Ninguém
tania navarro swain
Ela era quieta. E lindinha, assim como se imagina uma menina pequena, cabelos
compridos, um espetinho de magra, olhos atentos. Olhava. Via tudo. Parecia avaliar.
Não era timidez, apenas cautela. Quem sabe o que pode acontecer. Roupas
cansadas, sandálias, pés empoeirados. Fora isto, limpa.
Estendeu a mão para a cachorra, acariciou os filhotes,
sorriu. Lindo sorriso, cheio de dentes fortes e brancos. Parecia ter boa saúde.
- Como é seu nome?
- Ninguém.
Que nome é este? Ulisses já o tinha usado para enganar o ciclope, será que ela sabia disto?
- De onde você veio?
- Não sei. Do nada, quem sabe.
Não quer dizer.
Ninguém veio do nada.
Se alguém vier procurá-la, sem faltar com a verdade, Ninguém passou por aqui, direi. De toda maneira, minha casa é bem isolada, acho que ela fugiu de alguma coisa violenta, de algo impossível de suportar. Para chegar neste lugarzinho. Sozinha, pobre criança.
Quantos anos teria? Difícil dizer. Oito, dez?
- Qual sua idade?
- Não sei.
Não quer dizer nada, esta Ninguém. Boa forma de se esconder, ficando visível, mas escondida no silencio. Informações são inúteis e perigosas, parecia dizer, os olhos vagando, as mãos juntas, é uma criança, isto é evidente.
Vou abrigá-la.
- Venha, deve estar com fome, cansada, tem uma caminha para você, dentro de casa.
Morada simples, uma varanda aconchegante, muitas janelas, a luz
se derramava nos cômodos com satisfação, o vento se divertia
passando de uma janela para outra. O jardim farfalhava de tanta beleza.
- Aqui não se come carne, explico. Tem muitas frutas e verduras, o pão
ainda está quentinho.
De novo o sorriso. Que lindo.
- Vamos olhar o que já está pronto, se gostar faço um prato.
- Gosto de tudo, diz ela. Sobretudo de comida.
Rio com gosto.
Que bom. Não vai me atrapalhar. Estendi a mão,
ela nem hesitou em pegá-la. Devo ter uma boa aura, de gente que não
machuca.
Dentro estava fresco, fora deste sol que resseca a pele, as plantas, que faz
reduzir as águas dos poços, dos rios.
Minha casa. Minhas plantinhas, meus gatos, meus cachorros.
Uma menina quieta vai temperar minhas tardes, orvalhar meus sonhos, tão bom.
Uma menina de olhos grandes e inquisidores...
- Sabe ler e escrever?
- Sim.
- Quem te ensinou?
- Aprendi sozinha.
Inteligência, sorriso, calma, quieta. Já disse quieta. Mas é assim.
- Quer morar comigo?
- Sim
Sem hesitar, devem ser meus bons fluidos, ela vê além.
Sinto- me lisonjeada.
- Sou escritora, preciso de uma secretária.
- Posso ser sua secretária, também quero escrever.
- Sobre o quê?
- Sobre Ninguém.
Bateram à porta.
- Vá para dentro.
Abro a porta. Uma mulher, olha-me com candura. Seria um disfarce?
- Bom dia, viu passar alguém por aqui.
- Ninguém. Respondo de forma monossilábica. E verdadeira.
- Posso entrar?
- Não, estou ocupada.
- Bom, então boa tarde, passarei de novo por aqui outra hora.
Ninguém não se mexeu, não fez nenhum ruído, sorriso perdido, olhos emaciados, mãos inquietas. Viera atrás dela. Mas não era tempo.
- Não se preocupe, aqui está segura, comigo. Tenho um revólver, uma espingarda, vou ensiná-la a atirar.
- Eu já sei, posso até defender você.
Sorriu finalmente.
Ler, escrever, atirar, Ninguém tão pequeno poderia ser tão versátil. Mas ela estava aqui, na minha frente, em silencio. Uma alma antiga,
- Venha ver seu quarto, tem banheiro.
Parecia atônita, banheiro no quarto? Quarto? Sempre teria
tido apenas um pedaço de chão? O que teriam feito com ela? Como
pode escapar? Nunca saberei, suponho.
Sua fala é entrecortada, economiza as palavras no baú de seu silencio.
As palavras revelam, custam caro, abrem ou fecham portas, escancaram segredos.
- Ninguém, posso chamá-la de Nin?
- Pode, pois não tenho nome. Só Ninguém.
- Quem veio aqui?
Silencio.
- Venha descansar, tem lençóis limpos, cobertor, vou encontrar outras roupas para você trocar, depois de um bom banho.
Sorriso.
- Nin, vou deixá-la tranquila, aproveite um descanso, depois iremos jantar.
Ao fechar a porta, observei que girava a maçaneta, devia ter ficado trancada em algum lugar. Como teria vindo até aqui? É longe de tudo, estrada ruim, bosques espessos sussurrando poemas ou maldições.
Corajosa.
Tudo nela me agrada, vamos escrever juntas, ela, a história de Ninguém, eu a história de Nin.
Mas isto fica para depois.
Não sei nada sobre Nin, Ninguém ou sabe ou esqueceu ou não quer nunca falar. Não sei nada. Nem quero saber. Estou feliz em tê-la aqui e se um dia quiser contar, aguardo.
Ela corre com os cachorros, afaga os pequeninos, abraça gatos que a olham desconfiados e ariscos, mas logo se deixam acariciar. Coisa rara com gatos.
Ela ri, seu riso é como rocio na terra seca, não inunda, apenas aflora.
Lá se vai pelo bosque, identificando, colhendo ervas medicinais aprendendo. Nin é uma aprendiz nata, um poço de sabedoria a ser revelado, aos poucos, balde por balde, concha por concha.
Agora conheço seus passos, mais lentos na tristeza, saltitantes no sorriso. Nin. Ninguém desconfia, Ninguém sabe, ela encontrou seu nicho, seu abrigo em meu olhar.
- Vou escrever, Nin, uma história que já comecei, senão escreveria sobre Ninguém.
Séria, ela contempla as árvores pela janela, suspira, não de mágoa, mas de alívio. Seu quarto está impecável, parece que ninguém dormiu ali. Ninguém é assim: arruma, faz coisas na casa sem que se peça, de repente minha bagunça vira uma casa ordenada. Fico pasma. Quando fez isto?
Volto a escrever.
- Nin, vamos comprar roupas, sapatos para você, de inverno, de verão?
- Não quero sair, pode comprar sem mim, nem precisa gastar pois Ninguém já tem tudo. Faz um gesto abrangente, a casa, os animais...eu.
Fico surpresa e feliz. Mas não quero deixá-la
só. Vou comprar pela internet. Como faço tantas vezes, com comida,
com itens necessários e supérfluos. Vou comprar também
um computador para ela.
Até agora não me tinha dado conta desta vida solitária,
mergulhada em personagens, mistérios, segredos , enigmas, amores também,
por que não? Meus livros, meus companheiros de jornada.
Com Nin aqui tenha uma distração que me traz só alegria.
Linda menina de cabelos longos e macios, pernas compridas e corpo esguio, vou protegê-las dos abutres, dos olhares lúbricos, de abraços hipócritas, ela merece um nome, uma vida em que não seja apenas Ninguém.
- Você já foi à escola?
-Não.
-Quer ir?
-Não!!!!
Seus olhos brilham, medo, raiva, lágrimas, o que aconteceu com você, minha menina. Mistérios.
Fico calada.
Mas você precisa de documentos, penso, uma identidade, vou cobrar alguns favores para que você , quando quiser, possa encontrar pessoas, ir a lugares, passear por aí, sem empecilhos.
Não quero aborrecê-la, o mundo para ela parece estar aqui, já se acostumou, tem uma poltrona preferida, sempre um livro à noite, antes de dormir. Vemos TV juntas, ela adorou a pipoca. Tudo tão comum, tão simples, fazem seu universo florir.
As cigarras começaram a cantar, prenúncio das chuvas tão esperadas. Nin não parece sentir este calor pesado, invasor, que abate minha energia. Ela continua saltitante entre as plantas, as flores, os animais a seguem por toda parte.
Minha casa já e’ um abrigo: salvei alguns cordeiros do matadouro infecto, coelhos de laboratórios iníquos, bezerros já dirigidos ao abate. Vão procurar Nin para um afago.
O calor seca minhas ideias, fico sentada olhando pela janela, observando a alegria e desenvoltura de Nin.
Menina misteriosa, escolheu o caminho de minha casa?
Apesar da curiosidade, impeço-me de fazer perguntas. Aguardo seu tempo e sua hora. Que talvez não cheguem nunca.
Afinal, qual a importância de sua origem, sua história? Ela é um presente neste presente, momentos únicos, vivos, pulsantes, aragem benéfica neste calor sem fim.
Nin veste seu quarto a seu gosto; quase nada, algumas plantas, uma foto dela mesma rodeada pelo carinho dos animais; uma foto minha, debruçada sobre meus textos. Seu computador não a vê com frequência, é mais fácil encontrá-la sob a sombra das árvores, o vento soprando seus cabelos, as páginas de seus livros. Ela gosta de livros físicos, já eu sou pelo digital.
Sou uma pessoa cansada, sempre almejando paisagens, montanhas, ribeirinhos e o frio, neve, ah, o frio, será que o Alaska me faria mais feliz?
Afinal, estas notas são sobre Nin ou sobre mim? Não sei e nem me interessa, ela faz parte agora de meus contornos, sem limites precisos, apenas o fato de estar aqui e ali me basta.
Não faço suposições, extraterrestre, fada, amazona perdida em descaminhos, Nin é uma incógnita e isto faz parte dos véus que a envolvem e me fascinam.
Um dia, talvez, ela irá me dizer, apaziguar esta ânsia de saber. Mas contínuo em meu silencio, meu respeito por ela.
Estava apreciando o frescor do riacho, Nin se aproximou.
Estendeu sua mão fina e macia, e disse:
- Vamos.
Em um átimo, estávamos em um lugar fétido, becos se cruzando, vozes, risos, gritos se alternando. O olhar de Nin iluminou um barraco sórdido, onde um homem levantava uma faca contra uma mulher, quase uma menina, espumando e grunhindo.
Nin saiu do meu lado e o homem desapareceu. Apenas alguns segundos depois, voltava sorridente.
- Mais um, disse.
A menina-mulher foi levada por outras mãos, benéficas, eficazes.
- Onde você foi, como ele desapareceu?
- Eu o levei para a IHP, a ilha dos homens perversos. Lá eles têm que lutar para sobreviver na selva, para enfrentar a violência entre eles, a fome, a sede, lá eles aprendem o sofrimento.
- Como fez isto? Em um segundo você sumiu, tão rápido, nem cheguei a me preocupar.
Vislumbro seu objetivo, resta a incógnita de transporte instantâneo.
Ela sorri, aquele deslumbrante sorriso, espelho de alegria, de bem-estar.
- Meu nome é Ninguém pois somos Legião. Sem identidades, sem os laços distorcidos do social, do “amor” que agrilhoa as mulheres a seus algozes.
- Pode também nos chamar de Amazonas, sombras esguias, ninjas veganas, sopro outonal, bruxas, sim, aquelas que revivem a harmonia, que respiram a natureza, invisíveis ou não. Em cada país, em cada recanto, há Ninguém protegendo e salvando todas as que são passíveis de salvar.
- Já existem muitas IHP, mas em certos países o trabalho é intenso, nos turbilhões de ódio contra as mulheres. Auxílio, conforto, proteção, é o que pretendemos dar a elas.
Nunca falara tanto. Sinto-me em um estado peculiar, como se fossemos uma só. Nem me espanto, tão singular ela sempre fora.
- Você que ser Legião? perguntou ela. Você quer ser Ninguém?
- Sim. Claro! Respondi sem nem pensar, com deleite. Então...
Meu olhar, de súbito, passou a ver através das coisas, as cores transbordam, os sons vibram , as árvores sacodem seus galhos em saudação. Folhas farfalham.
Eu sou Legião. Eu também sou Ninguém. Também sou Natureza, Vento, água, terra, ar, visível e invisível, alada criatura, suspirando ação, desejando horizontes. Eu sou Ninguém.
A vida continuou, entretanto, deslizando em dias, em momentos de trabalho, de alegria, de busca... de vingança?
Por uma hora ou duas, todos os dias saíamos de mãos dadas, desaparecendo num brusco movimento. Não mais apenas abordando becos imundos, ou aglomerados resvalando pelos morros, mas mansões, casas comuns, prédios, escritórios, palácios lá onde violência habita, destruindo vidas.
Há um imenso prazer em desmontar a violência dos homens, de fazê-los sentir na carne o que é o sofrimento, humilhação, tortura, dor. Um gostinho doce de vingança, por que não?
As IHP às vezes afundavam, pasto para o mar, para as fauces dos tubarões. Emergiam limpas, faceiras, prontas para acolher mais uma jornada de perversidades a serem oportunamente engolidas. As ilhas parecem ostentar um riso torcido, agentes de desforra.
Com seu jeito quieto e descansado, Nin explicou que havia equipes na Legião, as cientistas, as TI, as médicas, as professoras, vinham de todas as profissões, de todos os lugares, enriqueciam a Legião a cada dia. As investigadoras nos forneciam pistas, endereços, locais, e havia aquelas que como nós se encarregavam da varredura nos nichos de violência.
- Como explicar o desaparecimento de tantos perversos? pergunto.
- As cientistas da Legião, explica, conseguiram destravar o cérebro em toda sua capacidade, o que nos dá infinitas possiblidades, como deslocamentos instantâneos, olhar que ultrapassa obstáculos e paredes e assim por diante. Nossos poderes vêm de nosso cérebro. Com isto, criamos clones que substituem os violentos e modificam as vidas de quem os cerca. Assim se altera o mundo...
Nem todos tem clones. Alguns não merecem que suas faces continuem a macular o planeta. As ilhas fazem seu trabalho sem que nossas mãos sejam manchadas.
Uma imensa maioria de mulheres prefere ficar em suas casas, com seus filhos, mas agora com possibilidades outras de defesa e conhecimento com seus cérebros expandidos até certo ponto, mudando as relações entre as pessoas por onde passam ou se instalam. Pois estas não fazem parte da Legião, tem nome, identidade, raça, nacionalidade. Elas não são Ninguém.
Nós somos Ninguém, transitando por aí, seguindo os caminhos apontados pelas investigadoras. Ao mesmo tempo procuramos trazer novas mulheres à Legião. Aquelas improváveis criaturas amedrontadas são agora ponta de lança contra a violência.
Já sou veterana, já posso mesmo fazer este trabalho
sozinha, mas prefiro estar com Nin, aconchegada em seu sorriso, raro, mas sempre
presente em seus olhos.
Transformações efetuam-se em mim: meus numerosos anos de vida
aos poucos vão esmaecendo, cada vez mais jovem, mais forte, mais consciente
da natureza, do mundo,minha silhueta se estampa nos flancos das montanhas. Nin
também cresce, já não é mais uma menininha, mas
uma mulher cuja força transparece em seus poros.
Agora já havia entrevisto incontáveis vezes as ilhas dos homens perversos. Aos poucos iam se despovoando, apesar da entrada quotidiana de um sem-fim de violentos. A multidão os espera, ansiosa pela novidade, nunca fiquei para ver, com certeza se eliminavam mutuamente. Não havia animais nestas ilhas para sofrerem a indignidade da caça, do retalhar das carnes para dentes apodrecidos. Eles podiam plantar, tinham ferramentas, mas preferiam criar gangues mortais e mortíferas. Tornavam-se canibais? É provável.
Havia pela frente séculos de limpeza. Pedófilos, cafetões, traficantes de carne humana, estupradores, os controladores, os ameaçadores, os assassinos, os bêbados ferozes, os que transformam a vida das mulheres num inferno de medo, dor, desesperança. Quase sempre impunes, as IHP os aguardam.
Existem também as IML, ilhas das mulheres livres; ao saíram de seus ambientes de violência, escolhem a harmonia, a expansão de poderes para recuperar a natureza, para limpar as trilhas dos amontoados , das raízes apodrecidas que enredam os pés das incautas.
Cruzar caminhos , plantar, replantar, cuidar de animais mutilados ou perseguidos, de florestas devastadas, elas se debruçam, se dedicam, renovam o que fora destruído, desterrado, poluído, escavado na ânsia do ganho, no prazer da destruição e na matança.
Os animais, seres sencientes, cuja dor alimenta os ventres ávidos, são caçados por “esporte” ou transformados em “proteínas”. Tudo se passa como se os animais não fossem seres sensíveis, com medo, dor, sofrimento sem fim nos matadouros, nas gaiolas, cenários do inferno, bocas malditas exigindo mais carne, mais sangue. São apenas carne.
Tal como mulheres prostituídas, transformadas em carne
a ser consumida, orifícios vendidos em hasta pública, sem defesa,
pasto para a lubricidade dos perversos. A Legião vela.
Das IML elas saem, salvam, cuidam, recuperam. Ela são Legião.
Outras tarefas, outras peculiaridades , abrigando em lares inconsúteis
tal sombras benfazejas.
As IML se expandem, agregam-se mesmo a continentes, povoando
as margens dos rios, protegendo florestas dos malefícios, da violência
extrema, dos garimpos, das invasões, das queimadas.
Ilhas etéreas, atravessam os ares, fixam-se onde há espaço,
com ânsia de reconquistar a harmonia e a beleza maculada.
Havia também as IMM, ilhas das mulheres malditas, auxiliares dos homens para melhor dominar, violar, escravizar, traficar outras mulheres, auferir ganhos com sua servidão. Para lá eram levadas, visitadas pela Legião , na tentativa de fazê-las abandonar a violência, da qual em geral eram vítimas. A grande maioria integrava-se à Legião. Trabalho penoso, porém, gratificante e reparador.
Em minha casa reúnem-se as Legiões de diversos países, a telepatia elimina a barreira das línguas. Divertimento, alegria, danças, não há necessidade de álcool, de drogas, a intensidade dos encontros lavam os resquícios de vidas desafortunadas. Planejamos, definimos estratégias, prioridades. A Legião é formada por grupos ou por duplas, por afinidades. As solitárias tinham seus nichos, seus encantamentos, atividades escolhidas, secretas, misteriosas, desvendadas em filigranas, invisíveis, terra, mar, ar, seus domínios. São Legião. Em seus diferentes formatos.
Decidimos findar as clonagens dos homens perversos. As sociedades
deverão se habituar a estes desaparecimentos. Talvez descubram que a
violência é a causa, o elo entre os desaparecidos, sem deixar vestígios.
Juntas somos Ninguém. Juntas somos legião. Juntas transformaremos
o mundo.
Aos poucos iremos limpar , raspar, eliminar a violência nos recônditos das famílias, de todas as relações. Ao se diminuir o número de homens, é apenas uma compensação da defasagem existente no número de mulheres em certos lugarew.
Seria isto a felicidade? Agir, não apenas em sonhos ou
teorias, mas na prática, em uma realidade que só pede para ser
para outra. Nós somos Ninguém, nós somos Legião.
Nin quer tirar férias. Cansada do espetáculo da dor e da violência.
Fizera isto ao vir a meu encontro. Voamos por aí, esquiando o vento,
chilreando com os pássaros, neve, gelo, desertos, praias, pousamos aqui
a ali, saboreando os puxões da ventania, o movimento das marés.
Uma vida inesperada, inesquecível.
Mesmo em férias não pudemos resistir: afundamos
cinco navios baleeiros, dia glorioso. Explodimos algumas minas , sabotamos construções
devastadoras da natureza. Férias produtivas.
Fomos visitar algumas IML, uma sensação única, como abelhas
elas preenchem os vazios, renovam a existência, delas e da natureza. E
nossa.
- Vamos ficar aqui algum tempo, Nin?
- Um pouco, sim, é outro tipo de trabalho, os resultados são visíveis
, uma alternativa à limpeza física da violência. Depois
voltaremos à limpeza do social.
- Nin, nós morremos?
- No momento aprazado, resolvemos desaparecer para sempre. Depende da vontade, dos anos vividos, do cansaço, do desejo de ir além de amarras. De toda forma, vivemos uma estabilidade física, nem muito jovem, nem muito velha. Quanto mais jovens parecemos, mais velhas somos, riu ela.
Há tanto a fazer...
Nossas férias se prolongaram na lida com os animais, curando,
salvando, recuperando. Este trabalho eu adoro. Cavalos, as crinas ao vento,
galope nas nuvens, sinônimo de liberdade.
A vida se revela e acorda, traços etéreos de risos antigos, volteios
no tempo, no imaginário, tomam corpo as formas esquecidas, abrem-se os
sendeiros conduzindo a todas as partes. As montanhas silentes observam e protegem
seus flancos.
O mundo é nosso, nós somos Legião.
Livre dos homens perversos, o mundo retoma sua altivez, floresce,
reluz, as feridas se fecham , os mares celebram as cores, o azul, o verde, as
profundezas escuras retomam seu silencio abismal.
Nós estamos presentes, nós somos Legião, as guardiãs
do tempo, as destruidoras dos templos.
É hora de voltar à casa, às minúcias do quotidiano, à labuta de arrancar os homens perversos de seus redutos de ódio e violência, isolando-os nas IHP. Para compensar temos nossos animais, nossa floresta intocada, a celebração diária da renovação.
Nosso alimento vem da terra, retribui nosso cuidado. Não há sangue derramado, balidos desesperados, guinchos de horror, cenas dantescas promovidas pelos homens perversos, bêbados de violência e a morte. De toda forma, para nós, comer é só pelo prazer, não por necessidade.
Estou renascendo com Nin. Alegrias desconhecidas, gestos saboreados,
inusitados. Fada, bruxa, elfo, vulto, menina-mulher. Serena e concisa, Nin vive
em seus vapores de mistério.
- Nin, você veio para mim, de não sei onde, levar-me ao etéreo,
transformar-me em volutas de prazer, alegria, ação.
Nin segura minha mão, contemplamos as águas alegres do riacho, animais silvestres se aproximam, pássaros canoros nos circundam, o murmúrio das folhagens nos abraça. Um coelhinho pula no meu colo. Nin abre seu sorriso mais lindo. Momentos únicos de harmonia.
De súbito, os cachorros tão pacíficos começam a latir, desesperados.
Logo surge um bando de homens perversos, gargalhando, as braguilhas abertas, “vamos lhes mostrar o que é um homem”, gritavam.
Fiz menção de levantar-me , Nin segurou-me com o olhar. Sem nem voltar a cabeça sua magia derramou-se: os pênis foram encolhendo e secaram. Fiapos de carne podre. Bela revanche. Em segundos, foram levados a uma IHP, a mais lotada, prestes a afundar pelo peso da violência e do ódio.
Diversão garantida.
O que aconteceria com eles? Jogo-me sobre a relva para deixar
rolar o riso. Nin acompanha minha hilaridade, somos Legião, os abutres
não se aproximam de nós.
Criaturas indignas, cuja selvageria é inominável.
Seguimos nossa rotina, a alegria da limpeza social, a eliminação dos núcleos de violência, das gangues, dos cafetões, dos religiosos cujo objetivo primário é a servidão e dominação das mulheres. Ou o estupro generalizado, meninas, mulheres, meninos.
Nin encanta minha existência, fluxo de matéria, sonda das profundezas, sou mar revolto, lagoa perfumada, orquídea furta-cor.
Na beira do riacho, as flores se espreguiçam, entreabrem suas pétalas para expandir aromas, aqui o cravo não briga com a rosa, despedaçando-a, como na canção dos homens perversos. E as crianças repetem e interiorizam...
Trabalho árduo da Legião pois a violência se derrama nos recônditos ditos inocentes.
Nin é cheia de energia e esperança.
- Um dia... murmura.
Eu luto com minha descrença, face a milhões de seguidores de religiões abusivas, de divindades estuprando e engravidando mulheres, estupro divino, louvação da violência no imaginário dos tolos e perversos/ pervertidos. No imaginário do divino, o estupro é louvação. Cultura do estupro é geral e banalizada.
Abrigo- me no sorriso de Nin...
- Nin, gostaria de mudar um pouco de tarefa. Que tal juntarmo-nos
àquelas voltadas aos animais e à natureza? Estou cansada da violência
e do ódio dos homens perversos.
Nin reflete.
- Também preciso de uma pausa. Então, vamos.
Foi uma alegria fazer parte desta face da Legião. e na
incessante renovação das cores nas florestas, nos oceanos; o olhar
dos animais era a recompensa do cuidado e do carinho. Era, de fato, meu lugar.
Outras irão me substituir no apagar da violência. A Legião
se recicla, se transforma, se expande, cada vez mais forte, mais exigente, intransigente.
Onde estava a violência, aparecia a Legião para suprimi-la.
Os anos foram passando na harmonia, minha casa agora pertence
à Legião, meus amados animais, parte de mim, haviam partido há
muito.
Chegou o dia em que anunciei a Nin:
- Estou cansada.
- É chegada a hora, minha querida. Devo partir para unir-me à natureza. Você poderá me encontrar em cada curva do caminho, em cada flor que desabrocha, no murmúrio de nosso riacho, na relva úmida acolhedora de nosso riso e nosso encontro.
- Vou com você, disse Nin. É minha escolha.
- Veja, Nin, a Aurora Boreal.
De mãos dadas, partimos.
Fomos Ninguém. Fomos Legião.
Somos Aurora.