Robyn Davidson , Camel  Lady: a invenção de si

tania navarro swain

Resumo:

Uma jovem citadina na Austrália sai de sua vida quotidiana e se dirige para o deserto. Seu objetivo: chegar do centro do país ao oceano Indico, a pé, com três camelos por companhia e para carregar seu material. E sua cachorra adorada, Diggity. Nesta aventura onde conheceu o desânimo, a  solidão, sentiu também o gosto da beleza, da diversidade, do encontro feliz com os aborígenes. Construiu também   outro ser, ela inventou-se como um sujeito em transformação, um ser livre.

Palavras-chave: mulher de aventura, deserto, Austrália, camelos, Diggity.

« ni sumisa, ni devota. Libre, linda, loca ! »

Feministas callejeras radicales, 8/10/2013. Frase sobre um muro, não se sabe onde... 

Robyn Davidson atravessou o deserto australiano em 1977, sozinha com sua cachorra e quatro camelos, dos quais um recém-nascido; ela tinha então 27 anos. Relata a história de sua aventura em um livro, denominado “Tracks”.[i] Esta narrativa expõe todo um processo de transformação e invenção de si, um longo caminhar de sofrimento e dor, de vontade, de aprendizado, uma epopeia que a levou a percorrer quase 3000 km, a pé. Ela raramente montou os camelos, pois uma queda poderia ser fatal na imensidão do deserto, sem nenhuma ajuda próxima.

Fala-se muitas vezes em práticas de liberdade, que são cruciais para a mudança das relações sociais binárias e hierárquicas. Quebrar os moldes e desafiar as interdições é uma maneira de se inventar, de modificar as representações do feminino para si mesma e para outrem.

Esta invenção de si se revela em um processo contínuo, feito de altos e baixos, de alegrias e às vezes de um profundo desânimo.

A criação de si se encontra na experiência da vida, e, sobretudo nos cortes radicais que se produzem.

Teresa de Lauretis dá uma excelente definição da categoria « experiência » :

« [...] to designate an ongoing process by which subjectivity is constructed semiotically and historically.[…] more accurately as a complex of habits resulting from the semiotic interaction of ‘outer world’ and ‘ inner world’, the continuous engagement of a self or subject in social reality.” (de Lauretis, Alice:182)

Nesta ótica, a realidade se produz no decorrer de um processo de interação entre o sujeito e suas condições de produção, de imaginação, de possibilidade social na qual se encontra. Ora, esta experiência pode ser radicalmente transformadora na medida em que o sujeito muda seu lugar geográfico de inserção no social ou muda seu meio cultural, no qual se formou enquanto indivíduo.

É assim que espaço interno e espaço externo se conjugam para estabelecer uma nova configuração de si: trata-se de uma transformação complexa que se faz num contínuo, desembaraçando os fios de uma experiência anterior para criar um novo sujeito de ação.

É claro que a inserção de novos sujeitos em  certa realidade a modifica ; da mesma maneira, esta realidade transforma o indivíduo que nele se insere. Esta maleabilidade constitui o dinamismo do social, a possiblidade de ver e de criar outros horizontes para além dos esquemas estabelecidos. Robyn representa um exemplo ideal desta transformação, deste transito entre o in e o out, assim como uma inserção em um meio totalmente desconhecido e hostil. E lá onde permaneceu ou simplesmente passou, as coisas nunca mais foram as mesmas.

A preparação

Ela assim descreve seu ponto de partida, Alice Springs, pequeno vilarejo situado no coração da Austrália:

« It is a frontier town, characterized by an aggressive masculine ethic and severe racial tensions. »(8)

De fato, Robyn Davidson, que partilhava as esperanças da juventude de seu tempo ( anos 60/70 cuja questão central do político era a justiça)[ii] ficou estupefata diante do racismo, do sexismo, do tratamento dado aos aborígenes e particularmente às mulheres, neste lugar  « [...] where men are men and women are an afterthought » (5).

Diante dela, se erigia o deserto: poeira, despojamento, solidão, calor, uma natureza desconhecida, tão estranha e tão  bela. Em seguida, os homens, o machismo, a ameaça constante que sobre ela pesava  vinda de olhares pesados de insinuações. Finalmente, o que vinha ela fazer no meio do nada, sozinha, sem a “proteção” de um homem? Assim, se algo lhe acontecesse, seria bem sua culpa, pensariam eles. Como de hábito.

Mas os homens de Alice Springs aprenderam depressa que uma mulher pode viver sem um macho, seguir suas aspirações, que uma mulher pode se defender e fazer aquilo que eles consideravam impossível: domar camelos e realizar uma viagem além do imaginável. Quando descreve o macho australiano, Robyn não mede as palavras:

« He is biased, bigoted, boring and, above all, brutal. His enjoyments in life are limited to fighting, shooting and drinking.”(19)

Tudo que interessava a Robyn era o deserto, ou seja,

« [...] purety, fire, air, hot wind, space, sun, desert, desert. I had surprised me. I had no idea those symbols had been working so strongly within me » (37)

Robyn, 30 anos depois desta viagem escreveu:

« Si cet ouvrage est porteur d’un message, c’est que l’on peut s’affranchir du besoin d’obéissance qui nous semble naturel parce qu’il est tout simplement familier. Chaque fois que nous devons nous plier à la norme (le plus souvent pour conforter le pouvoir d’une autre personne), la nécessité de résister s’offre à nous. »[iii]

Robyn, neste período, viveu de forma despojada e rústica: todos os dias um desafio para aprender o manejo dos camelos, uma inquietação permanente sobre seus objetivos, seus meios, suas forças. Mas apesar das dificuldades, perseverou em uma preparação duvidosa para atingir seu objetivo: atravessar o deserto, sozinha, com seus camelos e sua cachorrinha. Mas o principal era obter os camelos e, sobretudo saber manejá-los. Ela assim explica:

« The trip had never been billed in my mind as an adventure in the sense of something to be proved. […] One really could act to change and control one’s life, and the procedure, the process was its own reward.”(37)

Robyn se sentia transformar cada dia de penas e alegrias, as cinzas da fênix não eram senão a poeira vermelha que a acompanhava e cobria.

Chegou a Alice Springs com seis dólares no bolso, e Diggity, sua companheira, seu porto seguro, o único ser que iria povoar sua solidão. Solidão escolhida, buscada, premissa de sua aventura no deserto.

Ela pretendia buscar camelos selvagens e treiná-los ela mesma, para a travessia do deserto. Mas o que sabia ela sobre camelos? Nada! E sentiu logo esta inaptidão em seus encontros com treinadores, aos quais pediu auxílio. Eles riram muito de suas pretensões aventureiras. Isto só fez com que ela persistisse ainda mais em seu objetivo.

No início, para sobreviver em Alice Springs, precisava de um emprego. Conseguiu um como garçonete em um bar: o vilarejo parecia com aqueles do Oeste americano, atravessado pelas caravanas. Uma rua ladeada de prédios deteriorados, a poeira vermelha cobrindo tudo, o calor e ... o machismo dominante.

Conseguiu porém, uma colocação em um rancho de treinamento de camelos, primeiro com um alemão brutal, Kurt, que necessitava de mão de obra. Ele aterrorizava todo mundo, sua mulher, os animais e Robyn especialmente, pois se dedicava a tornar sua vida insuportável. Ele proibia até que ela usasse sapatos!

« Some nights I could not sleep for the pain in my swollen, punctured and infected feet” (23)

Ela trabalhava de sol a sol, sete dias por semana, e o contrato com o alemão assegurava que depois de oito meses ele lhe daria os camelos para sua viagem. (23) Mas como pode ela se submeter a este tipo de tratamento ? Ela comenta:

« I hated myself for my infernal cowardice in dealing with people. It is such a female syndrome, so much the weakness of animals who have always been prey. I had not been aggressive enough or stood up to him enough. And now this impotent, internal angry stuttering.” (15)

A narrativa de Robyn nos faz partilhar as agruras de seu aprendizado: ela suportou até o extremo limite as exigências absurdas de seu empregador, as tarefas exaustivas, pois ao final havia sua viagem com seus camelos, seu caminhar, seu deserto.

Um dia, entretanto, depois de uma nova vaga de maldade da parte de Kurt, não pode mais se conter:

« And then I burst. Hell had no fury by comparison.[...] I lashed out at Kurt, calling him every name under the sun and screaming that he had a snowflake’s chance in hell of getting me to do his dirty work again. I’d die first. I stormed into the room in a passionate rage, slammed his precious barn-door, the one that had to be handled like glass, and packed my meager possessions.” (16)

Foi embora depois deste rompante e ficou ainda um período empregada em um bar no vilarejo, onde sofreu claro, os assédios até ameaças de estupro.

« One night in the pub one of the kinder regulars whispered to me, ‘You ought to be more careful, girl, you know you’ve been nominated by some of these blokes as the next town rape case’.” (19)

Entrementes, Kurt veio lhe pedir para voltar ao rancho e terminar seu contrato. Ele não havia mudado sua maneira de ser, mas era melhor que suportar a agressividade e as ameaças veladas no bar. Todavia, como se podia esperar Kurt recomeçou a maltratá-la e tentou prolongar suas horas de trabalho, enquanto ele mesmo não fazia mais nada; nova crise, nova partida. Oito meses de trabalho, no fim dos quais teria seus camelos que, evidentemente, foram perdidos.

« The next day I left the ranch in a daze. I was never going to get my camel or anything else. I marveled at whatever blindness it had been that allowed me to stay as long as I did as his dupe.” (31)

Este árduo trabalho para nada durante meses a transformou. Não somente fisicamente, pelas tarefas extenuantes, mas uma modificação interna que lhe permitiu libertar-se do arcabouço de mulher frágil e submissa.

O tempo que passou neste rancho permitiu-lhe também  estabelecer uma relação muito próxima com os camelos. Ela os amava muito e a crueldade de Kurt era insuportável. 

« I will now, once and for all, destroy some myths concerning these animals. They are the most intelligent creatures I know except for dogs […] They are affectionate, cheeky, playful, witty, yes witty, self-possessed, patient, hard-working and endlessly interesting and charming. They are also very difficult to train, being of an essentially undomesticated turn of mind as well as extremely bright and perceptive. This is why they have such a bad reputation.[…] I was hooked.” (14). 

Depois de alguns dias de angústia no vilarejo, Robyn foi convidada a trabalhar com um afegão, que possuía igualmente um rancho de treinamento de camelos. Você tem coragem, disse-lhe, por ter suportado Kurt tantos meses! Tornou-se seu mentor, seu amigo, seu “camelo-guru” e seu salvador. Forneceu-lhe os camelos. (31) 

O deserto

 

Robyn Davidson, então, depois deste estágio, partiu de Alice Springs ( ver mapa). O caminho que imaginava para esta aventura ia de leste para oeste, até o mar, seguindo os traçados que passavam pelos poços, esperando que neles houvesse água. O deserto na Austrália ocupa toda a parte central desta ilha-continente em um espetáculo movediço, alternando as areais,  os arbustos e uma vegetação esparsa e tímida.

O calor, esmagador durante o dia e como em todos os desertos, muito frio à noite. De tempos em tempos podia chover, mas era muito raro.

Mas para sua aventura, era necessário, evidentemente, camelos, fornecidos pelo afegão.[iv]

 

Os camelos

Os camelos foram trazidos para a Austrália nos fins do século XIX para auxiliar a instalação do telégrafo e da estrada de ferro que deveria atravessar o deserto. Uma vez o trabalho concluído, foram liberados na natureza, pelo menos os que não haviam sido abatidos por ordem do governo. No deserto, multiplicaram-se e no início dos anos 2000 estimava-se uma população de um milhão de indivíduos.

Entretanto, tanto os camelos quanto outras espécies foram introduzidas em um ambiente estranho e o resultado foi que os camelos tornaram-se “prejudiciais” às grandes fazendas do Outback ( interior da Austrália), bem como os coelhos, por exemplo.

Desde então viraram alvo para os caçadores, tropas inteiras dizimadas por helicóptero ou carro, utilizando a carne para exportação; o governo ofereceu mesmo um prêmio aos matadores de camelos. Explorados a princípio, dizimados em seguida, os camelos sofrem ainda hoje a pesada mão dos homens sempre sedentos de matanças e de sangue.[v]

São capturados também para doma e utilizados para passeios excêntricos para numerosos turistas que, geralmente, não estão interessados na maneira como os animais são tratados. Estes turistas degustam as carnes “exóticas”  e além dos camelos, cangurus, aceitam qualquer espécime caçado. São repugnantes em sua inconsciência, que alimenta a matança dos animais. Os movimentos pela defesa dos animais consegue apenas arranhar esta superfície da visão funcionalista dos animais “que estão aí para isto”. Exatamente o mesmo raciocínio que o patriarcado usa para as mulheres.[vi]

A viagem

E que a viagem comece !

 

mais deserto

 

 

Caminho percorrido por Robyn

 

Depois de muitas peripécias, Robyn finalmente está pronta para o grande desafio, estes 3 000 km a serem percorridos a pé, sozinha, no calor e na secura de um dos desertos mais inóspitos que existem.

Para isto teve que aceitar, com relutância, o apoio financeiro do National Geographic e foi assim que teve o desprazer de ter um fotógrafo que de tempos em tempos a encontrava, para sessões de fotos. Que ela odiava.

Uma estrada atravessa o deserto, mas Robyn não queria segui-la para evitar toda circulação, turistas e tutti quanti; sua preferência era seguir os traçados deixados pelos bulldozers e outros veículos de campo, mas a dificuldade maior era qual escolher, pois havia uma quantidade enorme deles. Qual a levaria na direção certa, que deveria passar pelos pontos de água, indispensáveis à sua sobrevivência? Se a escolha não fosse boa, teria que voltar atrás. (110)

Os mapas eram precários:

« [...] whoever those people are who fly in planes and make maps of the area, they need glasses ; or perhaps were drunk at the time; or perhaps just felt like breaking free of departmental rulings and added a few bits and pieces of imaginative topography […]” (110)

Seu pequeno grupo estava composto por Diggity,  4 camelos, já que a fêmea há havia tido seu bebê: Zeleika e Goliath. Além destes, Dookie e Bub. Carregar e descarregar os camelos todos os dias era uma corveia, que no início tomava duas horas. Havia muito equipamento, comida, recipientes para água, etc. Como alimentação, arroz integral, lentilhas, legumes cozidos no carvão, cereais, açúcar, mel, leite em pó, laranjas, limões. (113) Uma lata de sardinhas era o luxo supremo.

foto: Rick Smolan

O quotidiano era pesado: montar e desmontar acampamento, fazer fogo, cozinhar, tratar dos camelos e de Diggity, sua linda cachorra. O mais duro era o carregamento e no cansaço do fim do dia, descer o equipamento e realizar todas as outras tarefas. Os camelos em geral ficavam livres de noite e raramente iam muito longe. Mesmo assim Robyn se levantava uma ou duas vezes para ver onde eles estavam e se tudo corria bem. Os camelos eram sua grande preocupação, ela cuidava deles com carinho.

 « My routine was buit around their needs and never my own. »(114)

Queria, sobretudo  evitar o que podia acontecer: se os arreios não estivessem bem presos, se a carga oscilasse, podia ferir  o animal o que muitas vezes os machucava profundamente. Os camelos como ela descobriu são animais sensíveis, como os cavalos. Suas patas são feitas para a areia e os pedregulhos rasgavam com frequência as almofadas dos cascos

Um dia, Doodie escorregou e feriu a pata fronteira: Robyn foi obrigada a esperar 6 semanas em Docker, um vilarejo aborígene mais próximo, para que sarasse.  (140)

Os acasos e incidentes em sua aventura não lhe permitiam portanto, fixar um tempo para percorrer seu itinerário, que havia calculado em torno de 6 meses.

« This worry over the camels was unrelenting. Without them I would be nowhere, and I treated them like porcelain. Camels, so everyone says, are though, hardy creatures, but perhaps mine were so pampered that they had turned into hypochondriacs; they always seem to have some little thing wrong with them, which, doubtless, I blew out of all proportion.”

De fato, a fragilidade dos camelos não é absolutamente considerada pelos homens de ontem e de hoje. Ella Maillart conta como, depois de esgotar um animal, as caravanas os abandonavam sós no deserto, deixando-os chamar desesperadamente enquanto a caravana se afastava. ( Labrys 19 www.labrys.net.br)

Em suas viagens, que atravessaram muitos desertos, Ella Maillart esteve horrorizada de ver as imensas feridas no dorso dos camelos, que não eram medicados e recebiam todos os dias imensas cargas sobre elas.

A narrativa de Robyn é muito autêntica, pois não procura se mostrar como heroína dos mares de areia: seus tormentos, seus desesperos, suas dúvidas, ela as expõe, desvela, nos faz partilhar os fardos e as alegrias desta aventura espantosa.

Porque, de fato, este sofrimento, este cansaço, esta exaustão? Ela tinha um sonho de solidão e, sobretudo de liberdade, o desejo de experimentar os sons quase imperceptíveis  do deserto: seus passos nas areias, a respiração dos camelos, o farfalhar do vento. A luz esmagadora do sol, os desenhos na areia, as estrelas como são vistas apenas no deserto. Muitas vezes percorreu as trilhas nua, cantando, a pele tostada, apenas um chapéu para proteger seu sensível nariz.

Porém seu caminho foi semeado de visitas e encontros. Houve sua grande amiga Jenny que veio vê-la, em uma mistura de alegria e frustação, pois Robyn não almejava companhias. (133-134)

O fotógrafo do National Geographic esteve várias vezes com ela para suas sessões de fotos, que ela detestava. Para Robyn, Rick Smolan, que ela reconhecia como um fotógrafo de talento,

« [...] was the creature with whom my trip was becoming hopelessly entangled ; who had changed from someone I barely notice to a millstone round my neck and my cross to bear. The first confusion oscillatory element that was to be so characteristic of this trip had struck. It allowed Rick to ‘fall in love’. Not with me, but with the camel lady.” (139)

Havia este sentimento de ter vendido seu projeto, mercantilizado seu sonho no qual se engajara nestes últimos anos, em esforço e aprendizado. A depressão neste quadro era bem compreensível e o cansaço muitas vezes superou suas forças.

Robyn se tornou, assim, pelo efeito das fotos na revista “camel lady”, que os turistas queriam encontrar a todo preço: vinham em jipes, avião, e deterioravam seu caminhar com seus ruídos, sua insensibilidade, os cliques de suas máquinas fotográficas.

Estes aborrecimentos tornavam penosos os gestos costumeiros de seu quotidiano.

« A day out on the track, and the pressure was starting to build again. This was because, after I have loaded fifteen hundred pounds of junk, walked twenty miles, unloaded the junk, gathered firewood, lit a fire, cooked a meal for two, and cleaned up after the meal for tow, I get a wee bit tetchy.[…] I do know that anyone who crosses me after such a day had better expect an explosion, especially if all that person has done is take picture of me doing all those things, instead of helping me with them.” (137)

Como se podia supor, assim, o fotógrafo esperava ser servido, afinal não era um homem?

Houve, entretanto, encontros agradáveis, sobretudo com os aborígenes, extremamente gentis e acolhedores. Em seu caminho havia vários assentamentos aborígenes. Bem antes que ela chegasse, já se preparavam para acolhê-la, através do inexplicável “bush telegraph”, que espalhava as notícias. Ela, que não se sentia confortável com crianças ficou encantada pelos pequenos aborígenes:

« I had been hot, irritable and tired when I arrived, but now these delightful children lifted my spirits with their cacophony of laughter. How easy they are. […]They never wined, or demanded. They are direct and filled with joie de vivre and so loving and giving with one another that they melted me immediately.” (119)

A situação dos aborígenes a chocou profundamente, em pleno século XX : empurrados cada vez mais para o deserto, privados de sua liberdade de nômades, estabelecidos em reservas que diminuíam cada vez mais, sofrendo de doenças sobretudo as dos brancos; discriminados, maltratados, viviam ao deus-dará.

 Robyn denuncia as políticas de assimilação do governo, apenas outra maneira de deslocar os aborígenes de suas terras, em direção às cidades. Com o racismo ambiente, esta assimilação foi e é difícil, pois na Austrália ainda se divide a população em  « negros » e  australianos. Assim, a cultura considerada a mais antiga do mundo vai desaparecendo aos poucos.  

« Already, many companies have been allowed to mine what was once Aboriginal territory, bulldozing it into a sacred dust-bowl and leaving the people destitute, their land destroyed. Manu reserves have been closed down and the people sent to the towns where they cannot find work. ´…] The Aborigines do not have much time. They are dying.”( 118-119) 

A política de assimilação na Austrália abriu espaço para exações que persistem até nossos dias:[vii] crianças foram sequestradas de suas famílias e colocadas em “centros de acolhimento” onde eram obrigadas a adotar os costumes e falar a língua dos brancos em condições insustentáveis tanto para as famílias quanto para as crianças.

O bom relacionamento de Robyn com os aborígenes foi de certa forma desestruturada  pelo fotógrafo que insistia em tomar cenas das danças sagradas, sabendo perfeitamente que eles não gostavam de fotos, sobretudo quando se tratava de seus rituais. Robyn sofreu as consequências disto, pois foi assimilada ao fotógrafo: em sua classificação da população, que os aborígenes dividiam em “povo” e “turistas”, Robyn passou à categoria de turista.

Robyn gostaria de ter tido um guia aborígene para continuar seu caminho fora das trilhas habituais, mas nestas circunstancias, ninguém quis acompanha-la. Ela partiu então de novo sozinha sobre um trecho particularmente difícil.

« I entered a new time, space dimension. A thousand years fitted into a day and aeons into each step. The desert oaks sighed and bent down to me, as if trying to grab at me. Sand hills came and sand hills went. Hills rose up and hills slipped away. Clouds rolled in and clouds rolled out and always the road, always the road, always the road, always the road. So tired, I slept in the creek and thought of nothing but failure.” (150)

Este foi um momento de extrema aflição, vontade de tudo abandonar, um caminho que se revelava sem água, sem arbustos para os camelos, apenas areia e as colinas, uma depois da outra, sem fim, sempre no horizonte a próxima, a próxima... E enfim, após uma grande exaustão, o fim das dunas, água, o repouso, a angústia se esvaindo.

« And then, over the last sandhill, I was out of the dune. I crouched on the rocks, weeping, feeling their substance with my hands[...] I looked back to the immensity of where I had been. […] I was safe.” (153)

Esta travessia foi o momento de inflexão de sua aventura: uma intensa troca entre o in e o out. A raiva que se expressou em gritos, o desespero transformado em quase inconsciência, andando quase de forma automática. Os camelos e sobretudo Diggbty trouxeram-na à realidade, nesta imensidão onde só as dunas desenhavam o horizonte. O sonho do deserto quase se tornou um pesadelo,  mas dele Robyn saiu mais forte, mais atenta, mais alerta, em harmonia com os elementos da natureza.

Houve um encontro desagradável com camelos selvagens, o que ela temia : de repente, encontrou-se face a uma tropa de 40 indivíduos. Mas agora, em vez de temê-los ou tentar mata-los, ela partilhou o caminho com eles:

« I had watched them descend like quiet ghosts from their drinking spot high up in the hills. I looked at them, and they looked at me, sharing the same path. […] They were more beautiful than I could describe.[…] They stopped, I stopped – impasse. I shouted, hooted and laughed at them. […] they gathered momentum, until forty beautiful wild free camels were bucking and galloping down the valley into an echo and a vortex of dust, and then they were gone. I was remembering exactly who I was now” (154)

Vê-se a construção de si à medida de seu caminhar: sua aventura é igualmente uma aventura interna que lhe revela a mutação contínua do ser. As peles artificiais caem aos poucos, não para revelar um núcleo identitário, mas para abrir as portas para a liberdade e a transformação contínua.

A invenção do sujeito se faz em sua experiência e se perde igualmente ao longo de seu percurso. São as práticas de liberdade cujo processo é mais importante que seu resultado, pois a transformação interna se torna incontornável.

Eddie

Robyn, entrementes, encontrou afinal um aborígene que resolveu acompanha-la por algum tempo: era Eddie.

Davidson's encounters with Aboriginals during her 2700km trek makes for some memorable scenes in the film (above)

Scène du film basé sur le livre de Robyn Davidson, du même nom, Tracks

Ele era de certa idade, mas pleno desta força, deste calor que demonstram os aborígenes mais velhos. Eddie tinha

« [...] self-possession, wit, and a kind of rootedness, a substantiality that immediately commanded respect. And I was wondered as we walked along, how the word ‘primitive’ with all its subtle and nasty connotation ever got to be associated with people like this.” (159)

Eddie caminhou com ela um trecho do caminho, evitando-lhe assim as inevitáveis voltas de quem não conhece a trilha; mais do que isto, ensinou-lhe a maneira aborígene de viver no deserto, não mais um inimigo, mas um aliado. Mostrou-lhe o respeito e os ritos que envolvem a caça, quando a sobrevivência o exige. E isto tudo sem que falassem a mesma língua: por gestos, por intuição, por camaradagem, pela vontade de se comunicar.

« He was teaching me something about flow, about choosing the right moment for everything, about enjoying the present […] It is amazing how well one can communicate with a fellow being when there are no words to get in the way. Our greatest communication lay in the seer joy in our surroundings. The sound of birds which he taught me to mimic, the gazing at hills, the laughter at antics of the camels, the hunting for meat, the discovery of things to eat.” (1783

Eddie abriu-lhe as portas do conhecimento do deserto e a compreensão, mesmo mínima, da cultura aborígene, o que a surpreendeu mais de uma vez. No que diz respeito às mulheres, Robyn constatou que a misoginia entre os aborígenes era o fruto da imitação dos costumes dos colonizadores. (170)

Nos vilarejos onde passou, as mulheres estavam envoltas em uma aura de respeito e poder, completamente diferente das mulheres aborígenes em Alice Springs, por exemplo, maltratadas e abusadas. (170).

Eddie encontrou sua mulher no caminho, em uma cena de felicidade e respeito.

« I had never seen that particular quality of love shown so openly between a man and wife before.[…] That meeting between Eddie and his wife was the first insight in a series which made me realize that, contrary to what most white male anthropologist would have us believe, women hold a very strong position in Aboriginal society. With their dexterous food-gathering, the women play a greater part in feeding the tribe than men […] The women also hold their own ceremonies and play a larger part in the protection of their land. (170)

Neste sentido, o papel das mulheres era ainda mais marcado, pois a terra, para os aborígenes, possuía um caráter sagrado: não a possuíam, era a terra que os possuía. (165)

Os aborígenes, mulheres e homens tinham a responsabilidade de proteger a terra, tarefa partilhada entre os clãs. (166)

Os rituais eram então de uma grande importância, pois mantinham vivo o « dream time », o conhecimento e a sabedoria dos antigos, transmitidas de geração em geração.

« Every tribal person has a knowledge of the ceremonies for his/her country and an obligation to respect the sacred site that belong to them (or rather, to which they belong). » (166) 

As reservas estabelecidas pelos diferentes governos australianos aniquilaram seus rituais e seu pertencimento a um grupo, reunindo em um mesmo lugar tribos inimigas, introduzindo o desprezo pelas mulheres e seu papel nas comunidades : como todo colonizador, os ingleses destruíram os aborígenes física, psíquica e culturalmente.

O maior monólito do mundo, Uluru, no centro da Austrália era um lugar sagrado por excelência para todos os aborígenes. Atualmente abriga um enorme complexo turístico invadido por hordas bárbaras com seus clic-clic de câmeras, escalando a rocha e maculando a sacralidade do lugar. O turismo no deserto da Austrália atrai milhares de pessoas, o que certamente é fonte de recursos para o país, trazendo, contudo prejuízos materiais e simbólicos para os aborígenes e o meio ambiente.

Uluru

Os encontros de Robyn com turistas foram sempre desagradáveis, sobretudo pela falta de respeito em relação a ela e a Eddie, quando estavam juntos. (180-181)

Eddie divertiu-se assustando um bando de turistas que queriam fotografá-lo a todo preço; Robyn e eles riram muito de seu medo:

« We slapped each other and we held our sides and we laughted and laughed the helpless hysterical tear-flooded laughter of children.” (179)

 

Olgas

 

fotos : Rick Smolan

Com toda a magia que se expande de Uluru e das Olgas ( outro conjunto de imensos rochedos) Robyn ficou chocada de ver os ônibus e a multidão invadindo os lugares sagrados, fotos, fotos, clic, clic, penetrando todos os lugares.

Caminhar com Eddie permitiu a Robyn compreender melhor o deserto, seus segredos e possibilidades; em sua de Eddie, conhecido e amado por todos, experimentou a hospitalidade e a acolhida generosa dos aborígenes encontrados em seu percurso.

« It was a giant cleansing of all the garbage and muck that had accumulated in my brain, a gentle catharsis. And because of that, I suppose, I could now see much more clearly into my present relationship with people and with myself. And I was happy, there is simply no other word for it.” (’88)

Passo a passo, quilometro após quilometro, o tempo se desfaz, se enrola, Robyn sente-se aos poucos apaziguada, em harmonia com ela mesma na imensidão deste deserto que não era mais um sonho longínquo, ou um inimigo perigoso, mas seu lar, seu descanso, seu horizonte, habitado por cores e sopros, murmúrios do vento e da terra. A raiva, o desespero, a angústia nunca mais voltaram. Robyn andava cantando, seus camelos em fila atrás dela, Diggity saltitando  feliz de correr por toda parte.

« And I walked through that country, I was becoming involved with it in a most intense and yet not fully conscious way. […] I didn’t just see the animal tracks, I knew them. I didn’t just see the bird, I knew it in relationship to its actions and effects. My environment began to teach me about itself without my full awareness of the process. It became an animate being of which I was a part.” (191)

As forças assim renovadas, Robyn se lançou sobre um trecho extremamente difícil em seu percurso: o deserto de Gibson, 400 milhas de deserto sem água. Só, sem guia. Eddie voltara para sua casa e ela não queria outra pessoa.

A ordália dos últimos meses parecia já atrás dela. Agora era para frente. Robyn aprendeu a visão de mundo dos aborígenes, de uma interdependência profunda com o meio ambiente. Para eles, tudo no universo está em constante interação e tudo reage a este movimento em um eterno impulso. (193)

O self, diz Robyn, não é uma entidade vivendo em algum lugar na mente, mas simplesmente uma reação entre o espírito e o estímulo que lhe vem do exterior. (193)

« The self in a desert becomes more and more like the desert. It has to, to survive.” (193)

É, portanto a qualidade das relações in e out que se revela nesta aventura e Robyn sente a diferença que isto acarreta.

« And my fear had a different quality now too. I was direct and useful. It did not incapacitate me or interfere with my competence. It was the natural, healthy fear one needs for survival.”(194)

Robyn se despoja aos poucos de seus hábitos civilizado e segue nua apenas com suas sandálias e chapéu, como já assinalei. (209)

Conseguiu desfazer- se das identidades múltiplas, das normas e convenções que lhe foram impostas pela sociedade; o processo vivido no presente era o que importava. Sua pele bronzeada não temia mais o sol e ela se fundia na paisagem de areia e colinas. Robyn se tornou ela mesma o deserto. E o deserto mais ameaçador acolheu-a  em suas dobras, suas vagas, seus horizontes avermelhados.

Sua subjetivação tornou-se uma transformação contínua, ao sabor do vento e do movimento da areia.

« This desocializing process- the sloughing off, like a snake-skin, of the useless preoccupations and standards of the society I had left, and the growing of new ones that were more tuned to my present environment – was beginning to show. »(181). “[…] I probably looked like a senile old derelict in fact, with my over-large sandals, filthy baggy trousers, my torn shirt, my calloused hands and feet and my dirt-smeared face. I liked myself this way, it was such a relief to be free of disguises and prettiness and attractiveness. Above all that horrible, false debilitating attractiveness that women hide behind. […] Once again I compared European society with Aboriginal. The one so archetypically paranoid, grasping, destructive, the other so sane. I didn’t want ever to leave this desert.” (196-197)

A travessia do deserto era assim mesmo uma árdua tarefa. O calor esmagador do dia era sucedido pelo frio da noite; mas os camelos se portavam maravilhosamente e Robyn se sentia bem, apesar das dores nos pés e nos quadris. (195)

Sua interação com os camelos era total: em certo momento, explica, um deles prendeu sua cabeça entre suas mandíbulas  para brincar e depois partiu saltitando, todo contente de sua proeza. (216) 

Para quebrar a monotonia, Robyn começou a participar das brincadeiras dos camelos, no fim do dia:

« We rolled and we kicked and we sent the dust flying over each other. Diggity went apoplectic with delight. I was covered with thick caked orange dust and my hair was matted. It was the most honest hour of unselfconscious fun I had ever had. (196)

O caminho, entretanto, era trabalhoso: em certo momento, desencorajada, Robyn « boiled the billy » e faz uma lista, com Diggity:

1. “ we are 100 miles from anything.

2. we have lost two camels.

3. we have one camel who has a hole in his foot so big you could curl up and go sleep in it.

4. we have enough water for six days.

5. my busted hip is still intolerably painful.

6. this is a god-awful place to spend the rest of our lives, which, according to my mathematical calculation will be about a week,

So, having tidied all that up, I panicked.”

Para se controlar, Robyn escrevia cartas que provavelmente não enviaria nunca: mas continua a saborear as paisagens que se apresentam variadas, estas areias cor salmão, estes arbustos cujas folhas brilham de um verde profundo. (202)

Passado este episódio,em certo ponto do deserto, estima que se encontra em um paraíso, tão comovedor e movediço, de uma intensidade e um poder sutil. (202) Muitas vezes Robyn descreve as paisagens que a deixam se folego: cores vermelhas, azul, violeta, as dunas movediças, as montanhas ao longe.  « The heart of the world, paradise . » (218-219-220)

« Those days were like a crystallization of all that had been good in the trip. It was as close to perfection as I could ever hope to come. [...] I had discovered capabilities and strengths that I would not have imagined possible in those distant dream-like days before the trip.” (220)

Diggity

A presença de Diggity foi sempre um apoio e uma alegria para Robyn, seu amor incondicional, seu ardor  muitas vezes a sustentaram, renovaram suas forças e animo. Para ela, Diggty era uma mistura do que havia de melhor nos cães e nos humanos.

Foto : Rick Smolan

« The trip, of necessity, had brought me much closer to all the animal, but my relationship with Diggity was something special. There are very few humans with whom I could associate the word love as easily as I did with that wonderful little dog. It is very hard to describe this interdependence without sounding neurotic. But I loved her, doted on her, could have eaten her with my overwhelming affection. And she never, not ever, not once, retracted her devotion no matter how churlish, mean or angry I became. [...] it seems to me that the good Lord in his infinite wisdom gave us three things to make life bearable – hope, jokes and dogs, but the greatest of these was dogs.”(207)

Robyn + Diggity #tracks

Davidson and Diggity enjoying a rare swim. FOTO: Rick Smola

Se o deserto, em sua rude beleza a preservou pessoalmente de danos irreparáveis, a perversidade dos homens a atingiu no mais profundo de seu ser. Com efeito, sua desolação não teve limites, quando Diggty engoliu veneno, estricnina jogada de avião sobre as areias do deserto para matar os animais, notadamente os cães selvagens, os dingos. (222)

 

Diggity et la caravane. Rick Smolan. National Geographic, May 1978.

Ela a reteve em seus braços, assistiu seu sofrimento sem nada poder fazer. A morte, que sempre esteve de tocaia em seu trajeto finalmente obteve seu prêmio. Robyn sentiu-se devastada e continuou seu caminho como um robô.

“I walked back to Diggity´s body stared at it, and tried to make all of myself face what was there. I didn’t bury her. But I said goodbye to a creature I had loved unconditionally without question. I said my goodbyes and my thanks-yous and I wept for the first time and covered the body with a handful of fallen leaves. I walked out into the morning and felt nothing. I was numb, empty. All I knew was I mustn’t stop walking.” (223)

Pela primeira vez estava realmente sozinha. A viagem terminou, diz ela, « [...]like the last page of a novel. » (227). Durante meses sonhou que Diggity havia sobrevivido, estava bem ao seu lado.(222)  Para ela, Diggity não era um cão, tornara-se sua mais querida amiga e companheira ; sua morte foi como um cataclismo.

Sem Diggity, os ruídos do deserto se tornaram irreais, ela tinha a sensação de estar parada no tempo e no espaço.  

« Everything was so still and there was no Diggity to play with or talk to or hold. […] I would have given anything just then, to be able to hold that familiar warm dog flesh – the need was like a physical ache. Whiteout her, I was suddenly susceptible to all those swamping, irrational fallings of vulnerability and dread.” (229)» (228)

E ainda restavam dias e dias de caminhada, feitos em um estado de sonambulismo. Queria tudo abandonar. Mas, chegando a um grande anfiteatro de areia, Robyn começou a dançar, no cair da noite:

« I took off my clothes and danced. I danced until I could dance no more – I danced out everything, Diggity, the trip, Rick, the article, the whole lot. I shouted and howled and wept and I leapt and contorted my body until it refused to respond any more. […] and I slept about an hour. When I woke, I felt healed, and weightless, and prepared for anything.” (231)

Se a terapia da dança lhe deu forças renovadas, permitiu-lhe de alguma forma superar sua perda, porém no longo caminho adiante Diggity não saiu de seus pensamentos.

Entrementes, para tornar sua vida mais difícil, a imprensa a encontrou: jornalistas de toda parte apareceram, ávidos por histórias, detalhes, assediando-a a tal ponto que precisou se esconder. Mas a lenda da “Camel lady” havia nascido e para os jornalistas, quando não puderam mais entrevista-la, passaram a inventar histórias: « Camel lady » se perdeu « Camel lady » não encontrava mais seus camelos e assim por diante, para manter o interesse dos leitores.

Preocupada em manter sua intimidade, Robyn não aspirava à publicidade sobre ela e sua viagem e detestava as suposições os olhares, as interrogações. Mas o prejuízo fora feito: seu retrato estava em todos os jornais e o mito ia crescendo: mulher, deserto, camelos, solidão, a imaginação se inflamava e detalhes se faziam aguardar.

Robyn sentia-se perplexa e decepcionada:

« I was now an object of ridicule for small-minded sexists, and I was a crazy, irresponsible adventurer.[…] I was now a mythical being who had done something courageous and outside the possibilities that ordinary people could hope for. And that was the antithesis of what I wanted to share.

De fato, ela queria mostrar, sobretudos às mulheres, as possibilidades de quebrar as normas e a domesticação; mostrar que se pode romper as cadeias da submissão e da timidez para enfim tomar seu destino em suas próprias mãos. (236) Queria criar uma nova representação das mulheres, no social  e para elas mesmas, baseada na afirmação de sua subjetividade e de sua vontade.

Mas o mito da « camel lady » destruiu esta perspectiva, na medida em que foi mostrada como um ser de exceção, uma anomalia, uma bizarrice em relação às mulheres em geral. (237)

O fim da viagem se aproximava.

O fotógrafo do National Geographic veio ao seu encontro e ajudou-a  a se esconder dos jornalistas. Duas amigas de longa data vieram também encontra-la. (238) Poder falar, se comunicar, beber, comer com pessoas queridas foi um reconforto para Robyn, já um pouco confusa diante do inevitável fim de sua jornada.

Ainda teve problemas com sua camela, Zeleika, que apresentou um sangramento estranho, obrigando-a a parar alguns dias até que sarasse, com muita preocupação e cuidados. (245)

Finalmente alcançou o local onde os camelos teriam seu novo lar, dirigidos por amantes dos camelos, como ela.

« It´s hard to say who Jan and David were more pleased to see - me or the camel. I knew my beasts could enjoy a happy and pampered retirement here […] This was their new home, and they immediately took over” (249)

Vê-los felizes, livres, sem trabalho a produzir, apenas viver, era o único meio pelo qual para que Robyn resolvesse deles se separar. Ela estava a 12 milhas do oceano Indico. (253)

E para ir a seu encontro foram juntos, ela e seus camelos.

May 1, 1978: Robyn Davidson, then aged 27, with her camels on the beach in Western Australia, with the Indian Ocean behind them in the late afternoon on a perfect day when the camels got their first glimpse at the large expanse of water

 

Fotos : Rick Smolan

Ao avistar o oceano, os camelos enlouqueceram, nunca haviam visto tanta água, tentaram beber, pularam, nadaram. Uma semana na praia para repouso, desfrutar das magníficas paisagens, as cores do por de sol, Robyn sentia que ainda havia algo a terminar, não acreditava que de fato sua aventura tivera fim.

« I didn’t believe this was the end at all. There must be some mistake.[…] I like doing this. I enjoyed it. I was even reasonably good at it. I had vision of myself spending the rest of my life as a tinker, wandering around the desert with a herd of dromedaries behind me. And I loved my camels The thought of leaving them was unbearable. “(250)

Robyn Davidson deixou-me pasma com sua coragem, sua persistência, sua sinceridade na escrita. Uma mulher de aventura completa, que realizou o impensável sem se gabar, sem querer se promover, sem, em nenhum momento tentar criar uma aura de excepcionalidade.

Com efeito, ela incarna diversas categorias das teorias feministas : Robyn recusou sua reclusão em uma identidade « mulher » quebrando assim todos os estereótipos imagináveis. « On ne naît pas femme, on le devient » dizia de Beauvoir ( Beauvoir, 1949) mas pode-se igualmente recusar este devenir. Ser mulher não tinha sentido depois desta viagem, pois esta categoria compreende infinitas significações fechando o ser mulher num social hierárquico e binário.  

Seu desejo de solidão, o duro aprendizado do trato dos camelos mostraram, por um lado, a força de sua individualidade e por outro, a escolha de um caminho completamente fora das normas “femininas”. Ninguém acreditava que ela poderia realizar seu projeto de atravessar a pé o deserto.

Nenhum assujeitamento a reteve. A articulação entre o in e o out se fez aos poucos, com muito sofrimento, para chegar a uma total coesão, onde ela se fundiu ao deserto, deixando de lado todas as normas da “civilização”. “Estrangeira a si mesma”[viii] onde o si-mesma não era senão movimento e transformação contínua. Uma teoria que habitou sua carne, feita de dores, dúvidas, mas subjugadas por uma vontade de ferro, ancorada em práticas de liberdade.

Quando lhe perguntavam sobre as razões de sua aventura, Robyn respondia:

« Il serait plus pertinent de demander: «Pourquoi n’y a-t-il pas plus de gens qui tentent d’échapper aux limites qui leur sont imposées ?»(web)

Creio que Robyn espantou-se também ela mesma de sua capacidade de aprender, de levar até o fim um projeto inverossímil. Seu caminhar foi uma proeza de despojamento, de viver cada dia, cada passo, pois até o fim não podia ter certeza de concluí-lo. Tantos acasos, tantas interferências, a morte de Diggity quase a fizeram tudo abandonar, tão perto do final, tão injusta, tão penosa esta morte, feita pela mão do homem, a maldade humana que se encontra nos lugares mais distantes.

trinta anos depois

Seu encontro com a cultura aborígene transformou-a em relação à natureza, ao presente, ao respeito pelo meio ambiente, dos animais, das pessoas, ao contrário do que se vê entre os “civilizados”. Sua crítica ao sexismo, ao racismo presentes em toda parte é ferina. Sua visão dos machos australianos é aguda, calcada sobre uma realidade vivida.

« The two important things that I did learn were that you are as powerful and strong as you allow yourself to be, and that the most difficult part of any endavour is takin the first step, making the first decision.[…] Camel trips, as I suspect all along, and as I was about to have confirmed, do not begin or end, they merely change form.” (254)

E ela conclui assim :

« Je n’ai pas suggéré, bien entendu, que les gens devaient tout laisser tomber pour s’exiler vers des espaces plus sauvages, et certainement pas qu’ils devaient m’imiter. J’ai cherché à montrer que chacun peut faire le choix de l’aventure dans les circonstances les plus ordinaires. L’aventure dans sa tête ou – pour employer un mot démodé – l’aventure de l’esprit. » (web)

Uma mulher de aventura, em transformação contínua, onde “ser mulher” normal, frágil, dócil, mostra a face de sua vacuidade, de sua imposição enquanto regra.

« Mais pour quelqu’un comme moi, rien n’était sans doute plus important que la liberté. La liberté de se forger ses propres idées, de se construire »(web)

Robyn Davidson, mulher de aventura, a aventura da invenção de si.

 

Références:

Robyn Davidson. 1998. Tracks, London: Picador

De Lauretis, Teresa. 1984. Alice doesn´t, feminism, semiotics, cinema, Indiana: Indiana University Press.

Simone de Beauvoir, 1949. Le deuxeme sexe, Paris,

Web http://next.liberation.fr/next/2014/04/29/robyn-davidson-une-camel-lady-sans-filtre_992043

Linda Hutcheon. 1988.A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. London & New York: Routledge

Le film : 2013 .Tracks filme australianoo, dirigido por John Curran avec Mia Wasikowska and Adam Driver.

Photos : Rick Smolan  web http://www.telegraph.co.uk/culture/film/starsandstories/10773102/Tracks-The-true-story-behind-the-film.html


 

[i] Tracks lançado em 1980. Em abril 2014 um filme do mesmo nome foi lançado na austrália.

[iii] idem

[v] Os adoráveis cangurus, símbolos mesmo do país, são caçados e servidos como carne exótica nos restaurantes. Os crocodilos e outros animais  selvagens da Australia são também vítimas dos abatedouros. Os coelhos, introduzidos pelos ingleses são caçados impiedosamente. Os dingos são exterminados com cianureto, espalhado por avião. Em suma, os animais na Austrália não tem nenhuma chance, quer sejam nativos ou introduzidos pelos ingleses,

[vii] Paraphrase de Linda Hutcheon