Odette de Puigaudeau, Marion Sénones, um nomadismo vivido

 

Estou fascisnada ! Historiadora, conhecia uma ou duas mulheres de aventura, cujas proezas espetaculares ainda não tinham caído no esquecimento, como Alexandra David Neal e Flora Tristan.

Encontro-me subitamente diante de uma quantidade de mulheres que no passado e no presente ultrapassam os limites das forças humanas, como Laurence de La Ferrière, que atravessou o pólo sozinha com seu pequeno trenó, afrontando temperaturas de -60 graus celsus, sustentada por sua única e exclusiva vontade e perseverança. Ou ainda Maud Fontenoy e Peggy.Boucahrd que atravessaram o oceano a remo, sozinhas, sem assistência ou  Lynn Hill, grande expoente do montanhismo . Temos ainda as numerosas mulheres aviadora, tais como Amélia Earharte de quem quase não se fala mais, apesar da fama que já gozou.

Em condições extremas, desprezando todos os perigos, elas correm os mares, as montanhas, os desertos de areia e de gelo, atravessam planícies e selvas, descobrem, exploram, suas proezas são incontáveis. Mas suas vidas são silenciadas, as tradições não as incorporam, começamos apenas a conhecê-las. Por que não vemos seus nomes nos mídia, nos livros de história, por que elas não habitam o imaginário, a memória social?

A história, ela mesma, é a memória social, o registro que guarda os nomes e as proezas da humanidade. As mulheres não tem nela um espaço. A literatura preenche esta lacuna, pois um grande número des mulheres escreveu sobre suas aventuras; porém, suas atividades permanecem no domínio do particular, dos pequenos círculos dos apaixonados pelos feitos esportivos e pelas grandes viagens de exploração.

Assim, as aventuras das mulheres não atingem o grande público, sequer estudantes, pois suas peripécias não atingem a representação tradicional das mulheres: frágeis, doces, submissas, indiferentes ou incapazes de atividades políticas, esportivas, ocupadas somente a procriar. O "destino biológico" que as fixa em tarefas domésticas e maternais define ainda hoje as representações sociais das mulheres.

Géneralidades históricas

Odette Puigaudeau, como Ella Maillart, partilhou com marinheiros, os trabalhos e fadigas das manobras e riscos de um veleiro. Mas como isto fora possível? Justamente no domínio dos marinheiros, supersticiosos em relação às mulheres, que despertariam o ciúme das ondas e sereias? É justamente isto que as generalidades nos transmitem, pois nunca conseguem revelar a diversidade e as infinitas possibilidades das relações humanas.

Sabe-se que nos anos 1930, quando as mulheres não tinham nem o direito de voto, nem direitos plenos de cidadania, os olhares sobre as mulheres de ação eram reprovadores e sérias dificuldades seriam de se esperar por certas iniciativas. Mas havia também espaços impensáveis nos quais os homens não hesitavam em aceitar as mulheres: os povos do mar, os pescadores, os bretões impávidos que partilhavam os trabalho e o espaço de seus barcos e do mar com essas mulheres de aventura, são disto bons exemplos. O que importava, de fato, era a capacidade e não o gênero.

Isto prova que os preconceitos são construídos e desconstruídos, surgem e desaparecem segundo os movimentos dos imaginários sociais. Somente os discursos que repetem incansavelmente a inferioridade das mulheres retém as generalidades do "sempre foi assim". Com efeito, a imagem dos homens das cavernas que arrasta uma mulher pelos cabelos não é senão uma alegoria de tradições que ao repetir, criam seus próprios fundamentos. A diferença de sexos se constrói sem cessar pelos discursos sociais, e os silêncios atuam da mesma forma, sobretudo quando se trata das ações de mulheres, para melhor ocultá-las.  

A história assim narra o que nos querem fazer crer os historiadores e suas representações do mundo. Neste sentido, as ciências humanas e exatas modelam a realidade a partir de uma problemática, a partir de questões que são colocadas à realidade. Mas as próprias questões são investidas pelas representações sociais daqueles que as colocam.

É assim que as mulheres desaparecem das narrativas, das problemáticas das relações humanas, a partir da premissa que elas não podiam, não queriam sair do quadro de sua domesticidade e de sua dependência em relação aos homens. E sobretudo, a partir de sua inferioridade "natural", que as tornava frágeis e desvalidas. Sua presença na história, portanto, seria descartável, pois sempre a mesma: a reprodutiva.

As viagens de Odette e Marion, de Ella Maillart e de tantas outras mostram exatamente o contrário. Paralelas às lutas pelo voto feminino, pela contracepção, as mulheres realizavam seus sonhos de liberdade, de evasão, de independência.

As mulheres não tem o direito ao sonho, ao desejo de aventura, à vontade de queimar etapas, de misturar caminhos para se esquivar aos olhares de reprovação? Não, pois para o patriarcado, a especificidade das mulheres faz com elas sejam seres à parte, que não partilham a humanidade dos homens, únicos proprietários do saber, da verdade, da criatividade, da ação no mundo.

As mulheres de aventura, cujas proezas estamos desvelando, são a própria representação do silêncios da história, dos preconceitos, que orientam o fazer histórico. Estas mulheres fizeram avançar o conhecimento do mundo.

          Odette, Marion[1]

Chove!

Em algum lugar, mas não na Mauritânia , onde Odette du Puigaudeau e sua companheira Marion Sénones não contaram seus passos. As gotas de chuva ali são os grãos de areia que revolvem o passado e o presente para assim melhor esconder seus segredos e seus traços.

Odette e Marion avançam, os dias brilhantes de uma claridade implacável, e os rituais se estabelecem rapidamente nas paradas necessárias: a cerimônia do chá quente, bebida incrivelmente refrescante em uma tórrida canícula. À moite, o frio, o fogo, às vezes as conversas, as histórias, os contos, os "fantasmas" curiosos que rodam em torno do acampamento.

1933. Duas mulheres se lançam através da Mauritânia por dois anos de viagem ou quase isto. As pegadas destas mulheres teriam sido apagadas sem a a publicação de sua narrativa, de suas esperanças, do intenso desejo de se misturar ao deserto, às areias, de cortar as raízes do conforto, da tranquilidade, do repouso.

Odette de Puigaudeau (1894-1991)  e Marion Sénones (1886-1977) fizeram várias viagens juntas e partilharam, de fato, suas vidas , durante mais de 40 anos, até a morta de Marion.

 

       Relações emtre mulheres

É interessante notar que na mesma época do aparecimento do livroThe Well of the Lonliness de Radcliff Hall (1928),onde as relações entre as mulheres é mostrada em um quadro de sofrimento e exclusão social, mulheres outras escolhem aparecer como companheiras de vida. Neste mesmo sentido, um salão literário parisiense muito famoso foi criado em torno das escritoras americanas Nathalie Barney et Djuna Barnes, abertamente lesbianas, com a presença constante de Collette, nos anos 1930.

Assim, podemos constater que representações contraditórias podiam existir ao mesmo tempo em uma formação social. O que resta disto, entretanto, na memória social parte de um imaginário ordenado pelas tradições patriarcais, que execram o lesbianismo como práticas "anormais" e condenáveis "desde sempre"

Desta forma, não é a tolerância condescendente da época atual que permite uma maior visibilidade das lesbianas, mas a expressão de um imaginário social dinâmico abrindo-se à diversidade do humano. [2] Odette et Marion não escondem sua relação e o companheirismo de sua vida comum, mas não a expõem também. Uma boa política, penso eu.

 

retour au voyage

Ao chegar na Mauritânia, Odette escreve :

«[...] Ali pelas dez hora, a Africa apareceu. Ela era plana, uniforme e como usada, roída de ferrugem e de mofo. Tinha um ar envelhecido e não muito bonita. Não havia nada sobre ela. Mas, assim mesmo, ela nos parecia magníica porque era a face de nosso sonho, na direção do qual nós vinhamos lentamente, sobre este pequeno veleiro. Um sonho enfim realizado de onde nascem desde já outros sonhos. v» (PNM,32)

Magia. Desejo de absoluto no movimento das ondas de areia, desejo de deslocar todos os horizontes sem se fixar, nomadismo de alma, admiração sem limites pelos nômades de fato.

O que as atrai ? O desconhecido, a diversidade, o sentimento de penetrar em outro mundo, de um sonho inculcado no imaginário ocidental? Odette observa :

«Com seus punhais, seus lenços brancos cruzados no peito, o  litham azul escuro não deixava aparecer senão seus grandes olhos cruéis, os guerreiros mouros, os Hassane, surgiam de um país desconhecido, de uma idade esquecida, do tempo medieval dos servos, das orgulhosas cavalgadas na direção das quiméricas guerras santas [...] (PNM, 57)

Ou apenas o gosto pela viagem, pela partida, pelo movimento?

« Atormentadas pelo velho instinto de migração que dorme no fundo do ser humano [...] nós queríamos uma verdadeira, bela viagem - a Viagem !- com tudo que uma experiênica digna deste nome comporta como imprevisto, penas e alegrias. » (PNM,28)

Odette de Puigaudeau, francesa, nascida em Saint-Nazaire, na Bretagne,  pintora, ilustradora científica do Collège deFrance, e do Musée  d´Histoire Naturelle foi igualmente chefe de atelier  de Lavin. Mas, apaixonada pelo mar, obtém um brevê de navegação e se engaja muitas vezes como marinheira em viagens em alto mar.(PNM,14-15) Marion Sénones[3] francesa igualmente, nascida em Neuilly sur Seine, pintora, jornalista, conferencista, chamava-se de fato Marcelle Borne Kreutzberger. 

A escrita de Odette é um poderoso caudal de imagens e cores, enfeitiçadora mesmo, com humor e muito senso crítico.

Aparentemente Odette teve que insistir para convencer Marion – um pouco reticente - de tentar esta aventura. Sua lógica era implacável  :

«No início, Marion Sénones queixou-se de eu ter, mais uma vez, a levado em uma dessas viagens que me são tão preciosas pois, sendo muito longas dão a impressão de levar muito longe. Mas ela teve que reconhecer que era lógico embarcar em um ´dundee´ pescador de lagostas mauritano para ir à Mauritânia. Ela tornou-se novamente encantadora, meditava a respeito de romances marítimos e ganhava o corações dos marinheiros fazendo seus retratos. » (PNM, 31 »(4)

 Odette e Marion partem para esta viagem, a primeira em torno de seus 40 anos e a segunda próxima aos cincoenta. No dia 23 de novembro de 1933 as duas mulheres embarcavam sobre um lagosteiro com destino às costas da Mauritânia, onde, chegando, descobrem

«A duzentos quilômetros ao norte, Port Étienne ; à quinhentos quilômetros au sul, , São Luís de Senegal. Nada além de ilhas próprias aos náufragos, areias rosadas, eufórbias cinza-violeta e o charme desolado de uma natureza que, não dando nada ao homem, não recebe nada também.» (PNM,53 )

odette et marion

A busca da liberdade das correntes do gênero é um dos motivos de Odette. Ela confia a seu editor: : « [...] eu amava esta vida selvagem onde não se sente nem homem nem mulher, mas um ser humano que fica em pé sobre suas próprias pernas.  » (PNM,15)  .

A propósito de sua chegada nas terras da Mauritânia, ela comenta  :

« As construções brancas, bordejadas de azul davam a impressão , pelo seu agrupamento e unidade, de ser toda uma vila [...] Além, era a imensa liberdade, a aventura, a atração de um horizonte fluido!» (PNM, 37.:

Viajantes de primeira hora , Odette e Marion vivem o desejo de movimento, aquele se não se interessa pela chegada a alguma parte, mas ao caminhar de todos os dias, ao conhecimento do outro, ao encontro da diversidade, à descoberta de traços inesperados, de paisagens que ganham vida sob seus olhos.

 O objetivo da viagem é claramente enunciado :

«  Desembarcando na Mauritânia, Marion e eu não tínhamos nenhuma ideia preconcebida. Não as temos de toda forma, ainda . A savana nos fascinou imediatamente . No segredo de suas dunas e de suas montanhas, sob suas tendas hospitaleiras e suas palhoças às vezes hostis, repousava o verdadeiro objetivo de nossa viagem. Que não se busque outro objetivo a esta narrativa senão o de evocar a simples poesia, a grandeza sóbria do Saara e o charme muitas vezes amargo de nossas longas andanças incertas. » (PNM,23)

Odette explica que elas fizeram caminhos em dorso de camelo, a pé « [...]  10 000 km de itinerários saarianos em nossas duas viagens, 1934 e 1936-1938 » (SD, 221)

De início, tudo se apresenta sob um ângulo favorável:

« Como era fácil finalmente, uma viagem ao Saara ! Era, portanto, um maravilhoso passeio ? »(PNM, 151) »

A realidade, entretanto, não se faz esperar :

«  Muitas vezes a pé, sem glória, nossos animais nervosos pelos gritos da multidão,, andávamos lado a lado, Marion e eu, silenciosas, pois tinhámos os mesmos sentimentos opressivos em nossos corações: não somos mais que duas estrangeiras avançando , com desconhecidos, por uma estrada incerta. » (PNM, 170)

Mesmo os momentos de desânimoe não as desencorajavam, entretanto. Elas aprendiam a paciência, elas observavam, escrutavam, não assimiláveis porém, para sempre estrangeiras, a Outra, nem sequer mulheres, pois as mulheres são as do país, que procriam, trabalham, são veladas , tão presentes, tão ocultas.

O estranho, aqui, torna-se o maravilhoso, uma natureza avara de seus recursos, explêndida em suas cores e seus horizontes. Para seus olhares, a paisagem era de toda beleza. Odette narras :

« Era nossa primeira etapa noturna, a primeira vez que o Saara nos mostrava sua face das grandes noites de lua. Estávamos maravilhadas. Pela paisagem translúcida, os camelos andavam sem ruído sobre os longos capins prateado. Dunas luminosas emergiam de grotas sombrias e se dissolviam à aproximação, para surgir de novo, mais longe. Não havia um sopro, nem um murmúrio, nenhuma sensação de calor ou de frio, nada senão a impressão angustiante de avançar em um mundo encantado entre fosforescentes miragens. » (PNM,170)

 

As imagens são nítidas. Sinto-me levada a um universo paralelo. Eu, leitora, partilho esta viagem, esta não é a magia da leitura? Les images sont saisissantes. Je me sens happée dans un  univers parallèle. Moi, lecteure, je partage leur voyage, n´est ce pas cela la magie de la littérature ?

 nomadismo

Os nômades encontrados por Odette e sua companheira Marion dão-lhes a ocasião de ver um modo de vida despojado de todo conforto, de toda tentativa de repouso, de lazer, uma luta sem trégua para a sobrevivência, envolto, entretanto, pelo gosto da liberdade, pela ausência de raízes. Elas se descobrem um nomadismo da alma que arranca de seu âmago as identidades fictícias, que colonizam os espíritos: é a recusa da fixação em lugares pré-determinados.

Para Rosi Braidotti,

« A característica essencial do sujeito nômade é que ele é pós-identitário: nômade é [...]um processo através do qual desenhamos o mapa das transformações múltiplas e dos múltiplos modos de pertencimento, cada um dependendo do lugar onde nos encontramos e da maneiras como crescemos. Em resumo, devemos então traçar as cartografias alternativas dos sujeitos não unitários que somos, a fim de poder nos desfazer da ideia que existem sujeitos completamente unitários que pertencem a um só lugar. » (Braidotti, web)

Elas não pertencem mais a seu lugar de nascimento, fazem-se areia e deserto e este caminhar as constrói incessantemente enquanto sujeitos, sujeitos em movimento.

Sujeitos nômades de fato, Odette et Marion vivem sua própria etnografia identitária, pois suas viagens são também um processo de construção de si. Seu desejo de nomadismo, com efeito, é uma quebra da fixidez identitária francesa e colonial. Elas compreenderam que não serão mais as mesmas e se instalam em um estado de expectativa, não voltada para o futuro, mas para o presente: as transformações quotidianas, de uma lentidão e de um absoluto que não permite senão o movimento. Ela diz :

«  A ingênua precisão de suas narrativas evocam o charme da vida nômade que se divide com simplicidade em dias de pasto e em dias de marcha, em dias em que se bebe e em dias sem água, esta vida humilde e silenciosa, plena de longos sonhos, que se movia lentamente através de paisagens infinitas e vazias, fora dos muros da cidade. » (SD,65 »

Na manhã de 11 de janeiro, vestidas de tecidos mouros, elas partiram :

«  [...] era a transumância que nós haviamos escolhido, com suas dificuldades que permitem o aprendizado com em um tempo cuja lentidão permite ver e escutar » (PNM, 63)

Suas vidas no Saara correspondem, assim à perspectiva do nomadismo para Deleuze, que considera a desterritorialização como a base da relação do nômade à terra. É, com efeito, a terra que se desterritorializa para que o nômade encontre nela seu território . A terra torna-se simplesmente solo ou suporte. (DELEUZE, 1997: 48).

As areias são seu território, que se torna um não-lugar, um deambular:

« Através das areias que deslizam sob os pés dos camelos, entramos sem ruído no reino do vazio e do silêncio. Aprofundamos aos poucos na espessura do silêncio. Um silêncio que não era uma parada, uma espera, uma passagem, mas uma ordem essencial, definitiva, a soma de múltiplos silêncios estabelecidos em largos círculos concêntricos, de horizonte em horizonte, sobre uma imensidão vazia. Depois deste silêncio e deste vazion, pressentia-se outros vazios e outros silêncios. Era como se não devesse nunca acabar. Era toda uma nova forma de existência que começava em uma nova forma de universo. »(SD,107)

A vida nômade para Odette era uma questão maior. Ela a deseja, o nomadismo para ela era a imagem e o símbolo da independência e da liberdade. O silêncio e as areias não a deixam mais, traçados sempre à descobrir e habitar, que as libera dos limites de uma identidade feminina, francesa, colonial, lesbiana e lhes promete a liberdade do caminhar nômade:

« Nesta natureza silente, de contidas nuances, com formas atenuadas pela poeira de luz e de areia, no segredo desta savana onde caminha despercebido, silencioso, desconhecido, nada o distrai dele mesmo. Nada que atinja seu pensamento, o estimule, nada que o oriente ou conduza. Ele também é livre. Livre de seguir fielmente seu próprio ritmo, fugindo das trilhas imprecisas sob as árvores prateadas, na direção das clareiras de areia e dos promontórios no cimo dos vales. Pode ser, segundo seu desejo sonho ou busca, ardente ou vagarosa. Nutre de si próprio, encontra nele mesmo seus nutrientes e seus obstáculos. Os dias são longos e uniformes. Tem todo o tempo de descrever seus meandros e arabescos.  » (T, 89)

O que elas almejavam era viver como e com os nômades, mas sem por isso identiricar-se a eles, pois seu percurso é uma trilha de construção de subjetividade e não de fusão com outrem.

 

Viajantes intrépidas

 «[...] nossas finanças não nos permitiam montar uma caravana prestigiosa com servidores e um as vantagens de um camping moderno. » (PNM,28)

Autênticas viajantes, sua bagagem era mínima para um tão longo périplo.  « Quatro montarias e um animal de carga para duas europeias, dois auxiliares e um guia é uma fórmula modesta mas satisfatória. [...]  Isto é secundário, o essencial em uma viajem é a partida ! » (PNM,172)

        Não, não havia jipe 4x4 ! Somente os camelos, animais insubmissos e tão maltratados! Seguindo as caravanas do sal, os traços de um comércio utilizando escravos, animais, mulheres e homens livres, mas presos à troca, ao dinheiro, ao lucro, estas mulheres intrépidas se aventuram nos lugares em que mesmo os homens ocidentais transitam apenas em corpos de milícia móveis ou em grupos . ((SD,191- 192).

A exsaltação da viagem é descrita por r Odette :

« [...]( a savana) nos esperava, segura de sua prêsa, com seu charme sutil feito de longa perseverança , da rude alegria motivada pelo risco e por todas as promessas incertas das coisas desconhecidas. [...](PNM, 89-90)

        A aventura, finalmente, não é senão a aventura, o medo dos perigos, dos bandidos não a ofusca e a incerteza parece divertí-las :

« Paris estava longe ! A aventura que haviamos desejado nos cingia agora ![...] Depois, veríamos[...] No momento, estávamos lá, com nossos pequenos revolveres e nossa grande confiança, no meio do Ouled-Delim, facção mais ou menos submissa a uma grande tribo dissidente. [...] A lealdade das tribos do Norte é uma questão atmosférica. A chuva nas pastagnes do Rio significa dissidência; no Sul, a submissão. Este ano, o Rio estava seco. Por quanto tempo? » (PNM,47)

Os franceses tentavam estabelecer uma paz difícil com mão de ferro que exigia a submissão; as tribos lutavam, se destruiam, os bandidos atacavam em toda parte, as expedições de ataque conseguiam botins em bens e homens, escravizados imediatamente. Ela explica :

" Os europeus dizem que sua parte mede 850 000 km carrés.[...]Esta savana, o Trab -el Bedaine, que é toda a Mauritânia, os franceses a chamam de " Natureza" e a "penetram" .[...] A "Natureza", dividida em oito círculos civil ou militar é governada por dezoite postos franceses ligados ao Senegal por meio de pedaços de estradas, cada vez mais percorridas por carros ou [...] por comboios de caminhões [...] E as tendas montadas sobre esta Natureza obedecem, pagam impostos e defendem seus segredos. . »(PNM, 62-63)

Odette e Marion surpreenderão mouros, espanhóis, franceses, duas mulheres que vão penetrar a Natureza, que acompanham as caravanas, comiam o mesmo menu quotidiano dos nativos, sofriam as mesmas penas, dormiam sob as estrelas ou sob uma tenda qualquer.

« Os europeus que nos esperavam diante da porta monumental sob o crescente nos perguntavam com candura, quando a caravana estaria pronta, onde estavam nossas bagagens, nossos baús e nossas camas dobráveis e ficaram muito espantados de não precisar nos socorrer, apenas nos dar cigarros, bebidas frescas e sua cordialidade . » (PNM, 92)

Sua nacionalidade francesa, porém se impõe a elas no olhar dos mouros  : mulheres que viajam sem homens, vestidas como homens , de calça comprida, que se dirigem aos homens sem problemas, são francesas, não mulheres.

Isto é um exemplo concreto de que não é o sexo que define o gênero: são as práticas sociais que determinam os lugares de fala e de autoridade, pois enquanto francesas elas se encontram em pé de igualdade com os homens mouros.

Neste caso não há sexo nem gênero: as duas mulheres são francesas e é sua nacionalidade que as identifica, nada mais. Eles buscam, entretanto, uma razão para sua presença no local e para satisfazer a curiosidade e a inquietação dos mouros em relação à sua "diferença" se auto intitulam "repórteres". (PNM,21) Seus compatriotas as consideram como tal , acolhendo-as e acompanhando-as, se necessário.

Em sua segunda viagem entre   1937-38 elas tiveram o apoio do governo francês, encarregadas de uma missão etnográfica e de pesquisa pré-histórica para o Museu Nacional de Estudos Colonias e o ministério da Educação nacional e das colônias. O caminho a percorrer passava pelo Marrocos ( ponto de partida) e o Sudão. Os militares as protegeriam e as conduziriama Tiznit, na diração do Sul. Odette narra que o comboio de repente

« [...] parou diante de um cartaz: :´Anja. Zona perigosa´. Verificaram nossos passes e em seguida a sentinela marroquina, deixando cair a corrente que barrava a estrada, abriu-nos no mesmo gesto todas as longas pistas da aventuras  » (SD,16)

Entretanto, apesar da paixão pela viagem e pelo deserto, elas tem vários problemas com os serviços pagos que lhes eram prestados :

" Conhecemos, à exaustão, as ordens não executadas, as bagagens que caíam, as selas que se viravam, os camelos perdidos [...]porque os guias querem dormir depois de uma noite de conversas, a partida com o sol já alto, a esperteza e a obstinação dos mendigos, etc. Isto durou uns mil quilômetros, até Kiffe » (PNM,89-90)

Às vezes os costumes nativos são difíceis de partilhar.

«.Depois do chá, trouxeram em uma recipiente sujo o fígado, os rins e as patas, depois, negro de cinza e de areia o méchoui , em pedaços, não sobre uma travessa de prata, mas sobre um lebda, tapete de couro e de pele que se coloca entre a sela e o dorso do camelo. Cada um devorava aquilo o mais rápido possível [...]Era um espetáculo perturbado »(PNM,85)

As belas imagens dos guerreiros cavalgando as areias caem assim na dura realidade.

« Marione eu olhávamoss Mohammed-Fall com o dessespero das ilusões perdidas. Nós o víamos ainda conduzindo a caravana, ou prosternado com seus companheiros no alto de alguma duna para os piedosos Salam. Ontem à noite, à luz da lua nascente, ele andava adiante com uma luz encoberta. Agora, tendo comido seu arroz, ele raspava com uma velha faca a gordura de suas mãos para passá-la nos pés. »(PNM,85)

mulheres

Em seus livros, Odette fala com frequência sobre as mulheres : ela nota seu papel social, às vezes apenas para indicar sua presença em uma descrição, mas parece muito chocada com sua condição e seu destino.

«  E eu imaginava também que, depois da idade em que são excisadas até aquela em que, com uma máscara de fuligem defendiam suas crianças contra o diabo, passando pelo período em que são forçadas a engordar, em seguida casadas com velhos ricos, com frequência preocupados de curar uma doença secreta pelo contato de uma jovem virgem - em suma, desde seu nascimento até o dia em que Maomé lhes recusa o acesso ao paraíso, - o destino das Beidani não é de forma alguma invejável, apesar de sua inatividade, da disposição que tem sobre seus bens pessoais, da monogamia que obtiveram, de sua influência nos negócios da tribo e de todos os privilégios de que são cercadas. » (PNM, 165)

Mas eram atrizes completas e criavam cenas teatrais cantadas e dançadas  (PNM,158-159) ; tocavam música com seus tam tams e outros instrumentos, eram as s griottes , as poetas que narram a história e as sagas de seus povos.

«  No centro, a griotte Barka cantava, a cabeça jogada para trás, a boca tensa sob o véu que ela mantinha cobrindo até os olhos c[...] ela clamava como se quisesse, du fundo desta tenda, excitar a coragem dos homens até os confins do deserto. Entre as estrofes e os refrões, suas pequenas mãos faziam vibrar as vinte e duas cordas da Ardine, harpa primitiva vinda antigamente de longíquas paragens esquecidas, com a música, as tradições, o próprio povo, pelas pistas do Egito .  » (PNM,87)

        Seu olhar etnográfico é um tanto irônico e neste caso, desvenda os complicados laços familiares que resultam sempre desfavoráveis para as mulheres  :

« [...] Mohammed não poderia ter ficado lá; ele não podia aparecer com a sua (mulher) diante de seu pai. Ainda mais, se algum desavisado lhe falasse de sua sogra ou de sua própria esposa, a educação exitia que ele se retirasse , cobrindo a face .[...] Nestas condições a melhor solução era de trancar as mulheres, causa de tantos problemas em suas tendas. ( PNM, 84)

Os homens assim criam as interdições em relação às mulheres e são elas que sofrem com isto. O que não escapa ao olhar aguçado de Odette. Sem julgar claramente, ela deixa entrever seu pensamento, por meio da ironia. Da mesma forma, são obrigadas a se cobrir parcial ou inteiramente para evitar a concupiscência dos olhares masculinos. Esta situação, ao que parece não mudou muito em nossos dias :

" A sociedade marroquina patriarcal se distingue pela dicotomia dos papéis, pela segregação sexual e pelo peso das tradições que continuam a manter as mulheres em uma condição menor, sob a dominação e exploração masculina, sem possibilidade de se expressar livremente. Elas recorrem com frequência a meios sutis para se comunicar em espaços que lhes são reservados, espaços de abandono , meios para exprimir suas frustações. A dança é um destes meios sutis do qual se servem as mulheres marroquinas para se espressar e contornar o poder masculino. Um espaço de liberdade através do qual traduzem uma vivência particular dos corpos, de expressão corporal e sua relação com os homens. (Deniot , 2002:web)

Odette nota também, com espanto, a obesidade das mulheres : elas são numerosas, jovens casadoiras. Odette e Marion não escondem sua surpresa com esta característica que aflige um número considerável de mulhers, principalmente nas camadas superiores da sociedade, mas descobrem rapidamente as causas disto.

« Melhor que todas as descrições, estas cifras dão uma idéia da beleza de Toutou : do tamanho de uma criança de onze anos, ela pesava em torno de 80 quilos. Um homem, sem dúvida algum velho chefe vem rico, poderia se orgulhar de casar com ela, pois a obesidade de uma mulher é o signo da fortuna do marido. [...] Bezerro gordo do deserto, holocausto à coqueteria feminina e à vaidade dos homens.  »(PNM,138)

Um dia, Odette se vê diante da realidade desconhecida à época: a alimentação forçada das mulheres.

«  Eu pensava, confusamente, ao imprevisto da existência e à indiscutível originalidade de minha situação, repousando sobre minha trouxa de roupas sujas [...] quando um berro de dor me tirou de meus sonhos. Uma voz de homem, brigando, se alternava com uma voz de criança, que balbuciava palavras cortadas pelo choro. »(PNM,139)

Odette estava só, Marion ficara alhures, doente. Ela sai então de sua tenda, decidida a verificar o que estava se passando, e mesmo disposta a intervir para defender a criança dos maus tratos, o que era no mínimo arriscado, sozinha nesta região.

«E o que vi me encheu de horror. Mantida por uma velha serva, a infortunada Toutou se debatia sobre um ´faro´ em desordem. O que fazia este homem ajoelhado a seus pés?... Arrastando-me para o lado da tenda, percebi que ele apertava os artelhos da pobrezinha entre dois pedaços de pau. [...]Cada vez que a vítima abria a boca para protestar, o homem [...] pegava um grande recipiente e a fazia a pobre Toutou beber a força. Ela bebia, chorava , cerrava os dentes, seu torturador recomeçava a bater nela, a esmagar seus pés e mãos [...] o que fazer? Pedir socorro? [...] Mas quando me viu surgir em plena luz, Meimoun , não se perturbou e deu um grande sorriso de homem surpreendido no cumprimento de seu dever.  » (PNM,140)

É o homem, assim, que se ocupa da alimentação forçada da menina, para os homens. E ele acha que isto é natural.

« Ele se ocupava também de pentea-la, de raspar-lhe todo o corpo, tirar-lhe os parasitas, colocar-lhe o véu e as jóias. Era Meimoun que havia ajudado o ´mâllen´ a arrancar-lhe os caninos todos novos, para permitir aos incisivos de se separar agradavelmente, enquanto ela era apenas uma menininha feliz e nua, esbelta como uma jovem gazela. Ele ainda que, havia afiado a faca com a qual o médico do acampamento a havia excisado, doze dias depois de seu nascimento.[...] Não podia de modo algum pedir socorro  ! [...] E adormeci, enfim pensando em todas estas meninas dos acampamentos ricos que são cevadas como Toutou, que sofrem para ser belas e que, às vêzes, disto morrem.  »(PNM,141)

Quando se fala das violências feitas às mulheres , às jovens e às meninas, grita-se: "É cultural!" Intocável, mesmo se isto fere frontalmente os direitos humanos, direito à liberdade, direito de decidir sobre seu corpo e sua aparência, direito de escolher sua vida e seu destino. Finalmente, são apenas mulheres, não é?

É por estas e por outras que insistimos sobre a denominação 'direitos humanos das mulheres' pois elas sofrem todos os ultrajes e torturas em seus corpos, cuja representação é calcada no sexo biológico. O que permanece evidente é que todo este arsenal de ações para manipular e dominar os corpos das mulheres foi criado por e para os homens.

Atualmente, estas práticas ainda são correntes, atingindo milhões de mulheres e seus corpos, sempre em torno da sexualidade, como por exemplo os casamentos arranjados, cuja denominação esconde a venda das jovens e meninas. Na Mauritânia ainda hoje a cevagem das mulheres continua a existir e em outros países persistem as práticas de mutilação /venda/ assassinato /abandono de meninas, etc. ( ver mulheres-girafa, infibulação, excisão, burkas e niqabs, etc) .[i]

olhar etnográfico

O caminhar de Odette et Marion permite-lhes conhecer a diversidade de costumes dos nativos, cuja hospitalidade é conhecida, segundo as tribos, a riqueza, o lugar na sociedade; por outro lado, Odette critica a ' civilização' , em suas narrativas.

«Mas o mundo é em movimento em torno deste deserto imenso e permeável. Baseada em máquinas e dinheiro, armada de ambições materiais, de violência e orgulho, obstinada em tudo destruir fora de seu âmbito, uma civilização que se enganou e que disto tem consciência , mas não consegue reduzir sua corrida desesperada [...] Ele, o deserto, não tem outra defesa senão a pobreza. Quanto tempo aguentará? »(T, 90)  

Estas duas mulheres realizam um trabalho excepcional de etnografia, de história, de arqueologia, com muita sensibilidade no olhar aguçado com que observavam os costumes, as pessoas, a natureza, os animais. Enquanto é recente a atenção dada às mulheres, com exceção da sexualidade e do casamento, elas não hesitam a nos mostrar suas ações e suas práticas, em contato direto com elas. Elas investigam e experimentam um grande prazer na convivência com os nativos. Artista, Marion desenha.

os desenhos de Marions (clique para abrir)

«  Mas nós não somos eremitas. Amamos as pessoas, os seus sorrisos, suas narrativas, suas canções, seus trabalhos, a graça velada das mulheres, a doçura séria das crianças e as lições de paciência e de coragem que nos dão os homens. (T 90)

Odette descreve as atividades das servas que carregam a água, as que servem nos campos, na casa, que vão vender produtos no mercado. A descrição que faz é cativante :

« “ Servas negras, filhas de antigos mestres da Pequena Floresta, risonhas e conversadeiras, tinindo seus braceletes, anéis, esferas e âmbar e de conchas brancas, perfumadas de cravo, de pimenta e de almíscar ; estátuas de ébano vivas, quentes e cheirosas, a cabeça ereta sob os fardos, o peito orgulhoso, a cintura flexível e as ancas modeladas nas dobras do ´pagne´, elas passam nas ruas do ´qsar´ com um caminhar requebrado e enobrecem as mais humildes tarefas com seus gestos seguros e harmoniosos “(T,57) »(T,57)

O destino das servas parece ser bem melhor que das pobres meninas ricas e obesas, cevadas de leite e de infelicidade. Entretanto, no Tagan, região da Mauritânia, elas encontram a diversidade nas relações entre mulheres e homens, pois certas tribos nômades tinham outro costumes:

«[...]  cercadas de atenções, elas saem com o rosto descoberto; exercem sua influência nos negócios da tribo e conheci algumas velhas viúvas muito temidas que eram chefes de acampamento na ausência ou depois da morte de seus maridos. Os longos êxodos através países incertos ensinaram-lhes a não tremer .[...] diante de perigos, a tribo é uma e homens e mulheres todos devem combater. » (T, 171)

De fato, é isto mesmo: as generalidades não fazem senão mascarar o múltiplo e a diversidade, como se pode encontrar em toda parte, tanto no passado quanto no futuro. Na tribo em questão, Odette observa que:

« O Islã , aliás muito pouco feminista, concede à mãe direitos e uma autoridade que são uma sobrevivência do antigo regime matriarcal dos Berberes e a preocupação de evitar os perigos do nomadismo foram reforçados ainda em país mouro: monogamia, liberdade às mulheres de escolher seu marido, de dispor de seus bens pessoais, de exigir, se julgar necessário, um divórcio que lhe deixa a guarda das crianças até sua puberdade. »(T,170)

As mulheres eram artesãs, por exemplo, trabalhavam o couro que por elas era curtido e transformado em selas, sacos, sandálias, etc. (T. 158) Elas colhiam igualmente o índigo para tingir as vestimentas, o henê para avermelhar suas mãos e seus pés. (T.73) Outra de suas atividades era tocar música, tocar tam tam, cantar, melodias sempre um pouco melancólicas. Odette e Marion se encantam com os espetáculos que tantas vezes foram realizados para elas. Quase sempre que chegam a algum lugar, eram recebidas por uma festa e suas descrições são cativantes.

« As lindas tocadoras de músicas mouras estão sentadas à oriental, pernas dobradas sobre um estado vermelho. [...]Elas permanecem imóveis e graves, conscientes de ser o centro e o charme desta festa. [...]Cada uma delas tomou seu instrumento, ardin, apoiando o cabo em seu ombro , apertando as chaves de ébano. [...] A mais jovem das ´griottes´ começa a cantar, a cabeça virada para trás, seu véu puxado sobre a boca. Ela começou por um longo clamor em modulações menores, sincopadas, que caíam pouco a pouco até um murmúrio melancólico e terno. Depois, sua voz cresce de novo, aguda, rouca, selvagem e de repente amolece docemente, em imprevistos graves. Suas companheiras lhe respondem, unido seus canto ao dela. » (T., 68-69)

Em sua segunda viagem elas fazem parte da caravana que faz o comérico do sal e tem a oportunidade de viver os azares da viagem no dorso de camelos, com 48 graus à sombra. O sal fazia fortunas para uns e era um trabalho infernal para outros, os escravos. (SD, 157) Mergulhados na salmoura até os joelhos, eles penavam durante anos. (PNM, 153) Podiam tirar um pequeno lucro, mas a maior parte ia a seus senhores. Os franceses aboliram a venda e compra de pessoas, mas aceitaram a condição de "servidor por nascimento" (PNM41) que se torna livre só na quinta geração.

É evidente que os maus trautos aos animais é comum a todos os povos, mas Odette e Marion ficavam chocadas de ver como os camelos, o único meio de transporte de pessoas e mercadorias eram deixados sem nenhum cuidado, com crateras purulentas sobre suas bossas; Carregavam centenas de quilos de sal que se esfregava sobre suas peles feridas. E eram abandonados ao longo do caminho quando estavam velhos ou doentes, sobre as areias ardentes do deserto.

« Um outro (camelo) não apareceu na pausa da noite, um velho camelo exausto que deve estar morrendo [...]Nós o vimos diminuir o passo e depois parar, a respiração entrecortada. O espaço se tornava cada vez mais longo entre ele e a última caravana. Estava só no meio da planície... Elle blaterava fracamente, o pescoço estendido na direção daqueles que se afastavam [...] A última vez em que nos voltamos para vê-lo, estava ajoelhado sobre a areia, resignado como tudo que participa à vida no Sahara. » (SD,139)

O balanço desta segunda viagem é traçado por Odette: 118 sítios inéditos da pré- história visitados, dos quais 98 com instrumentos líticos e 20 sítios com gravuras e pinturas rupestres, escavações efetuadas pela primeira vez em Teghazza, coleções de objetos pré-históricos e modernos, fósseis, insetos, plantas foram levados ao Musée de l´Homme , 2000 fotografias e uma abundante documentação sobre os costumes, arte, trabalhos, lendas, superstições, fábulas dos nômades saarianos. (SD,221) Ela termina o « Le sel du désert »assim :

« Trouxemos um felino (de volta à França) mas isto é um negócio privado. Somos três agora a remoer nossas lembranças, a lamentar, a esperar. É preciso voltar. Quando voltar? Como voltar? Nós voltaremos... Em breve! » (SD,222)

Em 1960, (PNM, 17) Odette e Marion se instalam no Marrocos, sempre intrépidas, o peso dos anos curvando um pouco suas silhuetas. Realizam um velho sonho de sua primeira viagem?

« E , no flanco de uma duna perfumada de acácias, murmurando preces e arrulhando pombos, diante destas pequenas tendas de discípulos que não abrigavam senão uma esteira de palha e um cofre de livros, eu sonhava de não ir adiante - pela primeira vez depois que um barco nos desembarcou na costa da África - ficar lá e viver docemente, sem desejo e sem pressa. t» (PNM,105)

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Bibliografia:

Odette de Puigadeau. 1993. Tagant, au cœur du pays maure- 1936-1938. Phébus libretto, France abréviation dans le texte (T.)

Odette de Puigadeau. 2001. Le sel Du désert, Phébus libretto, France abréviation dans le texte (SD.)

Odette de Puigadeau. 1992. Pieds nus à travers la Mauritanie , Phébus libretto, France abréviation dans le texte (PNM.)

 

références

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs, V. 5. São Paulo-SP: Editora 34, 1997.

____________. Nietzsche e a filosofia. Portugal: Brochura, 2001

BRAIDOTTI, Rosi. 1994.  Nomadic Subjects. Embodiment  and sexual difference in contemporay feminist theory, New York : Columbia  University Press.

DENIOT J., Dussuet A., Dutheil C., Loiseau D. (dir) web Femmes, identités plurielles, Paris,L’Harmattan « Les Marocaines et la danse : un espace d'expression. »p. 121-145, 2002.

http://hal-confremo.archives-ouvertes.fr/docs/00/42/69/23/PDF/

Article_Femmes_identites_plurielles_S.Monqid.pdf

MANIER, Bénédicte. Quand les femmes auront disparu, l´élimination des filles en Inde et en Inde et en Asie, La découverte/poche,Paris


 

[2] A propósito do lesbianismo e de suas representações, ver os livros da historiadora Marie-Jo Bonnet. Les Relations amoureuses entre les femmes du XVIe au XXe siècle en 1995 (Odile Jacob, reeditado em formato poche en 2001). Un choix sans équivoque, Paris, chez Denoël-Gonthier, 1981. Les Deux Amies : essai sur le couple de femmes dans l'art, Paris, éditions Blanche, 2000. (ISBN 2-911621-94-8) Qu'est-ce qu'une femme désire quand elle désire une femme ?, Odile Jacob, 2004.

[3]ver biografias e alguns exemplos de seus trabalhos em

 http://www.revues-plurielles.org/_uploads/pdf/19/31/2.une%20peintre%20marion%20senones.pdf

(4) As abreviações e páginas entre parênteses referem-se aos livros citados. Ver bibliografia.