Que democracia é esta?

Direitos humanos das mulheres e a “diferença sexual”

                                  (publicado em espanhol)                                          

 

 

A palavra democracia possui um conteúdo variável, já que se materializa, em cada país, segundo suas condições históricas de produção, singulares, como sistema de governo. Assim, não existe um significado fixo para “democracia”; entretanto, talvez possamos indicar duas características que se encontram nas diversas formas de democracia conhecidas na América Latina atual: a incansável defesa da liberdade em suas diversas formas ( de expressão, de locomoção, de opinião, de crença, de associação)  e a re-criação constante da desigualdade social entre mulheres e homens.

Um pressuposto corrente quanto à palavra “democracia” é a defesa dos direitos humanos, mas nesta noção não estão contidos os direitos humanos das mulheres e contempladas as violências e discriminações tornadas socialmente específicas ao feminino. A expressão “direitos humanos das mulheres”, aliás,  foi cunhada para expor que,  se em teoria todos os indivíduos deveriam usufruir das conquistas democráticas, as mulheres continuam a ser privadas de seus direitos de cidadania, discriminadas e  inferiorizadas . O que se constata é uma partilha de poder político / econômico / social extremamente desigual, ainda baseada na naturalização das funções sociais.  O que significa então, democracia?

 Marie-Thérèse Martinelli sublinha que,

“... se o lugar de mais de 50% da humanidade é uma questão que podemos tratar mais tarde quando “o principal estará resolvido” é que a democracia, aquela que constrói um lugar igual entre homens e mulheres, não é uma prioridade. (Martinelli, 2007:web)

Nesta perspectiva, as questões relativas aos direitos humanos das mulheres são cruciais para uma democracia mais efetiva pois, nas práticas sociais, vem sendo negados,  ignorados ou apagados pela naturalização de relações binárias hierarquizadas. Não é mais possível, em países que se denominam “democráticos”, ignorar que a “condição das mulheres” é construída social e historicamente como tal e em seguida  utilizada como fator de discriminação do feminino. De fato, a desigualdade é uma construção social e funda-se em representações e imagens que transformam o biológico em especificidade para as mulheres; portanto, isto significa que a conseqüência desta construção social torna-se, nas práticas discursivas e não discursivas, a causa de uma “diferença” entre mulheres e homens.     

A especificidade das mulheres localiza-se em seu corpo, em um sexo definido pela ausência de pênis, na heterossexualidade tornada compulsória pelas pressões sociais.    A construção e desvalorização do “ser mulher” aparece como resultado de uma essência atrelada à um corpo deficiente, a um espírito fraco e superficial, a uma moral escorregadia e duvidosa, que pedem uma vigilância  constante e a domesticação de seus pendores para o deslize e o mal.

Benoîte Groult (Groult, 1993) publicou um livro que reúne as pérolas destiladas ao longo do tempo sobre as mulheres, reunindo os discursos de autoridade dos Aristóteles, Paulo, Agostinho, Tomas de Aquino, Jerônimo, Crisóstomo e outros padres da igreja, dos Lutero, Freud, Rousseau, Proudhon, Nietszche, Hegel, dos Baudelaire, Musset,  Balzac, Rabelais etc, que as condenam à ignorância, à domesticidade, à submissão, ao silêncio, à penitência e à resignação, dada suanatural” inferioridade, marcada  em seu corpo ao nascer, pelo estigma e a maldição do feminino, “segundo sexo”.  Da religião à literatura, passando pela filosofia e pela psicanálise, a mulher, coletivo que congrega todas as mulheres, apaga todas as experiências singulares, e as apresenta como um humano defeituoso, macho mutilado e imperfeito.[1]

A criação da “diferença”

É evidente que na América Latina a desigualdade entre os sexos está longe de ser a única, tendo em vista as polarizações entre pobreza /riqueza e as discriminações relativas às diferentes etnias que compõem o quadro populacional. A desigualdade entre mulheres e homens é, porém, anterior a qualquer outra, pois em qualquer classe ou em qualquer nível sócio-econômico existe, hoje, esta hierarquia entre o masculino e o feminino, ancorada na biologia e no imaginário, ou seja, nos corpos construídos neste ser histórico e social que é “a mulher”.

Há, como bem analisa Colette Guillaumin (1978) uma apropriação histórica e social da classe[2] das mulheres pela classe dos homens, além da apropriação individual, através das instituições do casamento e da heterossexualidade. Esta apropriação, material, constitui-se em diferentes domínios da vida social, criadoras de representações sociais e imagens difundidas em suas expressões múltiplas: a religião, as lendas e mitos indígenas conjugados no masculino pelo discurso colonizador, a educação formal, a mídia e a comunicação social em suas variadas formas, as pedagogias sociais, os costumes e tradições, o senso comum, os ditados populares, que compõem, assim, uma formação imaginária e semiótica, onde o masculino ou absorve o feminino sob o universal “homem” ou apresenta-o como incompleto, irracional, imaturo, incapaz, frágil, passivo, desfrutável ou seja, “diferente”, o “eterno feminino”. A multiplicidade dos desejos e da experiência das mulheres, apontadas por Simone de Beauvoir (1966), tende a se fechar em torno da homogeneização do Mesmo, de uma representação recorrente, que se repete sem cessar na comunicação social para manter seu adensamento.   

              Diz Colette Guillaumin:

“É uma idéia singular que as ações de um grupo humano, de uma classe, são ‘naturais’: que elas são independentes das relações sociais, que elas pré-existem a toda história, a todas as condições concretas determinadas.” (Guillaumin, mars 1978:11).

A idéia de uma essência organizadora das funções sociais funda  a noção de  “diferença”, que necessita, por sua vez, de um referente para sua inteligibilidade.  Ancora-se, no caso da “diferença sexual”, em características polarizadas e opostas; o referente é o masculino, o que se auto-nomeia modelo, centro, razão, força, criatividade. As diversas tradições, a história, a arqueologia, a ciência em geral criam tradições e fundam a predominância do masculino, instituindo modelos universais onde se opõem a mulher / homem como  negativo/ positivo, dotando o mundo desta oposição binária e imaginária.  Digo aqui imaginária, não como oposto ao real, mas como um outro nível do real / material, o domínio do simbólico e do imagético e do semiótico, poderosa força criadora de representações materializadas nas relações sociais.

Castoriadis (1995,385) considera o imaginário um magma de significações sociais, aquelas que dão sentido e compõem a interpretação do mundo e do humano, que o constroem  tal como o interpretam. Neste magma que borbulha e explode em noções e imagens, as representações sociais do humano e suas relações – com o mundo e com os outros seres – ordenam as configurações das sociedades, sedimentando funções, criando ou destruindo espaços de atuação, conforme os sentidos conferidos a seus agentes.

Diz ele:

“Realidade, linguagem, valores, necessidades, trabalho de cada sociedade especificam cada vez, em seu modo de ser particular, a organização do mundo social referida às significações  imaginárias sociais instituídas pela sociedade considerada” (Castoriadis,1995:416)

 De fato, são os sentidos atribuídos às ações e representações que lhes conferem relevância social; neste caso, o sexo biológico se transforma em sexo social eixo fundamental do humano, que marca a “diferença”.

Explicita Castoriadis:

“São também” essas significações que se presentificam –figuram na articulação interna da sociedade- na medida em que a coletividade pode ser instituída como repartida entre categoria de indivíduos, dividida de maneira simplesmente simétrica ou cindida assimetricamente em e por um conflito interno; na organização das relações entre os sexos e a reprodução dos indivíduos sociais. Na instituição de formas e de setores específicos do fazer e das atividades sociais. (idem)

Denise Jodelet (1989:36) estima  que  as representações sociais são uma forma de conhecimento, elaborada socialmente, que confere ao social os sentidos em torno dos quais é instituído. Nesta perspectiva, a relação real /imaginário é circular e não oposta, nem binária, criando-se e renovando-se mutuamente, desenhando representações, ressemantizando outras, reiterando/ instituindo normas, repetindo / modelos e estereótipos.

De toda forma, a perspectiva de imaginário, que adoto, é composta de uma pluralidade de forças que se adensam ou se esgarçam segundo suas condições de possibilidade históricas.  Tecida assim, em uma densa rede discursiva que entrelaça memória, tradição e autoridades diversas, a representação da verdadeira mulhermãe e esposa” é ainda hoje a imagem perseguida no quotidiano da maioria das mulheres, reduzidas ao domínio do privado, mesmo quando estão inseridas no mercado de trabalho. 

Percebe-se, nesta ótica, um nível que atravessa a sociedade, de forma independente do sistema de governo, com maior ou menor densidade. “Cozinha, Igreja, Crianças” (Küche, Kirsche, Kindern), divulgava o slogan nazista para designar o lugar das mulheres. Democracias, regimes fascistas, comunistas, integristas materializam em suas relações sociais as representações de masculino e feminino que lhes conferem sentido e fundamento; é assim que a divisão público (masculino)/ privado (feminino) integra ainda as configurações sociais e os sistemas de governo atuais, dos quais as mulheres estão ausentes ou com uma representação reduzida. Se a cidadania das mulheres é assegurada nas diferentes legislações nacionais, seu lugar social ainda se refere a seu corpo, à sua especificidade, à sua “diferença”, o que resulta em práticas discriminatórias.

Uma vez instalada a noção de “diferença”, cria-se a desigualdade. Entretanto, este binômio “diferença /desigualdade” mostra que há um sutil deslizamento de uma noção ontológica – Idêntico /Diferente – para o político – Igual / Desigual. Fica claro que a distinção criada entre o masculino e o feminino a partir do corpo, do sexo biológico deságua na discriminação política, carregando, em seu caudal, a desigualdade. Uma vez diferente, sempre desigual, no pensamento, nas práticas e nas representações que as fundam.

Geneviève Fraisse afirma que:

“Com efeito, a pesquisa, tanto quanto a ação política cruzou igualdade com a diferença, isto é, a política com a ciência. Claro, construir o campo de pesquisa “diferença dos sexos” nasce de uma vontade política, nasce da constatação que o impensado, o velado deste objeto no pensamento e na ciência tem um causa, várias causas, a da sexualidade mesmo e a da dominação masculina, sobretudo” (Fraisse, 1995:390)

A apropriação social masculina do corpo das mulheres, em termos representacionais e materiais funda-se nesta marca do “diferente” pois o “Idêntico” é o modelo e o modelo é o masculino, “criado à imagem de deus”, dotando-se de racionalidade exclusiva e alegando força física para melhor construir sua superioridade.. Se o modelo detém as características valorizadas socialmente, o “diferente” padece então de todas as negações. Ser homem, do discurso filosófico ao discurso do senso comum, é “não ser mulher”. A desvalorização do feminino passa quase despercebida em nível de linguagem, tão freqüente é a afirmação do masculino, da virilidade, em contraste com o feminino. A penetração, “a posse”, a metáfora sexual de apropriação do feminino é usada em toda circunstância: da ciência “viril” à broca macho, que cria as roscas, penetrando-as. Da mesma forma, a penetração, a perda da virgindade designam o pertencimento a um homem, o desabrochar do feminino, um lugar social:  a denominação “senhora” ou “senhorita” expõe, na linguagem, um corpo a ser ou já apropriado.  

Desta forma, cria-se, na diferença, o corpo feminino, marcado pelo sexo e apropriado social e politicamente nas instituições do casamento e da heterossexualidade compulsória[3]. A criação da diferença é histórica, assim como é história a afirmação de uma essência ou substância estável de identidade sexual, instituindo-se para o feminino, funções sociais supostamente derivadas de seu corpo e mais especificamente de sua capacidade reprodutiva. Esta, de atributo positivo para a preservação da espécie, passa a ser uma jaula que determina os limites do ser e do agir femininos. A “diferença sexual” não é, portanto, a causa da polarização hierárquica entre feminino e masculino, mas sim  a conseqüência da construção de corpos sexuados em torno de uma representação biológica, que prioriza o sexo masculino no imaginário social..

Nicole Claude Mathieu, a partir dos anos 1980, na sua análise da “diferença” enfatiza a importância, para os feminismos de expor o processo de diferenciação social dos sexos e da criação de corpos sexuados, o que mostra seu caráter  histórico e construído. Afirma esta autora:

 “[…] a idéia da heterogeneidade entre sexo e gênero leva a pensar não que a diferença de sexos é ‘traduzida’ pelo gênero, mas que o gênero constrói o sexo.[…] entre sexo e gênero se estabelece uma correspondência socio-lógica e política.” ( Mathieu,1991:256)

A idéia é que o sexo social não existe fora de suas práticas discursivas, não discursivas, representacionais, ou seja, fora de suas condições materiais de imaginação e atribuição de sentido. Neste caso, o sexo não seria uma superfície pré-discursiva sobre a qual se encaixariam perfis de gênero, mas uma instância material, construída pelas significações sociais atribuídas aos genitais.

É assim que, para Donna Haraway, os corpos são:

“[...] nós geradores materiais e semióticos cujas fronteiras se definem na interação social. Mas como objeto de saber, não existem enquanto tal antes de sua criação, são `projetos de fronteira´ que se materializam de acordo com as práticas normativas e dão origem aos corpos sexuados, à instalação de diferenças na construção do binômio natureza/cultura.”(Haraway,1991:345)         

Uma história do possível, para além da diferença

Não se pode esquecer, nesta perspectiva, que a naturalização das funções sociais é histórica, é temporal, e a crítica radical ao biologismo exclui expressões  do tipo  “sempre foi assim”, “não pode ser diferente”,  “a profissão mais antiga do mundo”. Se o evolucionismo histórico, ligado a um positivismo racista e sexista, hoje está sendo banido na academia, as perspectivas foucaltianas da “destruição das evidências” e da descontinuidade[4] na história são instrumentos teóricos úteis para a análise da construção das diferenças e dos corpos sexuados. (Foucault, 1971:53)

Uma vez que a história constitui parte não desprezível da memória social fica claro, na análise feminista, que a seleção e interpretação dos fatos por historiadores (homens) criou tradições e universalizou relações a partir de seus pressupostos binários e hierárquicos e de suas condições de imaginação. Uma análise histórica descontínua não permite generalizações, pois as sociedades são construtos históricos singulares.

 Desta forma, os indícios históricos, que apontavam para sociedades cujos fundamentos não eram ligados nem ao sexo biológico nem à sexualidade, foram apagados da memória social por uma narrativa histórica baseada em pressupostos essencialistas. Assim, por exemplo, ao se inquirir sobre imagens da pré-história, a primeira e unânime resposta é um homem arrastando uma mulher pelos cabelos para sua caverna; em outras palavras, a imagem de uma apropriação brutal, de uma violência que instaura o estupro na ordem do natural. Uma análise feminista, na ótica da descontinuidade, dos chamados documentos-fontes ou mesmo da historiografia oferecem uma visão do múltiplo e do plural nas formações sociais históricas e aponta para uma história possível, onde o binário hierarquizado não era necessariamente o fundamento das relações humanas.

Como sublinha Geneviève Pastre

“[…] houve uma redução do campo não somente do possível, mas também do vivido e uma espécie de afunilamento na direção de uma só passagem […] em vez de ser estocada, a informação deixou de estar disponível, foi eliminada e passou-se a considerar como produto da imaginação […] o que havia sem dúvida existido […] espelho de realidades ricas e complexas.” (Pastre, 1987:44)

A antropologia feminista já tem adentrado estas questões analisando os pressupostos “científicos” da naturalização e universalização das relações sócio-sexuais hierarquizadas. Nicole Claude Mathieu (1991), Paola Tabet (1998), Gayle Rubin (1975), entre outras, apontaram, por exemplo, a existência de formações sociais fora dos padrões patriarcais e heterossexuais, mas suas análises não prosperaram na academia, uma vez que desestabilizavam os pressupostos patriarcais. De fato, a idéia do progresso, da evolução social coloca grupos e formações sociais fora dos padrões patriarcais para o domínio do mito ou do primitivo, esculpindo na memória social as representações patriarcais ligadas à idéia de civilização, de ordem e progresso.

Desta forma, a “diferença” sobre a qual se apóia a discriminação e inferiorização das mulheres mostra sua face de construção política e histórica, a da dominação e da exclusão/ apropriação de mais da metade da população – a feminina – sob o pretexto de um destino biológico, de um corpo frágil e uma razão deficiente, de funções pré-determinadas por deus e seus asseclas, ayatolás, padres, pastores, imãs, mestres e  porque não cientistas?

Destituídas de figurações femininas positivas e poderosas, educadas e modeladas para ser “femininas”, as mulheres vem se assujeitando a papéis que lhe impõem uma identidade fictícia: a “verdadeira mulher”, esposa, mãe, mãe, esposa. Sua atuação econômica e política fica em segundo plano, obscurecida pelo genérico masculino ou por estatísticas cujos pressupostos as excluem logo de início. É assim que, por exemplo, o censo demográfico brasileiro não computava, nos anos 1970, a mão de obra feminina na categoria “rural”, que só vem a aparecer no censo agropecuário.

Apesar dos slogans feministas que nos sacodem desde os anos 1970, “o privado é político” e “o pessoal é político”, as mulheres ainda não votam em mulheres; mal preparadas para a arena política, as mulheres não tem um prestígio e um desempenho retórico suficiente para carrear a elas os votos e a confiança d@s eleitor@s.  A mobilização e a preparação das  mulheres para a cena política democrática é uma das prioridades das agendas feministas latino-americanas. Como sublinha Elisabeth Grosz:

“[...] o feminismo [...] não é uma luta de sujeitos para serem reconhecidos e valorizados, para serem ou serem vistos, para serem o que eles são, mas uma luta para mobilizar e transformar a posição das mulheres, o alinhamento das forças que constituem aquela ‘identidade’ e ‘posição’, aquela estratificação que se estabiliza como um lugar e uma identidade.” (Grosz, 2002,web)

Se nas democracias atuais há espaço para as reivindicações e conquistas feministas, é na educação que se situa o ponto chave das transformações sociais, modificando as representações binárias que criam desigualdade e exclusão fundadas na biologia, nas definições humanas a partir de seus corpos e sexo.  De fato, a desigualdade só termina ali onde não existe diferença e para eliminá-la é preciso uma inteira reestruturação da ordem simbólica, do aparato social, incluindo a linguagem, as formas do conhecimento e os modos de representação. Nesta perspectiva, os feminismos são ponta de lança das transformações.

Democracia, para que te quero?

 Em nenhuma das democracias latino-americanas as mulheres obtiveram o reconhecimento de um status de sujeitos políticos sem a atuação dos feminismos e dos movimentos de mulheres que reivindicaram uma plena cidadania:  o direito elementar de voto em uma democracia, a paridade na representação política, a autonomia econômica e civil, a igualdade de proventos em cargos iguais, oportunidades na educação e no mundo do trabalho, direito de proteção legislativa e judicial contra as violências específicas ao gênero e sobretudo, direito à propriedade rural ou urbana,  direito à posse e decisões sobre seus corpo. Neste sentido, direito à saúde inclui não apenas políticas de proteção à maternidade, mas o direito ao aborto e sua realização nos sistemas de saúde estatais.

Um olhar mais amplo percebe, sob o verniz de “conquistasliberais em tempos de globalização, as discriminações no espaço vivido das mulheres: a pobreza e o analfabetismo preferencialmente feminino, a violência específica que sofrem em seus corpos e em seu lugar no mundo, a eliminação sistemática de bebês-meninas em certos países, a mutilação sexual, a banalização da prostituição, todas, formas paroxísticas da violência social contra as mulheres. Françoise Picq historiciza:

« [...] no fim dos anos 70 uma nova ideologia considerava mesmo que as mulheres haviam ganhado seu lugar na sociedade e que não era mais necessário continuar. Depois da Conferência de Pequim algo de novo aconteceu : percebeu-se que havia retornos possíveis, que a questão das mulheres não era uma questão categorial, mas o problema central da democracia, das liberdades”“[...] (Picq, 1996:web)

A desigualdade e os direitos humanos das mulheres são questões incontornáveis e a “diferença sexual”, que alicerça as discriminações constituídas de imagens e representações negativas e inferiores das mulheres, não exalou ainda seu último suspiro. Foi preciso uma conferência mundial, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, para que as mulheres tenham sua humanidade reconhecida:

“Os direitos dos homens, das mulheres e das crianças de sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A participação plena e igual das mulheres na vida política, civil, econômica, social e cultural, a nível nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo constituem objetivos prioritários da comunidade internacional.” (art. 18) (Cfêmea, 2006:36)

Apesar da importância simbólica desta declaração, instala-se mais uma vez a igualdade, mas na diferença. Acredito, entretanto, que melhor que ser igual, é não ser diferente.

 Os sistemas democráticos são relativamente recentes na América Latina, firmando-se entre sobressaltos de ditaduras, totalitarismos ideológicos, perseguições políticas, voto direto ou indireto, parlamentarismo, presidencialismo, no século XX.  Vem constituindo, entretanto, nos anos mais recentes, espaços onde as reivindicações feministas e dos movimentos organizados de mulheres tem tido chance de serem ouvidos.

 Na agenda feminista os direitos humanos das mulheres compreendem, antes de mais nada, o direito à posse e decisão sobre  seus corpos, contra a apropriação social e individual que lhes dita a procriação contra sua vontade; que deixa impune a violência doméstica, que é condescendente com o estupro, que aceita “a defesa da honra” como justificativa para o assassinato de mulheres, que  institucionaliza a prostituição como uma forma de trabalho. E sobretudo, direito à contracepção e ao aborto, a cargo do Estado, libertando as mulheres de partos sucessivos sem que tenham o direito de decisão. O direito ao aborto tem sido o mais contestado, o mais combatido, pois de fato libera as mulheres de um destino biológico e reduz o poder masculino sobre seus corpos.

“A demanda pela descriminalização do aborto é antiga no movimento feminista. Motivou a criação da Frente Feminista de Direitos Sexuais Reprodutivos, em 1991, e mais recentemente, das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal, em 2004, envolvendo grupos em toda a América Latina. O slogan adotado foi `a mulher decide, a sociedade respeita, e o Estado garante´” (Cfêmea, 2006:24)

Em alguns países, como o Brasil, o aborto ainda é considerado crime pelo Código Penal (art.124) Nesta legislação, é excluído de punição o aborto em caso de risco de vida da mãe ou de estupro. Entretanto, casos de feto anencéfalo precisam de autorização judicial para serem realizados e a atuação das igrejas para manter o controle sobre o corpo das mulheres é notável em todas as instâncias e no caso do Brasil é notória na própria Câmara dos Deputados, com a bancada evangélica.

Com a inserção maciça das mulheres nos mercados de trabalho, a divisão público / privado se desfez, mas o deslizamento se deu agora em termos do político strictu sensu: os postos de governo são em esmagadora maioria ocupados por homens. Por outro lado, uma vez que a “diferença sexual” ainda alimenta imagens e representações, o âmbito doméstico continua a ser obrigação exclusiva das mulheres, já que os homens se recusam a partilhar as tarefas relativas a casa e aos/ às filhos/as.

No Brasil, a Constituição de 1988 registrou mudanças significativas em relação à situação e direitos das mulheres. Porém,

“[...] o passar do tempo não aponta necessariamente para a garantia dos direitos. O atual contexto de globalização e de ajuste estrutural no país alude à necessidade de organização e constante mobilização social para se fazer frente também à possibilidade de perda e restrição de direitos conquistados” (Cfêmea, 2006:212)

Entretanto, na letra da Constituição, em seu art.5.I, mulheres e homens são considerados iguais em direitos e obrigações. Considera ainda a família como base da sociedade, mas amplia sua definição desta instituição e dispõe explicitamente que direitos e deveres são exercidos igualmente pelas mulheres e homens, eliminando a figura de cabeça do casal, exercida pelos homens. O divórcio foi aprovado em 1977 no Brasil e a união estável entre parceir@s foi reconhecia em 1996 (Cfêmea, 2006:17).

O Brasil assinou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 1995 e a legislação brasileira incluiu o estupro e o atentado violento ao pudor no rol de crimes hediondos e inafiançáveis. Entretanto, o Código Penal Brasileiro estabelece como circunstâncias atenuantes, inclusive de assassinato, ter o agente cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. Estas circunstâncias, de fato, usam estereótipos, comportamentos não usuais, valores tradicionais para transformar as vítimas em rés e os agressores em paladinos da moral.

No âmbito das relações familiares a Constituição Federal de 1988 reconhece o fenômeno de violência familiar e doméstico, pois determina coibir a violência no âmbito das relações familiares (art.226, parágrafo 8). Falta, entretanto, a regulamentação deste dispositivo o que lhe confere inocuidade. No Código Penal, porém, a partir de 2004 passa a existir a “violência doméstica” ( lei 10885/2004) “onde o agente se prevalece das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”. (Cfêmea,2006:20) Confere igualmente  ao juiz maior agilidade para coibir este tipo de violência.

O Plano Nacional de Políticas para Mulheres foi lançado em 2004 e um de seus objetivos, que me parece de maior relevância, é o da educação inclusiva e não-sexista, pois considera que:

“[...] o processo educativo, nesse sentido abrangente, é capaz de transformar a sociedade e desconstruir estereótipos, discriminações e imagens sociais, tendo, portanto, um papel fundamental para a construção de uma sociedade mais solidária e igualitária..” (PNPM,2005:45)

Esta perspectiva enfatiza o papel das representações sociais, indicando a educação, como fiz aqui, como elemento transformador de estereótipos e quem sabe, da “diferença sexual”, criada e criadora de imagens que instituem a desigualdade ao construir corpos sexuados e desiguais.

O que fica claro é que, em nível nacional e internacional hoje, a violência, a discriminação e o abuso sexual e social contra as mulheres é reconhecido, pelo menos no discurso e em alguns casos, na legislação. Resta a mobilização feminista para impedir retrocessos e levar em frente um projeto educacional, que em nível simbólico e semântico transforme as relações mulher x homem em relações humanas. E neste sentido, como propõe Elisabeth Grosz,

“Ao contrário de uma política de reconhecimento, na qual  grupos subjugados e minorias batalham por um lugar afirmativo e validado na vida pública, a política feminista deveria, eu creio, considerar agora a afirmação de uma política de imperceptibilidade, deixando seus traços e efeitos em todos os lugares, mas nunca se deixando ser identificada com uma pessoa ou organização [...], pois [...] feminismo é a luta para tornar mais móveis, fluidos e transformáveis, os meios pelos quais o sujeito feminino é produzido e representado. É a luta para se produzir um futuro, no qual as forças se alinham de maneiras fundamentalmente diferentes do passado e do presente.” (Grosz, 2002: web)

Em uma verdadeira democracia.

Bibliografia

 

 

- Castoriadis, Cornelius.1982. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Ja­neiro, Paz Terra.

- Beauvoir, Simone de. 1966. Le Deuxième Sexe. L’expérience vécue, Paris, Gallimard      (1a edição em 1949).  

- Cfêmea.(Centro feminista de estudos e assessoria) Almira Rodrigues, Iáris Ramalho (orgs) 2006. Os direitos das mulheres na legislação brasileira pós–constituinte, Brasília, Letras livres.

- Foucault, Michel. 1971. L’ordre du discours, Gallimard, Paris.

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- Martinelli, Marie-Thérèse .2007. Le féminisme : une fausse route ? une lutte secondaire ? Les Pénélopes, février,  http://www.penelopes.org/xarticle.php3?id_article=3916

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- Rubin, Gayle. 1975."The Traffic in Women: Notes on the 'Political Economy' of Sex", in Rayna Reiter, ed., Toward an Anthropology of Women, New York, Monthly Review Press

- Tabet, Paola. 1998. La construction sociale de l´inégalité des sexes, Paris, l´Harmattan.

Nota biográfica :

tania navarro swain é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre e na Université du Québec à Montréal, (UQAM), onde foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Ministra um curso de Estudos Feministas na graduação e trabalha na área de concentração com a mesma denominação na pós-graduação. Publicou recentemente um livro pela Brasiliense, “O que é lesbianismo”, 2000 e organizou um número especial “Feminismos: teorias e perspectivas” da revista Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente um livro “ Mulheres em ação, práticas discursivas, práticas políticas” em 2005 e “História no Plural”,  além de inúmeros capítulos de livros e artigos em revistas nacionais e internacionais. É editora da revista digital Labrys, estudos feministas", www.unb.br/ih/his/gefem