Violência simbólica da história : a invenção da diferença sexual

texto para o I Congresso interdisciplinario sobre gênero e sociedade : debates e práticas en torno a violencia de gênero- Córdoba, AR

A história, enquanto disciplina acadêmica, cria tradições universais sobre as representações sociais oriundas do mundo contemporâneo, sobre um discurso de modernidade que erige em lei natural o produto das relações sociais. É assim que, desta forma, o trabalho das historiadoras e outras acadêmicas, mesmo feministas, se atrela a uma imutável imagem do humano dividido de maneira binária e hierárquica ao longo dos séculos, sobretudo quando utilizam a noção de “gênero”, imbricada à de “sexo”.

Tomando-se  a dupla noção “sexo / gênero” enquanto sistema estrutural e estruturante de todas as sociedades, em todas as temporalidades, reinstaura-se a naturalização, não só de papéis sociais a partir de um fundamento biológico;  atribui-se, igualmente, à sexualidade uma fundamental importância “ natural” na construção das relações sociais, como algo já-dado, pré-discursivo, independente das relações sociais e das práticas singulares à cada sociedade.

Ora, como sublinha Butler, não existe gênero fora de práticas de gênero, portanto a aplicação do esquema binário ao longo da história do humano, que vai além de 40 mil anos é mais uma falácia da instauração de relações “naturais”, da criação de uma diferença sexual, que não passa de uma criação política. Quem, afinal, pode assegurar que em TODAS as sociedades e em TODOS os tempos havia uma regulação social baseada no sexo? Ou na procriação e na heterossexualidade? Ao contrário, exemplos históricos conhecidos, como o da civilização celta, mostram que  não há uma priorização necessária da genitália na distribuição de importância e do poder social.

A história tem estabelecido quadros nos quais a imensa gama das relações sociais no decorrer de milênios é vista sob a égide do Mesmo, de relações invariáveis baseadas na “diferença sexual”, com a predominância do masculino. Ora, ao se auscultar o possível nas relações humanas, pode-se pensar sociedades em que os valores fossem totalmente outros em relação ao instaurado na atualidade e em uma história próxima.

É preciso não esquecer que o trabalho e as narrativas históricas são fruto de duplas ou triplas mediações em relação à produção, leitura, interpretação dos documentos- fonte. Metodologicamente, portanto, a aplicação de esquemas valorativos da narração histórica não cessa de reproduzir as representações sociais e os valores sobre as quais se fundam, principalmente em relação ao feminino e masculino. A menos que uma meta crítica do trabalho realizado e uma negação metodológica das evidencias, como ponto de partida, segundo aconselha Foucault, criem uma “objetividade” localizada, cujas premissas e fundamentos fazem parte da narrativa histórica.

Que história é esta que recorta suas narrativas criando “referentes” e “diferentes”? A famosa história dos “dominados”, dos “vencidos”, que desarticulou a história dos heróis e dos dominantes continuou a soletrar história no masculino. Separadas pela genitália, rainhas e guerreiras, camponesas e comerciantes, artistas e inventoras foram relegadas à “diferença sexual”, sem que se problematize que importância social era dada, naquela época e naquele lugar, ao biológico sexual.

Neste sentido, enquanto feminista e historiadora, questiono a noção de “diferença sexual” como um dado da natureza, e argumento no sentido de sua construção histórica e localizada, dependente das representações sociais que regulam e normatizam o social.

A diferença sexual não tem o mesmo impacto em todas as sociedades e pensando-se em feminino e masculino como construções sociais pode-se até mesmo pensar se estas figuras existiram como tal em todas as sociedades. Quem pode afirmar que foi um homem que descobriu a roda, ou que desenhou as paredes das cavernas de Lascaux?

A violência da linguagem faz do “homem”- humanidade, o homem-masculino o criador e inventor de todas as artes e ciências. Esta é uma violência maior: a divisão do humano em dois e a inferiorização / desqualificação do construto fêmea-feminino. A história é parte e construção desta violência, pois cria uma tradição em que o feminino se restringe aos limites da maternidade, despojando-o de qualquer atributo de criação ou ação, sujeito político desqualificado e invisível no próprio político. Porque, em história, se falar das mulheres, já que se mantinham em sua condição natural? Esquece-se que a própria noção de “natural” e de “natureza” são também historicamente construídas.

Desta forma o sexo enquanto divisor de águas do humano não é soberano, pois a “natureza” faz também parte da construção social da representação humana.

Desmascarar os discursos sobre a “natureza” dos papéis sociais foi fundamental na epistemologia feministas contemporâneas, ponto de comunicação entre as teorias feministas, abalando o solo das “evidencias” científicas. Como continuar a falar de masculino /feminino ao longo da história da humanidade, sem perpetuar e reinstalar  a violência da “natureza” como mestra-organizadora? Este é o discurso do “natural” , de uma cientificidade que pretende substituir os dogmas religiosos, mas ao mesmo tempo vem reforça-los, pois funda-se em representações sociais fixas de feminino e masculino, a “verdadeira mulher” e o “verdadeiro homem”, cada qual em seu lugar, determinado pela “natureza” ou por “deus”.

De fato, a própria elaboração destas representações sociais é histórica e datada e neste sentido, questões tais como se deu a perda de poder das mulheres faz parte de um construto histórico evolucionista e globalizante, onde, em algum momento, as mulheres eram dominantes, tendo sido vencidas pelos homens. Retomada pela história, a natureza dos sexos, a diferença sexual, são noções e temas que desdobram uma proliferação incessante de discursos reinstalando tradições, recriando dominações e hierarquias.

A história é uma invenção baseada em alguns fragmentos de discursos e esta construção imaginária reproduz os valores e representações sociais do presente ou passado recente. Enquanto historiadora e feminista, meu trabalho propõe uma “história do possível” que busca, nos indícios discursivos deixados pelas formações sociais, os traços de relações outras, de um humano que não se desenha em hierarquia, nem em apenas reprodução, poder e dominação.