Os limites discursivos da história: imposição de sentidos

tania navarro swain

resumo:

A historiografia cria realidades ao descrever relações humanas baseada em pressupostos essencialistas e universalizantes. É o caso das narrativas sobre o Brasil colônia e as sociedade indígenas, cujo diversidade é encoberta pelo discurso do " natural".

 

A re-leitura das fontes utilizadas nas narrativas históricas , bem como a crítica à historiografia são imprescindíveis para que surjam as múltiplas realidades,  agenciamentos sociais plurais, que ficaram ocultos no fazer histórico tradicional.

            A perspectiva teórica, neste caso, leva em conta a incontornável mediação discursiva das fontes e de suas condições de produção, que nos trazem apenas indícios da materialidade do passado. Em uma ótica feminista, a leitura das fontes pretende destacar a  construção do feminino no olhar dos cronistas ou viajantes, ou literatos,no caso da história do Brasil colonial, segundo suas próprias representações e imagens da divisão social e natural dos sexos. Marcas, geradas às vezes pelo espanto, são registradas e nos deixam entrever nas sociedades indígenas relacionamentos sociais múltiplos, que não se orientam pelo sexo biológico nem pelo exercício da sexualidade.

            Nesta perspectiva, a história  tem sido feita de  retalhos, aos quais se atribui uma importância generalizante: é assim que histórias recortam o humano em “ política”, “social”, “ demográfica”, “cultural”, “ econômica”, cada qual reivindicando para si a totalidade do humano. Da mesma forma, quanto a à constituição das sociedades toma-se como paradigma natural a hierarquia e a dominação do masculino sobre o feminino, tornando construções históricas, fatos inquestionáveis.

 Da mesma forma, diz-se “ no século XVI ou XVII”, como se houvesse uma entidade homogênea, encobrindo esta abstração que é um século; diz-se “período colonial” ou “império”, como se apenas uma mudança na forma de governo fosse espelho de uma pretensa transformação da realidade total, de uma materialidade explícita e evidente. As narrativas históricas, de fato, imprimem um sentido e uma coerência ao caótico movimento do real, escondendo, no mesmo movimento, a construção que a ordena.

As “narrativas- mestras” da história, os clássicos, generalizando abusivamente sua interpretação do social ocultam os pressupostos que as orientam, os valores e representações modeladoras de percepções, construindo uma realidade histórica homogênea, repetidora do Mesmo, em discursos cuja pretensão é espelhar o real; no caso do relacionamento entre os sexos, narra-se a história da dominação , da troca, da submissão, da exclusão das mulheres pelos homens, seja na sociedade indígena, seja na sociedade colonial que se instala a partir da ocupação portuguesa das terras do Brasil, sem levar em conta os numerosos indícios que nos relatam organizações múltiplas do social.  

Quem criou esta história de dominação e hierarquia entre os sexos no Brasil indígena? A que ordem discursiva obedeciam as interpretações dos modos e costumes indígenas, naturalizando-os em torno do sexo biológico, em estruturas de poder? O que , senão o discurso da ordem “natural” heterossexual e reprodutora, veria submissão onde havia liberdade, obrigações onde havia escolhas, obediência onde havia trocas? Quem, de fato, sublinhou a sexualidade e o sexo biológico como fundadores do relacionamento humano nas sociedades indígenas, senão os próprios historiadores?  Estas questões se impõem na revisão da historiografia colonial, na busca de uma história possível, de relacionamentos sociais e instituição de corpos sexuados sexos  cuja expansão e limites não se referiam necessariamente ao sexo e à procriação.

Não estou falando apenas dos positivismos, mas da história que se faz sobre o já-dito, sobre a autoridade de uma historiografia que  erige em verdade seus enredos imaginados. A ficção histórica, assim, re-constrói mundos e relações onde os papéis são imutáveis e os gêneros definidos pela biologia.

Não podemos, porém,  esquecer que  as próprias fontes expressam e são mediadas pelo olhar de seus autores. Isto não significa, como querem alguns,  redução da realidade ao discurso, mas apenas a constatação que os indícios- impressos ou imagéticos - do real são incontornavelmente textuais, construídos de um lócus específico de fala,  apesar de suas linguagens específicas. . Estes  indícios  são, deste modo, também interpretações e a decodificação, que constrói uma realidade a ser narrada,  se faz a partir de um  lugar de sujeito,  de uma perspectiva de gênero.

            A política de localização, já consagrada no fazer da ciência, que  inclui a subjetividade na própria construção do objeto, não contempla  porém, as posições generizadas, que instituem  o real em sua percepção e narração,  a partir  de um papel instituído no social, enquanto feminino ou masculino. Não porque este lugar seja “natural”, ou expresse uma natureza qualquer ligada ao biológico, mas porque,  mulheres e homens  somos construídos em representações e modelos no social e assim adquirimos  formas de percepção e de ação específicas, que instituem nossa materialidade em corpos femininos ou masculinos.

            O que conduziria a esta divisão sexuada do humano, em princípio,  seria a “ diferença”, que, entretanto, é ela mesma,  uma categoria  , construto social e político; baseia-se na importância que se dá ao  biológico e seu corolário de características “ naturais”, quer se trate de gênero ou de raça.  Esta constatação ,porém, não apaga os contornos e  limites desta pretensa diferença política e hierárquica, pois percebê-la não significa eliminá-la. Desta forma, a diferença passa a existir, uma vez que é instituída no social como fundamento valorativo e  representacional  dos sexos.

Neste sentido, a diferença aparece como base justificativa para a divisão sexual de papéis e tarefas. É claro que existem diferenças e semelhanças entre os sexos biológicos – e não apenas enquanto mulheres / homens, mas em relação aos próprios indivíduos; entretanto, aquilo que é mostrado como causa – a diferença biológica – é, de fato,  conseqüência do agenciamento social e político, da importância que se dá ao genital para a definição do humano, da procriação como determinante da sexualidade das mulheres, da apropriação e troca dos corpos femininos, em nome desta especificidade e desta diferença.. Construída simbólica e materialmente, a diferença histórica e política é exposta como fundamento natural do humano.

 De fato, o estabelecimento da  diferença é a criação e afirmação de um referente, que estabelece seu oposto e como tal o considera. No caso de uma sociedade patriarcal a “diferença” é instituída a partir do masculino universal, daquele que define o humano em geral e a seguir suas especificidades, seus “ diferentes”. Não é, portanto, a diferença, biológica ou outra que ancora a desigualdade, mas a imposição política de um referente que se erige em parâmetro e norma.

No âmbito da sexualidade é o desejo dos homens, é a presença dos homens, é a sexualidade masculina que aparecem como reguladores da ordem, como definidores da moral, como parâmetros de inserção no contrato social / sexual que se estabelece na colonização portuguesa.. A desigualdade surge aqui com o estabelecimento da “diferença” e de uma exclusão. Assim,  a exclusão político-social das mulheres, fundada na  diferença biológica, não é senão o fruto da instauração de uma desigualdade forjada no político e das práticas simbólicas / discursivas/ materiais que a criam e impõe..  A prática de ensino jesuítica nas escolas para meninos, por exemplo, de fato cria uma nova divisão entre os sexos, uma nova moral, um novo eixo de saberes, destinados exclusivamente ao sexo masculino, interlocutor escolhido pelos portugueses em seu contato com os indígenas.

No confronto de fontes e da produção historiográfica pode-se  observar o obscurecimento da presença e ação das mulheres no Brasil colônia, numa percepção que instituem sentidos binários e hierárquicos às organizações sociais indígenas e coloniais, instaurando cânones morais e assim criando gêneros, nos moldes eurocêntricos, em esquemas binários de pólos opostos e diferenciados.

É assim que lá onde havia liberdade viu-se lascívia ou submissão, lá onde havia desejo viu-se dominação. De fato, se as fontes contemporâneas ao descobrimento deixaram-nos indícios múltiplos do agenciamento social indígena, estes foram muitas vezes ignorados ou transformados de acordo com os pressupostos teóricos ou representacionais d@s historiadora@s.

Isto significa que a narrativa histórica se caracteriza pela imposição de  sentidos, pois distribui e opera significações que aprisionam a multiplicidade do humano em redes de formas modelares e/ou essenciais.. O humano é tratado como sendo um todo unívoco e também  inequívoco: a biologia define as competências e os saberes, os papéis e os poderes, a expressão e a definição do sexo e da sexualidade, em termos de normalidade e exclusão.

É assim que os indícios referentes às sociedades indígenas são silenciados ou transformados, segundo as condições de imaginação e de possibilidade de quem os decodifica e o gênero disto não está ausente. Desta forma, o enquadramento das sociedades indígenas em um modelo binário e hierárquico da relação entre os sexos apaga os indícios da pluralidade no social. Ou seja, os eixos de coesão social nem sempre estão fixados no sexo, na sexualidade ou na dominação de uns pelos outros, mas esta diversidade é apagada na política discursiva do silenciamento, modo de significação constitutivo de uma realidade que se apresenta como verdadeira e os costumes indígenas são soletrados no  masculino.

É assim que os caciques são apresentados como os chefes das tribos, o que , de fato, contradiz os indícios deixados pelos cronistas . A presença e atuação política e econômica das mulheres na história colonial do Brasil vem sendo, muito recentemente desvelada, sobretudo pelas mulheres historiadoras, utilizando a multiplicidade dos indícios deixados pelas fontes..

. Os caciques, com os quais os portugueses começam a tratar e a elevar em hierarquia, eram, de acordo com os cronistas, apenas organizadores da guerra ritual e sua autoridade não era nem definitiva nem obrigatória. .São numerosos os cronistas a indicar que os indígenas não tinham “ nem fé, nem lei, nem rei” e apontam para a autoridade espiritual como a mais forte e importante.  E as mulheres também eram pajés, como indicam os  mesmos cronistas. Hans Staden descreve cerimônias de predição do futuro a partir de sonhos e visões, feita apenas por mulheres, de excepcional importância na cultura indígena. ( Staden, 1942:175)

Os caciques não “davam” as suas mulheres – que não eram sua propriedade. Ao contrário, era o prestígio na guerra que atraía mulheres a um homem ou a uma mulher-em-homem ( o biológico não definia necessariamente os papéis e relações sociais, como veremos). De fato, ele não as possuía, elas o escolhiam, de forma  temporária ou permanente. Staden comenta que algumas índias “ tinham um marido em comum [...] (Staden ,1942 : 171) , perspectiva interessante , que aponta exatamente para a escolha de um guerreiro valente e não para a posse de mulheres como tributo de guerra. Quando as índias se relacionavam com os brancos, isto era feito por sua própria vontade, não eram trocadas ou doadas – os cronistas enfatizam a liberdade sexual das índias e esta, para eles, é motivo de estranhamento maior.

Já no discurso historiográfico, para  Capistrano de Abreu, historiador do século XX,  esta liberdade é vista como a irresistível atração do inferior pelo superior, acoplada do comércio “natural” de seus corpos: 

"Da parte das índias, a mestiçagem se explica pela ambição de terem filhos pertencentes à raça superior [...] Além disso, pouca resistência deviam encontrar os milionários que possuíam preciosidades fabulosas como anzóis, pentes, facas, tesouras ". (Abreu, 1982:61) 

“Pouca resistência” supõe uma pressão indevida e nos faz pensar no aforismo contemporâneo, segundo o qual “ quando uma mulher diz não, ela quer dizer sim”, justificador de todas as violências sexuais – e no caso, sobretudo, com a possibilidade de um pagamento qualquer. Seriam as índias “ naturalmente” propensas à venda de seus corpos? Nada parece mais absurdo. Entretanto, frases como esta reiteram a força de um imaginário social em que os corpos das mulheres são bens apropriáveis e este tipo de reflexão não é sequer sublinhada, pois penetra na ordem de uma naturalização imaginária das mulheres, em torno de uma essência única.

Da mesma forma, após enumerar a destribalização, as doenças, a fome, o trabalho forçado de toda espécie, como sorvedouros de seres humanos, o historiador  esquece de mencionar a violência sexual e afirma que

“ Não obstante, foi no intercâmbio assim estabelecido entre os nativos e os portugueses que surgiu uma população mestiça, capaz de dar maior plasticidade ao sistema social em formação e de contribuir para a preservação de elementos culturais herdados dos indígenas. ( HGCB,85, 1 vol)

 O estupro, aliás, é o grande ausente dos tratados e compêndios, manuais de história do Brasil, ao louvar a mestiçagem, tanto no que diz respeito às escravas negras, quanto às índias. Tudo se passa como se as mulheres só estivessem à espera dos favores e da honra que lhes concediam seus senhores ou colonos ou bandeirantes, ao violentá-las.

Tudo se passa também em uma espécie de euforia lasciva, onde a violência está ausente e a sexualidade é a celebração de uma enorme festa em prol da mestiçagem. Qual a escrava, porém, que não foi violentada várias vezes ao longo de sua vida? Sem falar das “ negras de ganho”, prostituídas numa cafetinagem generalizada e normalizada? No que diz respeito às índias, a imagem da prostituta reaparece: Gilberto Freyre comenta que elas se ofereciam para os brancos e  as mais ardentes se esfregavam nas pernas daqueles que “suponham ser deuses” . (Freyre, ‘1974:98)

Os sentidos expressos assim nos apresentam uma história asseptizada, des-generizada, sem nenhuma violência de gênero, na qual as mulheres aparecem apenas em seus limites estereotipados de mães, prostitutas ou feiticeiras.

Quanto à narrativa histórica, os diversos graus de assujeitamento a estes modelos e estereótipos nos abrem ou restringem um horizonte crítico.  Se a recusa da objetividade e neutralidade positivistas já é hoje comum, a crítica não inclui a “ objetividade de gênero”, ou seja,   ignora-se a construção das diferenças de olhar ao longo da construção das subjetividades, sejam elas femininas ou masculinas. É nesta perspectiva que a noção de experiência vem sendo debatida na crítica feminista, ou seja, a experiência de gênero existe, a ela somos assujeitadas em maior ou menor grau e o questionamento desta posição é um trabalho crítico constante, que excede a posição de sujeito, sem entretanto, ignorá-la, guardando a consciência dos limites e das injunções representacionais de gênero, nas quais fomos constituídas.

Desta forma, um olhar crítico feminista percebe, no relato histórico, “evidências” generalizantes, que supõem uma “ natureza” biológica dos gêneros, uma definição de corpos sexuados e um exercício da sexualidade padronizados, nos moldes das representações sociais do enunciador. Exemplo disto é o primeiro volume da Historia Geral da Civilização Brasileira, um clássico da historiografia sobre o período colonial. A narrativa histórica aí  é reduzida a um amplo masculino, o “homem” universal, cuja superioridade política ou criativa se torna indiscutível. A ausência de mulheres no início da colonização é reafirmada com insistência, apesar dos relatos que apontam para o contrário.

No que se refere às fontes, uma leitura de alguns cronistas como Thévet, Abeville, Hans Staden, Gabriel Soares de Souza, Fernão Cardim  e sobretudo de  Gandavo ilustra a quantidade de indícios por eles apontados  da multiplicidade do real, de um agenciamento social que desapareceu das escolas e do ensino,  silenciados pela historiografia tradicional, ou por ela transformados.

            Gaandavo e outros cronistas mostram uma sociedade indígena complexa, em tons que variam do espanto à repulsa ou ao deslumbramento  e buscam captar seu ordenamento  a partir de seus próprios parâmetros. Como sublinha  Michel de Certeau,

“ o maravilhoso, marca visível de alteridade, não serve para propor outras verdades ou um outro discurso, serve para fundar uma linguagem operatória de dirigir a exterioridade para o ´mesmo´” ( Certeau, 227)

            São eles, entretanto, pródigos em detalhes sobre a produção, a vida quotidiana, as festas, as artes, as predominâncias, as divisões de trabalho e as condições de sobrevivência.

Gandavo explica a liberdade no relacionamento entre mulheres e homens e, sobretudo, comenta, com espanto, a possibilidade entre os indígenas, de escolher seu sexo social, independente do biológico.

Gandavo  espanta-se com a separação entre sexo e gênero. Gandavo comenta , sobre as indígenas que

“ algumas índias desta parte que juram e prometem castidade e assim não conhecem homem de nenhuma qualidade e nem não consentirão ainda que por isto as matem.. Elas deixam todo o exercício das mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem mulheres e cortam seus cabelos da mesma maneira que os machos trazem e  e vão a guerra com seus arcos e flechas e à caça e assim andão sempre em companhia dos homens e cada uma tem uma mulher que as serve e que lhe faz de comer como se fossem casadas.” (Gandavo,ed. 1965:215)

Acrescenta ainda  que

“elas dizem que são casadas e tem relações intimas como marido e mulher.." (Gandavo, ed. 1965:56 e 57)

Como se pode ver, “jurar castidade” aqui, significa negar-se a uma heterossexualidade “natural”, pois como explicita o autor, relacionavam-se com sexualmente com outras pessoas do sexo feminino. Vê-se aqui, também, uma radical separação entre sexo biológico e papel social, o que nos lembra a afirmação de Butler, de que o gênero seria um artifício flutuando, fixando-se indiferentemente em corpos biologicamente femininos ou masculinos.

Estas observações são indícios de grande importância na quebra do unívoco e do binário, baseado no biológico, na quebra também da noção de uma heterossexualidade obrigatória e «  natural », fundada na reprodução da espécie,  ordenando a divisão sexual do trabalho em torno do destino biológico das mulheres, a maternidade. Por um lado, Gandavo relata seu espanto diante do que vê e por outro, interpreta ao expor seus valores : na relação entre mulheres não há sexo, pois são « castas », já que não tem « comércio com os homens » . Mas não pode deixar de acrescentar que são «  casadas » e tem relações « como marido e mulher », ou seja, expõe uma sexualidade  que não lhe é estranha, mas para a qual não tem palavras para descrever fora de suas condições de imaginação. Além disto, elas “imitam” os homens, o que ainda hoje se enuncia a respeito  das lesbianas, “simulacros” do masculino.

            A diversidade do social aparece aqui como um dos indícios a ser tratado pel@s historiador@ – silenciada, entretanto, a partir da implantação da diferença entre mulheres e homens, a partir da criação e narração  da realidade indígena em esquemas binários de divisão sexual de autoridade, importância e de poder centrados no masculino.

De fato, o que a história aqui criou foi uma outra sociedade indígena reproduzindo, em suas narrativas, o biológico apropriado em uma natureza binária e essencializada, onde o universal era o masculino e o o feminino o específico,  máquina reprodutora ou sexo a ser tomado, dominado, utilizado.

Vemos aqui, entretanto, uma sociedade onde o gênero não está ligado ao sexo biológico, ao contrário, confirma a hipótese de Judith Butler , que não existe sexo fora de práticas de gênero e desta forma é o gênero que define o sexo biológico e modela, assim, os corpos instituídos em mulheres e homens.

Ainda segundo as observações de Gandavo, e no que diz respeito às atividades produtivas, as mulheres dirigiam a economia das sociedades por ele contempladas: plantavam, colhiam, tratavam a produção; além disto, eram pajés, curandeiras, artistas, hábeis ceramistas, cantoras, sabiam nadar, pescar, remar.  Cardim observa que as mulheres

“ arremedam pássaros, cobras e outros animais, tudo trovado, por comparação, para se incitarem a pelejar. Estas trovas fazem de repente e as mulheres são insignes trovadoras..” (Cardim,1978:185) “ ... as mulheres nadam e remam como os homens.. e por serem grandes nadadoras não temem água nem onda nem mares” ( idem:188)

Claude d´Abeville comenta “ os admiráveis desenhos que fazem nos corpos”, realizados pelas mulheres. (Abeville, 1945:217) Livres de sua sexualidade, podiam casar e trocar de parceiros, liberar prisioneiros, se assim o desejassem, como afirma   (1978:114). Entretanto, ressemantizados, os costumes indígenas aparecem na historiografia de forma diversa :

“ [...] algum principal, contando com número suficiente  de mulheres, em seu lar polígino ( filhas, sobrinhas, agregados) cedia-as em casamento a jovens que se dispunham a aceitar sua autoridade.” (Florestan Fernandes,HGCB: 75)

 O que relatam os cronistas é que as mães  decidiam sobre os casamentos e o jovem deixava sua maloca para a de sua “noiva” e o fruto de suas caças e pescarias era destinado à mãe. Com mais idade, seu prestígio se torna maior, como aponta Gandavo (1965:58)

“ Todos seguem muito o conselho das velhas, tudo o que elas lhe dizem fazem e tem por muito certo Daí vem que muitos moradores não compram nenhuma velha, para que não levem seus escravos a fugir.”  (Gandavo, ed.1965:217).

O padre Nóbrega queixava-se das “ velhas” que impediam o acesso de suas tribos aos jesuítas e Thévet (1944:218-219) sublinha o conhecimento e a magia das “ velhas feiticeiras”.A idade parece ser um fator de grande importância em termos de respeito e autoridade na tribo e isto independente do sexo biológico. As mulheres decidiam sobre os casamentos, recebiam o fruto das caçadas e pescarias, acolhiam e se ocupavam dos prisioneiros de guerra, até o momento de seu sacrifício.

Florestan Fernandes, vestido em suas certezas  afirma que :

“ É claro que a proteção das mulheres, crianças e velhos era atividade masculina  bem como a realização de expedições guerreiras [...]” e prossegue “ As atividades xamanísticas também constituíam prerrogativas masculinas, embora existam referências esporádicas à participação das mulheres nestas atividades, bem como nas guerreiras ( na qualidade de combatentes, nos casos de mulheres tríbades”) (Fernandes,HGCB 75-76) 

Não importa, portanto, as indicações dos cronistas que os pajés poderiam ser também AS pajés: casos esparsos, não atrapalhariam seu modelo de mundo. O “ é claro”, do início da frase nos coloca de imediato numa comunidade discursiva cujos pressupostos são evidentes.  O termo “ tríbade”, utilizado para designar uma anomalia do sexo feminino – o clitóris aumentado – carrega também o sentido de homossexualidade, de uma patologização biológica-social dos costumes indígenas.    

Num constante vai e vem de afirmações, Fernandes transita entre as informações deixadas pelos cronistas, que ele não quer ignorar, e seus próprios valores relativos à divisão social/ sexual do trabalho. Assim, afirma o autor que 

“[...] as relações dos sexos eram de molde a fazer com que a adaptação do homem às condições tribais de existência dependessem extremamente das atividades realizadas pelas mulheres” (79)

0e isto é também afirmado pelos cronistas. Ou seja, as mulheres detinham, de fato, as rédeas da produção e das relações sociais nas tribos mencionadas, mas deixa-se supor uma servidão nesta fato..

Gandavo e Soares de Souza afirmam que os homens não poderiam, materialmente,  viver sem as mulheres e suas explicações sobre a atividade guerreira permite-nos pensar na guerra como um rito de passagem para a inserção dos homens na organização social da tribo, pois apenas um prisioneiro assegurava-lhe a possibilidade de entrar no mundo das mulheres, o mundo da vida social da tribo.

 Entretanto, Fernandes faz inferências oriundas de sua visão patriarcal do mundo, pois para ele a guerra estaria ligada à sexualidade:

“ assegurar aos membros masculinos do grupo doméstico oportunidade de casamento constituía, portanto, algo “essencial”. Para o autor em questão, cujo olhar se volta  valorativamente para as atividades masculinas, a guerra seria a principal atividade das tribos, assegurando assim, em sua percepção, o campo da força e da violência como superiores hierarquicamente ao setor produtivo das tribos, domínio das mulheres. Reduz, assim, a complexa organização social indígena a uma monótona expressão de dominação masculina e de suas manifestações de violência. Faz das sociedades indígenas brasileiras à época do descobrimento, uma reprodução “ primitiva” de um patriarcado “ natural”.

E conclui:

“ como acontecia com os serviços e os cativos, as mulheres circulavam entre as parentelas como se fossem bens” (79) 

A “ troca de mulheres” é uma aplicação direta da teoria de Lévy-Strauss sobre a troca de mulheres como forma de estabelecimento da sociabilidade entre os grupos sociais; isto significa impor um sentido pré-estabelecido às relações existentes entre os indivíduos, os grupos locais e as relações inter-tribais, cujo pressuposto primário é de que os homens possuem as mulheres, “naturalmente”

Por outro lado,  Quase todos os cronistas comentam a existência de mulheres guerreiras e a própria administração colonial, como aponta Buarque de Holanda, preocupa-se em localizá-las Afirma este autor:

“ No Quito, a Real Academia apura a existência, em certas províncias, dessas viragos, capazes de sustentar-se sem o convívio dos homens, salvo em determinadas ocasiões” ( B.Holanda, 25)  Virago, de viril, pejorativo para mulheres, masculinizadas. Impossibilidade , portanto, para este autor, de admitir a diversidade de papeis sociais, senão classificando-os de acordo com seus estereótipos

. As guerreiras aymorés desaparecem e surgem amazonas lendárias, histórias que Buarque de Holanda relega ao mito, pois as condições de imaginação não concebem mulheres fora de um esquema binário dominador/ dominado, masculino ativo e forte, feminino passivo e frágil. Os depoimentos dos próprios indígenas sobre estas mulheres guerreiras, relatados pelos cronistas, os testemunhos de Carvajal e de Orellana  ultrapassam o mundo representacional do historiador: para ele, são figuras míticas. O que chamo de condições de imaginação são as possibilidades de colocar em questão valores estabelecidos; é evidente que historiadores de 1976 não as possuem, quando afirmam que

“ [...] ao se defrontar com grupos indígenas com que combatera, na altura do Nhamundá, imaginando-os mulheres, dera ao rio, cuja calha central estava percorrendo, o nome de rio das amazonas[...] ( Ferreira Reis, HGCB:257)

 

Estes são apenas alguns exemplos de como a realidade é construída para abrigar a teoria e seus pressupostos, de como as narrativas estão eivadas das representações e valores de seus autores.. Encontramos aí diversos pressupostos e graus de naturalização:

. a relação binária e heterossexual organizadora da sociedade indígena

. a posse coletiva das mulheres pelos homens, que as cedem, trocam, vendem, emprestam, como pressuposto evidente;

. a patologização da diversidade de práticas e in-corporações de sexo, sexualidade e papéis sociais;

. a inversão da importância do trabalho realizado segundo o sexo: o domínio do mundo do trabalho pelas  mulheres, é transformado em uma espécie de trabalho escravo apenas a partir de sua condição feminina. Ou seja, a feminização do trabalho, nas condições de imaginação do cientista social tornam-se automaticamente um trabalho subalterno e dominado. O que seria dito de uma sociedade onde os homens detivessem os meios de produção e assegurassem a vida e a inserção social das mulheres? Seria naturalmente classificada como patriarcal, como dominada pelos masculino.

Este modelo é tão ancorado nas representações de mundo e nas condições de sua apreensão pelo historiador, que mesmo sendo as mulheres as responsáveis pela manutenção econômico-social da tribo, a sociedade continua a ser patriarcal. Podemos perceber que a subjetividade generizada do analista se derrama sobre sua narrativa, impondo sentidos aos indícios discursivos que nos aproximam da realidade, segundo suas próprias condições de imaginação.

O papel d@s historiador@s , em meu entender, não é afirmar tradições, corroborar certezas, expor evidencias. É ao contrário, destruí-las para reviver o frescor da multiplicidade, a pluralidade do real. Para encontrar uma história do possível, da diversidade, de um humano que não se conjuga apenas em sexo, sexualidade, dominação , posse, polarização.

É criar a inquietação, a interpelação, é suscitar a mudança, é levantar questões e pesquisar incansavelmente a diversidade , para escapar à tirania do unívoco, do homogêneo, da monótona repetição do mesmo, que nos faz reiterar uma história sem fim de dominação e exclusão entre feminino e masculino. As próprias noções de sexo biológico, de gênero social , de diferença,enquanto sistema não passam de uma reafirmação constante da primazia do biológico como divisor de um humano desenhado em dois, cuja complementaridade “natural” é a naturalização do destino biológico das mulheres na reprodução.  Da diferença extraímos a diversidade, do estranhamento, a poética da existência, que não é senão a pluralidade do humano, a possibilidade de ser sem as contingências das normas e nos modelos.

referencias bibliográficas:

     Cronistas:                       

Gandavo, Pero de Magalhães .1965. Tratado da Província do Brasil, Instituto Nacional do livro, MEC

A.Thevet.1944.  Singularidades da Fran;ca Antartida. São Paulo

Fernão Cardim..1978.Tratado da Terra e gente do Brasil, S.P. Nac.,

Hans Staden.1942. Duas viagens ao Brasil, São Paulo.. Soc. H. Staden

CLaude d'Abeville .1945. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas., S.P. Martins Fontes

Vicente de Salvador.1954. História do Brasil. 1500/ 1627. São Paulo, Melhoramentos,

Gabriel Soares de Souza. 1987.Tratado Descritivo do Brasil em 1587, S.P., Nacional

Historiadores

.Capistrano de Abreu.Capítulos da História Colonial 1500/1800., Brasília, Ed.UnB. 1982, p.61

Gilberto Freyre . Maîtres et esclaves, la formation de la société brésilienne, Paris, Gallimard, 1974, p. 98

Fernandes, Florestan. " Antecedentes indígenas: organização social das tribos tupis" in..Buarque de Holanda (org) 1976. História Geral da Civilização Brasileira,(HGCB) RJ, Difel, tomo 1 , 1 vol. “Do descobrimento à expansão territorial”, pg 72/88

Reis, Arthur Cesar Ferreira. "A ocupação portuguesa do Vale Amazonico". in Buarque de Holanda (org) 1976. História Geral da Civilização Brasileira,(HGCB) RJ, Difel, tomo 1 , 1 vol. “Do descobrimento à expansão territorial” pag.257/272

nota biográfica:

tania navarro swain é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre  na Université du Québec à Montréal, (UQAM), onde foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Ministra um curso de Estudos Feministas na graduação e trabalha na área de concentração com a mesma denominação na pós-graduação. Publicou recentemente um livro pela Brasiliense, “O que é lesbianismo”, 2000 e organizou um número especial “Feminismos: teorias e perspectivas” da revista Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente um livro “História no Plural”,  além de vários artigos em revistas nacionais e internacionais.Organizou igualmente o livro "mulheres em ação:práticas discursivas, práticas políticas", publicado em 2005. É editora da revista digital Labrys, estudos feministas"