APRESENTAÇÃO

do livro de Susame Rodrigues de Oliveira:  POR UMA HISTÓRIA DO POSSÍVEL:
O FEMININO E O SAGRADO NOS DISCURSOS DOS CRONISTAS E NA HISTORIOGRAFIA SOBRE O “IMPÉRIO” INCA.

O título deste trabalho, - por uma história do possível – é por si só, todo um programa teórico do “fazer história” que aqui foi desenvolvido com toda pertinência.

Mas afinal o que é uma história do possível? É, sobretudo, uma história que busca os sentidos circulantes na materialidade em íntima articulação com o imaginário das formações sociais auscultadas. Estes sentidos são específicos e particulares a cada uma delas, mas a tendência da narrativa histórica é nivelá-los às significações do presente. O livro de Susane Oliveira mostra a deriva das narrativas históricas nas águas da interpretação.

Assim, em primeiro lugar, para se fazer ou até se conceber uma “história do possível” é preciso ter como premissa básica a inexistência de uma “natureza” que comandaria inexoravelmente os relacionamentos humanos.   Ou seja, as significações sociais, as redes representacionais comandam as imagens e a posição dos indivíduos em sua formação. Subjetividades, assujeitamentos, resistências, lugares de fala, importância social são assim construídos e iterados. A aparência de continuidade é uma imposição de sentidos que se faz às narrativas históricas, que tenderia a uma evolução do primitivo ao “civilizado”, do matriarcado desordenado, à ordem do pai, ao patriarcado.

As representações sociais, componentes destes imaginários geram o próprio sistema social em que são forjadas e criam deste modo  tradições, certezas, axiomas, normas, representações a respeito do humano. Isto significa que os discursos e imagens produzidos no social constroem o próprio solo sobre o qual se apóiam: assim, a  “natureza” aí toma o lugar do divino para definir saberes, posições, hierarquias : é o bio- poder em toda sua pujança, forjando corpos, criando  nichos de exclusão, justificando desigualdades.

No caso das definições e limites dos sexos, o biológico determina os lugares de fala e as posições de sujeito, justificados pelo “natural”: para o masculino,  a razão, as funções diretivas e cognitivas, a autoridade, o poder de decidir, de possuir, de se deslocar, de se instruir, de usufruir de tudo que a sociedade pode oferecer. E a cidadania é conjugada no masculino, dada por seu aparelho genital, orientando de forma unívoca os interesses, as perspectivas e análises históricas.

Deste modo, fazer história tornou-se a fastidiosa repetição do Mesmo: a história dos homens, seus feitos e atos no social, entre os quais a apropriação das mulheres, esta ordenada pela própria “natureza”. A definição de “mulheres” encontra-se alojada em seus corpos, marcada por um destino biológico: a procriação, receptáculos apenas da semente masculina, corpos a serem utilizados e abusados, força de trabalho gratuita.

 Estas representações sociais povoam o imaginário patriarcal e são re-criadas pelos discursos científicos, (biologia, psicanálise, antropologia, história, etc.) pela religião, pela normatividade social. Tornam-se imagens universalizadas e “eternas”, cujos sentidos sociais são fixados, ancorados, repetidos, retomados, numa constante eclosão que pode ser identificada nos discursos de cada época e lugar.

Assim, uma história do possível não aceita esquemas definidos de antemão ao abordar o estudo de um período, de uma determinada formação social, quer seja, gênero, raça, status, riqueza, poder. Tem como eixo condutor de análise a infinita possibilidade de agenciamentos sociais e a variedade possível de formações e sistemas em suas expressões eventuais; abre a história para o diverso, para aquilo que não está necessariamente ancorado nas representações sociais do presente, construídas em torno de uma “natureza” toda poderosa. Os discursos do passado trazem indícios desta diversidade e Susane, neste livro, detalha estes traços.

Tenho trabalhado esta noção há vários anos, em artigos e na docência para apontar a dimensão da pluralidade nas relações humanas que não foram e não são necessariamente as mesmas em todos os períodos da história. Especialmente no que diz respeito à pesada materialidade de representações do feminino e do masculino em uma  divisão binária de papéis e funções,  de trabalho, esta construção social, que ainda hoje afirma sua “natureza”, de origem quase divina.

Da mesma forma, o que permite atribuir ao humano as mesmas aspirações, o mesmo imaginário religioso, a mesma necessidade de devoções e divindades, os mesmos medos e preconceitos, os mesmos atributos e papéis durante uma temporalidade da qual sequer conseguimos definir os limites? 100 mil, 50 mil anos de presença humana?

Uma história do possível busca no humano não o binário hierárquico masculino / feminino, a opressão, a existência de áreas e direitos exclusivos, a divisão de gêneros, mas sim o processo de diferenciação de sexos que  erigiu  o  biológico genital masculino em realeza dando-lhe o lugar de fala, de ação e de poder. Nesta história do possível encontram-se traços de sociedades não patriarcais onde o sexo não é o eixo das divisões sociais e feminino/masculino não se colocam em oposição, concorrência, hierarquia. E talvez nem existam enquanto divisão do humano tal como se concebe hoje.

Uma história do possível não é a história evolucionista, nem a narrativa de eventos em uma imposta continuidade: é uma narrativa que ausculta a deixis discursiva, o aqui e o agora dos períodos estudados, os sentidos ali produzidos e circulantes, pois cada sociedade é composta de articulações específicas, de imaginários múltiplos e concorrentes que abrigam representações sociais diversas.

E nestas, a divisão hierárquica do mundo em masculino e feminino não é universal, muito menos “natural”. Não existe necessariamente a repulsiva dominação produzida e exercida pelos homens sobre as mulheres, justificada por assujeitamento e punição sociais, tradições, normas, leis, religiões, ordenamentos, costumes, pela força ou pela violência. A história tradicional é uma das pedras desta construção ao naturalizar uma relação que é, sobretudo, social. O que está em jogo é todo um sistema de poder exercido pela metade da humanidade sobre a outra, que não pode ter seus alicerces abalados.  

Susane Oliveira com coragem ao enfrentar os preconceitos acadêmicos e com desenvoltura  para articular diferentes quadros teóricos, faz neste livro uma “história do possível”. Explicita suas premissas, aponta para seus fundamentos teóricos e metodológicos e utiliza-os com toda pertinência.

Se o que nos resta do passado são imagens e discursos, ela analisa as narrações dos cronistas a respeito dos incas assim como a produção historiográfica que delas se utilizam. Com a metodologia da análise do discurso francesa, busca os sentidos presentes nos discursos dos cronistas e aponta para o quadro de representações sociais que impõem sentidos às suas narrativas sobre a mitologia e o sagrado na sociedade incaica. Ao interpretar, traçam um desenho desta formação social - por si só constituída de várias culturas - e reconstituem as relações sociais de suas épocas na divisão binária do humano, no sexo social.

Toda a diversidade e expressão peculiar a estas formações sociais foram apreendidas e ancoradas em representações sociais que compunham o imaginário e o sistema de significações dos narradores – e este passou a ser a “verdade” histórica, a mesma que apaga o feminino e lhe retira toda importância política e social.

Susane aponta como, quando chegaram ao Tawantinsuyo, (nome dado pelos incas a seus domínios) por volta de 1530, os espanhóis encontraram mulheres ocupando postos e funções de poder e autoridade na estrutura sócio-política e religiosa incaica. Explica que nesta organização as mulheres eram adoradas e reverenciadas como deusas/huacas, heroínas e governadoras: este é caso das Coyas, das sacerdotisas do Sol e da Lua, das curandeiras, das huacas femininas, das señoras Cápacs, das mulheres guerreiras, das curacas, das capullanas e das proprietárias de terras e águas.

 Exemplifica ela que “Os mitos da expansão da Tawantinsuyo também revelam a presença da curaca Chañan Cusi Coca, uma heroína guerreira sacralizada no imaginário indígena colonial, por proporcionar uma das vitórias mais importantes para o estabelecimento do poderio incaico sobre os Andes”.

 Onde foram parar estas mulheres e estas representações do feminino na historiografia? É evidente que relações sociais diversas não alcançaram a inteligibilidade necessária para serem expostas, já que solapariam os fundamentos do poder masculino ‘natural”,  da teologia, da catequese, da ordem de deus-pai.

Nas tradições incas encontravam-se mulheres como Mama Huaco, guerreira, conquistadora de terras/povos e responsável pela fundação do Tawantinsuyo assim como Mama Ocllo, depositárias de  autoridade, sacralidade e poder naquela ordem social. Ao mencioná-las, os cronistas procuram desqualificá-las como foi feito com Mama Huaco, diabolizada, retomando representação oriunda do imaginário do século XVI, de um feminino travestido em  súcubos malditos.

Os mitos são formas de linguagem e de comunicação social e a presença de imagens fortes e positivas das mulheres constroem sentidos que desenham quadros de um feminino ininteligível para os cronistas, mergulhados em suas próprias representações sociais do que é o feminino. Afinal, o olhar vê aquilo que quer ver e as mulheres guerreiras, conquistadoras, governantes na sociedade incaica desaparecem da historiografia ou são alojadas em uma outra forma de mito, o ficcional.

Susane decodifica esta trama quase inextrincável de significações, de imposição de sentidos à narrativa e à história em função da manutenção de um sistema de representações sociais androcêntricas, sinônimo de poder.

Esta é uma história do possível, uma história feminista que dá ao feminino o lugar que ocupou em suas formações sociais e delas foi amputado.

 tania navarro-swain