“A doce canção de Caetana”: meu olhar.[1]

tania navarro swain

“ Le texte est  (devrait être) cette personne désinvolte qui montre son derrièrre au Père Politque »

Roland Barthes, Le plaisir du texte.

 

 

“ Por todos os recantos árvores agônicas e vacas soltas no pasto, com carrapatos à mostra. As frutas pelo chão provocavam-lhe melancolia. “ (217)

Esta frase dá o tom da narrativa.

Vejo-me, de chofre, envolta em um torvelinho de calor e poeira, quase posso sentir o cheiro de esperma e mediocridade que esculpe os habitantes de Trindade em  memória e frustração.

A tristeza, a velhice pontuam os passos que vão do bar ao bordel, os corpos fenecidos  agarram-se a lembranças para espantar o peso das carnes amolecendo, das esperanças anoréxicas, dissolvidas no suor e nos minutos inexoráveis de um cotidiano banal. Sinto-me presa de um universo masculino, de um soletrar de desejos esfarrapados e violentos em sua vacuidade.  

O centro é Polidoro, ( pensei que seria Caetana)suas relações hierárquicas com  amigos, esposa, mulheres, assentado em uma riqueza que lhe dá prestígio e poder. Vive em torno de seu sexo, cuja potencia vai se tornando duvidosa, e, sobretudo vive na evocação de brechas de paixão, nichos de surpresa no desvelamento de algo que está além do frotar de corpos: uma insistente imagem de mulher, envolta em halos de sonhos esquecidos. Mas suas emoções se concentram apenas em embates sexuais, suores e humores empestando os quartos.

Eu, leitora, desfaleço aos poucos nesta atmosfera de agonia, onde todos vivem vidas emprestadas, estéreis resumos de textos para sempre incompletos. Apenas o sonho e a imaginação alimentam os personagens, afogados na banalidade, fazendo esquecer os colchões manchados, as paredes rachadas, os corações perdidos no apito do trem. E o sonho tem um nome: Caetana.

Caetana que tarda a chegar, nas páginas do livro e na vida das pessoas, Caetana, caudal de todos os amores e esperanças, trazendo de volta a Trindade aquilo que a cidade nunca experimentou: o desafio, a ruptura, a quebra dos invólucros, dos estereótipos, das ousadias, que cada qual esconde em suas perplexidades, feitas de solidão, de entranhas invadidas, de contabilidades múltiplas, nesta sórdida economia de desprezos e hierarquias que constroem homens e  desqualificam  mulheres.

Que imaginário é este, que tece  caminhos de encontros e desencantos, que me faz suspirar de desalento diante de um masculino tosco e sem retoques, conjugado em sexualidade e (im) potencia, de um feminino presente apenas para abrir ou fechar as pernas, segundo a vontade do freguês,  da vida, do destino? Na mesquinhez do bordel, onde não se encontra afeto – apenas entre as próprias mulheres-  pendura-se o retrato da miséria de um feminino entre a submissão a um destino de violência e enfado  e o medo da velhice, dos corpos gastos, dos sonhos perdidos em  gosto de suor e gestos de desamor.

A questão que me coloco, reecontro-a em Barthes:

“Porque em obras históricas, romanescas, biográficas, há ( para alguns, eu entre eles) um prazer de ver representada a vida quotidiana de uma época, de um personagem? Porque esta curiosidade dos pequenos detalhes: horários, hábitos, refeições, habitação, roupas, etc ? Seria o gosto fantasmático da realidade [...]E não é o fantasma, ele próprio que sugere o ´detalhe´, a cena minúscula, privada, na qual posso facilmente tomar lugar ?  » ( Barthes, 1973 :85)

Talvez  as dobras dos lençóis usados, o mofo cobrindo as paredes, o farfalhar de  tecidos já gastos tenha uma aura de voyeurismo que convoca exauridas imagens de um interdiscurso recorrente: o deslizamento da luxúria para a melancolia,  para a tristeza de passos arrastados, que sobem agora com dificuldade ao quinto andar, andar das delícias, das recordações, dos encontros abrasivos. Hoje, apenas a obscuridade de um vulto, Caetana se esconde, se esquiva, seu desejo agora nada tem a ver com  a lascívia. Caetana, caudal de desejos e imagens, deseja apenas realizar seus próprios sonhos.

            Quem fala, quem desenhou estes perfis, esta trama, quem auscultou intimidades e penetrou quartos, almas, desejos, quem, de fato, os criou em palavras, para trocar comigo a experiência da (in)sensibilidade e do desconforto de um cotidiano empoeirado com as relíquias de um viver em busca de alguma coisa além do olhar, do horizonte, de um arco-íris sem chuvas? Este incomodo que sinto ao ler teria sido desejado, produzido para minha inquietação, imaginado para me arrastar no pó até não poder mais e suspirar por uma trégua, uma água, um abrigo, uma pausa?

Nélida Piñon escreve para melhor me  interromper em meus descaminhos.. Quem pode saber sua intenção,  seus tropeços e  desânimos, seus momentos de euforia e desgosto face a seus personagens, face a mim, que vou , mesmo sem querer, julga-la, perscruta-la em sua produção, em suas palavras , inquiri-la e questiona-la em sua criação?

A única certeza aqui é que ao ler, estou reescrevendo a história imaginada pela autora, partilhando com ela esta garimpagem de emoções, lá onde o riacho parece estar secando e as bateias se extenuam a raspar o fundo de um cascalho estéril. Na multiplicidade dos sentidos presentes em seu discurso, eu escolho os meus, eu crio as relações, os poréms, os desvios, os contornos; abro meus próprios horizontes, percebo detalhes escondidos pela autora, talvez desconhecidos por ela, minhas feridas desvendam mistérios.

 Que importa suas intenções, afinal, se é o meu olhar que percorre as linhas e se são meus os significados encontrados? Eu sou também autora de seu livro e neste ato não há plágio, há expansão, há criação múltipla.

 Partilhamos um local de fala social: somos mulheres, assim construídas e denominadas neste “quando” e neste “onde” , cujo imaginário e seus valores nos atravessam ao tomarmos a palavra. Eu, feminista, aponto meu lugar de fala. Ela, autora, na maestria de sua arte, expõe as condições de produção e de significação de  seu discurso. Ao publicar seu romance, paradoxalmente, perde seus direitos sobre ele, já que os sentidos nele contido se expandem a cada leitura..

Não estou só nesta leitura múltipla, ouço ainda  a voz de Barthes, que me sustenta nesta exaustiva tarefa de ler e criar ao mesmo tempo. Diz ele:

 “ Porque o desafio do trabalho literário ( da literatura como trabalho) é de fazer do leitor, não um consumidor, mas um produtor de texto [...] Ler, é encontrar sentidos e encontrar sentidos é nomeá-los ; [...] é uma nomeação em devir, uma aproximação incansável [...] (Barthes, 1970 :11  / 17)

            Crio, portanto, em minha leitura, um novo texto cuja interpretação é atravessada pelas minhas próprias condições de imaginação, de meu tempo e meu lugar de fala.

Nesta perspectiva, percebo Nelida Piñon como canalizadora das condições de produção nas quais está inserida,  como bem sublinha Foucault:

«  O autor, não compreendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento  do discursos, como unidade de origem de suas significações, como centro de sua coerência.  (Foucaul, 1971 :28)

   As imagens e representações sociais do feminino e do masculino que habitam  este romance e  constroem sua trama apontam para uma pesada divisão de poderes e importância na sociedade, cujos valores ficam impressos no texto. Algumas superfícies discursivas apontam para a construção / reiteração de papéis e representações sociais:

“Diana nutria secreta inveja das mulheres que nas cozinhas salpicavam a vida com açúcar, no exercício de uma arte em cujo nome consentiam em ser trancadas nas alcovas sem janelas e ainda assim suspirar de alegria. Um júbilo que lhes vinha através do forno em chamas, onde assavam as mais saborosas fantasias. E que as livrava de serem putas como ela” (Piñon, 1987:87)

“Não adianta disfarçar, Francisco. Sua cara é de quem não tem mulher na cama nem comida quente na cozinha.” (idem,:114)

“- Que tio é este que em vez de aconselhar a sobrinha a aceitar uma casa posta em Trindade, onde teria um pomar com árvores frutíferas, um galinheiro, ovos frescos pela manhã, e dinheiro no banco para comprar o que lhe fizesse falta, corrompeu o espírito da sobrinha com o intuito de faze-la andar por esse Brasil afora, junto com uns ciganos condenados pela miséria e pela ilusão esfarrapada?[...] Chega de sonhos, seu Vespasiano. O senhor não tem pejo de destruir uma vida?” (idem:120)

A cena doméstica, o casamento como destino social, a cozinha e o quarto onde a sexualidade confinada as conduzia para o caminho da “verdadeiro mulher”, cujo avesso é a trilha do bordel, da pensão mal afamada, reiteram e criam ao mesmo tempo o espaço de normatização: o trabalho das mulheres, na produção do que se nomeia “privado”, a apropriação de seus corpos , marcados pela norma social , garante aos homens uma satisfação gratuita de seus desejos sexuais e uma manutenção, gratuita também, de suas necessidades cotidianas, de sua prole e de suas propriedades.

Colette Guillaumin resume esta condição social feita às mulheres:

“ A apropriação material do corpo  das mulheres, de sua individualidade física tem uma expressão legalizada: a relação contratual do casamento. Esta apropriação é concreta e material, não se trata de alguma ´figura´ metafórica ou simbólica.[...] Ela se manifesta pelo objeto do contrato: 1) o caráter gratuito do trabalho da mulher.2) a reprodução, os filhos são do marido, seu número não é fixado. Ela se manifesta pela tomada de posse física material, o uso físico  que, em caso de ´desacordo´  sanciona o uso da coerção, dos golpes”(Guillaumin,1978:28)

Este romance, escrito há 20 anos, transita pelo interdiscurso[2] e pelo imaginário social, recriando significações hoje ainda encontradas  na leitura da narrativa e na materialidade do social, pois, “para que minhas palavras tenham  sentido, é preciso que elas já façam sentido”(Orlandi, 2002:33). A instituição do casamento como valor social é um aprendizado e como tal é reafirmado constantemente para manter sua força e os poderes que engendra nas relações entre o feminino e o masculino. No casamento, apesar das legislações recentes, o homem ainda tem uma posição superior ancorada nas representações sociais e por elas, hoje, referendada , como no tempo imaginário do romance:

“Magnólia é tímida, disse Joaquim, agitando a faca e o garfo no ar.- Além do mais, nesta casa sou eu o papa, não é Magnólia?.

Polidoro riu com o pai. Dava-lhe pública demonstração de que Joaquim, sob o estímulo da família, podia ser brilhante. Pois a vaidade do pai alimentava-se desses detalhes. (30)

“ Uma paixão que conseguira arrancar lágrimas de Magnólia, a ponto de Joaquim, na sala escura, dar-lhe uma cotovelada sob pretexto de que comprometida sua honra em público. Pois como iria a mulher comover-se com o sentimento de dois amantes que feriam a sociedade?. Em casa, recriminara-lhe a descontinência moral.(34)

“ Atenta a seus deveres caseiros, a mulher não lhe ouviu os reclamos. Talvez estivesse no galinheiro a recolher os ovos.[...]Magnólia apurava-se em examinar a casca branca manchada de sangue da valente galinha. E no afã de exaltar o animal, falava dele como de uma irmã abatida no rigor de uma guerra.

Joaquim, insensível a  seus argumentos, contrapunha-lhe:- E o que tem uma galinha mais que uma mulher? (31)

“ Pelas batidas na porta, Narciso suspeitou de visita feminina. Um toque sem firmeza nem força de vontade.

“ – Para você, mulher só serve para estrebuchar debaixo de suas virilhas”(135)

“ Tomado às vezes de fervor bucólico, Virgílio chamava as mulheres da casa da Estação de vacas sagradas do rio Ganges.[...]- As vaca tem aparência desprezível, mas são capazes de mugir por mais de vinte horas sem demonstrar qualquer fadiga” (54)

“ Ele jamais a levava em consideração. [...] Para ele, ela não passava de uma fonte de ordem caseira e de reprodução humana, embora Joaquim houvesse apreciado as terras e o gado que trouxera como dote” (287)

“ As mulheres nunca sabem o que querem. Por isso sonhamos por vocês e reformamos o mundo sem consulta-las, disse e afastou, ufano, com suas ruidosas botas de cano largo” (323)

A desqualificação está presente em todos os momentos, mas não só na relação marital, na própria representação do ser conjugado no feminino.

As matrizes discursivas que atravessam as páginas relativas ao casamento de Polidoro e Dodô são expressivas: ira, vingança, enfado, melancolia, peleja, recriminação, desafio, ressentimento, piedade, prudência, percalço, precaução,  agredi-la, amaldiçoa-lo. Em apenas três páginas (7-10) Assim, Polidoro,

“Não resistiu ao desejo de agredi-la de uma vez por todas. De dar término a uma situação que lhe dificultava a respiração matutina. Sentiu-se tentado a enviar-lhe por escrito, um recado contundente, cada palavra convocando Dodô a enfurnar-se na fazenda. “(9)

“ Confrontada com outra negativa, Dodô ergueu-se, voluntariosa, fazendo questão de oferecer-lhe a visão de um corpo que há anos ele se esquivava de tocar, ao menos em obediência a um gesto nascido da piedade. Como se a fuga ao leito conjugal parecesse ao marido uma decisão que ambos haviam pactuado em discussão amena.” (8)

“ A sós com a filha mais velha, Dodô protestava contra a insólita situação.

-Ele só age assim para se vingar. – E por que iria o pai se vingar? A senhora lhe deu três filhas saudáveis e terras como dote. A filha recolhia as palavras salgadas da mãe em meio aos perdigotos que ia derramando em torno. E dava particular ênfase à fortuna como meio de lançar a mãe à única reflexão que de fato a acalmava e da qual emergia disposta a tomar iniciativas indispensáveis para enfrentar o marido omisso. (9)

O desconforto é tão intenso que tarda a desaparecer à leitura de uma violência simbólica, feita de desprezo, por um lado, e de revolta, por outro. Mesmo trazendo ao casamento dote e filhas, nada eleva Dodô acima de seu envelhecimento,  pois o que é ela, afinal, se seu corpo já não é mais cobiçado, em que espelho abandonou sua juventude e seu prazer? Casamento feito de desafeto e de interesse, de usura e de enfado. Como tantos.

Nesta ordem institucional, o casamento é perversão de relações , é ausência de sentimentos, de emoções, de prazer. Além de ser o lócus de uma hierarquia naturalizada, que lhe dá a força do inquestionável. Em 1987, época de publicação do livro, já havia, nos feminismos contemporâneos,  uma mobilização social e uma intensa produção teórica crítica:  desmascarava-se a ordem patriarcal, fundada sobre o casamento e a heterossexualidade procriadora, como o sistema basal de dominação das mulheres e de criação de uma diferença biológica , âncora de todos os desníveis e desigualdades.

Para Carroll-Smith Rosenberg que estuda relações entre  mulheres na época vitoriana,  estas reaparecem na história, em uma realidade próxima e ao mesmo tempo alheia aos padrões com os quais se costuma analisar os séculos XVIII e XIX. Ou seja, a materialidade dos indícios documentais abre um extraordinário panorama de relações femininas – a solidariedade, a constância,  a solidez e o fervor amoroso-  que  indicam o curto lapso de tempo em que a heterossexualidade compulsória tornou-se a chave dos afetos e emoções das mulheres.

  A sororité, entretantotão almejada pelas feministas dos anos 70 ficou perdida em alguma dobra do tempo,entre o século XIX e XX, esquecida no assujeitamento das mulheres à normas, na busca de uma inserção social que passa pelo masculino.

É assim que Dodô, a esposa de Polidoro, só pensa em vingança e destruição:

“ A puta voltou! Aplausos para ela!” (324   )berra a faixa que anuncia o espetáculo de Caetama.

“[...] conseguiu expulsar a cunhada e ficar sozinho com Dodô. Quem sabe ela revelaria os planos concebidos contra Caetama. – O que você quer afinal? – De volta o que é meu, respondeu ela. [...] Dodô não desanimou. Dispunha-se a traze-lo de volta para casa a qualquer preço Se o corpo há muito esfriara sua alma, sobrava-lhe ainda o ânimo de guerreira. (304) “

Em 2007, o casamento é ainda uma representação social de pregnância incontestável: as revistas, a televisão, os mídia em geral, as religiões louvam o casamento e a família tradicional – homem, mulher, filhos-  como esteio e marca  de inserção social. As modificações que hoje se apresentam  como as famílias mono - parentais, as famílias homossexuais, apesar de mostrarem o múltiplo das relações humanas,  permanecem marginais em relação à instituição formal do casamento e da família tradicional. No discurso, mas fora da ordem do discurso, da norma social.

Não vejo, entretanto,  a literatura, a produção artística como uma reprodução do real; elas se fundam em condições de produção e de imaginação e em seu discurso revelam os valores que as construíram e que por sua vez modelam a realidade em sua pesada materialidade. Se pensarmos as condições de produção como as circunstâncias de enunciação e o contexto sócio- histórico, (Orlandi, 2002:30) resulta que o discurso literário partilha uma economia de produção de verdades e de circulação de imagens /representações.

Assim, o peso da instituição e sua falência  aparecem  em uma prosa que não lhe dá trégua, já que, das significações contidas no texto, retiro, em minha leitura ativa, a crítica mordaz a uma sociedade patriarcal,que se sustenta  apenas pela reiteração e hábito da violência, da hierarquia, do dinheiro e seus poderes. .Neste sentido, a leitura que reescreve o romance ao significá-lo em outras condições de possibilidade e de enunciação, recusa qualquer imposição de sentido e abre significados múltiplos, a partir dos valores circulantes, das representações do humano e suas relações. O que faz, de fato, a leitura, é problematizar o texto, para além do gosto da narrativa. Em minha leitura, este é um texto feminista.

É desta forma, que a literatura, que compõe o imaginário social não se urde em hegemonias ou  resistências, mas em uma dinâmica radical, que compreende a afirmação e seu contrário no mesmo movimento de construção do real. O imaginário, percebido por Castoriadis como um magma de produção de sentidos pode ser entendido também como uma  circularidade, onde o material e o simbólico se fundem e se consomem, se mesclam e se recusam, no afã de modelar a materialidade. Nesta diligente tarefa a temporalidade se esvai já que as significações sociais não conhecem limites rígidos. Diz Castoriadis:

“Realidade, linguagem, valores, necessidades, trabalho de cada sociedade especificam cada vez, em seu modo de ser particular, a organização do mundo e do mundo social referida às significações imaginárias sociais instituídas pela sociedade considerada. São também essas significações que se presentificam –figuram na articulação interna da sociedade- na medida em que a coletividade pode ser instituída como repartida entre categoria de indivíduos, dividida de maneira simplesmente simétrica ou cindida assimetricamente em e por um conflito interno; na organização das relações entre os sexos e a reprodução dos indivíduos sociais.” (Castoriadis,1995:416)

Nélida Piñon, em sua função de autora, expõe os  farrapos de uma instituição – o casamento- que reproduz e ancora poderes e assimetrias no social. Do mesmo modo, a sexualidade masculina é observada sem complacência:

“ Até aquele dia, as emoções de Virgílio estiveram circunscritas à casa da Estação e aos raros puteiros dos municípios vizinhos. A  vista, porém, das coxas roliças empalideceu de morte. [...] De educação rígida, tateou o sexo às pressas. Ao surpreender-se em ato vergonhoso, forçou uma seqüência de espirros para dar-lhes as costas” (71)”

“ Cercado de uma admiração que Dodô cancelava no recinto do lar, Polidoro levou a mão à braguilha, esquecido de que tinha companhia, ansioso por averiguar se o sexo robusto de fato merecia tantas louvações (74)”

- Quando conheci Caetana, sentia-me um deus. Meu corpo era uma navalha. Mutilava a quem quer que fosse. Ninguém podia me extorquir o gume desta espada. Mas agora, diante do espelho, o que vejo não corresponde a meu coração, que se ilude em ser jovem ainda.” (75)

“O delegado batalhava entre a preguiça e a vontade de abraçar Caetana {...] Secou o suor do rosto e ajeitou com gesto decidido os bagos dentro das calças. A braguilha cerrada deixava-o confiante (224)

“Quem sabe o jovem lançasse dúvidas sobre sua  virilidade, o conselho valendo como insinuação de impotência? Tão avançada esta, que nem a mais esforçada das mulheres daria vida a um instrumento que chegara ao fim de sua melancólica trajetória. Vexado pela suspeita, baixou os olhos em direção à calça. Os órgãos em repouso o intimidaram” (225)

 “ Já pensou o que é fazer amor enquanto uma puta indomável nos dilacera a cara com unhas pintadas de roxo? Onde estivesse Ernesto sonhava. Tinha gosto em liberar os apetites. Por alguns segundos, a luxúria instalara-se nas feições dilatadas” (89)

“ Tudo para alcançar um espasmo que, nascido com o homem, ocupava-lhe o sonhjo até mesmo no minuto anterior à morte. Ilusão de amor pela qual se batiam todos a fim de  reproduzir milhares de vezes no coração o turvo cristal do desejo.”! (2358)

A  autora é implacável e na arte de sua narrativa fica explícita a decrepitude de um social centrado em uma ilusória força masculina, cujo importância se  funda no genital , no fantasma da potência sexual e da posse de corpos alheios. Um masculino unívoco, significado pelo sexo, representado pelo genital, aspirando as emoções e afirmando um poder  que não admite partilhas.

Expulso da sala e do passado de Gioconda, o rosto de Polidoro ardia por causa do álcool e do ciúme. Não se conformava com Caetana, que renunciara a sua tutela para entregar-se a andarilhos que talvez a possuíssem agora, sem respeitar as marcas da volúpia deixadas por ele em seu corpo. Não  podia suportar a idéia de que ela fora feliz sem ele.” (60)

“Polidoro enfureceu-se que outro macho disputasse sua mulher.[...] Jamais concebeu que algum membro inchado de sal e de desejo tivesse escancarado as portas secretas de Caetana, lavando-a de chuva e de luxúria.” (224)

“ A intransigência de Polidoro não cedera com os anos. Ainda hoje queria trancá-la no serralho, impedir-lhe com o cinto de castidade as abluções matinais. Seu percurso era o de um déspota, preocupado com o poder de suas fazenda e zebus” (1687)

“- Não sabem que mesmo em uma democracia há um direito natural?” (138)

“ Tais divagações o entediavam. Desde menino preferia temas concretos, sensíveis ao tato. A alma simplesmente exauria-o. Contrariava a paixão do corpo, que era de molde gorduroso e instável” (168)

Tudo se passa entre as coxas, e as emoções só transitam pelo baixo ventre.

 Mas a perda da virilidade se faz presente quase como um ruído de fundo, ao longo do livro: o clima de envelhecimento corrói os personagens e o meio no qual transitam: até o trem não passa mais pela estação e o mofo  das paredes das casas refletem o desmoronar dos espíritos. Trindade é o espelho de um social falido, onde a morte já está - lá, antes mesmo de tombarem todos os dentes, preocupação que fustiga o cotidiano.

“ O quarto estará pronto até sexta-feira, mas quem de vocês me devolverá os vinte anos que me faltam? O que faço agora com estas rugas e com a articulação endurecida?” (75)

 “ De todo modo, a velhice terminaria por roubar os dentes que ainda restavam” (234)

Os sonhos se resumem a calores e tremores, sexo mole, sexo duro, este é o dilema existencial:

“ Ao instalar-se no assento ocupado antes por Sebastiana, Polidoro recolheu o calor que sua bunda arquejante e volumosa havia deixado. A sensação que subiu por suas coxas, fez-lhe bem. Iludia-se em meio a arrepios, em montar o corpo de Caetana. A imagem, embora fugaz, entorpeceu-o(89)

 A imensa tristeza que me assalta  é a constatação de uma realidade que nos corrói, ontem e hoje,  solidificada em imagens e representações cuja mediocridade  subjuga o humano e o modela em torno de valores irrisórios e diminutos.O sexo como medida do ser naturaliza representações binárias e hierárquicas, históricas e  representacionais, cuja valorização é fruto de  uma intrincada trama discursiva. Ou seja, os mecanismos de sua construção desaparecem pela insistência com que as pedagogias sociais as naturalizam..Assim, o viril se torna inquestionável em sua apropriação dos corpos femininos e da cena política, pois, como sublinha Guacira Lopes Louro:

Tudo que ocupa a posição central é considerado não-problemático, são os outros (os outros sujeitos e suas práticas), que são vistos como derivações ou desvios dessa posição e que são vistos, muitas vezes, como problemáticos[...]Tudo isso que estou dizendo não significa afirmar que, nesses tempos pós-modernos, o centro tenha deixado de ser atraente ou tenha se tornado desimportante, de modo algum. Ele continua lá, reconhecido e sedutor, mas o que acontece agora é que se passa a acentuar o seu caráter de ficção. Passa-se a reconhecer que a posição central é uma invenção, não  é uma posição “naturalmente” dada, é, sim, uma posição historicamente construída como tal ”(Louro, 2006:web)

Ao se criar problemas, porém, criam-se as fissuras da ordem do discurso e é para desestruturar que  Caetana aparece, enfim, apagando esperanças masculinas insistentemente ligados ao sexo, pois seus anseios são outros, é a realização de um sonho, é um último ato de glória antes que as cortinas se cerrem definitivamente. Deste pedaço de mundo, os homens estão ausentes:

“ Nenhum bruto como o delegado poderia de repente invadir o mundo dos cristais, das agonias e de certo tipo de lágrima, após haver afugentado com a picareta as mais genuínas emoções” (222)

 “- Os homens já não me servem. Só lhes pelo aplauso e esquecimento” (262)

“ Caetana recolheu a mão, objeto de insano desejo. Com gesto impulsivo trancou o corpo numa arca imaginária, privando Polidoro de sensações que só ele mesmo alimentava (257)

            Caetana transgressora, construída em outros moldes. Dizia seu tio:

“ Peguei você praticamente nas águas do Nilo dentro de uma cestinha. Preferi eu mesmo educa-la que mete-la nessas casas com telhado e paredes envenenadas. Não queria que aprendesse a bordar e a cozinhar. Acaso errei, menina?” (103)

              Caetana, que contesta o poder masculino e recusa seu corpo:

“ –Com que títulos se apresenta para usurpar das mãos de Deus o chicote do destino?[...] –Desde quando é meu senhor? Caetana seguiu com a mesma entonação, como se lhe tivessem dado corda”(145),

“ Não me toque, Polidoro[.,..]- Não sou sua escrava, pronunciou, fria, a frase corretiva. O timbre da voz apunhalou as ilusões de Polidoro” (163)

          Caetana, condutora de seu destino:

“ Ao desistir de Trindade, restara-lhe ao menos o destino arrumado dentro de uma trouxa de roupa desalinhada, enquanto que para Polidoro fora tudo um sonho que as gorduras do cotidiano e a fuligem do trem encarregariam de desvanecer para sempre. Sonhar, afinal, era uma carga excessiva para o comum dos mortais” (93)

[...] – Desde ontem pretendia lhe dizer que uma única noite de sucesso resgata o fracasso de uma vida.” (257)

          Caetana,  em sua passagem, cria esperanças e desilusões. E fomenta sonhos, incita emoções, ao mesmo tempo em que esquiva relações.

A densa narrativa que constrói uma ficção da realidade,  que agrilhoa personagens à sordidez de suas excreções, fazendo-os viver na fugacidade das horas que marcam seus corpos no ritmo do sono, do orgasmo semanal, das refeições ordinárias aponta, entretanto, para fissuras no pó e no calor que entorpecem a cidade.

Deste limbo surge Gioconda, a dona da pensão, atrelada às terríveis injunções da prostituição, à apropriação social masculina de mulheres, cujas vidas se resumem a encarnar a posse coletiva de seus corpos e a fornecer orgasmos; cultiva  seus sonhos e sua emoção mais secreta se revela aos poucos:seu amor por Caetana, às vezes correspondido, nunca esquecido. Presa às malhas de uma heterossexualidade compulsória, que divide as mulheres em putas e esposas, Gioconda delas escapa na emoção que a dirige para Caetana, para uma outra dimensão do real, onde a poeira do cotidiano não consegue se manter.

 A narrativa desliza, deixando para trás o centro do social, situado nos músculos genitais masculinos, enfronha-se nas margens, num lesbianismo antes apenas sugerido, agora rasgando uma heterossexualidade obrigatória, necessária, normativa, esteio da diferença, sistema de dominação, fundamento da ordem.. Apesar de fazer parte constitutiva da ordem patriarcal, enquanto prostituta, Gioconda  vem despedaça-la quando a força de sua paixão, guardada no silencio dos anos e da distancia, exalta-se ao imaginar, rever, abraçar  Caetana.

 “ Isolada do mundo do afeto, Gioconda sucumbiu ao assédio de Caetana. Tão logo regressasse à realidade, nunca mais seria a mesma” (204)

“ À porta. Gioconda sobressaltou-se. Ao longo daqueles anos nunca recebera de Caetana uma única palavra de esperança[...]Na sala, de camisola, Caetana encerrou-a entre seus braços, como se não quisesse deixa-la partir.[...[ o enlace prolongado permita que ambas recuperassem no longo minuto, enquanto o calor dos corpos aquecia os sonhos, um passado quase sem rastros e datas precisas.” (220-201

)- Você ainda não me perdoou as esperanças que despertei em seu coração. Arrogante, Caetana fez-lhe ver que jamais teria ficado a seu lado. Por ninguém faria tal sacrifício.”(idem)

“ O hálito de Gioconda, que no início exalava limão-galego, agora destilava o fel da paixão. Trazia o coração sangrando na palma  da mão. Caetana empurrou-a para longe. Queria meter-se debaixo de lençóis limpos, esquecer as cisões do amor, comuns aos mortais” (202)”

            Esta emoção, feita de lembranças, de perdas, de idas e vindas, de recusa e entrega é talvez o único sopro de vida que escapa, em Trindade, à sordidez, ao mofo que das pessoas invade as paredes e as casa, à mediocridade de uma vida marcada pela violência e pelo desafeto.  Gioconda esperara vinte anos, Caetana abrigada em seu olhos e sua memória, e ao revê-la sente sua vida florescer, apagados os traços da exploração e da miséria.  Ao lado de suas companheiras, as Três Graças de sua pensão, Gioconda agora fazia parte da vida de Caetana, convidada a atuar em seu momento de glória.

“Por quanto tempo vai fazer esperar as quatro damas de Trindade? Gioconda sentia-se parte de uma classe que, mal ascendendo na escala social, já contava com direitos adquiridos”(208)

Caetana escancara possibilidades àquelas mulheres jungidas a uma violência paroxística,  que  delas rouba a humanidade , inscrevendo sua apropriação pelo coletivo masculino na natureza e na ordem das práticas sociais, as prostitutas, as Três Graças, que trazem à tona o que Linda Hutcheon chama de “ posicionamento duplo paradoxal, que critica o interior a partir do exterior e do próprio interior. As prostitutas aqui são as “forasteiras de dentro”, que expõe os mecanismos de produção do sexo, da sexualidade e da exclusão social. Diz Linda Hutcheon:

“! O sistema de preconcepções – que nunca se articula plenamente, mas está sempre presente - que governam a sociedade inclui essas diferenças que ultrapassam a classe: diferença que, a partir de dentro, desafiam a possibilidade de domínio, objetividade, impessoalidade; diferenças que não deixam esquecer o papel do poder[...]

            É assim que, no romance, as Três Graças e Gioconda apontam para uma servidão que as agrilhoa a um estado social construído e naturalizado de tal forma que sua existência parece fluir da noite dos tempos.

.[...]-  Nesta sábado ganharemos nossa carta de alforria. É como se a princesa Isabel, libertadora dos escravos, estivesse aqui conosco.” (196)

“Gioconda passou a chave na porta com resoluta decisão. Seu estado de espírito recomendava uma retórica de caráter inaugural. – Sigam-me pelas ruas de Trindade! Caso queiram nos açoitar, reagiremos com o ferrão mortal das abelhas mestras. É assim que devoraremos esses machos hipócritas e suas fêmeas velhas e gordas (194)

“ Prefiro ser apedrejada como o santo que continuar nesse puteiro. Já não agüento mais o suor e a gosma desses homens em cima de mim,[...]”(198)

Aos poucos, Gioconda adestrava-se na arte de iludir os demais. Há muito soterrara os sentimentos em prol das palavras que iam saindo de sua boca vestidas de arlequim, colombina e pierrô, uma evocação carnavalesca que escondia a quarentena triste após os festejos.” (55)

            Se eram usadas pelos homens de trindade, as Três Graças retribuíam com desprezo:

“ Ele suava, causando-lhe repugnância. Tinha todos os inconvenientes para ser um sedutor. As Três Graças o recebiam com desdém. Cada uma transferia para a outra o dever de atura-lo na cama.” (226)

“ Como dona de pensão, que não passava de puteiro, desfrutava da inteligência masculina e das Três Graças, condenadas a envelhecer juntas. No futuro elas recolheriam num pires, a ser passado entre todas, os dentes que fossem caindo”(203)

“- Mesmo que salvássemos uma criança da enchente, quem poria uma medalha de honra no peito de uma puta (195)

“ – Corremos perigo naquele bar. Acabaremos apedrejadas, como Santo Estevão.” (197)

  Longe dos idílicos bordeis de Jorge Amado, da troca de emoções prazerosas que ele tenta nos impingir, as “forasteiras de dentro” expõem a violência de corpos despojados de subjetividade, transformados em puros orifícios, a sordidez de encotros mal cheirosos, de humores doentios, de hálitos peçonhentos.   

Diversas asserções tentam justificar a violência da transformação de pessoas em orifícios, como por exemplo, “a prostituição é a mais antiga profissão do mundo”. Esta frase é dita e escrita à exaustão, criando sentidos sobre o vazio de sua enunciação. De fato, em História, nada existiu “desde sempre e para sempre”, a não ser em uma história positivista, enredada em premissas essencialistas e datadas, para a qual é “natural” a presença de prostitutas no social.

 Ao contrário, a pesquisa histórica vem mostrando que a prostituição é uma criação do social, em momentos épocas específicas; esta denominação encobre, inclusive, no discurso histórico, a presença de mulheres no social que destoam da norma representacional sobre as mulheres.

Esta proposição – a mais antiga profissão do mundo -  cria e reproduz a idéia da existência inexorável da prostituição, ligada à própria existência das mulheres, parte de seu destino biológico. Por outro lado, fica materializada e generalizada a idéia da condição inferior das mulheres ao longo da história, despossuídos de seus corpos e de sua condição de sujeito, no social e no político.

 Mas Caetana decididamente não seguia as normas e na pensão, com as mulheres excluídas para melhor servir aos homens, mantinha uma relação especial: antes de partir, há vinte anos, Caetana costumava visita-las, estar com elas, e sua volta é esperança da retomada de uma intimidade guardada com carinho:

“Com que alegria ela se acomodaria no sofá vermelho que merecera no passado seus exaltados elogios. Então, as cinco mulheres, entretidas com biscoitos de araruta, brevidades, pão de queijo e café pronunciariam as palavras que há muito lhes incendiavam a imaginação nas longas noites daqueles anos. Sobretudo noites em que o obscuro mundo de afetos as acometia, em geral sentimos rarefeitos que exigiam áreas de ventilação, portas de saída, para não asfixia-las.” (80)

Carrol Smith Rosenberg, historiadora pergunta : « Não é uma das principais tarefas dos historiadores / as explorar a estrutura social e a visão de mundo que cria amor  intenso e muitas vezes sensual entre mulheres como uma possível e aceitável opção emocional?” (Rosenberg, 1975:8)

“ Diana enlaçou-a num abraço inesperado.[...] O gesto amoroso, que chegava com tantos anos de atraso comoveu Gioconda. Talvez ainda houvesse tempo para desfrutarem no futuro de um jogo recheado de carícias e de sopros quentes (272)

“Compadecida, tomou a iniciativa de enlaçar Palmira. A amigo sofreu de imediato o sobressalto do calor humano. E a nostalgia que sobreveio em seguida acentuaou0lhe as feições congestionadas. Sebastiana orgulhou-se de ser capaz de comover a companheira com a força de seus braços delgados, fazendo uso de uma sutiliza que, enfim, abria entre os respectivos corpos frestas de ar” (333)

            Nesta onda de auto confiança que lhe inspira Caetana, Gioconda desafia Polidoro, pivô dos amores decantados com aquela e marco da virilidade social:

“ – Desde quando Polidoro é o único proprietário e modelo da paixão que Virgílio apregoa o tempo todo?Sorria, impetuosa, para Polidoro. Enquanto, em competição aberta com Virgílio, propugnava por um amor a soldo da fantasia e sob o resguardo do sigilo.- Trepar é ato público. Basta ir a pensão. Já o amor é cevado em quarto escuro sem aragem.(137)

De fato, no desenrolar desta narrativa cruel e sem disfarces, de um humano encardido e sórdido, da qual saio exaurida, Gioconda é o sopro de ar fresco, mesmo se seus sobressaltos não rasgam a armadura que a cinge.

A sexualidade obrigatória do casamento e da prostituição, o sexo-rei masculino que impera em Trindade transforma-se  entre as mulheres, cujo encontro é feito de  emoção, sensualidade, de carícias, afeto.  A própria definição de amor e de sexualidade são postas em questão: porque, finalmente, a não ser por imposições morais e históricas, o amor deve ter sexo e o sexo torna-se sinônimo de amor e emoção?

Em seu estudo sobre as mulheres vitorianas, Carroll S.Rosenberg afirma que “ [...] sua retórica ambivalente e romântica se apresenta como um quebra-cabeças desafiador: as relações ao longo do espectro das emoções humanas entre o amor, a sensualidade e a sexualidade.”(Rosenberg, 1976:27) Ou seja, a história das mulheres entre elas, de suas relações, do continuum lesbiano do qual fala Adrienne Rich,(1981) feito de cumplicidade, afeto, trocas e emoções, ainda está por ser feita.

Este romance, de fato, é, em minha leitura ativa, um problematizador das relações sociais, e sobretudo, uma crítica acerba a um patriarcado em farrapos e sem esperanças. Com Caetana catalisadora de desejos, revoltas, independências, sobressaltos, transformações, com Gioconda, presa de seus fantasmas e pronta à transformação, abre  um espaço de heterotopia social, que , como explicita Foucault, seria

“[..] um tipo de descrição sistemática que teria por objeto, em uma sociedade dada, o estudo, a análise, a descrição, a ´leitura[, como se diz hoje, destes espaços diferentes, estes outros lugares, uma espécie de contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço onde vivemos » ( Foucalt, 1980-1988: 756)

Este é o aspecto analítico, perscrutador  portador da heterotopia no romance, a inquietação despertada no torpor de um cotidiano impiedoso. De toda maneira, como quer Barthes,

“ Interpretar um texto, não é dar-lhe um sentido( mais ou menos fundado, mais ou menos livre). É, ao contrário, apreciar o plural do qual ele é feito.”(Barthes, 1970:10-11)

 Caetana vai embora, seus sonhos de glória desfeitos,

“ O espelho de sua alma, no entanto, por mistério insondável e contrário a qualquer lógica, resistia a esfacelar-se”(99)

Na atmosfera sufocante de Trindade, a estereotipada geografia do humano nunca mais será a mesma.

Referencias bibliográficas

Barthes, Roland. S/Z.1970. Paris, Seuil

Barthes,Roland. 1972. Lê plaisir du texte, Paris, Seuil

 Castoriadis, Cornelius.1982. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Ja­neiro, Paz Terra.

Colette Guillaumin 1978. . Pratique du pouvoir et idée de Nature . L´appropriation des femmes, Questions féministes,no2, février, p.5-31

.Foucault, Michel . 1971. L´Ordre du discours, Paris, Gallimard

Foucault, Michel.1980-1988. Dists et Écrits IV. Foucault électronique, 2001,Folio

Foucault. Michel. 1966. Les mots et les choses, Foucault électronique, 2001, Folio

Hutcheon.Linda.Poética do Pós-modernismo1991. Rio de Janeiro.Imago Editora

Orlandi, Eni.Pulcinelli. 2002. Análise do discurso, princípios e procedimentos.Campinas. Pontes.

Rich, Adrienne. 1981, La contrainte à l'hétérosexualité et l'existence lesbienne, Nouvelles Questions Féministes, Ed. Tierce, mars , n01, p.15-43

Rosenberg, Carroll Smith 1975.Female World of Love and Ritual Relations
between Women in Nineteenth-Century America," Signs I, #1  

Nota biográfica

Tania Navarro Swain é professora do Departamento de História da universidade de Brasília. Doutora pela Université de Paris III, Sorbonne, tem pós doutorado na Universidade de Montreal, Québec, onde lecionou quando na mesma época foi professora convidada na Université du Québec à Montreal, associada ao Institut de Recherches et d´´Etudes Fémnistes. Entre suas publicações, O que é o lesbianismo, organizou  Historia no Plural, Mulheres em ação alem de inúmeros artigos.


 

[1] Nélida Piñon,1987, ñon,1987, Rio de Janeiro, Editora Guanabara

[2]“ A memória[...] tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E nesta perspectiva ela é tratado como interdiscurso [...] aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente.[...] o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retomas sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palabra.! Orlandi:2002:31)