Feminismo  e Lesbianismo : a identidade em questão.

tradução de capítulo publicado em Paris, no livro do cinquentenário de Simone de Beauvoir( publicado em cadernos Pagu)

      As relações entre o feminismo contemporâneo e o lessbianismo  foram marcadas por tensões  e aproximações  no desenrolar das teorias feministas e dos movimentos sociais de mulheres.    De uma forma  muito geral e com a pertinência que podem conter as generalizações, o lesbianismo aparece no movimento feminista como a radicalização extrema  na recusa  de um mundo patriarcal , propondo o separatismo na vida social,  a criação de espaços de onde os valores masculinos seriam extirpados , uma utopia moderna  onde a violência e o poder não teriam lugar  de existência ou expansão. Na recusa do domínio masculino e da submissão feminina ligados às imposições de gênero , as comunidades lésbicas canadenses e americans, por exemplo,  excluíram os homens de seu cotidiano. Neste sentido o questionamento  da heterosexualidade aparece como uma prática antes mesmo de retornar em força, na descontrução das identidades. À afirmação da categoria “mulher” enquanto sujeito seguiu-se, nas teorizações feministas, sua disseminação: “mulheres” no plural, levando-se em conta não apenas as diferenças intergênero mas igualmente intragênero. Igualdade, diferença,  gênero ,  categorias problematizantes que compõem e atravessam as diferentes teorias feministas deste século em torno do  que finalemente é este “ser mulher “, ou “mulheres”, o que é o feminino, o sexo feminino? O lesbianismo reaparece nos anos 80 como parte da reflexão que interroga a categoria “gênero” em seu fundamento maior: a divisão binária e “natural” da sociedade em dois sexos, pressupondo assim a heterosexualidade.

          O que se problematiza é a desnaturalização do próprio sexo biológico na construção do binômio natureza/ cultura: a heterossexualidade posta em questão. Afinal, a ênfase dada à diferença física é relativa às matrizes de sentido que presidem  a construção cultural dos gêneros, como por exemplo, a reprodução enquanto critério máximo de “naturalização” do binômio sexo/gênero. Se por um lado, a contestação da heterosexualidade contribui para um aprofundamento do debate na modificação das estruturas mentais e representacionais, o próprio lesbianismo é uma questão enquanto categoria, pois na dissolução das identidades em frações infinitesimais , o que significa ser lésbica?

           Como se pode designar uma identidade à partir de uma prática, a sexualidade? E porque, como  esta prática tornou-se o eixo en torno do qual se constitui um indivíduo? De fato, se a prática ou a preferência sexual constrói um ser social - a lésbica - a prática heterossexual constrói a fêmea , igualmente um ser social cujo  naturalização torna inquestionável o biológico . Mas o leque de práticas que compõem esta categoria - a sexualidade-  tem suas polaridades enfatizadas segundo a importância que recebem da rede de sentidos na qual estão inseridas, o que Butler chama de “matrizes de inteligibilidade”.

           A apreensão do mundo e dos seres se faz assim num cadro de pensamento ordenado por certas categorias, por imagens e representações sociais que designam os lugares e os papéis em sua atividade incessante de constituição e criação do real. O imaginário instituinte, tão bem descrito por Castoriadis se inscreve deste modo em um tempo e um espaço determinados e torna as categorias instituídas evidentes, indiscutíveis.

           Este é o caso do sexo e da sexualidade, tantas vezes confundidos e imbricados cujo pregnância sobre o social repousa somente na importância que lhes damos. Entretanto, as matrizes de sentido que balizam nossa interpretação do mundo impedem-nos de perceber a construção social e linguística do que consideramos inevitável, natural e biológico. Em várias autoras feministas como Haraway, Butler, de Lauretis, Baidrotti, entre outras, a crítica do sexo biológico enquanto dado natural e do gênero como categoria fundamental  de análise social ganham importância e penetram o debate geral do feminismo traduzindo a inquietação “pós-moderna” de identidades múltiplas e disseminadas. Isto significa que, na economia do desejo, a homologia entre o sexe e o gênero tende a se desfazer e isto não apenas nos quadros exóticos dos estudos antropológicos; esta quebra se faz também sob nossos olhos na expansão de sexualidades múltiplas.

           Nesta ótica, assim como os estudos feministas se debruçavam sobre “o que é uma mulher? podemos indagar : o que é uma lésbica?” Mulheres que amam mulheres? Que fazem sexo com outras mulheres? Que se sentem atraídas mas não ousam o  sexo? Que amam outras mulheres e fazem sexo com homens?  A própria bisexualidade que hoje se desvela torna irrelevante as defnições em torno de práticas.

           O lesbianismo não pode ser um definidor de identidade já que não pode nem ao menos ser definido enquanto categoria. Tema espinhoso e quase sempre ausente  nas teorias feminstas que nos precedem, ocupadas com os problemas derivados da divisão binário do social aparece entretanto , há cincoenta anos, na obra máxima de referência do feminismo contemporâneo: o Segundo Sexo de Simone de Beauvoir.

           Neste livro pioneiro, De Beauvoir perfura o horizonte epistemológico de sua época demonstando a construção social das categorias mulher/homem; porta-voa autorizado de sua época, o peso de sua legitimidade intelectual atravessou os estudos feminstas e marcou , de alguma forma, a circularidade que liga as teorias e as práticas.

          Entretanto, enreda-se nos sentidos que esclarecem e ao mesmo tempo escondem a seus olhos as ambiguidades das representações sociais, onde a  lógica do desejo masculino é que define o lesbianismo, em um mundo marcado pelo binário heterossexual da norma disciplinar.

         O texto de De Beauvoir sobre o lesbianismo insere-se em um sociograma dado, “este conjunto informe, instável” que representa uma “atualização do imaginário social em sua própria indecidabilidade.” Com efeito, a indecisão argumentativa vinca este discurso que navega nas águas do senso comum, da “autoridade” dos testemunhos  mas apresenta em certos momentos  uma análise aguda das imagens construídas sobre preconceitos.   A frase-choque do capítulo sobre o lesbianismo e que acompanha a desnaturalização do social seria esta: “Na verdade, nenhum fator é jamais determinante; trata-se sempre de uma escolha efetuada no coração de um conjunto complexo e repousando sobre uma livre decisão; nenhum destino sexual governa a vida do indivíduo; seu erotismo traduz ao contrário sua atitude global quanto à existência.”

          Muito atual esta afirmação que separa o erotismo ( aqui entendido como sexualidade) e o sexo biológico num quadro de apreensão do mundo; afirmação da liberdade e da escolha  na coerência da pessoa, do indivíduo face ao social. O lesbianismo seria assim uma escolha pessoal , “existencial”.

          Por outro lado, suas considerações sobre o amor entre as mulheres, que aqui se confunde com a sexualidade, criam um universo erótiqco onde o binário desaparece em todos seus aspectos de oposição para ressaltar a interação entre dois seres: “as carícias destinam-se menos a apropriar-se da outra do que recriar-se lentamente através dela; a separação é abolida, não há luta, nem vitória, nem derrota; em uma mesma e exata reciprocidade cada uma é ao mesmo tempo o sujeito e o objeto, a soberana e a escrava, a dualidade e a cumplicidade.”

          Neste idílico universo, suas considerações tem o mérito de contemplar a quebra da representação social de um mundo divido em deux, de hierarquia e assimetria que estão ligadas à heterossexualidade obrigatória. Num sopro utópico vemos assim se desenhar o lesbianismo como um locus de não violência e de harmonia. Adrienne Rich contradiz  esta perspectiva e suas reflexões sobre o lesbianismo trazem o gosto amargo de um imaginário social que impregna todas os relacionamentos com seus esquemas de luta e de dominação: “ Isto inclui também a reprodução dos papéis, o ódio de si mesmo, a depressão, o alcoolismo, o suicídio e a violência entre mulheres.”

          Porém neste mesmo capítulo, e a despeito de seu aspecto contraditório, de Beauvoir desenha um retrato pouco lisongeiro das lésbicas, modeladas no medo e na recusa do confronto: “Elas consideram de bom alvitre desviar-se de um parceiro que se apresente sob a figura de um adversário; e desta forma libertam-se dos entraves implicados pela feminilidade”.

            O lesbianismo aparece também como o fracasso de uma sexualidade “normal”, último refúgio das mulheres cujo físico ingrato não atrai os homens. “Desgraciosa, mal formada, uma mulher pode tentar compensar sua inferioridade adquirindo  qualidades  viris.”, dirá de Beauvoir. E acrescenta: “O desdém masculino confirma a feia no sentimento de sua falta de beleza ; a arrogância de um amante ferirá a orgulhosa. Todos os motivos de frigidez nos quais pensamos: rancor, inveja, medo da gravidez, traumatismo provocado por um aborto, etc, encontram-se aqui.”

            Tornar-se lésbica é portanto uma saída para a inveja, a feiura, as famosas “mal amadas”que se voltam para o mesmo sexo pela impossibilidade de ter relações ‘normais” ou por frigidez pura e simples. “ Nada  dá uma impressão maior de estreiteza de espírito e de mutilação que estes clans de mulheres liberadas” diz de  Beauvoir. Se em seu discurso encontramos a escolha do lesbianismo atribuída a este tipo de fatores , estes mesmos epítetos vão povoar as considerações sobre as feministas durante décadas, estas “viragos”que não podem senão detestar os homens.  No afã de explicar porque uma mulher se torna lésbica, de Beauvoir  mergulha na norma da heterossexualidade. Desta forma acrescenta: “ Da mesma forma que a mulher frígida deseja o prazer  ao mesmo tempo que o refusa, a lésbica gostaria muitas vezes de ser uma mulher nornal e completa, mesmo não o querendo”.

            O peso deste senso comum em de Beauvoir parece espantoso, mais isto apenas demonstra o poder das representações no discurso social, no imaginário que habita tudo o que é dito, escrito, publicado, discutido, enunciado em um estado de sociedade específico. O traço mais marcante deste texto p oderia ser a referencia maior e constante ao homem, às relações heterossexuais e sua ‘normalidade”em suas reflexões sobre os lesbianismo. “[…] muitas vêzes é a natureza das experiencias heterossexuais que decidirá a mulher “viril” a assumir ou repudiar seu sexo.” E igualmente: “[…] existe entre elas, como na mulher frígida a repulsa, o rancor, a timidez, o orgulho […] ; ao seu rancor feminino acrescenta-se um complexo de inferioridade viril […]” .

            Para delimitar a imagem da lésbica, parece necessário ancorar uma certa representação DA mulher: assim se ela denuncia a construção da imagem da “verdaeira mulher” ”[…] produto artificial que a civilização fabrica […]” de Beauvoir dá algumas receitas  para as mulheres liberadas: “A mulher que não quer ser vassala do homem não necessita fugir-lhe: ela tenta, em vez disto, de fazer dele o instrumento de seu prazer. […] a idéia mesmo de competição se abolirá e ela viverá em  plenitude sua condição de mulher”; “[…] ela não pretende tampouco se mutilar de sua feminilidade […]”.

           Com efeito, o enunciado que foi e será ainda repetido dezenas de vezes “não se nasce mulher, torna-se”, é negado por este gênero de argumentação na medida em que se desenha nitidamente uma “natureza”feminina, uma feminitude que se afirma não somente em relação a masculino, mas também em oposição äs “atitudes viris” das lésbicas. A inversão, palavra empregada muitas vezes por de Beauvoir sublinha a nocção de uma ordem transtornada.

           Esta rápida análise do capítulo sobre o lesbianismo no Segundo Sexo , obra básica na fundamentação do feminismo a partir da segunda metade deste século, ilustra as dificuldades do trabalho crítico no mundo de representações sociais que compõem a normatividade, os valores e as hierarquias a eles assimiladas. Desmascarando a construção social dos papéis sexuados , de Beauvoir  não hesita em falar da “verdadeira mulher”  face à qual se encontram as lésbicas, cuja sexualidade seria infantil, incompleta, “[…] se sua sensibilidade erógena não é desenvolvida, ela não deseja as carícias masculinas”. “ […] inacabada enquanto mulher, impotente enquanto homem seu malestar se traduz às vezes através de psicoses.”  De seu lugar de fala privilegiado, de Beauvoir interina as representações e os preconceitos sobre o lesbianismo e reforça o biológico enquanto “natureza’  em oposição à construção dos papéis sociais. A matriz de inteligibilidade deste capítulo poderia ser apontada como a heterossexualidade e a naturalização desta relação, apesar de sacudida principalmente por Adrienne Rich e Monique Wittig nos anos 80 só começa a tomar vulto no discurso teórico feminista na década de 90.

           A crítica feminista atual se debruça sobre os quadros de pensamento que ordenam as categorias sexo/ gênero na produção do saber e os efeitos de poder que assim são engendrados. Isto significa que a pesquisa teórica se volta para a genealogia do quadro binário e sua pregnância sobre o imaginário social e suas representações.

           Neste sentido, o sexo biológico é posto em questão enquanto elemento pré-discursivo, natural, pois o lugar que lhe é dado faz parte de um sistema de sentido dado. Assim, perde sua evidência enquanto significante geral das relações sociais, solo da divisão binária da sociedade. A prática héterosessexual que Tereza de Lauretis nomeia “Sex Gender System”, um construto socio-cultural, un aparelho semiótico e um sistema de representações confere uma significação à sexualidade em uma rede de valores: sobre o binário “natural”do sexo biológico eleva-se um edifício de hierarquias e assimetrias, um sistema simbólico fundado sobre sua representação que adquire a evidência da enunciação repetida, da tradição cultivada, de uma memória cuidadosamente elaborada em história.

           Adrienne Rich comenta assim o lesbianismo: “ A destruição dos traços, das memórias e das letras atestando a realidade da existência lésbica deve ser levada em conta seriamente como meio de preservar a compulsão à heterossexualidade.”

           Para de Lauretis a instituição da heterossexualidade obrigatória chama-se heterosexismo, categoria que fundamentaria o binário universal como base de elaboração do gênero. Para esta autora, o heterosexismo “recupera o potencial epistemológico radical do pensamento feminista no interior da casa do senhor.”  Qauebrar o binário seria assim abrir as portas de um sistema de significações que obscurecem o múltiplo em uma coesão identitária em torno do sexo biológico. E isso nos leva à questão da identidade, questão que anima o debate atual.

           Se deixamos de lado as “evidências”naturais que encontrarm seu sentido no cultural, se nos desembaraçamos da essência do ser, da ilusão du sujeito fundador de seus discursos e de suas práticas, encontramo-nos diante do múltiplo cuja identidade delimita-se apenas pelas imposições do social. De fato, o que é o feminino, o que é o masculino quando a categoria do gênero se insere igualmente no processo de produção do corpo, um apparatus construído pelo imaginário heterosexual, binário? Com efeito, Butler considera que não existe identidade de gênero atràs da expressão do gênero; esta identidade em seu entender, seria constituída pela expressão da qual ela deveria ser o resultado.Assim, para Butler, a continuidade identitária “[…] não é feita de características lógicas ou analíticas da personalidade mas socialmente instituída e mantida nas normas de inteligibilidade” Nesta ótica, os mecanismos de construção de uma identidade generizada, estabelecida em bases relacionais de sexe, gênero, prática sexual e desejo, derivam de normas reguladoras da heterossexualidade obrigatória. A “verdade do sexo”em suma. O que acontece com as práticas que fogem à esta verdade, que opõem o múltiplo à unidade, a dispersão à coerência do eu dotado de gênero?

          O que é afinal o lesbianismo em uma rede de sentidos dominada pela heterossexualidade , tal como se apresenta em grande parte das teorias feministas? Práticas desviantes, ligadas à sexualidade? Sentimentos que se dirigem às pessoas do mesmo sexo? Uma erótica particular? Uma escolha política, como nos primeiros tempos do feminismo, as heterodykes? Ou práticas de recuo e de frustação diante dos homens como aparece em de Beauvoir?

         Não é possível esquecer a frase de Wittig : “uma lésbica não é uma mulher”, definição em negativo, locus maior de resistência ao patriarcado. Mas esta própria designação  supõe um quadro de epistemológico que coloca o lesbianismo num conjunto de práticas cuja referência axial é a sexualidade e o sexo. A visibilidade lésbica, as maneiras de se vestir , de ser diferente, de sublinhar uma singularidade não fazem senão interinar a ordem binária na medida que expõe uma diferença e a diferença supõe um modelo. Assim, a questão espinhosa de “sair do armário”, de “ser ou não ser”não se coloca que se a heterossexualidade é obrigatória e que a homoliga sexo/gênero, sexualidade/ desejo define a normalidade em sua exata correspondência.

         Meu argumento é que nem o sexo biológico nem o gênero nem as práticas sexuais podem dar uma defnição do ser humano, atestando uma essencia qualquer ou uma substância estável de homogeneidade individual. Como sublinha Nicole Claude Mathieu, a ênfase desliza da diferença entre os sexos para o processo de diferenciação social dos sexos e da criação de corpos sexuados. Para Haraway, os corpos são  nós geradores materiais e semióticos cujas fronteiras se definem na interação social. Mas como objeto de saber, não exitem enquanto tais antes de sua criação, são “projetos de fronteira”que se materializam de acordo com as práticas normativas. A criação de corpos sexuados, a instalação de diferenças e de espaços de exclusão afirmam uma normalidade que apaga o múltiplo e naturaliza o binário. O “apparatus”de construção do corpo enquanto significante geral do ser define as fronteiras do sexo biológico do qual não nos desfazemos sem ameaçar a ordem instituída. Mas neste sentido, assumir a representação social da inversão e o nome dado às práticas ‘desviantes” legitima a norma que determina as zonas de exclusão. Muitas vêzes, aliás, os casais de lésbicas reproduzem uma divisão generizada de papéis, num mimetismo cujo efeito de espelho é uma “mise en abîme” da assimetria e da hierarquia.

           De toda maneira, tentar traçar um perfil Da lésbica ou Das lésbicas é uma tarefa impossível pois não há substancia à qual se prender, não há um bloco homogêneo e monolítico de coerência, não existe experiência unívoca que possa tomar o lugar de um referencial estável. Além disso, a própria noção de casal não é evidente, quer seja heterossexual ou homossexual: é a sexualidade que o define? O sentimento? A coabitação? Laços institucionais? Nenhuma resposta positiva compreende em si a noção de casal e seu conjunto pode ser desdobrado em séries inumeráveis.

         É muito fácil cair no essencialismo quando se reivindica uma identidade, quando se liga o ser à uma prática, à uma atração, à um gosto, nem tão particular assim. Uma definição já é uma delimitação, é cercar um espaço que logo darás origem à novas exclusões. A necessidade de se dizer, de se explicar, de se traduzir pela sexualidade faz parte de notre quadro de pensamento, da época pós-psicanalítca; de fato, a questão que se colocaria é: porque temos necessidade de uma identidade senão para responder às exigências de uma moldura binária de pensamento ?

        Tomarei aqui no que diz respeito à identidade  lésbica as considerações que Braidotti tece sobre a identidade das mulheres em  geral: um conjunto de experiencias múltiplas, complexas, potencialmente contraditórias, atravessadas por variáveis como classe, idade, maneira de viver, preferências sexuais, etc. Acrescentaria o espaço e tempo vividos, a linguagem e a língua e as constelações de sentido nas quais se constróem e se auto-representam os indivíduos. Uma identidade portanto em construção, móvel, fluida, nômade, transitória; uma identidade somente retrospectiva, que indica onde estivemos e não estamos mais, no que Braidotti chama a “cartografia nômade”.

       A identidade nômade é assim uma posição de sujeito ocupada em uma situação, em uma sociedade dada. E nesta ótica, eu não sou lésbica e vocês não são mulheres; de toda maneira não existe lésbica onde não existem mulheres. Não há c]opias pois os modelos se esgotaram em sua busca de essencia e de transcendência, em sua busca do ponto nodal e definitivo de significação, sem saber que deus se suicidou quando modelou o masculino à sua imagem e semelhança. Neste mundo instituído por representações, a identidade é uma ficção e a incerteza e o paradoxo  são as conquistas maiores de nosso tempo para desmascarar as verdades de todos os tempos. Faço minhas as palavras de Christine Delphy: “[…] não se faz avançar o conhecimento sem, em um primeiro momento, aumentar o desconhecimento, alargar as zonas de sombra, de indeterminação; para avançar, é preciso antes de tudo renunciar a certas evidências […] que nos impedem de colocar questões , o que é senão a única, mas ao menos a mais segura maneira de chegar às respostas.”

        Na disseminação da identidade, lesbianismo e feminismo não se encontram em polos opostos ou em termos de positivo/negativo, pois as posições de sujeito pontuais e locais serão palco de configurações identitárias na criação de estratégias de dissolução e resistência à violência da norma .

 

* como se trata de uma comunicão oral, optamos por não colocar notas de pé de página.