Os limites do corpo  sexuado : diversidade e representação social

.tania navarro swain

Resumo:

A pergunta é que importa aqui é: a quem interessa a construção hierarquizada deste humano binário ? Quem tira proveito desta divisão e reiteração constante dos seres em sexos diferentes? Quem adquire poder ao nascer, ao se revelar a genitália da criança? Afinal, aprendemos, nas práticas e repetições de hábitos e costumes, o que constitui uma menina e um menino, em uma divisão de tarefas e lazer desiguais

Palavras-chave: hierarquia, binariedade, sexo, representação social

A crítica das verdades

A ciência, desde meados do século XX e mesmo antes, em movimentos artísticos como o surrealismo, tem questionado suas próprias bases, seus próprios fundamentos, sobretudo o que diz respeito a conclusões e descobertas apresentadas como definitivas e incontornáveis. De fato, passou-se a pensar a própria produção do conhecimento e as interferências do sujeito em seus resultados, atrelados a  seus esquemas de representação e interpretação do mundo.

  Um dos autores mais prestigiados na atualidade, Michel Foucault (1971), filósofo e historiador, propõe a adoção de uma metodologia científica cujo eixo seria a “ destruição das evidencias”, ou seja, o questionamento daquilo que parece definitivamente estabelecido, desde, por exemplo, a evolução secular do progresso da civilização até a definição do humano em termos de sexo e sexualidade. Parece evidente que a humanidade “progrediu”, mas apenas em alguns setores e de fato, na  atualidade vemos um mundo mergulhado na violência, na desigualdade, na miséria extrema para a maioria, na discriminação, sobretudo das mulheres, em todos os setores da vida.

Para este autor e muitos outros, como Denise Jodelet(1989), Giles Deleuze(1996), Cornelius Castoriadis (1995),  Linda Hutcheon(1991), Dominique Maingueneau(1989),  as categorias, os conceitos, as palavras, não tem um sentido definitivo e exprimem feixes de significação segundo suas condições de produção e imaginação, no tempo e no espaço. A linguagem assim, nesta ótica,  é construtora de realidades, dotando-as de sentido e inteligibilidade e esta percepção revelou-se crucial para a crítica das ciências, ou seja, percebe-se que as proposições científicas são também efeitos de sentidos históricos e não dotadas de um valor absoluto de verdade.

Karl Popper( web, 2007), um dos mais importantes filósofos da ciência do século XX, não hesitava em classificar de pseudo- ciência, aquela produtora de verdades” inquestionáveis”, pois para ele, a teoria científica será sempre conjectural e provisória . E isto revela que o conhecimento urde suas tramas no emaranhado  da realidade percebida, construída a partir de pressupostos mergulhados no sumo das representações sociais. É, portanto, a partir de uma memória social truncada e datada que se afirma as relações humanas como binárias e hierarquizadas em masculino / feminino,” desde o início dos tempos”.

Para Denise Jodelet,(1989) na verdade, as representações sociais são uma forma de conhecimento partilhado e produzido no social, que constrói a realidade dotando-a de significação. Mesmo na física quântica, em 1927 Werner Heisenberg (web, 2007), indicava o “princípio de incerteza e indeterminação” nos resultados das pesquisas do mundo das partículas, dada a impossibilidade  de determinação conjunta dos valores e variáveis, além da interferência do sujeito no resultado das pesquisas. Isto interferir tanto no campo da física quanto da própria teoria do conhecimento. Assim, as ciências sociais e humanas, que buscavam nas exatas seu modelo de objetividade, encontram-se no turbilhão da crítica a seus próprios pressupostos, criadores de falsas evidências.

Os sentidos elaborados, em tempos e lugares específicos, tomam foros de verdade ao serem expressos na linguagem sob a forma de tradição, memória, história, do “sempre foi assim” ;  em sua própria repetição criam constantemente o solo sobre o qual se apóiam, ressematizando as “verdades” historicamente produzidas, como a expressão de uma realidade universal e/ou natural. Em outros termos, seu caráter de verdade inquestionável firma-se na medida de sua constante asserção, nos discursos  que se fazem no quotidiano, na produção e difusão artística e científica.

A idéia de leis  e de uma objetividade total, aplicada ao social e defendida pelo Positivismo e outros “ismos”, em suas diferentes expressões, foi aos poucos sendo abandonada, face à complexidade do real e O desvelamento dos pressupostos que atravessam o discurso científico. Salvo, porém, a idéia dos corpos sexuados “naturalmente” constituídos sempre de forma assimétrica em homens e mulheres, pelos discursos religioso, científico, filosófico, literário, entre outros. Ou seja, existem pedagogias sociais que ensinam a ser mulher ou homem de acordo com certos pressupostos, e que indicam comportamentos adequados para que haja a confluência entre corpo biológico, desejo , práticas sexuais e lugar / função social, corpos que se tornam inteligíveis – normais - na trama das relações sociais.

Neste sentido, Gayle Rubin (1975), antropóloga feminista, desvela,  por exemplo,   alguns pressupostos de  Lévi Strauss, nos quais se assentam suas asserções, como a troca de mulheres na eclosão da cultura ;  mostra como este  um  pré-conceito, baseado em uma representação social produzida sobre o humano determina que “naturalmente”, os homens possuem as mulheres, de forma universal, condição sine qua non , no caso, para trocá-las entre si e fundar a cultura, delimitando inclusive a cisão “natureza /cultura”.  

Ao enunciar esta “verdade”, retomada milhares de vezes no meio acadêmico, Strauss está de fato, criando no imaginário social a idéia de uma sujeição universal e natural do feminino; institui, portanto, como verdade, um pressuposto datado historicamente por suas próprias representações sociais, pelas condições de produção e imaginação do momento em que fala , escreve e cria sentidos no social.

Gayle Rubin (1975) critica igualmente Freud, cuja análise do inconsciente ligou o humano, - sua inserção no social, sua identidade – inexoravelmente, à sexualidade e, sobretudo,  instituiu no pênis e no masculino social , sob um discurso de “natureza humana”, a ausência simbólica que caracteriza o feminino, instituindo assim sua fraqueza e sujeição. Como afirma Luce Irigaray (1977(o feminino torna-se assim, um sexo que efetivamente não o é, já que o único verdadeiro sexo seria o masculino.

A construção / apropriação dos corpos

Mas afinal, o que é uma mulher? perguntava, em 1949 ( 1ª edição), Simone de Beauvoir. É esta questão que, finalmente,  abala a  evidencia maior de corpo sexuado pré-existente  à sua inserção no cultural, já que, como afirma esta autora, “não se nasce mulher, [alguém] se torna mulher. Colocando em pauta o corpo sexuado como uma construção social, os feminismos contemporâneos, que adquirem visibilidade justamente a partir desta pergunta de De Beauvoir, (1966) desarticulam a última certeza da ciência e da biologia, pois fica claro que não basta ter uma genitália específica para ser mulher ou  homem.

Critica-se, assim, a necessidade de coerência do sexo, desejo e sexualidade para que a inteligibilidade cultural do humano seja admitida e adquira foros de “natureza humana”. O “natural”  aqui, do corpo biológico, dotado de certas particularidades, atrela-se ao político, na medida em que define um comportamento “normal” a partir de valores criados pelo social, dentro dos limites pré- traçado. Isto é a coerência entre sexo e sexualidade, isto é a inteligibilidade cultural do humano em sociedades onde o sexo é vetor de identidade. A  genitália, assim, torna-se causa de uma sexualidade paradigmática, da heterossexualidade reprodutiva, cujo ônus recai, principalmente, sobre as mulheres.

Tão enraizada estava esta certeza da divisão sexual binária assimétrica e hierarquizada, que a ausência das mulheres como sujeitos políticos nos discursos da história, da filosofia, eixos do saber sobre o humano, não era sequer notada, até a eclosão dos feminismos contemporâneos.

O silêncio é um instrumento político de apagamento e assim, o que a história não diz, escapa às narrativas da tradição, da memória social, fundadas em crenças, científicas ou religiosas e assim omite, no imaginário social, a presença  das mulheres da vida política em seu sentido mais amplo. Fixadas em seus corpos, tanto para a reprodução quanto para o prazer sexual masculino – casamento ou prostituição- aparecem como moeda de troca, como seres a serem apropriados e utilizados socialmente, já no alvorecer das culturas, segundo algumas tradições. Fica claro deste modo, que o humano é representado a partir de um corpo já-dado, girando em torno de sexo, sexualidade e poder e aos corpos e seus humores são atribuídos valores e criadas normas culturais diferentes, segundo sua definição em masculino ou feminino.

É assim que Emily Martin,(2006) antropóloga e filósofa da produção do conhecimento, professora da New York University, analisa a perspectiva misógina em que se pensa e exprime o corpo feminino. Nesta perspectiva, por exemplo, a menstruação, em variados discursos e culturas é vista como  algo sujo ou doentio, que exclui as mulheres de certas atividades; a autora analisa, porém, a menstruação  como uma função natural do corpo,  representada negativamente no social  já que seria o signo do fracasso da procriação, da função primordial atribuída às mulheres, da disciplina social que as atrela a seus corpos. Ao contrário, diz ela, a menstruação é uma vitória do corpo feminino, que escapa ao “destino biológico” da gravidez repetida e incessante, dentro de sistemas patriarcais de controle do corpo feminino.

Os feminismos dos anos 1970 denunciaram esta representação do feminino delimitado a seus corpos e apontaram as pedagogias sociais como instituidoras do binário hierarquizado, sob a égide do “natural”. A diferença entre mulheres e homens,deste modo, passa a ser percebida como criação contínua, através do que Nicole Claude Mathieu (1991) denomina “ mecanismos de diferenciação”, criadores do “sexo social”. Esta última categoria  vai muito além do aparelho genital , pois todo um construto cultural se desdobra a partir de sua instituição para estabelecer uma divisão de trabalho e de poder social, propícia ao masculino. A diferença binária, portanto, que parece à primeira vista evidente, revela seu caráter construído, fruto de um aprendizado, de uma disciplina social, de pedagogias e tecnologias sociais que ensinam e constrangem as mulheres a lugares específicos, a partir de seu sexo, dito “ frágil”, irracional, intuitivo, dependente, “natural”, em oposição ao “cultural” do masculino.

De fato, a diferença exige um referente: é-se diferente de alguma coisa e este referente é uma construção social, já que é a importância, o valor a ele atribuído culturalmente, que lhe confere este status. É, portanto, uma construção ideológica, política.  No caso da diferença dos sexos, o referente é o masculino social, centrado na posse de uma genitália dotada de poder simbólico e social e a sua definição enquanto tal foi e é renovada constantemente pelo dispositivo do sexo e da sexualidade. Este dispositivo, como explicita Foucault (1976) representa os investimentos econômico, imagético, simbólico, político, lingüístico, artístico, que criam e recitam o sexo e a sexualidade como eixo do social, infligindo modelos, coerções, assujeitamentos, mas igualmente resistências plurais.

 São as tecnologias do sexo, que normatizam e incitam à sexualidade;  ao mesmo tempo, também,  constroem a diferença sexual, os corpos sexuados, classificados em princípio como masculino e feminino. Deste binário “incontornável”, fundado na procriação, nascem os outros, os que são representados como abjetos, reprováveis, ininteligíveis, já que escapam ao controle e à disciplina que instituem os corpos inteligíveis. ( Butler, 1990))  Ou seja, é a importância social dada à procriação que cria um corolário de deveres, obrigações, controles, limites, exclusões sociais em relação às mulheres, instituindo seu sexo social. Esta diferença, portanto, é uma diferença política, baseada em um ponto anatômico, fonte de poder e hierarquia, erigido em eixo de identidade.

 Para ser sujeito no social, as mulheres aprendem que a maternidade é indispensável e este valor lhes é ensinado e inculcado desde a mais tenra infância. E quem não pode, ou quem não quer ter filhos? Mulheres desnaturadas, diria o senso comum, aquele rumor social que cria excluídas e rejeitadas, solteironas, aberrações. A natureza é sempre invocada na condenação das mulheres que exercitam sua liberdade, que abrem vôos muito além dos limites domésticos.

Por outro lado, os corpos definidos como femininos sofrem, no dispositivo da sexualidade e da sedução, a coerção da juventude e da beleza, re-criando o próprio dispositivo, que se alimenta das indústrias de cosméticos e regimes, moda, alimentos light , cirurgias plásticas, modelando e exigindo corpos consumíveis, jovens e cada vez mais jovens. A auto representação das mulheres, atrelada à necessidade da sedução  e a  modelos incompatíveis com a maior parte das mulheres, sofre o impacto da imagem no espelho e sobretudo da imagem percebida no olhar de outrem. É interessante notar como as mulheres brasileiras depois dos 40 tornam-se todas ruivas,POIS como suportar um só cabelo branco?

As mulheres sofrem um processo de convencimento constante quanto a seu físico e sua função social,  bombardeadas a todo instante, pela mídia e por um conjunto de pedagogias sociais – educação, religião,tradições, ciência, televisão, cinema. São as tecnologias de gênero ( de Lauretis, 1987) que instituem  e assujeitam corpos e mentes à imagem da “verdadeira mulher”: mãe, esposa, bela, jovem, sedutora.

Gênero , sexo e poder

A  categoria “gênero” foi criada pelas feministas nos anos 1970 e passou a ser usada justamente para explicitar esta disjunção entre o sexo biológico e as tarefas/ importância que lhes são atribuídas, de forma variada e arbitrária, segundo as vestimentas culturais. Utilizada de forma eficaz em um primeiro momento, gênero, entretanto, passou a ser incorporado na linguagem acadêmica ou comum, como sinônimo apenas de “mulher” , ou no melhor dos casos, como uma construção “relacional” que diz respeito a mulheres e homens.

 Nesta ótica, perdeu-se o cunho revolucionário do termo, que denunciava uma construção política da diferença sexual e esqueceu-se que a construção social binária em gêneros é hierarquizada e assimétrica. Domesticada, a categoria gênero continua a expressar, igualmente, um binário naturalizado, já que no binômio sexo / gênero, o sexo é ainda visto como um dado incontornável na definição do humano.

A forma como esta questão é analisada por Judith Butler (1990) é elucidativa: se o gênero é uma categoria flutuante, que determina comportamentos sociais, pode então ser significada tanto por uma mulher quanto por um homem. Ou seja, de fato, é o gênero – social – que determina o sexo – biológico no aparato cultural que designa importância, funções e tarefas de forma binária.

 Esta destruição da evidência do natural do sexo e da sexualidade se torna clara, para ela, nas performances dos drag king ou queens, quando um corpo de macho ou de fêmea é percebido como o gênero inverso de seu sexo biológico, ou seja, um corpo de mulher com toda a aparência masculina e vice-versa.  

Como vimos acima, as evidências e as certezas vem perdendo terreno face ao questionamento dos discursos de verdade da ciência e a divisão binária heterossexual perde sua força face à pesquisa histórica e antropológica, face a uma biologia que desvenda nos corpos as marcas do múltiplo e faz a crítica dos pressupostos de suas narrativas.Saladin d ´Ánglure, por exemplo, que viveu 40 anos entre os Inouits, explica que, para este povo, o sexo não é determinado pelo biológico, mas através parâmetros de parentesco e de necessidades do grupo para sua sobrevivência. (d´Anglure. 2006)

A pergunta é: a quem interessa a construção hierarquizada deste humano binário ? Quem tira proveito desta divisão e reiteração constante dos seres em sexos diferentes? Quem adquire poder ao nascer, ao se revelar a genitália da criança? Afinal, aprendemos, nas práticas e repetições de hábitos e costumes, o que constitui uma menina e um menino, em uma divisão de tarefas e lazer desiguais. Porém, importante é aquilo a que se dá ênfase e relevo no  social e não se pode ignorar, nesta partilha, o poder auferido pelo sexo masculino, detentor do prestígio e do saber social.

Deste modo, a exclusão das mulheres de tarefas e postos de chefia ou direção funda-se, até os dias de hoje, em argumentos reprodutivos, como amamentação, cuidado das crianças, presença no lar, numa divisão de trabalho que constrói  e reproduz as dimensões do público e do privado e faz da procriação biológica, a maternidade social.  A noção  de  publico / privado , aparece, nesta perspectiva, como uma produção social  ( Pateman, 1988), pois da instituição de corpos sexuados e seus comportamentos esperados fundou-se uma cisão, que se ancora apenas em representações sociais binárias e nunca em capacidade, intelecto, potencialidades individuais.

O que, de fato, senão o sistema patriarcal,  institui o poder de um sexo sobre outro, senão as narrativas em torno da “natureza”, do “natural”, de um binários valorativo e excludentes sublinhado em crenças,  discursos religiosos ou científicos? Porque a escolha do sexo como referente, senão como instrumento de dominação e de apropriação de corpos, os corpos das mulheres, assim definidos por sua função reprodutora, cujos corolários são o casamento ou a prostituição? A crítica feita pelas religiões aos contraceptivos e ao aborto, em caso de gravidez indesejável, é, de fato, a resistência patriarcal à liberação dos corpos femininos da procriação como destino social.

 Nesta ótica,  a heterossexualidade, que se torna  obrigatória na definição do “ ser mulher” significa a apropriação social de seus corpos e de sua força de trabalho, intelectual ou física pelos homens como um todo, pois toda mulher deve ser acompanhada por um homem para obter respeito e proteção social. ( Guillaumin,1978 ) Aliás, ser chamada de “senhorita” ou “miss” ou “mademoiselle” tem apenas o sentido de explicitar socialmente que aquela mulher ainda não foi apropriada, ou seja, não se tornou realmente “mulher”.

 Percebe-se, na linguagem comum, que duas ou mais mulheres em grupo estão sempre “sozinhas”.Este ser social, mulher, no singular, feminino, fêmea, é assim definido e consumido em nome de seu sexo biológico, cuja importância se revela no contacto com o “verdadeiro sexo”, o masculino.

Mas como se explicita esta noção de “heterossexualidade compulsória”? Adrienne Rich(1981) denomina assim,  o sistema social que instaura a sexualidade binária e hierarquizada como um dado da natureza e permite , desta forma,  o uso e a apropriação dos “corpos construídos em mulher”, seres de segunda ordem na escala social. A “heterossexualidade compulsória” é, portanto fundamento de uma representação social inferiorizada das mulheres e sobretudo, de sua definição enquanto gênero feminino. As pedagogias e tecnologias sociais  se empenham na tarefa de convencimento e de imposição de tais paradigmas enquanto decorrentes da “natureza humana”.  Diz a autora:

“ A incapacidade de ver na heterossexualidade uma instituição é da mesma ordem que a incapacidade de admitir que o sistema econômico nomeado capitalismo ou o sistema de castas que constitui o racismo são mantidos por um conjunto de forças, compreendendo tanto a violência física quanto a falsa consciência.” (1981:31-32)

As estatísticas não deixam dúvidas quanto ao emprego da força e da violência para esta sujeição, para a  obtenção de “favores” sexuais, seja através do estupro, seja na violência doméstica, onde a apropriação se faz de forma legal.  Já em 1975, Kathleen Gough (1975:69-70) enumerava sete características do poder masculino em relação às mulheres: interditar-lhes a sexualidade  ou lhes impor uma; explorar seu trabalho e controlar seu produto; entravar sua liberdade  de movimento; utilizá-las como moeda de troca; impedir ou  silenciar sua criatividade; colocar vastos domínios do conhecimento ou de realização cultural fora de seu alcance e ameaça-las através de sua prole.(1975:69-70)

Segundo Relatório da Anistia Internacional 20% das mulheres no mundo são alvo de estupro, uma em cada cinco. Irene Khan, secretária-geral desta instituição afirma:

"Não é algo que só acontece lá longe e com outras pessoas. Acontece aqui, com você, suas amigas e sua família. Não vai parar até que todos nós, homens e mulheres, digamos "não, não vou deixar isso acontecer'" (web,2004)

Este tipo de violência é especificamente dirigido contra os corpos e integridade física e mental da mulheres, porque são mulheres, pois, se não são propriedade de um homem, pertencem, no sistema patriarcal, a todos eles.O estupro tem sido utilizado como arma de guerra, sem distinção de idade ou raça ou estilo corporal: é uma tática que, ignorando as mulheres como seres humanos, é utilizada para atingir outros homens , em suas propriedades.

Existem hoje muitos discursos que afirmam as conquistas das mulheres, que “ já obtiveram tudo que queriam” , que os feminismos são uma relíquia histórica. O que se constata, entretanto, é um recrudescimento da violência contra as mulheres, é uma desigualdade flagrante no mercado de trabalho em termos de remuneração e cargos, é uma constante reiteração de sua identidade “feminina” atrelada à domesticação de seus corpos, em torno da moda, beleza, culinária, maternidade e seus corolários. Basta abrir qualquer revista dedicada às mulheres.

A venda e troca de meninas, o casamento forçado, o tráfico de mulheres, a excisão ou infibulação[1] que atingem mais de 100 milhões de mulheres hoje na África e em alguns países muçulmanos, o estupro coletivo de meninas e mulheres por “rebeldes” em guerras globalizadas, o enclausuramento das mulheres em países muçulmanos, a dupla, tripla, quádrupla jornada de trabalho com a qual convivem milhares de mulheres no Ocidente e no Oriente, capitalista ou não, são indícios de que  tudo está para ser feito. A começar pelas representações sociais das mulheres como seres eminentemente constituídos por seus corpos, orifícios e humores, seres “naturais”, alicerce que sustenta sua apropriação nas “culturas” patriarcais, recitada e construída em tradições diversas, religiosas, filosóficas ou científicas.

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Nota biográfica

Tania Navarro Swain é professora do Departamento de História da universidade de Brasília. Doutora pela Université de Paris III, Sorbonne, tem pós-doutorado na Universidade de Montreal, Québec, onde lecionou em 1997 .Na mesma época foi professora convidada na Université du Québec à Montreal, associada ao Institut de Recherches et d´Etudes Fémnistes. Além do livro O que é o lesbianismo, publicado em 2000 pela Brasiliense organizou outros dois: Historia no Plural e Mulheres em ação , práticas discursivas, práticas políticas. Tem igualmente publicados inúmeros  artigos e capítulos de livros, nacionais e internacionais. É editora da revista digital feminista, Labrys, études féministes/ estudos feministas, multidisciplinar e multilingüe, no site www.unb.br;ih/his/gefem.


 

[1] Estas práticas, que se estendem por grande parte dos países africanos e alguns muçulmanos, extirpam dolorosamente o clitóris das meninas e bebês – versão mais suave, a excisão. A infibulação é a raspagem dos pequenos lábios e a costura do sexo feminino até o casamento, quando então é aberto com uma faca no dia das núpcias. Estas práticas tem ocasionado a morte de milhares de mulheres por infecções diversas e até pelo choque da violenta dor.