Que corpo é este que me escapa, esta identidade que me persegue?

                                       

Resumo. A identidade não passa de uma prisão, de limites impostos aos corpos, de modos de ser que esculpem comportamentos e definem funções. Arma de poder, estratégia de dominação, identidades ilusórias e fictícias funcionam como taxionomia do humano.

Abstract: Identity is nothing but a prison. Limits imposed to bodies. Ways of being, defining behaviors and functions. Weapon of power, domination strategies, illusionary and fictitious identities operate as a human taxonomy. 

Palavras-chave: identidade, corpos, ilusão

 

 

“O que importa o sentido, se tudo vibra?”

                            Alice Ruiz

 

Quem sou eu, afinal?

O que me identifica? Minha carteira de identidade? É apenas um nome, uma data de nascimento, uma foto antiga. Sexo feminino, brasileira. Não seria falsificada? E se eu sou uma transgênero, ou travesti, ou transexual? De que vale a carteira de identidade?

E a nacionalidade, seria uma identidade? Isto é suficiente? A mídia não cessa de invocar “O brasileiro”: gosta disto e faz aquilo, mas quem é “o brasileiro”? Uma entidade única e masculina? E eu? Não sou homem, não gosto de futebol, nem de cerveja, não danço samba, sou brasileira?

A identidade, de fato, é feita de estereótipos, de generalizações.

Meu corpo? Posso ter seios e ter uma genitália masculina. Posso aparentar ser um homem e ter uma genitália feminina.

 Como posso me identificar, com o que me identifico? O que significa, finalmente, “ser” algo ou alguém? O que é esta famosa identidade que se desfaz ao ser questionada, ao ser posta à prova? Assim como Foucault explicitava a loucura como uma leitura descontínua da razão, a identidade não tem uma essência, que se prolonga ao sabor do tempo e das intempéries sociais.

 Eu não posso, desse  modo, reencontrar meu Eu oculto, enterrado sob camadas de injunções sociais. Minha identidade, se é que assim podemos denominá-la, é apenas meu presente, construído na experiência vivida do agora, em assujeitamentos e resistências diversas, dentro de uma representação social e fora dela, posto que a critico e desconstruo.

Se sou uma subjetividade fundada na experiência, que engloba todas as variáveis constitutivas do existir subjetivo, em sua história e  práticas políticas, como posso fixar um ponto e determinar que ESTA é minha identidade? Não sou a mesma hoje, nem em aparência, nem em desejos ou ação: meu corpo agora me proíbe de ter aquelas atividades que me encantavam, remar, andar a cavalo, aqueles passeios difíceis nas montanhas, trilhas e quebradas. Já não sou mais eu mesma? Entre aquela de 20 anos atrás e hoje, “em que espelho ficou perdida minha face?”(Cecília Meireles)

De fato, não ficou perdida em lugar nenhum. .Não há uma “face” estável, aquela que seria o núcleo do Eu, maltratada pelos anos, fundada em práticas sociais, desdobrando-se em cópias para sempre inexatas, simulacros, pois não se ligam a uma referência estável. Inspiro-me em Deleuze ao invocar o simulacro, cópia sem fundo, sem referente, onde o feminino não é o oposto do masculino, onde o ser não é fixo, mas em mutação constante, em vagas que destroem ou instituem, que alimentam ou desfazem raízes, fundamentos, projeções, ilusões permanentes de um sujeito estável.

Tanto os corpos como as identidades são históricos, sofrem a ação do tempo, das variáveis sociais, das ingerências econômicas, das eventualidades que urdem os tecidos do acaso. Foucault já analisava a invenção da homossexualidade enquanto figura patológica, enquanto desvio da norma, pois, ausente do discurso, a figura da/do homossexual não possuía uma “identidade”, ou melhor, uma identificação. A perversão era seu lugar, o interstício no qual se situava  para o olhar normativo.

Aquele núcleo central do indivíduo, aquele selo de autenticidade, de veracidade sobre si e sobre outrem há muito ficou perdido nos labirintos do tempo. Ou desfez-se, ao desvincular-se do discurso de verdade, da epistemé humanista com sua indefectível carga de leis, preceitos, normas, definições definitivas, conclusões incontornáveis, centro decisório do humano sobre o humano. O indivíduo no humanismo, nessa ótica, exposto em discurso, busca seu cerne, a fagulha “divina” constitutiva de seu ser, um déjà là definitivo.

Não encontramos assim estes descritivos biológicos quanto aos homossexuais, que “teriam nascido assim” ou sobre os criminosos, dotados de uma carga genética de maldade e perversão? Núcleos de existir que condicionariam o indivíduo, presa em suas garras definidoras e/ou genéticas, classificadoras e instigadoras de seus atos e pensamentos. As discussões sobre o caráter genético e incontornável dos desvios da norma estão longe de ter terminado e ressurgem com freqüência na mídia, no cinema, na TV.

Estou exausta de ouvir as pretensas verdades sobre o ser, as classificações definitivas sobre o humano.  Quem afinal decide sobre a importância dos corpos, das genitálias, dos inconscientes, dos egos e super egos? Quem, senão um conclave de personagens auto-instituídos em voz da ciência, arauto das verdades últimas, cujos poderes são datados, cujas conclusões são revistas periodicamente? “A culpa é da mãe!” Eva rediviva, encarnação do mal, eterno retorno, discurso recorrente, sem fundamento, eterno refrão com roupagens diversas. Quem afinal se importa e invoca sem cessar os ditames de Aristóteles ou Rousseau, Proudhon, Freud e seus acólitos sobre a divisão hierárquica do humano, a classificação dos seres, a importância social construída sobre o biológico? Aqueles que deles tiram proveito, que assentam seu lugar de fala e poder social numa tradição discursiva, cujo fundamento é apenas a espessura de sua trama. A importância destas assertivas é diretamente ligada ao valor que se lhes dá nos regimes de verdade nos quais sobrevivemos! Ou seja, afirmações circulares que em sua propagação escondem sua total falta de fundamento.

Destinos biológicos? Apenas a invenção de deus pode enraizar tais naturalizações em torno do sexo e da reprodução, obrigatória para o feminino.

À força de repetição, de iteração destes discursos destilam-se ódio e discriminação contra as mulheres, contra tudo que ameace o poder masculino, o clube fechado em torno do pênis, deus ex machina nas relações sociais.  Assim se criou “a mulher”, inferior ao homem, dotada de útero e não de razão, identidade fixada no corpo, na função social, nos limites de atribuições e deveres que lhe foram atribuídos do exterior, em discursos que asseguram o poder do masculino sobre o feminino.

 Da religião e da filosofia passamos à ciência e desta obtivemos, mais uma vez, as verdades últimas sobre o mundo e os seres.

Essa  ciência decide, finalmente, hoje, a identidade baseada no sexo, na sexualidade, nas práticas sexuais, sempre, inevitavelmente, partindo de um ponto de vista, de um sujeito imerso em condições sociais de produção e de inteligibilidade, em condições de imaginação, de onde se engendram as garras do poder e da dominação.

 Esses saberes situados, que se exprimem a partir de um local de fala, de uma rede de representações sociais que  instauram a soberania do falo, pretendem-se objetivos, anunciam leis biológicas, definem comportamentos a partir de obscuras teorias genéticas. O falo, significante universal? Apenas substitutivo das “leis” sociais  androcêntricas do positivismo! Lacan inaugura em fanfarras e explicita em “ciência” o domínio do falo. O falo simbólico, instaurando o domínio da linguagem? O falo falante, de que fala o falo? O falo fala de poder! O falo fala de dominação, de hierarquia, de binarismo.

Mas o falo, de fato, é hilariante! Quanta bobagem se diz para assegurar uma posição, um prestígio, uma importância, um poder destrutivo e excludente fantasiado de saber, revestido de um linguajar austero e pedante, novo glossário de termos enigmáticos, criados para reafirmar o mesmo, a mesma litania da diferença de sexos e da superioridade masculina.

Afirmações de um masculino também redutor, localizado na genitália, domínio do falo “simbólico”, da linguagem, do masculino. Simbólico? Símbolo de poder social, sim, de superioridade, de partilha do mundo, criador da desigualdade de sexos, instaurados e naturalizados, de uma identidade sexuada, de uma sexualidade que traz em si a marca da identidade. A diferença de sexos é também uma criação social, na sagração do falo, na linguagem da desigualdade, na afirmação de poder do Um, que cria o Outro para melhor assentar sua importância e seu valor.

A comicidade da pose dos “sábios”, de sua arrogância ao enunciar as “verdades sobre o humano”, cuja base é seu próprio campo de representações, seu próprio desejo de poder, de um local de fala instituído pela posse do falo, simbólico ou não, ao definir e limitar identidades a partir de práticas normativas, só é superada pela tristeza dos efeitos perversos e redutores de suas afirmações “definitivas”. Mulheres desprovidas de direitos, lapidadas, cortadas, consumidas, vendidas, surradas, violadas, reclusas, veladas, impedidas de circular, de trabalhar, de estudar, mulheres impedidas de viverem sua condição de sujeitos, de cidadania, esta é a sina de milhões de seres construídos no feminino, estas são conseqüências da linguagem do falo.

Mesmo nesta época atual de desarticulação identitária, de avanço dos múltiplos sobre a univocidade, do sujeito que se desfaz em perspectivas, os adeptos do “sexo-rei”, da sexualidade traçando a linha evolutiva do sujeito, são legião.

Esse obsoleto bando de jovens e menos jovens procuram assegurar um local de fala patriarcal, cuja base é a repetição de discursos, valores, frases, tradições vazias de conteúdo, preenchidas apenas pela proteção e re-instauração de um poder pesadamente material. Imanência e transcendência seriam, respectivamente, atributos femininos e masculinos, termos atribuídos e valorizados segundo uma ótica patriarcal.  Implícito está que mulheres não governam, mulheres não criam, mulheres não produzem conhecimento, mulheres não têm raciocínio, mulheres são todas iguais em sua inferioridade, “mulher”, objeto de desejo, descartável, substituível, desfrutável.

 Porque os Estudos Feministas são excluídos das bibliografias acadêmicas, porque são considerados marginais, sem importância? Apenas porque desestruturam a ordem do discurso patriarcal, a ordem do falo, do pai, do poder social. Feminismo é o caos da ordem patriarcal. Mulheres poetas, escritoras, políticas, profissionais de todas as áreas? É melhor silenciá-las, escondê-las. Porque não se atém às fraldas e à maquiagem, à cozinha e ao quarto, para os quais foram “destinadas biologicamente”? Estudos feministas perturbam, irritam, sacodem, agitam, desvirtuam os cânones, inventam e transformam as relações sociais.

Estudos Feministas questionam , dissolvem identidades. O que é uma mulher, pergunta decisiva (Simone de Beauvoir)! O atrelamento a um corpo definido, a um destino biológico, ao útero, são construções sociais, o biológico binário é uma criação do poder patriarcal. Assim como o “falo falante” o é.

O sistema heterossexual, definidor do sexo e sexualidade, como marcos da partilha do mundo, do atrelamento ao corpo para as mulheres e da ampla e irrestrita posse do social pelos homens, é denunciado em seus meandros e redes de poder pelos Estudos Feministas.

Apenas em um sistema heterossexual existem mulheres e homens, pois a determinação destes últimos depende da ascendência que tenham sobre as mulheres. Estas, por sua vez, ao se assujeitarem, ao localizarem sua importância social exclusivamente na maternidade e no olhar masculino, que as constroem corpo e sexo, reproduzem o sistema no  qual sua dominação se perpetua.

 A fixação de uma identidade, em meu entender, é ligada essencialmente a uma taxionomia dos seres em hierarquias, que definem papéis, lugares, posição e importância social. Para isto, o corpo é base e fundamento, a genitália define o ser-no-mundo, corpos humanos se transformam em corpos sexuados, em mulheres e homens, e para cada grupo é designado um lugar de fala, de existência.  Pois de fato, na trama do poder, como dominar uma pluralidade de seres que se delimitam a seu bel prazer?

Os “desvios” da heterossexualidade, se fixados em figuras definidas, também reafirmam a norma: eu sou homossexual, esta afirmação reproduz a fixação identitária ao sexo e às práticas sexuais. Da mesma forma, transexuais, transgêneros parodiam a norma, fixando-se em um dos pólos, mulher ou homem. Por que esses sofrimentos desfiando dores sem fim, ligados a práticas sexuais, a desejos que são criados, estimulados, proibidos, almejados, escondidos, expostos, re-produzidos em cadeia, em torrentes, em caudais de erotismo?  Aprazem-me estes seres indefinidos, indefiníveis, espanto de todos, pois não se encaixam, não se delimitam, não se denominam, não respondem às injunções sociais de uma identidade sexuada.

Fala-se de identidades nômades, desterritorializadas, mas em que transformam a norma se, ao passarem, fixam-se em uma ou outra figura sexuada? Um nomadismo sem referente, sem substância, uma transformação do ser no momento da viagem, este é uma desconstrução identitária. Não sei quem eu sou, sei apenas que não me reduzo a um sexo, nem ao exercício de uma sexualidade. Sei apenas que o olhar do outro não me constrói, nem me desfaz, pois não tenho um cerne que possa ser atingido, ou uma identidade a ser justificada.

A materialidade de meu corpo transmite sinais de um nomadismo sem sujeito. Eu sou apenas aquela em que me transformo. Meu texto é livre, sem notas, sem bibliografias, deixo nele penetrar o interdiscurso, assim é. Livre como eu sou.

E você?