O patriarcado rides again novembro 2016, mesa redonca, II Colóquio Feminista na UnB
A violência contra as mulheres no patriarcado é um fato concreto, em todos os países dominados pelo patriarcado. Violência material- agressões brutalidade, assassinato, tráfico, casamentos forçados, excisão e infibulação, estupros, véu e burka obrigatórios, punições com ácido, amputações, mutilações múltiplas e a lista é infinita. Violência simbólica – todas as formas de inferiorização social ou institucional cujo fundamento é “ser mulher”. Quer seja no domínio do imaginário- imagens produzidas com e sobre as mulheres, expondo e explorando seus corpos ou nas hierarquias econômicas e sociais, a violência se exprime de diversas maneiras para assegurar a dominação masculina. Se as feministas contemporâneas denunciaram e desvelaram os tentáculos do patriarcado, este sempre conseguiu evitar sua desintegração, pois, à medida que conquistas feministas tornavam-se realidade, transformaram-se as estratégias de assujeitamento que ancoram o poder masculino sem mostra-lo claramente. É assim que o feminismo hoje se enfraquece e esquece mesmo suas perspectivas e objetivos maiores, entre os quais o de eliminar a importância do sexo biológico na definição social do feminino. Gostaria de abordar aqui a violência contra o feminismo, no singular, aquele, radical, que visava arrancar as raízes da dominação, transformar as relações sociais, desestruturar as hierarquias baseadas no genital. A violência contra este feminismo é exterior e explicita exercida pelos meios institucionais, principalmente a religião e a legislação; e é interior, com meios mais sutis, da cizânia, da discussão improdutiva e acerba, que se debate entre um novo assujeitamento ao patriarcado e a firme retomada dos objetivos fundamentais do feminismo. O feminismo sempre pretendeu a igualdade dos direitos, a plena cidadania, um lugar social que não seja determinado pelo sexo, mas pelas capacidades individuais. Queria fazer das mulheres sujeitos políticos, de direito e de fato. Para isto, durante décadas, os movimentos feministas tinham como alvo não somente as tradições, as instituições e as práticas sociais, mas igualmente os domínios filosóficos, religiosos, imaginários, representacionais, que construíam e naturalizavam a inferioridade das mulheres a partir de seus corpos. Ou seja, a ação feminista estava imbricada a uma intensa reflexão e produção teórica sobre tudo aquilo que fundava o binarismo, a “diferença”, estes solos pantanosos e movediços sobre os quais se instalava a inferiorização das mulheres. A « natureza » feminina se desintegrou assim, como testemunham as palavras de Simone de Beauvoir, repetidas sem cessar. “Ser mulher”, sugere ela, é uma construção social. A diferença biológica, evidente, adquire importância e valor na medida em que serve de parâmetro para instituir hierarquias. No Ocidente, as mulheres destruíram os mitos arraigados e mostraram seu valor durante as duas guerras munidas: o mundo masculino surpreendeu-se com a capacidade feminina em todos os domínios, econômicos e sociais, apressando-se em seguida a reivindicar a primazia masculina no mundo do trabalho, para melhor assegurar seu espaço de dominação. Mas a ideia de “natureza” fraca e incapaz atribuída às mulheres foi então desfeita em suas bases fisiológicas. Assim, o binário de ordem divina foi discutido e relegado à sua real importância pois: os detalhes anatômicos da espécie foram expostos como aquilo que de fato eram: pretexto para erigir a predominância fálica. Com efeito, se a “natureza” fosse signo de valor, as mulheres deveriam ter prioridade no social, enquanto geradoras do humano. Entretanto, a procriação, no patriarcado, tornou-se “maternidade”, destino e obrigação, limitação, uma fraqueza, não uma vantagem, pois o discurso masculino vela, distorce e fantasia para afirmar sua ascendência. É assim que o masculino tornou-se o princípio gerador e a mulher apenas o vaso receptor da vida. Uma vez afastada a « natureza » a questão se tornou: “o que é então uma mulher?” Queremos ser mulheres? Que espaço ou que desenho deseja o feminismo para estes seres sociais, chamados “mulheres”? Em princípio, ser sujeito de pleno direito sobre seu corpo e sujeito político ao mesmo tempo, pois o quadro material de existência é determinante para incluir ou excluir as mulheres das funções sociais. « O privado é político, o pessoal é político”, são dois aforismos que não perderam nada de sua significação. Sujeitos delimitados, mas sujeitos coletivos igualmente, pois a sororidade não estava restrita aos limites geográficos de um país ou de outro. O político absorvia a singularidade subjetiva para dar alcance universal aos objetivos do feminismo, “ enquanto houver uma só mulher oprimida”. De que lugar falamos, nós que recusamos o lugar de fala limitado pelo « ser mulher ? » Filósofas como Tereza de Lauretis,[i] Rosi Braidotti[ii] discutem a “desidentificação”, ou seja, a recusa de se identificar às representações e papéis atribuídos ao feminino social. A raça e as classes sociais que compreendem o múltiplo do feminino foram da mesma forma objeto de debates e de uma intensa produção teórica bem como a noção de “diferença” baseada no biológico, tão bem apresentadas por Colette Guillaumin[iii]. Comme le souligne Colette Guillaumin : « Não se é diferente como se é encaracolado, somos diferentes DE. Diferente de alguma coisa. [...] Assim, se as mulheres são diferentes dos homens, estes não são diferentes. Se as mulheres são diferentes dos homens, eles são apenas os homens.[...] Diz-se dos Negros que eles são negros em relação aos Brancos, mas os Brancos são unicamente brancos, e não é certeza que os Brancos tenham uma cor qualquer. Não mais que os homens sejam seres sexuados: eles tem um sexo, o que é diferente. Nós, nós somos o sexo, inteiramente. (1992:63;65).” Todas estas questões são bem conhecidas por quem estudou nem que seja um pouquinho sobre feminismo. A pertinência destas perspectivas para a análise do social teve como reação o silencio acadêmico, um silencio amedrontado por um lado e por outro uma atitude de desprezo e olvido. Mas o gênero chegou.[iv] O sucesso desta categoria foi imediato, um rastro de pólvora, pois seu uso a-crítico esvaziava o perigo do feminismo, abrindo as portas às masculinidades de toda espécie, em um relativismo que tratava igualmente a construção social das mulheres e dos homens, como se não existisse uma hierarquia derivada da importância atribuída ao biológico. Portanto, para estudar as mulheres doravante era imperativo estudar os homens, apesar destes últimos terem sido o objeto central da ciência em seus domínios múltiplos. O patriarcado agiu sem cessar no sentido de uma economia social que distinguia as esferas masculinas e femininas marcando as “diferenças” na atribuição de papéis. Mas com o “gênero” tudo de passa como se não houvesse ou nunca tivesse havido esta cisão. Entretanto, o gênero não existe fora de uma economia sócio/ políca generizada, de uma estrutura e um sistema de hierarquias que atribui valor ao binário biológico. Esta questão envia diretamente às condições de produção e de possibilidade na pesada materialidade do social, cuja análise das relações de poder perdem sua força à medida das interferências masculinas nos estudos de gênero. O relacional não remete mais às análises das tramas de poder para melhor excluir e dominar as mulheres, mas simplesmente para descrever a construção social dos sexos. O poder masculino torna-se invisível, porém referencial. A história se vê bloqueada por esta universalidade que retorna em boomerang : a pesquisa se limita, na maior parte dos casos, a tomar a divisão generizada do mundo como quadro incontornável das relações humanas. O « gênero » assim enviou o feminismo e seus objetivos de transformação social ao esquecimento, pois se no início de sua utilização auxiliava a compreensão da construção social dos sexos, foi rapidamente apropriado sem que as condições de produção do feminino fossem tomadas em conta. Desta forma, eliminou-se toda interrogação sobre a construção histórica dos gêneros, que passou a ser universalizada e a-temporal. Assim, se a análise do gênero no social deveria desvelar as relações de poder baseadas no sexo biológico, esta categoria encontrou-se domesticada, passando do trabalho de auscultar a profundidade das estruturas à descrição superficial das relações sociais. O possível da história, a descoberta de uma humanidade cujas relações não se baseariam no binário sexuado torna-se o impossível do humano. O patriarcado, enquanto sistema de dominação e exploração do feminino praticamente desapareceu do debate feminista: as instituições patriarcais quanto à economia, o trabalho, o político strictu sensu, o político em seu amplo espectro de relações de poder dá lugar a um pretenso “pós-feminismo”; é a tese que sustenta o fim do feminismo pois todas suas reivindicações teriam sido finalmente obtidas. A autonomia prometida às jovens mulheres em uma sociedade mais aberta esconde a presença do patriarcado nas instituições que se renovam, na violência material e simbólica que circunda o feminino. As denúncias das perpétuas violências não revelam a tessitura de um sistema que as reduziriam; ao contrário, a violência patriarcal, forma clássica de dominação, só faz aumentar. ( 5 estupros por hora em 2015 no Brasil) Os movimentos feministas desertaram a teoria; é assim que da des-identificação aos sujeitos sociais “mulheres” desligando o sexo biológico do sexo social houve um retorno ao sexo e à sexualidade. A premissa “o gênero constrói o sexo” que significava a importância dada ao sexo em um sistema material de relações de poder tornou-se “ o sexo constrói o gênero” ou seja, a mesma premissa que discutia o feminismo em seus primórdios. O sexo torna-se novamente o eixo em torno do qual o individuo mulher / homem se reporta. Nega-se o biológico, mas o sexo permanece o determinante da subjetividade, pois se pode mover de um a outro, do feminino ao masculino e vice-versa, sem, todavia abandonar o sexo como base deste movimento. O sexo tornou-se o fetiche dos pretensos desconstrutores do gênero. A problematização da identidade sexuada que era crucial para o feminismo na tarefa de desfazer a ligação entre sexo biológico feminino e sua construção social retoma sua condição de fundamento da subjetividade: o que se coloca agora é a movimentação entre um sexo e outro, entre heterossexualidade e é bi/homo/múltipla sexualidade em uma subjetividade sexuada móvel. É assim que surge a « ideologia do gênero », mais uma manobra patriarcal para solapar os aportes teóricos do feminismo, pois o binarismo da construção do sexo social se deslocou para uma questão de sexualidade, opondo a heterossexualidade à homossexualidade. Isto é um reducionismo grotesco. A nova liberdade é a de escolher seu sexo e sua sexualidade, mas não alça voo além dos limites do sexo como elemento de definição do humano. Com efeito, para se desvincular do gênero, é ao sexo que se faz apelo. Para as mulheres em geral, este imenso contingente cujo sexo social é o signo de inferioridade, esta liberdade não significa nada. Ao contrário, o patriarcado em seu habitual movimento de adaptação para melhor ressurgir, eterna fênix, se apodera desta atenção renovado sobre o corpo para ancorar a subjetividade fora de suas condições de produção, das práticas discursivas e não discursiva, como se o sujeito se inventasse única e livremente baseado sobre o sexo e a sexualidade. Ana de Miguel e Laura Garcia nomeiam este novo sujeito, que deserta o feminismo como um sujeito néo-liberal: “ Em particular, sob o neoliberalismo, estamos normativamente construídos e interpelados como ‘empreendedores do self’. O sujeito neoliberal é um indivíduo que é totalmente autônomo e autorregulado, cujo valor se mede em grande parte por sua capacidade de autocuidado e auto aperfeiçoamento, utilizando cálculos de custo-benefício fundamentados em princípios baseados no mercado para todos seus juízos e práticas”(web, Labrys, n.29:2016) E para completar esta perspectiva, afirmam que: “ As desigualdades estruturais, as relações de poder e as feridas sociais se tornam cada vez mais inexprimíveis. O contexto de toda vida se substitui pela exigência de representar todas as biografias vitais cognoscíveis e significativas através de uma narrativa de escolha individual e livre”(idem) De fato, a performatividade da construção do sujeito baseada sobre condições específicas de produção, de imaginação e de possibilidade se transfere a um individualismo feroz cujo eixo central não tem mais em conta as relações socioeconômicas, o solo material de poder, as pressões exercidas pelas tradições e instituições que regem as representações dos indivíduos e compõem o tecido social. Sobretudo, não leva em conta o patriarcado enquanto sistema geral de agenciamento, assim como de coerção e delimitação do humano. Esta reviravolta para o sexo e a sexualidade esvaziou completamente os objetivos do feminismo, apagou relações de poder no patriarcado, sempre criando violência sob todas suas formas, para assegurar o assujeitamento feminino. Ora, na apropriação de significado realizada pelo patriarcado, o gênero torna-se sinônimo de sexo e de uma liberdade sexual que reivindica uma sexualidade múltipla. O fundamento desta liberdade seria, como já explicitei, um indivíduo autônomo, empreendedor de si mesmo, centrado sobre a sexualidade que lhe poderia fornecer um lugar no social. Entretanto, sob a tutela do patriarcado, este social, pretensamente modificado, conservou seu quadro binário que orienta a inteligibilidade do humano. Quanto a uma perspectiva « queer », de uma identidade móvel, entre sexo e gênero, suas tentativas de realização retornam ao sexo como fundamento: como mostra o exemplo de Preciado, que passa de seu papel social feminino, denominado “Beatriz” a um outro, masculino, “Paul”, ou seja, do feminino ao masculino e vice-versa; qual é a mudança, a transformação estrutural da sociedade? Abre-se uma brecha, talvez, nas relações sócio / sexuais, mas nenhuma mudança se faz na dominância patriarcal. Da mesma forma, os transgênero, os transexuais transitam em torno do binário, entre um sexo e outro, reivindicando a inclusão em um ou outro gênero. Sem nenhuma ação sobre a estrutura patriarcal. Com efeito, se uma minoria pode jogar com esta movimentação no sexo e na sexualidade, a imensa maioria das mulheres, sexo social imutável neste esquema, permanece limitado pelo poder e força patriarcais. Há também uma derivação patriarcal desta tendência, na medida em que o indivíduo, forte de sua sexualidade e autonomia torna-se seu próprio empreendedor, em uma flagrante contradição com a mobilidade do sujeito, já que a fixação na sexualidade se torna assim a verdade do corpo. A sexualidade neste caso revelaria a essência do indivíduo, sua forma de expressão, a revelação de sua identidade, em suma. Ou seja, é a volta da identidade ligada diretamente ao corpo e à sexualidade. Sobretudo, esta visão sustenta um sujeito independente de suas condições de produção, do quadro material, simbólico, inteligível e técnico no qual é construído. Nega, portanto, todo o debate contemporâneo que foi o centro das discussões acadêmicas sobre o sujeito e que afirmava sua construção social, material, imaginária, representacional. Desprovido de essências imutáveis. Foucault já alertava quanto à constituição de novas cadeias a partir de uma sobrevalorização da sexualidade que cria um sexo-rei, omnipotente, instituído em práticas discursivas e não-discursivas, normas, leis, regulamentos, representações, produção imagética, engendrado e desenvolvido pelo dispositivo da sexualidade[v]. Diz ele: “O dispositivo [...] está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto o dispositivo: estratégia de relações de força assentando um tipo e sendo sustentadas por ela.”(Foucault, 1088:246) O que pretendia o feminismo era a dissolução do sexo social enquanto base das relações de poder apoiadas no biológico; o que se vê hoje,é uma expansão de atos e grupos que se dizem feministas, divorciados das discussões teóricas que haviam sustentado e dado força ao aprofundamento do feminismo acadêmico em estreito laço com os movimentos das mulheres. O que se nota atualmente são movimentos desconexos, expressão de opiniões, do individualismo, reivindicações pontuais, sem uma ofensiva geral contra as estruturas que geram a violência e a condescendência social para os atos contra as mulheres. Contra o patriarcado. Não se interroga mais a performatividade do sujeito, mas ao contrário, afirma-se o sujeito enquanto performance que, mesmo sendo vazio de substancia, se manifesta essencialmente pela sexualidade, cujo centro é uma economia do prazer. É o dispositivo em ação, manejado pelo patriarcado para melhor espalhar e desenvolver a crença que na sexualidade está a verdade do corpo e a essência da vida. “Sexo é vida”, não se cansa de apregoar a publicidade. Foucault pondera: « E devemos imaginar que um dia, talvez, em outra economia dos corpos e dos prazeres, não compreenderemos como as artimanhas da sexualidade e do poder que sustenta seu dispositivo conseguiram submeter-nos a esta austera monarquia do sexo, ao ponto de nos coagir à tarefa indefinida de forçar seu segredo e extorquir à esta sombra as confissões mais verdadeiras. Ironia deste dispositivo: Faz-nos crer que daí virá nossa ‘liberação’. (Foucault, 1976 :210/211) A liberdade deste indivíduo não é senão a afirmação positivista de sua existência. É a famosa “agentividade”, neologismo que, por sua simples enunciação, pretenderia explicar a extensão de sua significação e seu poder de decisão, emanando do sujeito autônomo, livre das contingencias de suas condições materiais de produção. Um exemplo paradigmático desta perspectiva é o da prostituição. De um lado, se erguem as soi-disant feministas para defender a existência da prostituição sob o pretexto da liberdade de escolha das mulheres, que, portanto, escolheriam ser putas. É a agentividade em ação, é a perspectiva do indivíduo autônomo, gerindo sua vida e sua inserção no social segundo suas tendências e anseios. Mas quem, se não estiver repleto de má fé pode afirmar que meninas de 12 ou 13 anos, vendidas nas estradas do Brasil o fazem porque é o que almejam da vida? Por outro lado, estão as feministas que se debruçam sobre as condições de vida das mulheres prostituídas, sobre sua miséria psicológica e social e que denunciam a prostituição enquanto instituição maior do patriarcado. Portanto, este feminismo « libertário » e neoliberal observa as mulheres arrastadas à prostituição por suas condições materiais e patriarcais de vida como seres livres, reivindicando uma falsa dignidade sob a rubrica “trabalho do sexo ” operárias da “indústria do sexo”. Já ouvi como argumento, a afirmação de que se a prostituição figurava na lista das profissões do Ministério do Trabalho no Brasil, é porque era um trabalho. O positivismo desta asserção serve apenas para mostrar sua indigência teórica. As mulheres prostituídas, que buscam com desespero uma autoestima, uma razão de ser, são enterradas na mais paroxística dominação patriarcal, aquela em que, dando-lhes um “trabalho”, não as transformam sequer em corpos sem substância, mas em orifícios a serem penetrados. Esta perspectiva da mulher prostituída como mulher livre esconde o fato que ela não existe senão para o prazer dos homens. A submissão aqui se fantasia em liberdade individual, pregada a um corpo ultrajado. Se existem mulheres que escolhem a prostituição – tudo é possível neste mundo- esta minoria não pode se tornar exemplo e justificação de uma atividade que rebaixa todas as mulheres ao nível de mercadorias, de coisas. Não são pesquisas pontuais com meia dúzia de entrevistas que podem justificar a livre escolha da prostituição, num universo de milhões de mulheres. Estas são sim, agentes do patriarcado, sob um ar acadêmico, cúmplices de um sistema que dobra as mulheres aos desejos masculinos. Apaga-se assim a realidade de milhões de mulheres e meninas vendidas, traficadas, surradas, violentadas, forçadas a se vender nas ruas a qualquer um, sem proteção, sem futuro, carne para prazer de outrem, engendrando crianças em ninhos de novos seres a serem prostituídos e traficados. Mas a “prostituta livre” continua a ser colocada fora das condições abissais das ruas e dos bordéis, pois ela é coberta pela bandeira da escolha e da liberdade. Eis que a liberdade sexual almejada pelo feminismo, assim como a cisão entre sujeito político e corpo sexuado torna-se a corrente que prende as mulheres a seus corpos, ao serviço dos homens. A empreendedora de si, neste caso, é o joguete e a presa dos traficantes e proxenetas, estes os verdadeiros empresários, que enriquecem a custa dos corpos femininos, vendidos a quem pagar melhor, apesar da veemência colérica de certos grupos feministas em relação à agentividade, afogadas no oximoro, pois elas são o absurdo: “feministas patriarcais”. Assim, o abandono da análise do patriarcado como instituição sistêmica que regula as relações sociais erigindo a dominância masculina como referente humano, levou à ideia do indivíduo fora de suas condições de produção, livre como o ar para realizar suas escolhas. Tudo se passa como se não mais existisse o patriarcado: as mulheres teriam conseguido uma igualdade total com os homens. No “pós-feminismo” o feminismo teria perdido sua razão de ser. A realidade dos fatos demonstra a falsidade desta perspectiva, tendo em vista a violência extrema, a exclusão dos lugares de decisão, a hierarquia salarial presente no mercado de trabalho, a justificação e a exploração das mulheres prostituídas, sob a égide do “trabalho”, da “indústria do sexo”. Com efeito, o que está protegido nesta ótica, é o direito dos homens ao acesso sem limites ou justificativas aos corpos e vidas das mulheres. O patriarcado, como vemos, é forte em suas estratégias e táticas. O debate sobre a prostituição criou um verdadeiro fosso entre as feministas, entre as cúmplices da exploração sem limites das mulheres transformadas em corpos “livres” e aquelas que se voltam para a proteção das mulheres prostituídas, denunciando a mão do patriarcado a escavar esta fissura. Ana de Miguel e Laura Garcia explicam que há hoje uma denominação específica para estas últimas, visadas especialmente pelo patriarcado e seus sicários. Dizem elas: « [… ]SWERF”, é o acrónimo em inglês para “feminista radical que exclui a trabalhadora sexual” (“Sex Worker Exclusionary Radical Feminist”), que se usa para insultar aquelas que se atrevem a criticar a indústria do sexo e a apoiar o “modelo nórdico”. Os fáceis diagnósticos de Swef são “putafóbica”, “kinkfóbica”, ou “sexofóbica” e tem hoje o poder nada mais nada menos que arruinar carreiras profissionais.” (Web, Labrys 29) [VI]Os estudos pornográficos estão na moda, retomando uma discussão de 50 anos atrás sobre a “liberdade” que se exerce ao fazer e assistir pornografia. Fica obscurecido o fato que a pornografia é uma das tecnologias de gênero e da sexualidade, incitando e “liberando-a”, criando-a lá onde não existia. A pornografia é um dos elementos primordiais do dispositivo da sexualidade, criando um espetáculo imagético para melhor assentar o uso indiscriminado dos corpos, abertos, expostos, usados, em figurações que apontam para a satisfação vital nesta economia de um prazer fictício. Mais um dos tentáculos do patriarcado: o discurso de apoio à pornografia reafirma a “liberdade” de escolha e menospreza o aspecto didático das imagens e representações de sadismo, e violências diversas. O sexo na pornografia dá ensejo a esta sexualidade que não se refere mais ao sexo, mas à violência e à dominação. A argumentação em favor da pornografia não existe, é nula, repetitiva, superficial, positivista, apoiando-se apenas em sua constante repetição, invocando críticas a uma pretensa moral inibidora. Na pornografia, a inteligibilidade do sexo se explicita em violência. Enorme conquista patriarcal. Os “porn studies” estão agora em revista (2014), editada por Routeledge, uma das maiores editoras dedicadas ao feminismo. As editoras chefe são Feona Attwood da Middlesex University e Clarissa Smith da University of Sunderland. Propõe-se à análise crítica da pornografia, mas seus artigos são sua exaltação. Em sua chamada para textos, trata a pornografia como uma “produção cultural”, naturalizando sua instituição e ramificações e interações com dispositivo da sexualidade na produção de corpos disponíveis e “livres” em sua utilização “erótica”, estímulos para a violência contra as mulheres. A “cultura do estupro” ou seja, a disseminação e naturalização desta violência pode ser considerada um subproduto da pornografia, já que esta última exacerba o dispositivo da sexualidade e incita à posse e dominação, erotizando até mesmo o assassinato, o feminicídio, que assola os países patriarcais. Naturalizar a prostituição e a pornografia, o desejo e a « necessidade” dos homens na busca pelo prazer reforça a imagem da mulher submissa e dócil, sob a roupagem da liberdade. As jovens são livres, mas obrigadas pelo convencimento das condições de produção e imaginação reinantes, a usar esta liberdade para uma atividade sexual desde a mais tenra idade, como atesta o imenso contingente de meninas grávidas. Posso dizer sem medo de me enganar que o domínio patriarcal sobre as mulheres, hoje, as reduz a seus corpos e ao sexo biológico, de maneira mais sutil, pela persuasão, mas com a mesma violência subjacente. E o patriarcado agora não tem nem mesmo necessidade de defender ou justificar sua exploração sobre as mulheres: certas feministas o fazem por ele, paladinas dos direitos masculinos: as guerrilheiras de antigamente que dedicavam suas vidas à destruição do patriarcado tornaram-se hoje suas mais fiéis aliadas. Sem mesmo se dar conta disto, em certos casos. A violência patriarcal atinge o feminismo em cheio, conduzida pelos interesses masculinos, geradores de uma hiper sexualização que realiza uma volta atrás de ao menos 60 anos. A pornografia sem limites, a pedofilia, a zoofilia, a prostituição “livre”, são reivindicadas pelos homens: “ tenho direito à minha puta” diziam os franceses por ocasião da instauração da lei que penalizaria os clientes. As redes sociais, as internet em geral, difundem e realçam de forma neutra todas as explorações dos corpos femininos, dobrados aos prazeres masculinos. O estupro coletivo, o feminicídio são manifestações claras do desejo de controle e de humilhação impostas às mulheres. É ainda a velha ideia do desejo incontrolável dos homens que ressurge, apoiando todas as violências contra o feminino. Finalmente, não é de sua culpa, é a natureza dos homens que assim se exprime. Aquela que o feminismo acreditava ter desfeito o alcance e o poder. O patriarcado não é uma ideia abstrata: é a manifestação material e simbólica da dominação masculina através das instituições, da legislação, da religião nas práticas conduzidas pelos homens, pais, maridos, irmãos, filhos, vizinhos, namorados. E agora também por um feminismo que perdeu todos seus objetivos fundamentais. O patriarcado conseguiu mais uma vez semear a cizânia entre feministas, centrar a subjetivação sobre o sexo e a sexualidade. Conseguiu repor, portanto, nos corpos das mulheres seu fundamento e seus limites. A busca de raízes estruturais sustentou o feminismo na liberação dos moldes que lhe eram impostos. É tempo de retomar a ação radical para modificar as condições de produção das mulheres retransformadas em sexo. Cabe a nós identificar e quebrar estas novas correntes.
Notas [i] De Lauretis, Teresa. Technologies of Gender: Essays on Theory, Film, and Fiction, Indiana University Press, 1987 - 151 páginas [ii] Web. LABRYS, Études feminists, www.labrys.net.br juin 2013. Nomadic Feminist Theory in a Global Era. [iii] Guilaumin, Colette, 1992 . Sexe, Race et Pratique du pouvoir. L’idée de Nature, Paris, Côté-femmes, 63;65 [iv] Ver Fraisse, Geneviève. Voir et savoir la contradiction des égalités. labrys, études féministes/ estudos feministas janvier / juin 2013 -janeiro / junho 2013, www.labrys.net.br [v] Ver Foucault, Michel. 1988. Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Graal. Pg 246 “O dispositivo era de natureza essencialmente estratégica, o que supõe que se trata no caso de uma certa manipulação de forças, de uma intervenção racional e organizada nestas relações de forças, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las, etc. [VI] Laura Garcia, Ana de Miguel. www.labrys.net.br, n. 29, dossiê "Feminismos pelo mundo"
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