no sentido de envolver em emoção todas as injunções sociais relativas às mulheres. Tomo aqui a explicitação de dispositivo tal como enunciada por Foucault:

“ O dispositivo [...] está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a  uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por elas” (Foucault, 1988:246)

Esta acepção de dispositivo permite melhor desvelar a historicidade absoluta das relação humanas e a impossibilidade de atribuir ao passado os mesmos valores e representações do presente. É assim que em nosso agora o dispositivo amoroso aciona imagens, representações, valores, normas, leis, instituições, costumes, discursos plurais: da religião, da tradição, de uma memória recortada, de uma história truncada, de uma ciência marcada por estratégias de convencimento e de estabilização de normas .

É assim também que as mulheres tem, fixadas em seus corpos de fêmea, o selo do cuidado, da maternagem, da sensibilidade, sob o signo do amor. O amor marca nas mulheres o que o sexo representa para os homens: vórtice, objeto de desejo, aspiração maior, torno de modelagem, centro de gravidade; o amor é invocação, é suspiro, é poema, é vertigem, é expressão e necessidade, é corpo. Pelo amor as mulheres, assim instituídas, são capazes de qualquer coisa, sacrifício, submissão, despojamento. A estética da existência, para as mulheres, é atravessada e constituída pelo dispositivo amoroso e pela heterossexualidade compulsória, pilares de seu processo de subjetivação, ligadas à necessidade de renúncia e desprendimento. É a economia do dever e do amor que compõem a estética da existência dos corpos-em-mulher.

Não basta, assim,  identificar a construção do sexo através de suas práticas, através de uma  incitação  cada vez maior de sexualidade pois a economia do prazer, por sua vez,  não se encontra apenas em um rápido e indigente orgasmo. Nem nos corpos, seus orifícios e superfícies já que o ato perde importância face à imaginária categoria sexo.

A pergunta é: a que e a quem  serve a louvação e exacerbação da sexualidade , criando o referente e a  diferença binária, (o feminino e o masculino/ heterossexual e homossexual) a norma e a exclusão?  Numa sociedade patriarcal a apropriação social dos discursos se imbrica à apropriação social dos corpos por eles engendrados, numa circularidade onde não se identifica causa e efeito. Nos sentidos, porém, veiculados em seus enunciados, na inteligibilidade social conferida à divisão do humano, encontra-se a sede de um poder difuso, mas solidamente ancorado na politização da anatomia.

 Foucault  sublinha a materialidade das relações que se concretizam no social a partir dos discursos sobre sexo e sexualidade:

“ [....]  é preciso interroga-los nos dois níveis de sua produtividade tática (que efeitos recíprocos de poder e saber asseguram) e de sua integração estratégica ( que conjuntura e que relação de força torna sua utilização necessária em tal ou tal episódios dos afrontamentos diversos que se produzem)” (Foucault,1976:135)

O dispositivo da sexualidade e o dispositivo amoroso além atravessarem   a sociedade como um todo, não cessam de reproduzir formas e forjar destinos em corpos, diferenças, hierarquias, formas de assujeitamento. O sexo-categoria, as práticas de sexualidade definem hoje o poder do masculino sobre o feminino como incontornável, inevitável, fundado na natureza e na memória social, matrizes de identidade e inserção social. A política dos corpos ( a politização da anatomia)em sua rede de significações, remete o sexo ao poder binário e  equívoco de um- referente- sobre o outro- diferente E este poder é atravessado de violência,  do crime, de mutilações físicas ou psíquicas.O cinema, a televisão, os jornais não economizam imagens e representações desta sexualidade manchada  de sangue, atravessada pelo gosto da morte.

Os feminismos tem estado atentos a este sexo-categoria, sexo social que permite e estimula práticas de violência e de apropriação das mulheres, assim constituídas, pelos homens. Entretanto, as relações sociais são, sobretudo históricas e são apenas os discursos naturalizantes que fazem destas relações de poder um recorte da natureza. Nem os homens são violentos por natureza, nem as mulheres são inferiores ou submissas naturalmente; são, ambos criações sociais, mas sua materialidade é indiscutível e a violência da apropriação é contundente.

 Uma estética da existência,  tomada como a construção de subjetividade na crítica aos aprisionamentos é o que  propõem os feminismos. Foucault afirma que as relações de poder-saber, os regimes  que fazem circular valores com efeito de verdade, além de definir repartições e modelos, são também “matrizes de transformação” (Foucault,1976:131

São estas transformações nas relações humanas que motivam os feminismos, na recusa do bio-poder, da politização da anatomia, na instituição da diferença, em    estratégias de liberação. Pois não é a desigualdade que traça a divisória entre os sexos, mas a própria idéia de diferença, baseada na anatomia, circunscrita ao sexo. O sexo-categoria tornou-se prisão e a sexualidade exigida os grilhões que transformam o humano em mulheres e homens, enclausurados em poder e submissão. Se a análise dos gêneros permitiu a identificação das técnicas políticas que os constroem, é o seu desaparecimento que promete transformações no social, pois, como afirmar Judith Butler, não há sexo  fora de práticas de gênero.

A exacerbação da sexualidade é o aprofundamento da marca do sexo nos corpos, da fixação  de identidades e das normas regulatórias, fundamento de hierarquias e dominação. Paradoxalmente, a sexualidade como exaltação de vida traz em suas prática o gosto e o signo do vazio e da morte.

A exposição da sexualidade, sugerida ou explícita, esvazia o desejo em sua representação. É assim que o paroxismo mata o desejo e faz do sexo exercício de puro poder. O frenesi imagético preenche  este vazio com a ânsia das práticas repetidas  e esta mesma repetição engendra sua vacuidade. . Viagra e outros apontam para uma impotência generalizada em que o exercício da sexualidade é necessidade fictícia.   A morte ronda na violência que se revela cada vez mais necessária à excitação sexual, cada vez mais presente nos relacionamentos humanos.

Uma estética da liberação orienta um processo de subjetivação insurgente, ativo e não apenas reativo, para além da sexualidade como necessidade, como natureza, como eixo de identidade, dando-lhe o lugar que lhe cabe: apenas uma das expressões do humano.                

Neste sentido, Foucault caminha com os feminismos, pois afirma que:

«  É da instancia do sexo que é preciso se libertar, se  por uma reversão tática dos diversos mecanismos da sexualidade, queiramos afirmar, contra as tomadas do poder, os corpos, os prazeres, os saberes em sua multiplicidade e possibilidade de resistência. ( Foucault, 1976:208)

Referencias

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GUILLAUMIN, Colette 1978. Pratique du pouvoir et idée de Nature, 2.Le discours de la Nature, Questions féministes,no3, mai, p.5-28.

Mathieu, Nicole-Caude.(1991) L’anatomie Politique, catégorisations et idéologies du sexe.Paris, Côté Femmes.

WITTIG, MONIQUE. 1980. « La pensée straight ». Questions féministes, Paris, Ed. Tierce, février, n.7.

Jodelet (dir.),  Les représentations sociales, Paris, Puf, 1989..31-61.

FOUCAULT,Michel. 1976. Histoire de la sexualité, la volonté de savoir vol.1, Paris, Gallimard

RICH, Adrienne .1981) La contrainte à l'hétérosexualité et l'existence lesbienne, Nouvelles Questions Féministes, Ed. Tierce, mars , n01, p.15-43 

RUBIN, Gayle. 1975. “The traffic in Women: Notes  on the “political Economy of Sex” in gReiter, Rayna, R. Toward an Anthropology of Women, New York an London, Monthly Review Press

SALADIN D´ANGLURE, Bernard. 2006. Etre et renaitre inuit, homme, femme ou chaman.e Paris, Gallimar