A construção das mulheres ou a renovação do patriarcado tania navarro swain Os feminismos estão trabalhando para que as mulheres se afirmem enquanto sujeitos políticos, sujeitos de ação, de consciência e reflexão. Seres humanos que não se definam por seu corpo, por um sexo, por uma identidade fictícia que lhes assegura um lugar inferior no social,investido pelo biopoder. Se o poder atinge o corpo, não é porque teria sido primeiramente interiorizado na consciência das pessoas. Há uma rede de biopoder, de somato- poder que é ela mesma uma rede a partir da qual nasce a sexualidade como fenômeno histórico e cultural no interior do qual nos reconhecemos e nos perdemos.. (Foucault 1976-79: 231) Esta rede modela a carne em mulher / homem, cujas particularidades e limites “perdem” o feminino nos labirintos de uma identidade já marcada pelo assujeitamento. Aos feminismos o patriarcado responde de várias maneiras: pelos insultos habituais que não vou retomar aqui, pelo silencio e por uma adaptação insidiosa às conquistas duramente conseguidas pelas mulheres. Na academia, a tática é o silencio. Apesar de sua incontestável pujança cognitiva e analítica, a produção feminista do conhecimento tem sido mantida em corredores secundários, pois acende o alerta vermelho do desafio ao bio-poder, ao poder patriarcal de criar um conhecimento conjugado no masculino e assim construir a “diferença” entre os seres humanos. A iteração incansável da “diferença dos sexos” recria no imaginário social a ficção do superior/inferior ancorada na ode ao sexo masculino. É, portanto, a ênfase e a valorização do sexo como eixo das relações humanas e do sexo masculino, como referente máximo, que justificam a manutenção do biopoder através das tecnologias políticas “[ que investem o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, o espaço todo da existência.” (Foucault 1976 : 189) Desta maneira, a difusão e a circulação dos saberes indispensáveis ao desenvolvimento dos feminismos encontram vários obstáculos, entre os quais o econômico não é o menor. Os saberes produzidos pelos feminismos permanecem em um campo fechado, cercado pelas forças patriarcais em todos os domínios, do social ao científico. É assim que a academia, as editoras, os mídia se colocam como adversários ou silenciam a literatura científica feminista. As revistas eletrônicas conseguem quebrar o cerco das biotecnologias, mas seu acesso é muitas vezes restrito pelas assinaturas ou os acordos inter-universitários. A divulgação de massa continua a apresentar as feministas como as inimigas dos homens, legiões formadas por “mal amadas e feias”. Enunciados tais como “O feminismo acabou”, “as mulheres já conseguiram tudo, o que mais querem?” são recorrentes no cotidiano e buscam apagar a reconstrução constante da “diferença” e do binarismo hierárquico. As mulheres acreditam nestas afirmações e as jovens falam, condescendentes, de “pós-feminismo”. Os feminismos, em suas diferentes correntes, almejam a mutação de um social cimentado na dominação e na apropriação dos corpos e do trabalho das mulheres. Entretanto, para além da couraça patriarcal, há fatores, internos aos feminismos, que bloqueiam o desenvolvimento de um saber de ponta, dirigido à transformação dos quadros e métodos de pensamento, visando a diversidade , muito além da “diferença” de sexo. Se os feminismos primam pela criatividade e renovação, certas categorias podem representar bloqueios a seu desabrochar se utilizadas sem uma problematização e uma perspectiva crítica. Dentre elas, acredito que teoricamente, o emprego da categoria “gênero” muitas vezes reinstala o discurso da natureza, pois no famoso sistema sexo / gênero, um fundamento biológico, logo natural, estaria incontornavelmente presente. Ora, a importância dada ao sexo biológico enquanto fundamento do poder, de identidade, do político, é um traço cultural e como bem sublinha Judith Butler, não existe gênero fora de práticas materiais de gênero(Butler 1990 : 25). E ela vai ainda mais longe, ao afirmar que desta forma o sexo é construído pelo gênero, cuja performance desmascara a irredutibilidade do biológico. Assim, a utilização acrítica e a- histórica da categoria “gênero”coloca em primeira linha o “pré determinado” o “pré-discursivo”, o “ sempre foi assim”, o “natural”, cuja crítica alimentou os feminismos desde os anos 1960. Pois se fala de “gênero” em todas as sociedades e espaços de maneira a- temporal, universal, sem levar em conta as especificidades biossociais no espaço /tempo. Isto instala a relação hierárquica entre os humanos a partir do sexo biológico de maneira incontornável. Porém, a inteligibilidade dada aos corpos é produto das significações sociais dadas aos seres em suas relações. Ora, nenhuma biosocialidade é preexistente à sua objetivação, à sua materialização. Ao contrário, é em suas práticas que toma forma a carne e que se criam os sentidos. A denominação “sexo social” já levava em conta esta circunstância pelas feministas dos anos 1970/80 e em meu entender esta é ainda a melhor maneira de significar as relações sexo/ sexualidade no agenciamento societário. A ingenuidade ou a perversidade que separam natureza e cultura são extensões de um bio- poder em ação. Pois o poder atua na carne para melhor extraí-la da trama das relações sociais e lhe atribuir uma significação universal. O esquecimento da plasticidade de uma coreografia ontológica, como a nomeia Donna (Haraway, 2010 : 16), é de fato uma das realizações do patriarcado que determina uma forma e uma função aos seres segundo apenas um fator: seu sexo biológico. Os feminismos não cessam de mostrar que os opostos binários são apenas efeitos de sentido. Desta forma, o sexo não está para a natureza assim como o gênero está para a cultura. 10uestiona esta divisão e propõe em uma só palavra “naturezacultura” (Haraway, 2010: 16),como uma única e mesma força, pois nada é fixado de antemão e uma vez por todas. “ Carne e sentidos, corpo e palavra , histórias e mundos: tudo é imbricado no âmbito da naturezacultura”. (Haraway 2010 : 28). A dança dos seres, diz ela, forma plasticidades diferenciais da carne no social. “[...] os corpos humanos ou não humanos encontram-se desconstruídos e reconstruídos ao longo de processos que fazem da certeza de si e das ideologias – humanistas como organicistas – guias não confiáveis em matéria de ética, de política e ainda menos em termos de experiência pessoal” (Haraway 2010 : 16) Assim, para efeito de análise crítica do social a categoria gênero deve incluir os termos de sua construção. . Nesta perspectiva, as sócio -conexões são parciais e nunca definidas anteriormente, como querem alguns estudos do “gênero”. As relações sociais são eminentemente históricas e constitutivas na diversidade das experiências sociais. E a história patriarcal apaga, sem pudor, esta amplitude, para oferecer a monotonia de um binário segundo o mesmo molde eterno, o que é retomado muitas vezes pelo binarismo que pode supor a categoria “gênero”. Butler afirma que: “ [...] gênero não está para a cultura assim como sexo para a natureza; gênero é também como o discursivo / cultural significa “natureza sexuada” ou “ sexo natural” produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’ anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura.” (Butler 1990 : 7) As fundações e as origens são contingentes, sublinha Butler .(Butler, 1994) Os discursos das origens pretende estabelecer as fundações “naturais” para o humano. Adão e Eva são apenas representações de um poder avassalador que aspira a se justificar. Como sublinha Haraway “[...] nenhum dos parceiros preexiste a seu relacionamento, este último jamais fixado de uma vez por todas” (Haraway 2010: 19) Entretanto, as relações humanas são ainda forjadas em um imaginário patriarcal que lhes criam origens universais para melhor justificar sua manutenção. Entretanto, diz Haraway, com humor: “ não há fundação, há apenas elefantes empilhados uns sobre os outros até embaixo.” (Haraway 2010 : 19) Da mesma maneira, a ficção patriarcal faz do binário hierárquico o eixo das relações humanas e funda sobre o sexo e a sexualidade seu bio-poder, que se torna então, “indiscutível”. É assim que a categoria “gênero” torna-se um obstáculo ao conhecimento feminista, pois submete as relações bio-sociais ao mesmo esquema do natural sem questionar a importância dada ao sexo em sociedades múltiplas. Esta é talvez a razão de sua aceitação na academia, já que perdeu sua força de indisciplina, de indignação e se tornou uma categoria domesticada, que não representa nenhuma ameaça para o patriarcado e sua história dita “universal”, da qual as mulheres são apagadas. O gênero assim utilizado afasta o perigo dos feminismos, de sua insubmissão, de seu desejo de transformação. O gênero, que não problematiza, apenas descreve, submete-se às garras do patriarcado que renascem sem cessar e se agarram sobre novas superfícies para reproduzir os esquemas de poder. O patriarcado, tal como o capitalismo, adapta-se às transformações sociais e em sua nova face mistura-se às conquistas realizadas pelas mulheres. É assim que outro obstáculo maior à difusão e à circulação do conhecimento feminista, à afirmação das mulheres enquanto sujeitos políticos são as mulheres elas mesmas, adotando as significações sociais do que é ser mulher. Pois nesta perspectiva, só se é mulher dentro de certo tipo de relações sociais encabeçadas pela heterossexualidade e por certo tipo de comportamento. As novas tecnologias de informação e de reprodução humana são colonizadas por este patriarcado cujo fôlego não se esgota. Recitam as mesmas litanias sobre a “verdadeira mulher”, esposa, mãe, bela, sedutora, amante, disponível. As mídias incitam as mulheres e as meninas a adotar as imagens de sedução incompatíveis com um feminino autônomo, sujeito político independente. Se as mulheres tem hoje um dinamismo e uma participação crescente nos trabalhos e direitos sociais, sua imagem continua idêntica à dos tempos precedentes aos feminismos contemporâneos. Os feminismos estão longe de abandonar a luta pelos direitos humanos das mulheres, moldados no cimento das representações e práticas patriarcais. Desta maneira, se as teorias feministas decolam em sua produção do conhecimento, as representações sociais que se fazem carne exprimem ainda um feminino construído à sombra da diferença. Vemos assim a volta aos primeiros objetivos dos feminismos contemporâneos, isto é, agir para o despertar da consciência das mulheres enquanto sujeitos políticos. Os caminhos parecem traçados em círculo: o fim da viagem traz as mulheres de volta à sua condição “natural”. O dispositibo Para analisar este bloqueio, que impede a difusão do saber feminista e ao mesmo tempo da tomada de consciência da ação do biopoder, considero que a noção foucaultiana de “dispositivo” é um instrumento teórico ideal. O que é o dispositivo? É o conjunto de estratégias sociais e de biotecnologias de poder que produzem corpos sexuados significando-os enquanto sexo social. Os mecanismos do dispositivo constituem e são engendrados por conexões de poder. É assim que as instituições, as leis, as mídia, a linguagem, a divisão do trabalho, as condições de produção e de imaginação sociais são elementos do dispositivo. Criam e são criados em certa configuração de saber e dão origem a poderes diversificados. ((Foucault 1988 : 244-46) Vemos então que cada formação social em sua escala temporal e seu espaço geográfico interage de maneira singular com as transformações societárias. As cartografias feministas não podem ignorar tais flexibilidades. Estou exausta de ouvir antropólogas, sociólogas, historiadoras, filósofas dizerem “sempre foi assim” referindo-se à hierarquia binária dos sexos. A análise teórica tem que ser levada às últimas conseqüências e este tipo de afirmação não se funda senão em sua repetição. Funda-se na indolência analítica, que prefere adotar a repetição em vez de buscar a multiplicidade no agenciamento social. Quem é que pode saber tudo sobre todas as sociedades, em todas as épocas?Que tipo de arrogância enuncia tais verdades, senão a presunção do ignorante? Gostaria de pensar a noção do dispositivo em três momentos, que se imbricam e se entrelaçam para produzir os sexos e as relações de poder que deles são constitutivas. Este biopoder retoma os mesmos temas sobre o feminino com outras ressonâncias, mas a música permanece a mesma. O primeiro momento é o da sexualidade que pode ser visto hoje como a incitação a uma hiper sexualidade, cuja norma é a heterossexualidade identitária. O segundo momento é o do dispositivo amoroso, ligado à construção social específica do feminino, cuja iteração, repetição de suas particularidades resulta em sua reprodução. O momento que perfaz a tríade é o dispositivo da violência, simbólica e material que pretende domesticar e sujeitar o sexo social feminino pela utilização do medo e da força. Não são novos eixos na construção social do feminino, entretanto aparecem sob novas formas e estreitamente ligadas e que fazem tabula rasa das análises feministas sobre a produção social dos sexos.Os feminismos investiram na redescoberta dos corpos, na tomada de consciência que fez da sexualidade não mais um lócus de servidão mas sim de florescimento. “ O direito ao prazer” fazia parte dos direitos a serem obtidos e tinha um gosto de liberdade.“ O pessoal é político” afirmavam as feministas e isto implicava igualmente o direito a uma sexualidade livre. Todavia, o dispositivo da sexualidade, regido por um patriarcado ativo, retoma esta conquista em seu proveito: o controle rígido da virgindade de antigamente dá lugar à exacerbação sexual que beneficia o conjunto dos homens cujo desejo nunca parece se satisfizer. As mulheres não encontram aí qualquer proveito, pois a sexualidade torna-se a base de uma “mulher liberada”. A liberdade almejada era, acredito, aquela das escolhas, dos momentos, do desabrochar do corpos e suas capacidades; não a necessidade insuflada pelos discursos sociais. A sexualidade desmedida obedece à lei da repetição, pois seu exercício torna-se obsessão, centro da vida, nódulo identitário. Não mais a criatividade dos prazeres múltiplos sobre corpos que se tocam: o prazer se reduz a ansiosas buscas de pontos pré fixados, tal como o improvável ponto G. A sexualidade feminina que prometia a diversidade de sensações não faz senão imitar a sexualidade masculina, apressada em obter encontros variados e resultados rápidos. A televisão e o cinema estão entre os mecanismos mais eficazes do dispositivo: as imagens que aí se produzem mostram uma certa sexualidade paradigmática, um modelo de comportamento, uma representação social e sexual que se materializa ao se reproduzir. É a sexualidade sob a égide da necessidade incontornável que faz agora parte integral da imagem da “mulher liberada”. A realidade e o imaginário não se cindem , ao contrário, é em sua circularidade de efeitos que os sexos sociais se instituem e os poderes se exercem. É não somente a incitação a um certo tipo de sexualidade e de comportamento que aí se encontra, mas sobretudo sua própria produção que se configura. Os mídia fazem portanto parte das tecnologias do sexo social que forjam representações e as objetivam no “ser mulher”, construindo-as sob o selo da verdade sobre o feminino. É assim que cada vez mais jovens, as mulheres vêem seu “direito ao prazer” se metamorfosear no oximoro “ liberdade obrigatória”. No Brasil 1/3 das meninas de menos de 15 anos já havia tido relações sexuais em 2006. Três vezes mais que em 1996. Quantas meninas não vivenciam uma gravidez indesejada? O direito à contracepção, duramente conquistado pelos feminismos teria caído em desuso? A utilização de preservativos depende da boa vontade dos homens, de um assujeitamento feminino ainda vivo? Quem tira proveito das “mulheres liberadas”? Quem paga afinal, a adição? O feminino atualmente se produz em dois eixos : o do sexo- trabalho-autonomia e o do amor- maternidade- dom de si. As estratégias sociais se confundem e se misturam para modelar um feminino contraditório: o trabalho e a autonomia face aos apelos da maternidade e da domesticidade, a sexualidade múltipla face ao desejo de um casamento estável, a necessidade de seduzir oposta à afirmação enquanto sujeito liberto do olhar de outrem. Estes dois eixos giram em torno da heterossexualidade em sua grande maioria. O pensamento straight (correto) identificado por Wittig( 1980) e a heterossexualidade compulsória explicitada por Adrienne Rich (1981), são análises de toda atualidade: a representação da “verdadeira sexualidade” no imaginário social é binária e oposta, sua função primeira é de procriar e de fixar identidades sexuadas. A heterossexualidade é, deste modo, performativa, pois transforma os corpos sexuados em sexo social. É, portanto a partir da heteronormatividade que diferentes identidades sexuais reivindicam sua existência. O sexo biológico não é senão performance, pois o que importa é o sexo social e as práticas sexuais que o engendram. Todas as biotecnologias do dispositivo são colocadas em ação para que se justifique a sexualidade enquanto razão de viver e núcleo identitário preservando ainda e sempre, a predominância do homem. É difícil separar o alcance dos três aspectos do dispositivo de tal forma são entrelaçados. O sexo social masculino se objetiva como sendo o referente geral do humano e o feminino, o “diferente”. Entretanto, sua construção no seio do dispositivo da sexualidade sofre a interferência de um outro dispositivo: o dispositivo amoroso. É a reprodução de antigas fórmulas que caracterizaram as mulheres: doces, devotadas, amáveis e, sobretudo, amantes. O amor as atualiza na expressão identitária de “mulheres”: é sua razão de ser e de viver. Elas estão prontas ao sacrifico e ao esquecimento de si por “amor”. A promiscuidade sexual se mescla à busca de um parceiro ideal, antigo sonho de jovens casamenteiras. É o dispositivo amoroso, cujos tentáculos inculcam às mulheres o desejo irregressível do amor romântico mas que entra em contradição total com as aspirações da “mulher moderna”. As revistas que se proclamam “femininas” incitam ao casamento, à antiga cerimônia que o sacraliza; elas ensinam como segurar seu homem e professam que a beleza é incontornável, abrindo porém as portas de uma sexualidade “libertina’. Com efeito, se outrora a arte culinária era o anzol para o príncipe, agora é a sexualidade transbordante que reina. O feminino atualmente parece erigido em dois eixos : o do sexo-trabalho-autonomia e o do amor-maternidade-dom de si. As estratégias sociais os misturam e imbricam para perfazer um feminino contraditório: o trabalho e a autonomia face aos apelos da maternidade e da domesticidade; a sexualidade múltipla face ao desejo de uma relação estável, a necessidade de seduzir oposta à afirmação enquanto sujeito livre do olhar de outrem. Estes dois eixos giram em torno da heterossexualidade para a grande maioria. É a reprodução de antigas fórmulas que caracterizam as mulheres: doces, devotadas, amáveis e, sobretudo, amantes. O amor as atualiza na expressão identitária de “mulheres”: é sua razão de ser e de viver. Elas estão prontas ao sacrifício e ao esquecimento de si por “amor”. O dispositivo amoroso é o canto do amor pelas biotecnologias sociais, da vida que floresce na realização de outrem. São as tarefas e os papéis específicos inculcados no feminino que devem coabitar com a “nova mulher liberada”, cuja sexualidade deve ser desenfreada. Este dispositivo amoroso atrela à representação do feminino toda uma série de deveres, de culpabilidades, de normas à serem seguidas por uma “verdadeira mulher” que vão da aparência ao dom de si sem reserva: as tarefas domésticas – compras, roupa, cozinha, limpeza- o cuidado com as crianças e os velhos, sem esquecer a sedução do marido/ companheiro e as exigências do trabalho remunerado. O dispositivo amoroso prolonga a servidão das mulheres enquanto tais, “outras”, “diferentes”, cujo destino é biológico. Em uma publicidade televisiva, Gisele Bündchen, modelo brasileira conhecida no mundo inteiro, limpa o chão de joelhos, enquanto seu marido, um João-ninguém, sentado em frente à televisão, comanda-lhe uma cerveja. Não é esta a imagem da construção contraditória do feminino, a beleza e o sucesso, travestidos em servidão? O dispositivo amoroso é a ode ao amor fomentado pelas biotecnologias sociais, da vida que desabrocha na realização de outrem. Através da inculcação dos mecanismos do dispositivo amoroso, as mulheres tornam-se servas, obrigadas ainda a uma sexualidade que as identifique como « modernas ». A maternidade não é mais restrita ao casamento mas... tornou-se uma necessidade biológica. As clínicas de inseminação artificial se multiplicam, as lésbicas passam a ter filhos, isto é a biotecnologia, mas também a imagem do feminino, aquele que se traduz e se completa na procriação. Os feminismos contemporâneos tanto lutaram contra a idéia de “natureza” e aí está ela de volta! As mulheres que se dedicam unicamente a suas carreiras não tem um lugar definido nas sociedades patriarcais. Elas são falsificações, não “verdadeiras mulheres”. Vê-se assim como uma certa representação do feminino está impressa no espírito das mulheres para melhor assujeitá-las a uma imagem construída a partir de novas configurações do saber. A maternidade enquanto destino biológico reaparece, aceita e desejada pelas mulheres. O ventre das mulheres continua a ser controlado pelo patriarcado, pedra angular de seu poder, quer seja por meio de representação social do feminino, quer seja pela coerção da lei ou das normas sociais. O direito ao aborto, ao controle de seu corpo é considerado um crime em numerosos países, entre os quais o Brasil. A liberdade sexual sim, mas uma gravidez indesejada deve ser suportada até o fim. Os religiosos, todos deuses confundidos, rugem para melhor ameaçar de prisão e de danação eterna toda mulher que recuse uma gravidez. Assim, as biotécnicopoliticas colocam em ação o dispositivo amoroso, exigem e condicionam a afirmação de um certo feminino, cujas particularidades modelam o sexo social “mulher”, desde a infância. Nos contornos dos saberes atuais, as práticas e os discursos sociais agem, de forma insidiosa, para melhor controlar as mulheres, reféns delas mesma, proclamando sua liberdade. Ser mulher é, desta forma, ainda e sempre uma construção do poder cuja novidade é o reaparecimento dos antigos modelos em novas roupagens. O bloqueio da difusão e da circulação do conhecimento feminista e suas análises das discriminações plurais contra as mulheres é um ponto nevrálgico desta estrutura. O terceiro aspecto, o dispositivo da violência, material e simbólica, faz parte constitutiva dos dois primeiros. Se a violência doméstica é mais visível hoje em dia, continua a acontecer no silencio e no medo. Quem deu aos homens a possibilidade de aterrorizar, bater, enclausurar mulheres e crianças no domínio privado, senão a condescendência da sociedade patriarcal? As mulheres que denunciam as agressões tantas vezes retiram as queixas, dobrados pelo jugo do dispositivo amoroso: perdoar, esquecer, dar outras chances. Entretanto, a violência não tem necessidade de ser física para se fazer presente: “ para trabalho igual, salário igual”, exigiam os primeiros movimentos feministas, mas ainda hoje as mulheres recebem menos que os homens para um mesmo trabalho. Como compreender esta discriminação senão como a marca do patriarcado no mundo do trabalho? São poucos os países, como o Canadá, onde as mulheres exercem todas as ocupações. Em geral, são encontradas em posições subalternas, nas profissões habituais para as mulheres. Na política ainda são uma minoria. No Brasil são sobretudo as mulheres cujas famílias tem uma tradição política que se aventuram às eleições. Um outro pilar do patriarcado que atravessa os três dispositivos é o das religiões. Não há nenhuma religião monoteísta na qual as mulheres não sejam discriminadas, rebaixadas em seus corpos, suas capacidades, suas possibilidades de ação. Quando os adeptos de deus agem em seu nome, todas as injustiças são permitidas, desde a lapidação, imposição do véu, interdição de dirigir, de sair, de ir e vir, até a obrigação de obediência cega aos machos da sociedade. A violência material é assegurada pelas religiões quando as mulheres não seguem as normas e a violência simbólica grassa em seu vocabulário: infiéis, dissimuladas, inconstantes por “natureza”, sedutoras pela perversidade de um corpo maléfico. Todos os insultos são permitidos. Há séculos se clama os malefícios das mulheres para assegurar o direito de domesticá-las. .[1] Quer seja no Ocidente ou alhures, as religiões agem para impor a lei do macho, do pai, do penis, pela força, pela persuasão ou pelo medo. A prostituição, violência paroxística contra as mulheres, faz parte do sistema patriarcal e seu corolário religioso, como algo de inevitável, ligado à “natureza” das mulheres. Sua banalização em nome de uma “liberdade individual” só faz crescer o poder patriarcal sobre os corpos das mulheres. Certas feministas se tornam agentes do patriarcado quando apóiam o sistema que prostitui as mulheres sob a denominação de “trabalho”, como expressão de liberdade sexual. Elas querem ignorar que a prostituição faz parte integrante do sistema de dominação das mulheres e de sua submissão ao sexo masculino. Pois não existem prostitutas e sim mulheres prostituídas. A representação do conjunto das mulheres está assim marcada pelo selo da disponibilidade sexual, que só faz aumentar a violência sexual e o tráfico de mulheres como simples carne a ser consumida. O estupro se dá em todas as camadas sociais, profissões, status, em tempo de paz ou de guerra: todas as mulheres são vítimas potencias. O que sustenta e revigora esta prática? A condescendência social, a “fraternidade” que o conjunto dos homens partilham. Finalmente, o estupro não é senão o tributo pago pelas mulheres à virilidade. O dispositivo da violência encabeça os dois outros, e se misturam de modo inextrincável. Assim, a construção do sexo social é ela mesma uma violência e a instituição da diferença das mulheres o é igualmente. Se os dispositivos conjugam as estratégias de poder para criar e sustentar certo regime de saber, a “verdade” sobre as mulheres resulta de uma trama tecida pelos fios da apropriação, da dominação e da violência. A noção de “natureza”, para melhor excluir, coagir e discriminar as mulheres faz parte da panóplia do dispositivo da violência. O poder assim instalado, autoriza e justifica todas as agressões, abusos e brutalidades quer seja no espaço público ou privado. As injúrias, as piadas, a inferiorização das mulheres na linguagem e nas imagens contribuem para compor sua representação social. Ligadas ao corpo e ao sexo, desnudas e maltratadas na telas de cinema e televisão, as mulheres são objeto de desejo e consumo. A ameaça da perda de poder e da posse, não é o motor de uma violência que oscila entre o estupro, golpes e assassinatos de mulheres, sem falar do ácido ou do fogo que desfiguram e destroem? Uma nova palavra “feminicídio” foi criada para exprimir esta realidade: elas são mortas pois são mulheres e querem ser livres. São violentadas porque os homens podem fazê-lo, autorizados pela “fraternidade” que o conjunto dos homens partilham. Finalmente, o estupro é um tributo pago pelas mulheres à virilidade, na paz ou na guerra. Estes três elementos do dispositivo reformulam os pontos de apoiodo patriarcado, mas os mantém firmemente no lugar. Fala-se de liberdade e do desabrochar das mulheres, mas os discursos sobre a “nova “ sexualidade e a “nova” mulher” reproduzem, de fato, a “natureza” e a “diferença”. Onde foi parar a produção de conhecimento feministas, se suas análises radicais da construção da carne em corpos sexuados, das significações e das representações sociais que mantém as mulheres na “diferença” e na inferioridade? A violência simbólica do silencio faz parte constitutiva do biopoder patriarcal, das biotecnociencias que insistem na retomada dos papeis sexuais “naturais”. Sob a categoria “gênero” a academia finge a incorporação dos estudos feministas para melhor desfigurá-los. Sob a denominação “novos feminismos” pretende-se destroçar o denúncia dos pilares do sistema patriarcal: “a natureza” e a “diferença”. Na lógica das relações societais que estabelecem os valores, as normas, os métodos analíticos, as categorias de apreensão e de construção do real, os feminismos constituem um saber de ponta, desconstruindo as narrativas mestras, fundadoras do poder patriarcal. A esperança é que tudo que se constrói, pode ser desconstruído. Bibliographie Butler, Judith.1990. Gender Trouble, feminism and the subversion of identity, New York : Routledge. Butler, Judith,1994. Contingent foundations: Feminism and the question of ‘postmodernism’ in Steven Seidman (ed.) The Postmodern Turn New Perspectives on Social Theory : Cambridge University Press, pp. 153-170 Online Publication Date: September 2010. Foucault, Michel.1976. Histoire de la sexualité, vol. 1, Paris : Gallimard. Foucault, Michel.1976-1979. Dits et écrits vol. III, Paris : Gallimard. Foucault, Michel.1988. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro : Graal. Haraway, Donna,2010. Manifeste des espèces de compagnie- chiens, humains et autres partenaires Villefranche-de-Rouergue : Terra cognita, Editions de l´éclat. Rich, Adrienne,1981. La contrainte à l´hétérosexualité, Questions Féministes, n,1, Mars Paris : Editions Tierce. Wittig, Monique,1980. La pensée straight. Questions Féministes, n.7, février, Paris : Editions Tierce. [1] Ver por exemplo Institoris,H, Sprenger,J.(1486)1990. Le marteau des sorcières, Maleus Maleficarum, Grenoble : Ed Jérôme Millon. Ver tanbém Delumeau, Jean. 1998. La peur en Occident, XIV–XVIII siècles, Paris : Fayard. |