Sexo é vida? A produção da sexualidade

(palestra)

(texto retomado e expandido em "entre a vida e a morte, o sexo)

“ Sexo é vida” repete incansavelmente uma propaganda na TV. Ejaculação precoce? Falta de desejo? Pela internet recebo dezenas de mensagens: ative seu apetite sexual! frigidez,? Aumente seu pênis! mas eu não tenho pênis, quem sou eu? Libere seus feromônios, não sabe que o cheiro é sedução? Dança do ventre, pompoarismo, preciso me atualizar, perder esta barriga, levantar os seios, aumentar a bunda, ai esta celulite, e o dinheiro para a plástica?

Onde está meu perfume, meu xampu, meus cremes para tudo, preciso depilar a virilha, que cabelo mais crespo, ninguém assobia para mim, ninguém me olha, quem sou eu? meu desodorante venceu, estou suando, que roupa antiga, não transei esta semana, não tive nenhuma paquera, ninguém me disse que eu estava sexy, o que é ser sexy afinal?  quem sou eu,  não consigo seduzir, estou só, só, não sinto desejo, preciso me tratar, será que morri? quem sou eu? não casei, não tenho filhos, não sou mulher? não tenho pênis, não sou homem, quem sou eu?

Este é o quotidiano de tantas mulheres, debatendo-se no dispositivo da sexualidade em ação, que institui e destitui identidades, dita comportamentos, práticas, representações e, sobretudo auto-representações..Firma-se pelo discurso da mídia, da ciência, da psicanálise, das imagens repetidas sem cessar, criando modelos aos quais devo me ajustar, impondo, insidiosamente, padrões de conduta, valores que devem permitir minha inclusão social, meu pertencimento a um grupo, selo de minha saúde física e mental.

Entre a vida e a morte, o sexo. Entre o ser e o não ser, o sexo. Como explicar a expressão “vida sexual”, senão pela desmedida importância que se dá aos órgãos genitais? Porque não se fala, por exemplo, de “vida visual” de “vida manual”?” Como a noção de “vida” pode se reduzir a orifícios, excrescências e humores? Porque esta importância, senão para demarcar poderes, lugares de posse e dominação, lugares de fala e de autoridade? Porque, senão para construir e domesticar os corpos assim definidos,  ordem cujos mecanismos hierarquizam, ao criar os valores atribuídos ao sexo?  

O cansaço me toma, face a estas imagens, ruídos, falas, textos, gestos que me invadem a cada segundo, através dos mídia, da literatura, das conversas, de meus pensamentos assujeitados, modelados pela louvação ao sexo e suas práticas. A ode à sexualidade me irrita, pois sou obrigada a ver mamilos, coxas, pelos, bundas, ouvir suspiros e ruídos cavernosos, quando busco distração, riso, encantamento, quando já não há escolha, apenas imposição. Porque a visão de  línguas , seios, pelos, de bocas enormes e abertas se encontrando deve ser excitante, atrativa, sensual? Aliás,  o que é ser sensual? Diz respeito à sexualidade ou a um erotismo difuso, também indefinível?  Ou significa a ante-sala de uma sexualidade praticada? E o que é esta sexualidade, a emoção de corpos que se des-cobrem ou apenas uma mecânica de gestos quase codificados?

A naturalização das imagens e das práticas sexuais não passa de mais uma essencialização dos corpos,  travestidos em sexo. Foucault se refere muitas vezes a auto- erotismo, - que categoria estranha! neste caso, se o objetivo da sexualidade já não é a procriação, mas um orgasmo geral, porque  a necessidade  de parceiros? Esta grande confusão , de fato, aparece como uma superfície lisa e homogênea de atos naturais, provindos de uma “essência” qualquer, que definiria os impulsos, instintos, pulsões diferenciadas, de mulheres e homens, face ao sexo – discurso redundante pois o sexo é sua definição e a diferença sua instituição, na carne e nas expressões do político .

O que, afinal,  determina a importância do sexo e da sexualidade como raízes da identidade, do ser-no-mundo, da socialização, do processo de subjetivação? Poderia ser apenas mais uma manifestação do humano, mas nas articulações do social é a significação dada ao que se valoriza e que circula com valor de verdade, sobretudo com a marca da natureza, indiscutível, soberana, massa inerte do dejà-là, do pré-construído, das tradições históricas e datadas que adquirem o peso do natural. Da religião à psicanálise, da história à biologia, o sexo e a sexualidade adquirem foros de fundamento, de marcas hierárquicas, o selo que distingue e ordena segundo uma pré-classificação do humano em feminino em masculino, em função de sua genitália..”Mais moi, j´ai un uterus”, s´exclament quelques unes! Et alors? Cette expression affirme encore une essence du féminin alliée  aux corps, au biologique, une  définition  identitaire fondée sur la reproduction,

Seres construídos que somos, a evidencia do sexo é, porém,  tão forte que obscurece as linhas e traços de sua instituição: a  pesada materialidade dos corpos, suas elevações e abismos justificam condutas, conceitos, referencias. O poder é sempre do pai, do masculino, a linguagem é o domínio do falo, da ereção, da racionalidade, da realidade; para o materno resta o ilusório, o irracional,  a falta, a inveja, o repúdio,  “a culpa é sempre da mãe”.  Que mecanismos tortuosos e bizarros  são estes que atrelam razão e sexo, autoridade e ereção, o falo enquanto significante geral? Que cegueira social é esta, que vela as estratégias  de diferenciação dos sexos para melhor instaurar uma “natural” diferença política entre mulheres e homens?

A incongruência é tão enorme que necessita desta constante iteração discursiva e imagética,  desta pedagogia social que institui e  naturaliza os comportamentos e as identidades de sexo. Envoltas e criadas em dicotomias e polaridades, em instituições e práticas que nos delimitam possibilidade e ações, somos prisioneiras de corpos sexuados, desejando sê-lo talvez, reivindicando prazeres efêmeros e insatisfatórios. Nos anos 70 o clitóris foi “descoberto” pelos feminismos, o prazer sexual foi debatido,  exigido, condição de igualdade. Um prazer, entretanto, simbólico, em termos de libertação de um assujeitamento mediado pelos corpos, pois, finalmente, o que  aportam os segundos de  tremores e suspiros face à desmedida importância atribuída ao sexo? Finalmente, era só isto?

O desencanto passa sempre por uma auto representação negativa, questionamentos sobre a  saúde física e mental, a adequação social,  uma sociabilidade centrada em seduções, beleza, conquistas, proezas sexuais. Como me insiro ou me desloco em meios onde o sexo é rei, como expressar minhas dúvidas sem cair no ostracismo social, empurrada para as margens, mesmo entre feministas?

Mas o que é afinal, este dispositivo da sexualidade que me enreda e me constrói sem que disto eu sequer me aperceba? Sem que dele eu queira me libertar? Foucault explica que

“ De fato, trata-se , na realidade, da própria  produção  da sexualidade. Não se deve concebê-la como uma espécie de dado da natureza que o poder tentaria domar, ou mesmo de um campo obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar. É o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não a realidade subjacente sobre a qual se exerceriam difíceis  controles ,mas uma grande rede de superfície onde a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências se imbricariam uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder. .pg 139 his sexl1, 1976)

O dispositivo da sexualidade, assim identificado Foucault, atua em  tecnologias do sexo , estas táticas sociais  anônimas que utilizam todo o acervo, todo o arquivo de memória, todos os esquemas de  interpretação disponíveis no social, não apenas induzindo à sexualidade, mas moldando o sexo e o desejo sexual em suas arestas e pontas, em torno e além da  heterossexualidade reprodutiva.

A sexualidade, nesta perspectiva não está no domínio do “natural”, do biológico, mas na produção discursiva do sexo-necessidade, do sexo-verdade, do sexo- identidade, do sexo-vida. Diz Foucault

:” O dispositivo da sexualidade tem como razão de ser não apenas se reproduzir, mas proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar os corpos de maneira cada vez mais detalhada e de controlar as populações de forma cada vez mais global.” his sexl1, 1976, 141

            O dispositivo, portanto, inventa os corpos e os possui, cria-os ao defini-los e moldá-los enfatizando o prazer , sem defini-lo nem questioná-lo, para melhor apagar os traços de sua construção e domesticação. Quem não sente este prazer, tão louvado, acha-se doente, anormal, porque os consultórios estão tão cheios de “problemas” sexuais? Porque não tomar o desejo ou a emoção quando vêem, sem precisar de remédios, estímulos, análises?

Esta sexualidade, tal como a conhecemos e vivenciamos é datada, relativamente recente, diz Foucault:

“Em todo caso, há cerca de 150 anos um dispositivo complexo se instalou para produzir sobre o sexo discursos verdadeiros {...} E é por meio deste dispositivo que  pôde aparecer como a verdade do sexo e de seus prazeres algo como ´a sexualidade´. :  ".his sex.11976,  pg 91)

Se Foucault identifica nas práticas discursivas a produção daquilo que deveriam estar explicitando, a sexualidade,  em suas forma atuais e exacerbadas, é produzida pelas tecnologias do sexo, pelas tecnologias de gênero,  por esta proliferação de imagens e discursos que me assaltam, me percorrem, me possuem, me identificam, me sugerem sempre mais sexualidade, lá onde procuro emoção e encontro.

 Estes discursos sociais produzem sexo – corpos biológicos – e sexualidade – práticas sexuais - de forma mais densa no binário e na hierarquia, e assim produzem gêneros, diferenças, margens, centros, polaridades, padrões, tipologias e as diferenças assim produzidas trazem as marcas do político, das relações de poder de um patriarcado que ainda não disse suas últimas palavras.

No sexo, portanto, o destino biológico naturalizado das mulheres enquanto mulheres, como mães ou como orifícios a serem usados, objetos de prazer e sobretudo de poder, o poder de determinar, de dirigir, de humilhar, de ironizar, de inferiorizar, de possuir, de violentar, de controlar, de comprar, de traficar.  Christine Delphy, Colette Guillamin  identificam, com pertinência, “a classe dos homens”, ampla coalizão em um sistema histórico e social , o patriarcado, que lhes confere “ naturalmente” autoridade, prestígio e a posse das mulheres também enquanto classe, o que as transforma NA MULHER, singular que apaga todas as singularidades.

. Neste sentido, a prostituição e o estupro, a violência doméstica que povoam o cotidiano das mulheres  condensam o poder masculino sobre os corpos femininos , reproduzindo, em seu  medo ou  aviltamento  a sexualidade na violência, o poder ligado ao sexo. .As mulheres enclausuradas em seus véus, as meninas vendidas e usadas neste grande  festim mundial  onde se consome o feminino transformado em carne e orifícios  são  do patriarcado a expressão mais clara- elas são e estão no mundo para servir os homens,  de todas as formas, nas dobras de seus desejos e injunções. Esta sujeição se naturaliza na diferença.

Diz uma recente publicidade na TV, para vender perfumaria: “ mulheres e homens são diferentes”. Isto parece  expressão do óbvio, reafirmando e repetindo a idéia da “natureza” dos sexos; entretanto,  a diferença está sendo construída no próprio momento em que as imagens  assim desfilam. A diferença   existe, isto  é inegável, de um indivíduo para outro, mas não fundada na essência dos corpos marcados de sexos e sim em  sua construção pelas pedagogias sociais múltiplas, entre as quais a espiral envolvente da própria  sexualidade.

As estruturas de poder político, aí presentes,  desaparecem  e o sexo/sexualidade se impõem como marcas e limites do humano , dos seres transformados em corpos sexuados, cuja expressão maior é um rosto feminino. Como analisa Colette Guillaumin, as mulheres não tem um sexo, elas são um  sexo.

Diferentes, portanto, uma diferença política que ancora nos corpos sua justificativa, que dota a genitália das marcas do superior e do inferior. Diferentes, as sexualidades femininas e masculinas? sem dúvida, já que nascem de construções representacionais e imagéticas em torno da construção política dos gêneros.