Lesbianismo em quadrinhos: a sutileza do humor

tania navarro swain

O humor em suas diferentes formas e especialmente nas histórias em quadrinhos faz parte da cultura de certas sociedades, em temporalidades definidas. Em relação ao lugar das mulheres neste recorte, ou estão ausentes ou tem um papel totalmente secundário e estereotipado, tributárias dos gestos e ações masculinas.

Algumas exceções como Wonder Woman, Super Gril, Xena, Catwoman, são heroínas de suas próprias revistas, dotadas, porém, de corpos soberbos, vestidas sumariamente para melhore seduzir o público masculino.[1] Dentro, portanto, do imaginário social patriarcal, encontram-se à parte do  feminino, caracterizado pela fragilidade e dependência.

Saindo deste esquema, escolhi analisar uma revista em quadrinhos feita por uma lésbica, cujos personagens fazem parte ativa da cena lesbiana, entre humor e seriedade, entre hilaridade e reflexão.

Não esperem de mim discursos teóricos, citações escolhidas dos « mestres do saber », que tentam explicar o que é o humor, desvendar suas nuances e  tonalidades. Alguns se referem ao inconsciente, à relação com a mãe, à frustração, à auto - derrisão; outros analisam os gestos e as entonações, os significantes e os significados. Pois todos pretendem definir o humor.

Fica claro, entretanto, que se faz a diferença entre o humor feminino e masculino, a partir evidentemente, dos traços e características consideradas próprias da « natureza », o que faz derivar o humor em linha direta do corpo e do sexo. Coloca-se assim o masculino no centro ao qual devem se referir as mulheres em todos os domínios, entre os quais o humor.

Há também as classificações para as mulheres humoristas: femininas, feministas, domésticas, sarcásticas, etc. Este tipo de categorização não me interessa, pois reduz a criatividade a limites determinados, definidos.

As mulheres, entretanto, sem se intimidar, tem invadido os palcos para revolver o humor estereotipado, com women-show, cujo sucesso tem sido inegável para muitas, junto ao público em geral mas principalmente junto às mulheres e às lesbianas. Caso de Ellen Degeneris, de Hanna Gatsby, de Muriel Robin, de Wanda Sykes, que por acaso se declaram lésbicas, tema que compõe muitas vezes seus textos.

O que me interessa de fato é o riso subversivo das mulheres, os risos sardônicos, zombeteiros, para melhor desconstruir as relações sociais fixadas nos moldes de um patriarcado que não cessa de se reinventar, sempre em proveito do macho.

Mais difícil ainda que desfazer os estereótipos da “mulher” é questionar as imagens comuns sobre as lesbianas. Mas para falar de lesbianismo pergunto-me em primeiro lugar: o que é uma lesbiana?

Ainda não sei. Mulheres entre elas? Sexo entre mulheres? Relações em torno do corpo, do toque? Amor? Amizade? Com efeito, a palavra  lésbica envia ao corpo, ao sexo, no sentido comum. Mas esta palavra contém também uma recusa, uma resistência: desprezo pela representação da mulher submissa, construída por e para o olhar masculino. Nega os papéis “naturais” impostos à representação e ao sentido de “verdadeira mulher”.

A procriação não me define, oponho-me a tudo que tenta me delimitar, determinar meus gestos, minhas ações, meus desejos. Seria eu então uma lésbica política? Neste caso, agrupar lesbianas e bissexuais não tem o menor sentido,  pois o núcleo de recusa da heterossexualidade enquanto sistema político de dominação é o centro da resistência ao sexo definidor da natureza dos seres e seu lugar no social.

Não quero definir o que é uma lésbica, pois as possibilidades, os contornos são múltiplos: aliás, o agrupamento em torno de práticas ou preferencias sexuais não me convence, na medida em que, penso eu, o corpo e o sexo não compõem uma identidade. Ainda que tivéssemos necessidade de uma...

Se não me agrada a companhia, nem a conversa dos homens, sua percepção da natureza e dos animais, seria eu lesbiana? Ou seria uma generalização indevida? Talvez, mas no imaginário masculino predominam dominantes e dominados, a presa e o caçador; assim, não me arrisco muito se indico que relações de força, de hierarquia, de violência, da arrogância compõe o masculino nascido de uma representação social que erige o homem enquanto sinônimo de gênero humano.

O humor masculino se compraz na misoginia, no desprezo de outrem, da diferença, sempre em relação ao referente principal: os homens, brancos, heterossexuais, de preferencia. O humor das mulheres é visto como inexistente ou perigoso, pois abre outros horizontes. Mas também não quero defini-lo.

O humor das lesbianas também não se define. É, sobretudo a experiência vivida que permite o riso, a ironia, a irrisão, a troça sobre a vida quotidiana, as relações amorosas, as amizades, a inserção no social, toda a materialidade diária que se torna menos pesada com uma piscadela  irreverente. Quer eu seja lesbiana ou não.

Zombar portanto, da experiência de vida abre a via do humor. É o que faz Alison Bechdel, americana, nascida em 1960, cuja revista em quadrinhos « Spawn of Dykes to watcht out for » (1986), seguida de « Post-Dykes to watch out for », (2000)  se debruça sobre a vida de um grupo de mulheres que se auto- identificam como lesbianas.

Vou trabalhar aqui a tradução francesa de 1986, « Le môme, des lesbiennes à suivre », publicado em 1998. O humor, nesta, é um pequeno riso enviesado, de mofa, de chacota. Uma identificação com as situações correntes, um reconhecimento de uma vivencia pontuada pelas cenas de um quotidiano às vezes cômico, mas carregado de todos os pequenos detalhes que fazem da vida o que ela é.

          O humor, neste caso, não é um riso franco tipo ha-ha-ha. É a imbricação do texto à imagem que suscita o humor, este jogo de espelhos que me faz ver minha vida na de Mo, Harriet, na comunidade de amigas na qual a história se desenvolve.

Não há divisão de classe ou raça entre elas. Mas são todas jovens, logo a idade é um fator importante. Não há também uma história completa e seguida, são pedaços de vida, ligados pela política, as passeatas, o trabalho, os objetivos ou igualmente sua falta.

Mo parece ser a personagem principal ( talvez autobiográfica?), político depressiva, a tal ponto que sua parceira e suas amigas começam a suportar com dificuldade seu pessimismo e suas queixas. Ela se faz, aliás, abandonar por sua amante, Harriet, inspetora do Departamento de Estado dos Direitos das Pessoas que não tolera mais suas obsessões.

Quatro dentre elas trabalham na livraria feminista/lesbiana de Jezanna, proprietária de « Wimminwoman Books » : Lois- a dom Juan do grupo- no caixa, Théa, responsável das compras para a livraria e Mo, encarregada do bom funcionamento geral.

No grupo há um casal abastado, uma advogada e uma contadora - Clarice e Toni- que se esforça para realizar uma inseminação artificial com sucesso, baseando seus 12 anos de relação na procriação.

Há ainda Ginger – professora e doutoranda- , e Sparow, assistente social , ligada também às artes ocultas que com Lois vivem no mesmo apartamento. Todas tem portanto seu trabalho e vivem de seus proventos : o fato de ser lesbiana não lhes causa problemas de identidade, questões existenciais ou profissionais, ou  abismos de interrogação que sóem acontecer em processos de subjetivação. Elas saboreiam suas vidas e seus amores.

Vivem plenamente os acontecimentos de sua época, reagem à política, à homofobia, participam às manifestações e protestos, tomam posições às vêzes conflitantes, face aos fatos da vida quotidiana. O humor de Alison Bechdel encontra-se sobretudo nos desenhos, traços limpos e nítidos, e nas expressões : elas se apresentam zangadas, sorridentes, tristes, explosivas, amorosas, ciumentas,reinvidicativas.

As questões gerais da política, do meio ambiente, ou aquelas próprias às mulheres, como o aborto, os discursos patriarcais sobre o corpo ou cirurgias plásticas, todas as concernem e as atingem. Seu lesbianismo não é portanto um mundo à parte, mas totalmente inserido no feminismo e no movimento das mulheres.

Mo, exaltada :

« Mesmo se parássemos de produzir clorofluo-carbono hoje a camada de ozônio continuaria a se deteriora durante décadas ! Mas Bush e as indústrias químicas bloqueiam até mesmo os projetos de despoluição progressiva. »

Ainda na mesma perspectiva, passa à eventual gravidez de Toni.

Mo :

« Aliás, já sei que presente lhe dar : um creme solar de proteção máxima, uma garrafa de água destilada e uma pequenina máscara contra gaz, violeta !» 

Entretempo, Lois et Sparrow discutem a chegada da amante virtual de  Ginger.

Sparrow :

« Você acha que vai funcionar esta relação ? »

Lois ironisa :

« Sim, sim, elas ficarão juntas até os 80 anos, mas este estupor amoroso não vai durar. »   

Sparoww oferece um lugar comum do otimismo :

« Espero que sim. Encarar os conflitos de maneira construtiva é essencial para uma relação durável. » 

De fato, duas questões são colocadas em duas páginas : a duração das relações e os encontros virtuais, o caso entre Ginger e Malika : estes são problemas atuais, que concermem todo mundo, longe de se limitar às lesbianas. Se as personagens se afirmam como lesbianas, as dificuldades apontadas são próprias à sua época : o que é o amor, sua duração, sua busca, os encontros amorosos.

Lois affirma :

« Sparrow, sei que busca a intimidade mas o que eu quero é me divertir » 

Lois é a única do grupo antenada ao sexo e ao número de parceiras, o que para ela é sinônimo de atividade sobretudo lúdica.

Bechdel considera este encontro de Ginger e Malika, depois de intensas trocas virtuais « coisas da vida ». É portanto a denominação que dá a autora à sexualidade, uma das coisas, não o eixo ou o mais importante da vida.

Entende-se que o sexo subjaz às relações entre as amantes, mas graficamente são raras e muito discretas as cenas dos gestos amorosos / sexuais. Malika afirma nunca ter tido orgasmo, mas esta questão não se torna o ponto principal de sua relação, que se inicia. Entretanto, como cineasta amadora, Malika faz vários vídeos de suas relações sexuais, muito apreciados pelas amigas que os encontram por acaso.

A sexualidade não é nada conflituosa ou o mais importante no grupo, como nos querem fazer crer o senso comum, os mídia, as representações sociais do humano. Para o mundo heterossexual, dominado pelo pênis, o sexo é rei ou como sublinha a propaganda: « sexo é vida! » . Seria diferente entre as lesbianas? Bechdel o vê em torno dos acontecimentos, nunca no centro; a intimidade e as relações amorosas a ele se sobrepõem.

Carrol Smith Rosemberg aponta significações peculiares ao amor, onde as amantes transformariam a sexualidade compulsória do casamento em uma relação de desejo que incluiria sexualidade, carícias, devoção e profunda afeição. Pergunta-se: por que o amor incluiria sexo, senão para obedecer a imposições sociais, e sobretudo por que sexo seria sinônimo de amor? (Smith, 1975)

Entrementes, para Harriet e Mo o quotidiano é pesado, pois Mo não abandona suas ideias sobre o quotidiano e não aceita o consumismo:

Mo :

« É isso ! Depois você vai querer uma televisão maior, um som encriptado, e a tv a cabo. É um círculo vicioso. Quanto mais compra, mais quer ! É melhor parar aqui, Harriet. »

Harriet :

« Sabia que você iria me culpabilizar. É meu dinheiro e há longo tempo quero um gravador. »

Harriet propõe a separação e explica que ela « necessita um pouco de tempo », mas os clichês se amontoam e Mo não deixa nada passar.

« Deixe-me ver : viva os clichês. O que acha deste ‘ há outra pessoa ?’ Droga, Harriet ! não sei o que é pior... Ser abandonada por ninguém ou por alguém em particular. »

 E Harriet decide :

     « Muito bem. Vou me mudar. »

Harriet arruma as malas e as duas choram com a separação... que termina na cama. Diz Bechdel :

«  Levadas por uma corrente implacável de fluidos corporais, nossas heroínas se despedem. »

Os desenhos são engraçados, o gato no alto que observa tudo e participa da discussão, o nervoso de Mo, com gotas de suor que se espalham em torno de sua cabeça, os olhos arregalados atrás dos óculos, as sobrancelhas levantadas. E a indiferença de Harriet, o olhar sempre voltado para a esquerda, os braços cruzado, a imagem mesmo da decisão implacável. Mo aparece esmagada no fim da página.

Em seguida, Mo vai à psicóloga por causa da ruptura com Harriet, mas sua aflição é com o racismo, com o governo Bush, os programas sociais e com este discurso ela chora, pela primeira vez em consulta. A ruptura ficou em segundo plano. As imagens são de um desespero total : ela não consegue desligar sua vida privada da política. «  O privado é político » dizem as feministas.

As rupturas são um problema de todo mundo. Lois não resiste ao clichê : «  Uma perdida, dez encontradas, » É o refrão masculino. Mo sonha com uma mulher que a apreciaria de verdade e que saberia cozinhar à maneira Thai, o lado prático de suas aspirações.

  Sparrow faz uma leitura das cartas e diz a Mo que ela sofre a dor da perda de alguém. « Há necessidade de ler as cartas ? » zombam as outras.

Outra cena. Uma nova manifestação se anuncia, desta vez em favor do aborto, com cartazes e palavras de ordem, confrontadas é claro pelos « pró vida ». Elas são, portanto, solidárias com os problemas das mulheres heterossexuais, mesmo se isto não as concerne : como bem diz Monique Wittig, «  a lesbiana não é uma mulher » no esquema binário de dominação masculina, a ‘straight mind’, como ela o denomina. (Wittig, 1980)

Clarice et Toni, que lutam por uma inseminação artificial há meses fazem parte da passeata , pois não abandomam os objetivos feministas entre os quais o direito ao controle de seu próprio corpo. Aliás, apesar de cair no engôdo da maternidade a qualquer preço ( e caro !) ambas desafiam a heterossexualidade usando apenas o que é necessário de um homem : seu esperma. As amigas se indagam se elas são feitas para isto, enquanto a manifestação se avoluma.

A inseminação toma uma grande parte da revistas, assim como o parto compõe suas últimas páginas, com a participação de todo o  grupo. Era, portanto, uma problemática muito presente à época e todas festejam quando os esforços se concretizam : Toni fica grávida.

O desejo de maternidade faz parte de uma das estratégias do patriarcado para fixar as mulheres a seus corpos, um destino que assim se estabelece : a procriação. Seria desejável que as lesbianas se desliguassem disto, mas nos anos 1990 cresceu o número de casais lésbicos no empenho da inseminação artifical e da maternidade como objetivo central.

Na revista, enquanto a inseminação não tinha sucesso, de todo o grupo apenas Ginger tenta questionar :

« Quanto tempo ainda vão tentar ? Talvez vocês não sejam feitas para isto. »

A questão que sustenta o poder do patriarcado sobre o feminino, este desejo incontornável de maternidade que assombra tantas mulheres é rapidamente desviado :

 Clarice :

«  Oh, deixo-nos em paz ! Você diria a mesma coisa a heteros que tentam há apenas 4 mêses ?  »

E Sparrow affirma uma espécie de especificidade da maternidade lesbiana :

« Mas vocês não são heteros. Estão fazendo algo realmente diferente. Somos suas amigas e isto nos concerne. »

Diferente? Se não há ato sexual com um homem, o esperma é necessário, a maternidade independente ainda está para ser inventada. Quem sabe a clonagem...

Bechdel, entretanto, apesar de 3 páginas consagradas à inseminação e seu sucesso, textos e imagens em apoio, dá um título que sugere um futuro possível : « emasculada concepção », jogo de palavras que fazem irromper o humor.

De fato não se trata de julgar o desejo de maternidade das lésbicas. É necessário, entretanto, colocar os pontos nos iii em uma perspectiva feminista: se a heterossexualidade compulsória (Rich, 1981) é contornada, seu paralelo, todavia, a procriação enquanto tarefa necessária ao feminino, permanece intocada. Se o privado é político e o pessoal também o é, toda tomada de posição como lesbiana é igualmente política, quer seja consciente ou não. O sistema político que define a heterossexualidade como sendo « natural» continua intacto em seus pilares.

 Bechdel dá um outro título que retoma este aspecto : « instinto materno ». É, de fato, sob a fantasia de instinto que o patriarcado instaura a necessidade da reprodução, destino incontornável das mulheres.

É esta tríade que limita a ação das mulheres enquanto sujeitos políticos : a procriação, o casamento, a prostituição. Os papéis decorrentes são a mulher doméstica – do lar- , domesticada e a mulher pública, situação infame que reduz o feminino a orifícios disponíveis para todos e qualquer um.

Interpreto, entretanto, que a autora da revista apoia o movimento da « maternidade lésbica » . A menos que sua postura seja irônica, pois minha interpretação não deixa de ser subjetiva. No fim da revista, tudo se volta ao parto, e aparece um novo personagem : um menino. Como em inumeráveis casos de lesbianas que dão à luz, não nasce uma menina , mas um menino que introduz o masculino em suas vidas.

« As coisas esquentam », título de um novo tema. « Elite cultural trabalhando », cartaz na porta da livraria. Novo capítulo e surprêsa ! As personagens tomam posse da revista e discutem seu futuro. Em conjunto, fazem o balanço da história. Quem está com quem, quem dorme com quem, os amores virtuais, o lugar de Théa na história- ela aparece muito pouco, sua personagme parece estar lá para justificar a inclusão de cadeirantes, pois está sempre em uma cadeira de rodas. O que não a  impede de ter uma amante.

Mas as discussões se desviam, passando pela questão de transsexuais e transgêneros, que Jezanna considera

« moderna e humanamente passionante »

A autora aborda a intrusão dos trans na comunidade lesbiana de maneira rápida, não sei se irônica ou com aprovação.

Toni :

 « Deveríamos talvez mudar o nome da revista : Lesbianas e transgêneros em questão »

Percebo esta proposta como uma ironia: uma piscadela sobre o « homem lésbico », que se imiscui nos grupos lesbianos quase à força, sob o argumento que o sexo não tem importância e que eles « se sentem mulheres ».

Isto apaga toda perspectiva feminista de que « as lesbianas não são mulheres » já que escapam ao esquema patriarcal da definição do feminino. As lesbianas se vêem invadidas por pênis em profusão, intimadas também à relações sexuais, cuja negação seria « discriminatória ». Visão enviesada que pretende transcender o sexo sob a alegação de pertencimento ao gênero oposto, por simples declaração.

A questão está longe de ser tão simples.

As relações sexuadas e sexualizadas que invertem os papéis de gênero não mudam nada, de fato, às significações sociais dadas, pois se insstauram no binário heterossexual ou então pretendem inventar uma homossexualidade na qual o « homem lesbiano » seria o protótipo. Ou seja, a intrusão do pênis nas relações lésbica/lésbica, aquelas que representam o último baluarte contra o patriarcado.

A perspectiva teórica que comtempla a dissolução do binário e das identidades não pode admitir uma simples transposição de um sexo à um outro, de um genero à outro, movimento que não serve senão a reafirmar o sexo e a sexualidade como princípios fundadores do humano. Sem nada propor que leve à mudança das representações binária, aquelas que ordenam as relações humanas no presente, entre dominadores e dominados. De toda forma, um pênis que penetra uma vagina não pode em nenhum caso ser considerado outra coisa que um ato heterossexual.

O capítulo sobre o sequestro da revista pelas personagens acaba com uma votação propondo consagrar os novos epsódios ...às eleições presidenciais.

Para não fugir ao « moderno », ao politicamente correto, a bissexualidade é igualmente abordada na revista : Mo, Ginger e Clarice discutem a novidade : Naomi tem um amante.

Clarice se revolta :

«  O pior é que ela está criando um grupo de apoio às bi. »

Ginger, « moderna », exclama :

« Pare. Parece que estamos no primário. Ela tem o direito de ser bi e de criar um grupo, não ? »

Mo reduz a  questão às denominações

« Mas eles aborrecem. É preciso mudar todos os nomes de grupos para colocar neles ’bi’. »

Com efeito, o agrupamento em torno de pontos comuns é completamente válido. Mas neste caso, é introduzir como natural a bissexualidade nos grupos lesbianos.

Pois não é apenas a sexualidade que associa as lésbicas, ao contrário : é a união lesbiana /lesbiana, longe dos avatares masculinos de dominação e violencia, como ponto de resistencia ao patriarcado.

Na revista, deste modo, não há paródias de casais lésbico/heterossexual, do tipo butch/ femme, pois nenhum papel é definido para as personagens em suas relações. Apenas Mo e Lois tem uma aparencia andrógina.

Assim, a bissexualidade é mal digerida. Por ocasião de uma visita de Naomi `(bi) à livraria, Mo exclama :

« Já pensou ? Ela dorme com um cara. É chato dizer isto, mas eu me sinto um tanto traída. »

Théa :

 « eu também. »

Mo :

«  e além disto me aborreço que ela venha aqui tomar seu banho de cultura lesbiana. E após, volta logo ao calor do cara. »

Lois :

« Do que tem medo, Mo ? Quanto mais gente ama a cultura lesbiana, melhor para mim. »

Apesar desta opinião, Lois se encarrega dos voyeurs que invadem a livraria. Não se deixa levar por estes pervertidos para quem uma livraria lesbiana é sinonimo de pornografia.

De um ponto de vista político, a bissexualidade não muda nada para o patriarcado. Ao contrário, insere nos grupos e reuniões lésbicas a reafirmação da heterossexualidade, portanto, do patriarcado em seus fundamentos, o que as faz perder a posição de resistência e singularidade.

Toda a teorização feminista sobre o lesbianismo se perde no refrão das reuniões mistas; a aceitação do ‘homem lesbiano’, a inclusão de todo mundo sob pretexto de liberalidade. Quer queiramos ou não, o lesbianismo se perde nas siglas LGBTTIQ e quem sabe mais o quê. É de fato o reagrupamento  de pessoas que não tem nada em comum a não ser uma reivindicação qualquer relativa à sexualidade.

Outra página, outra cena : a livraria está cheia de .Lois se encarrega deles e o texto é hilariante : 

« Procura algo, meu senhor ? Conhece isto ? A foto do mês : são três garotas tatuadas dos pés à cabeça com arreios e que raspam sob os braços . Mas se quiser o fino do fino aconselhor ‘recorde de jato’ uma antologia sobre a ejaculação feminina.

Ele:

« Desculpe, estou mal estacionado. »

Lois :

«  Outro dia pus um tipo tão mal à vontade que ele acabou gastando 60 dólares antes de sair.»

« Palavras para rir » título do capítulo onde o bebê de Toni se mexe pela primeira vez e Mo não pode evitar o comentário :

« Não sei vocês, mas para mim isto me lembra Alien... »

Piscadela irônica e mordaz .

Em seguida a livraria tem sua vitrine quebrada, onde se expunha «  memória de uma lesbiana policial ». As garotas estão encolerizadas : a homofobia se revela assim que as lesbianas falam de família, de posições sociais como soldado ou policial. São nichos reservados aos ‘normais’.

Mo :

«  É o blacklash ! Enquanto reivindicávamos apenas o direito de desfilar em junho tudo bem. »

A lesbofobia é a reação do patriarcado pois ameaça a dominação masculins com a indiferença.(Rich, 1981) que mostram em relação aos homens. Assim elas lhes provocam o mêdo, pois a « disposição inata » para o sexo oposto é desmentida.

O que seria do patriarcao, se as mulheres não se deixassem assujeitar pelos mitos e fantasmas tais como o casamento, o instinto materno, o amor eterno, o cuidado com outrem como destino feminino ?

O lesbianismo é o terror do patriarcado, pois destroi os fundamentos de seu poder sobre as mulheres : as representações sociais e as práticas que as instauram para criar a imagem da ‘ verdadeira mulher’, submissa às injunções de seus corpos, do poder e do desejo sexual masculino.

Quanto mais as lesbianas se tornam visíveis, mais a lesbofobia se manifesta com estupros coletivos ‘ para lhes ensinar seu lugar’, pela violencia generalizada, golpes, ferminentos e ataques a seus lugares de encontro.

A criatividade lhes responde, como o CLITO, Coletivo Lésbico de Improvisão Teatral Ofensiva ( outra piscadela significativa da autora sobre o clitóris) exemplo de manifestação de visibilidade, resistencia ou afirmação enquanto sujeito político no mundo do trabalho, da arte, da cultura, das instituições em geral. É assim que a profissão de muitas das personagens são ligados a cargos estatais e ao aparato judiciário.

O grande acontecimento do ano para as lesbianas da revista é «  Marcha Gay em Washington » . Lois nela beija uma mulher de cada Estado, Mo se perde no metro, Clarice e Toni se casam.

Na volta, Mais constata :

«  De fato lutamos para ter uma parte de um bolo estragado. Isto é recuperação. É preciso tudo revirar. E se ouço alguém ainda dizer que ‘somos como todo mundo’, eu berro ! »

Mas, contraditória, Mo deveria ser testemunha do casamento de Toni e Clarice, porém... enganou-se de estação de metrô.

Os desenhos desta parte da revista são realmente engraçados, as expressões, gestos, os traços sempre nítidos e claros vem acrescentar o humor à seriedade dos temas abordados.

Enquanto isto, as coisas se tornam difíceis para Toni e Clarice, cujo trabalho, muito engajado, toma- lhe todo o tempo. Ela festeja seu novo projeto com as amigas pois Toni « está cansada » mas se queixa de solidão. Clarice abandona o acompanhamento dos exames e o curso para o parto e Toni se ressente. Um problema corrente para os casais : quem não está grávida se afasta um pouco ou muito. Hetero ou homossexual, a questão é a mesma.

As duas páginas seguintes são cheias de sexualidade, coisa rara na revista. Mo usa um vibrador. Toni e Clarice se reconciliam na cama, Ginger e Malika sempre com seus vídeos bem explícitos.Sparow tem uma nova amante, e Lois, a que vive uma sexualidade exacerbada é a única sozinha em seu quarto, tapando os ouvidos para não escutar os gemidos que vem de toda parte. São página que tratam a sexualidade das lesbianas sem véus e sem problemas. O titúlo acompanha o clima : « noturno para instrumentos diversos ».

Em seguida, as lésbicas aparecem como novo tema para os mídia. Mo se insurge :

« Não realizávamos nossa felicidade quando éramos invisíveis. A verdadeira subversão é se afastar da cultura comercial. Não acha, Théa ? »

Théa :

« Nao, é sim ter lesbianas nas publiciades de Benetton ».

Mo muda rápido de ideia, pois está interessada em conquistar Théa :

« Isto mesmo, para enfrentar a homofobia e a misoginia a única solução é destruir o mito segundo o qual as lesbianas não existem de verdade »

A visibilidade é portanto, uma faca de dois gumes : de um lado, assegura uma existencia que resiste, e a negação da domínio masculino, mas por outro, abre o flanco à todas as violencias para arrastá-las ao « bom caminho » ou simplesmente para eliminá-las, matá-las finalmente. Pois não se desafia a ordem do pai impunemente.

Alison Bechdel maneja o humor entre imagens e textos mas são sobretudo as imagens que provocam o riso, ou apenas uma risadinha de identificação. As imagens são vivas e criam a ação, enquanto os textos rementem à constatação ou à reflexão sobre as questões levantadas.

A hilariedade provocada por certas situações ressalta a seriedade das questões políticas – que tomam muito espaço na vida das personagens da revistas- das relações amorosas, da amizada, do trabalho, da sexualidade, das especificidades vividas pelas lesbianas de seu tempo.

O humor é uma arma que instiga, que provoda e o formato dem revista em quadrinho torna mais fácil a interlocução com as leitoras. A ironia ou a adesão da autora à certas circunstância são uma questão de interpretação da receptora do texto / imagem.

Em todo caso, a leveza define este tipo de abordagem de problemas tantas vezes partilhados pelas mulheres,  sejam elas heterossexuais ou lesbianas, enquanto assim são definidas em um sistema patriarcal. Entretanto, quanto à questão da « diferença » que defne as mulheres em relação aos homens, as lesbianas, são ainda mais « diferentes » : em relação aos homens e às próprias mulheres,  já que não vivem o esquema de assujeitamento heterossexual, elas não são mulheres.(Wittig,1980)

Referências  :

Rich, Adrienne. 1981. La contrainte à l´hétérosexualité et l´existence lesbienne. Nouvelles Questions Féministes, Mars, Paris: Éditions Tierce

Wittig, Monique . 1980. La pensée straight. Questions Féministes, février, Paris: Éditions Tierce

Rosemberg, Carrol Smith.1975.The female world of love and ritual. Signs: Journal of Women in Culture and Society 1, no. 1, 1975, 1 – 30.