“Unveiling relations: Women and Women on Carroll Smith Rosenberg research” p.29 a 33 ( publicado em ) Journal of women’s history, vol, 12, n.3 Autumn 2000 A pesquisa feita por Carroll-Smith Rosenberg sobre as mulheres americanas nos séculos XVIII e XIX apresenta diferentes níveis de análise: vincula-se ao desenvolvimento de uma História das Mulheres, por um lado e às teorias feministas contemporâneas por outro, que criticam a categoria gênero e a identidade binária por ela reproduzida e reafirmada. O tema de seu trabalho - amizade e amor entre as mulheres- aparece como desafiador à própria História das Mulheres, que à época procurava afirmar sua importância e validade no discurso histórico tradicional. Memória social do Ocidente, o que a História não retém desaparece e se dissolve nas brumas de uma realidade tornada impossível; nesta perspectiva as representações sociais, forjadoras das signifcações e valores , instituem a realidade (Jodelet, 1989) constróem o cotidiano com imagens do humano e práticas históricas tornadas atemporais e universalizantes. Assim, o obscurecimento, o esquecimento das relações entre mulheres e das próprias mulheres na história fez com que a divisão binária dos sexos e a predominância do masculino se tornassem hegemônicas, num quadro homogêneo sem nuances e sem retoques. Na busca do possível relacionamento entre mulheres Carroll-Smith Rosenberg expõe e destrói em parte esta política do esquecimento que sistematicamente apagou as mulheres da história. Assim, dois marcos axiais aparecem assim em seu trabalho: a historicidade incontornável do humano, desdobrada em configurações culturais singulares e o possível como hipótese fundamental de pesquisa. De fato, a busca e sobretudo a perspectiva do um possível ilimitado nas relações sociais , em suas mais diversas formulações, aproxima seu trabalho do questionamento atual a respeito de identidades sexuais e sexuadas , para além de um binário tornado quase incontornável nas categorias de apreensão do humano. Um olhar feminista consegue desta forma detectar a resistência ou a diversidade lá onde se via apenas o monótono assujeitamento à papéis de gênero estereotipados pelos limites e valores impostos na heterossexualidade obrigatória . A historiadora interroga as práticas sexuais e afetivas lá onde os papéis de gênero aparecem como cristalizados e desfaz assim a pretendida ligação entre sexualidade e identidade, apesar da rígida manutenção dos contornos generizados mulher/homem. Cautelosa ao afirmar por exemplo que “[...]certanly Molly and Helena were lovers- emotionaly if not physically.”(Rosenberg,1975:7) abre porém as brechas que permitem desvendar o amor em significados singulares. A sexualidade obrigatória do casamento transforma-se entre estas amantes, cujo desejo é feito também de sensualidade, de carícias e de profundo afeto. A própria definição de amor e de sexualidade são postas em questão: porque, finalmente, a não ser por imposições morais e conjunturais o amor deve ter sexo e o sexo torna-se sinônimo de amor? E porque, sobretudo, amor e sexo são generizados, a não ser para obedecer injunções normativas que decretam o certo e o errado, o normal e o desvio? Inverter as evidências,(Foucault, 1971) é a démarche mais produtiva na história e nas ciências em geral quando se trata de auscultar os silêncios e os obscurecimentos de uma realidade cujos contornos revelam-se surpreendentes. É isto que faz , de certa forma, Carroll-Smith Rosenberg. Pensa-se geralmente em sociedades longínquas no tempo ou no espaço para se discutir a separação do binômio sexo/gênero, cujos aspectos performativos são explicitados por Butler. (Butler ,1990) Com Carroll-Smith Rosenberg as mulheres reaparecem na história, em uma realidade próxima e ao mesmo tempo alheia aos padrões com os quais se costuma analisar os séculos XVIII e XIX. Ou seja, a materialidade dos indícios documentais abrem um extraordinário panorama de relações femininas que indicam o curto lapso de tempo em que a heterossexualidade compulsória tornou-se a chave dos afetos e emoções das mulheres. Assim , se a autora percebe uma continuidade das características da rede relacional feminina – a solidariedade, a constância, a solidez e o fervor amoroso , o continuum que acompanharia as mulheres ao longo de suas vidas– o século XX marca a ruptura que transforma as mulheres em rivais , inimigas, concorrentes na busca do casamento , como pode se observar facilmente na media. nas tecnologias de produção e reprodução do gênero da atualidade.( Lauretis, 1987) A sororité tão almejada pelas feministas dos anos 70 ficou perdida em alguma dobra do tempo,entre o século XIX e XX, esquecida no assujeitamento das mulheres à normas que tornavam o casamento, além de uma obrigação familiar e social, o alvo do desejo maior das meninas e adolescentes. Se nos séculos XVIII e XIX o casamento é destino, no século XX é carreira e status passando pela sedução que exige o belo, o aprazível, o desejável. Formula-se assim o corpo e as maneiras da “verdadeira mulher”, espôsa e mãe, tarefas estas partilhadas com as mulheres estudadas por Carroll-Smith Rosenberg . Mas a inversão das evidência dos discursos sobre a época vitoriana- o da repressão sexual- faz brilhar , nos interstícios dos rígidos padrões de gênero, a própria quebra de sua naturalização. Em um mundo dividido em esferas bem definidas pela patriarcado, onde o mundo das mulheres funciona quase sem a presença masculina, as emoções e os afetos florescem na espontaneidade do desejo e da amizade. Este é o paradoxo: na fixação estereotipada dos gêneros desponta o frescor da cumplicidade, da generosidade, da paixão entre as mulheres, cuja expressão dribla e expõe o arbítrio da identidade sexual. Esta é a tarefa por excelência da historiadora feminista: desvelar as configurações singulares da emoção e da sexualidade que ressurgem assim que a homogeneidade das relações binárias e heterossexuais é questionada. Judith Butler enfatiza os contornos que podem adquirir as delimitações de gênero em sua historicidade: “[…] because gender is not always constituted coherently or consistently in different historical contexts, and because gender intersects with racial, class, ethnic, sexual and regional modalities of discursively constituted identities.” (Butler,1990: 3) Sexo biológico e sexualidade perdem assim sua ligação necessária , apontando para o aprendizado das práticas que se travestem em ações naturais, construção ilusória de uma essência do humano. De toda maneira, a própria noção de sexo biológico enquanto marco do gênero não passa de um construto cultural, cujo eixo justificador é a reprodução da espécie. A questão que nos interpela é: porque a reprodução e não o prazer? Porque o sexo e não a emoção? A instituição do casamento enquanto meio de apropriação física já foi amplamente discutida pelo feminismo (Guillaumin, 1978; Rich, 1981; Delphy, 1998) mas o trabalho de Rosenberg indica os limites da apropriação emocional e aponta sobretudo para as latitudes afetivas incorporadas ao estabelecimento e funcionamento da divisão binária num quadro geral de relações assimétricas e hierarquizadas. Estas margens de tolerância entretanto, parecem delimitadas por um lado, pela pouca importância dada a relações afetivas ou sexuais entre mulheres, já que a “verdadeira”sexualidade encontrava-se no sexo masculino. Por outro, este mundo de mulheres que de fato viviam e transmitiam imagens de gênero estereotipadas e centradas nas tarefas definidas socialmente como femininas não ameaçava a ordem instituída, a Ordem do Pai. É assim que mesmo vivendo paixões intensas, como demonstram as cartas trazidas à luz por Rosenberg, o caminho das mulheres passava pelo casamento quase como uma fatalidade, um destino incontornável. Adrienne Rich comenta a respeito destas mulheres: “[...] on ne peut pas prendre pour acquis que les femmes qui[...] se sont mariées et le sont restées, tout en ayant un univers affectif et passionnel profondément féminin , ont ‘préféré ou ‘choisi’ l’hétérosexualité;[...] elles se sont pliées avec foi ou ambivalence aux exigences de l’institution, mais leurs sentiments – et leur sensualité – n’ont pas été ni domestiqués ni bornés par elle. »( Rich, 1981 :37) Entretanto, no domínio das representações sociais a imagem do feminino e do masculino não se modificaram e as práticas sociais de desigualdade na definição dos gêneros mantinham-se em vigor. A vivência homoerótica destas mulheres atreladas à seus papéis de esposa-mãe atesta o vigor de emoções quebrando os limites do binômio sexo/gênero. Mas a própria aceitação social deste tipo de relações destrói em parte seu aspecto possível de resistência: esta liberdade de sentimentos , de fato , sustenta as estruturas de gênero, válvula de escape para rebeldias possíveis. De um lado, portanto, uma sociedade de normas rígidas e estritas, como a dos Mormons ou Quakers, estudada por Rosenberg; de outro, uma estratégia social que aceita e interina as relações homoeróticas neste mundo de mulheres, já que não interferiam na organização simbólica e material. Neste caso, as experiências múltiplas das mulheres entre si , de toque, de paixão e de sexo não apareciam como transgressões: estas relações parecem inserí-las em um mundo de outra categorização binária: a das emoções/ prazer e a do práticas institucionais/dever. Assimn, os limites do corpo sexuado, do afeto e da sensualidade não se restringem à demarcação do gênero mas se expandem nos interstícios das malhas sociais. Não estando nas margens, no border line, mas integradas às configurações culturais de relacionamento estes apaixonados e sólidos laços entre mulheres desaparecem no discurso monótono das relações binárias. Neste sentido, Rosenberg contribui à uma genealogia do corpo, que como sugere Butler seria “[...]the critical inquiry that traces the regulatory practices within wich bodily contours are constructed […]”. (Butler, 1989: 133) Ou seja, o gênero se explicita enquanto prática reguladora e disciplinadora da sexualidade heterosseual , mas abre espaço, neste contexto, para as sexualidades múltiplas ao integrá-las e destitui-las de importância , já que não reprodutivas . O corpo das mulheres é assim desenhado como feminino nas práticas sociais , seu sexo como reprodutivo e sua sexualidade , fora do âmbito do dever conjugal, de certa forma liberada. Que identidade sexual teriam estas mulheres? Que nome dariam a estas relações duradouras e intensas, paralelas e integrantes de seus quotidianos de wife/mother? Anyway, se a palavra amor está sempre presente em suas cartas, seu lugar de fala é a partir de uma posição de gênero; a comparação com as relações heterossexuais transita pelos trechos escolhids por Rosenberg. Assim se a prática sexual e a emoção podem ultrapassar os limites do gênero, a normatividade do heterossexual demarca as configurações gerais do relacionamento interpessoal. Mas e m seus corpos instituídos enquanto mulheres demonstram a ilusória coerência de gênero que como sugere Butlher , é performativo “[...] in the sense that the essence or identity that they otherwise purport to express are fabrications manufactured and sustained through corporeal signs and other discursive means.” (Butler, 1990:136) Neste sentido, não só a construção social do binômio sexo/gênero é revelada em práticas sexuais e relações amorosas homoeróticas mas a própria definição biológica de sexo binário é exposta em sua única justificativa social: a reprodução. A normatividade regulatória das relações heterossexuais em torno deste eixo -o sexo biológico, divisor natural do feminino e do masculino “ […]precludes an analysis of the political constitution of the gendered subject and its fabricated notions about the ineffable interiority of this sex or of its true identity” (Butler, 1990:136) Se Butler utiliza os exemplos de identidades paródicas do cross dressing e das drags queens or kings as mulheres estudadas por Carrol Smith Rosenberg em suas práticas relacionais múltiplas apontam para esta mesma desvinculação entre sexualidade, sexo biológico e gênero, sob , entretanto, a aparência unificado do “ser mulher”. Quebrando a homogeneidade do discurso histórico a respeito das relações feminino / masculino e sobretudo desvendando a riqueza potencial do relacionamento entre pessoas, Rosenberg , em 1975, preenche lacunas na História das Mulheres e abre espaço para o questionamento sobre identidade sexual, sexualidade, gênero e sexo biológico. Bibliografia: BUTLER, Judith, 1990. Gender Trouble. Feminism and the subversion of identity , New York : Routledge. DE LAURETIS, Teresa ,1987. Technologies of gender, essays ond theory, film and fiction, Bloomington, Indiana, Univ. Press, 151 p. DELPHY,Christine.1998. L’ennemi principal. L’économie politique du pratriarcat. Paris, Ed. Syllepse, 293 p. Foucault, Michel, 1971. L’ordre du discours, Paris, Galimard, 83 pages. Guillaumin, Colette, 1978. Pratique du pouvoir et idée de Nature, 1. L’appropriation des femmes Questions féministes, no2, février, pp.5-30. Jodelet, Denise, 1989 . Représentations sociales : un domaine en expansion, dans Denise Jodelet (dir.), Les représentations sociales, Paris, Puf, , pp.31-61. Mathieu, Nicole-Caude. 1991. L’anatomie Politique, catégorisations et idéologies du sexe.Paris, Côté Femmes.291 p. Rich, Adrienne, 1981. La contrainte à l’hétérosexualité et l’existence lesbienne, Nouvelles questions féministes, no.1, mars p.15-43. |