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Aventura é vida :
Kira Salak
tania navarro swain
Resumo:
Kira Salak não se detinha diante de riscos e perigos:
para ela, os obstáculos não eram senão um desafio a mais. Esta aventura
se passa no Mali, onde ela percorre quase q000 km com seu caiaque
de borracha sobre o rio Niger, atravessando regiões selvagens, parando
em aldeias quase desconhecidas, cuja acolhida não foi sempre agradável.
As tempestades, os crocodilos, a faiga e entretanto, a felicidade
da aventura. Kira faz parte da legião de mulheres que quebraram
normas e se lançaram à aventura; hoje desconhecidas, quantas delas
não abriram caminho em explorações e descobertas, além do avanço
da pesquisa e do conhecimento científico. A memória social e a história
fazem questão de ignorá-las. Labrys ilumina-as e lhes presta homenagem
Mots-clés: Kira Salak, Mali, Niger, kayak
Preâmbulo :
Nunca é demais sublinhar
o desaparecimento das mulheres nas narrativas da história, dos meandros
do imaginário social, escamoteando-se deliberadamente seus
nomes das descobertas científicas, da produção artística, das lutas
políticas, da construção sociocultural, de toda a atividade humana,
em suma. Tudo se passa como se os homens tivessem tudo descoberto,
tudo criado: os desenhos rupestres, a roda, a pintura, a poesia,
o drama, o teatro, o conhecimento do mundo, os laços sociais.
Nas narrativas das origens,
criadas no masculino , os homens arrastavam as mulheres pelos
cabelos, trocavam-nas para formar alianças, pois elas não representavam
senão objetos passando de um proprietário a outro. Assim, “desde
sempre”. Eles possuiriam tudo, realizariam todas as coisas e as
mulheres eram mão de obra servil e submissa para cuidar das casas,
satisfazer-lhes as pulsões sexuais e dar-lhes filhos. Machos, de
preferência.
A pergunta que não quer
calar é : a quem interessa estas narrativas parciais que arrancam
da história a metade da humanidade, precisamente aquelas que podem
produzir humanos? A resposta é óbvia: a construção deste imaginário
funda um poder e uma dominação que não teriam espaço sem a criação
de uma hierarquia enraizada em um pretenso “natural”. As narrativas
“míticas” do fim de hipotético matriarcado asseguram o discurso
de uma evolução humana em direção ao patriarcado, última etapa
da organização “perfeita” do social. É com estas estratégias discursivas
que se constrói o patriarcado dito “universal”.
Esta representação habita
os discursos sociais em sua pluralidade e afirma a função social
das mulheres como sendo universal, atemporal, “natural”. Assim,
a subordinação do feminino, sua falta de poder político, seu assujeitamento
pela violência ou pela coerção social, entram no domínio do axiomático:
não há nada a ser discutido sobre este assunto, pois assim é desde
a “noite dos tempos”.
Esta linha de raciocínio
é de uma fragilidade total : o caminhar da humanidade não se
fez de um bloco, todas as regiões do mundo e suas culturas confundidas.
As narrativas da história “mundial” são risíveis em sua parcialidade
e nas escolhas dos fatos, dos sujeitos, das regiões, dos temas que
devem ser considerados ou valorizados.
Tudo se passa, na ordem
do discurso patriarcal, como se as injunções sociais, as regras
estabelecidas, as leis instituídas não tivessem nenhuma função na
exclusão das mulheres nas narrativas sobre o humano. Ora, em nossos
dias, as funções criativas do social, do imaginário, das representações
que ordenam o mundo estão no centro das investigações sobre os papéis
sexuados e sexuais das formações sociais. Hoje as mulheres
não são mais consideradas “incapazes” disto ou daquilo, mas sim
que elas foram impedidas de usar suas capacidades, de por em ação
suas possibilidades e inteligência.
Pois as feministas chegaram.
A partir deste momento, suas pesquisas vão mostrar outras configurações
do humano, onde as mulheres tem às vezes lugar mais amplo que os
homens e exercem todas as profissões, realizam todo tipo de
trabalho, ocupam todas as posições no social. Centenas de nomes
e de realizações das mulheres são desveladas, são expostas aos olhos
espantados dos crentes nas “verdades” da história. À medida da progressão
das pesquisas, as mulheres fazem explodir os limites do universo
da ciência, da arte, do conhecimento em geral. Sim, elas eram ativas.
Sim, elas estavam presentes.
O que me interessa especialmente
aqui são as mulheres de aventura, aquelas que abriram trilhas, que
encontraram povos desconhecidos, que estudaram seus costumes, que
exploraram lugares ignotos a seus contemporâneos. É interessante
observar que grande número destas mulheres obteve o reconhecimento
de seus contemporâneos, com todas as honras e cargos oficiais de
diplomacia ou financiamento de expedições.
[i] Todavia, seus nomes foram rapidamente enterrados ou suas
ações mesmo transferidas para nomes masculinos pela avalanche dos
discursos patriarcais.
Estas mulheres de aventura
me fazem sonhar com os cimos das montanhas, com florestas tropicais,
desertos inclementes, planícies geladas dos polos, planaltos verdejantes,
fazem-me vislumbrar um mundo a descobrir e explorar.
Não se ouve falar delas,
não se ensina às crianças seus nomes, não se descreve suas façanhas.
Finalmente, não passam de mulheres. Aí se encontra o parti pris
da história, das ciências humanas e sociais que desprezam ou mesmo
apagam de seus curricula ou de seus programas de ensino a produção
e o desbravar destas mulheres.
A « raça » das
mulheres, a classe das mulheres como as reagrupam certas feministas
(Christine Delphy, por exemplo) permanecem nas dobras dos discursos,
na sombra dos machos que esmagam as proezas das mulheres sob suas
botas patriarcais. Mas elas estão aí e as mulheres hoje continuam
a criar trilhas, a mostrar seu valor, sua força, sua resistência,
seu desejo de aventura e de saber. O vento do largo enfuna suas
velas.
Produzir conhecimento revelou-se
um dos objetivos maiores para a maioria delas, mulheres que se instalam
no movimento e fazem do mundo seu lar.
Este é o caso de Kira Salak.
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Kira Salak
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Kira Salak é americana,
nascida em Chicago em 1971. Desde sua infância foi atraída pelos
esportes e pela natureza. Estudou literatura americana, obtendo
um PhD em Inglês em 2004 pela University of Missouri, especializando-se
em literatura americana do século 20 e em literatura de viagem.
As viagens tornam-se sua paixão, que ela exprime em vários livros
e artigos.
Com 24 anos começa suas
viagens pela ilha de Papua Nova Guiné, que atravessa de uma ponta
à outra. Esta experiência dá origem a seu primeiro livro, Four
Corners: One Woman’s Journey into the Heart of Papua New Guinea.
Convidada pelo National Geographic Adventure, ela se
torna free-lance e inicia uma carreira de aventura em países
em guerra, como a Republica Democrática do Congo e Rwanda.
Em uma entrevista, Kira conta que em Bunia, cidade do
Congo, viu « [...]the worst that human beings could do to each other,
an endless parade of barbarism."
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A malária, o cólera não
a detinham, suas idas e vindas forneciam-lhe o material necessário
para escrever seus livros e contos, que serão publicados em diversas
revistas:
Prairie Schooner,The
Massachusetts Review,
Quarterly West etc. Sua primeira novela foi intitulada
The White Mary. Kira era, com efeito, além de uma
mulher de aventura, uma escritora de sucesso, agraciada com vários
prêmios.
Além de viagens nos Estados
Unidos, Kira percorreu a Ásia d Sudeste, alguns países da África
e da América central e do sul. A viagem que me interessa aqui é
sua aventura pelos caminhos que a levaram a Timbuktu, a partir de
Segou pelo rio Niger, em Mali, em uma distancia total de 966 km,
remando em um caiaque inflável. O livro que narra este périplo se
intitula « The cruellest Journey ».5
O Mali é o sétimo maior país da África, com 1.240.000 km²
e uma população de 13 milhões de habitantes, cuja religião principal
é o Islão. As principais riquezas do país são o ouro, o urânio e
o sal. Malgrado o valor das exportações, a pobreza extrema
é quase universal.
Esta região da África foi
o centro de três impérios que controlavam o comercio transsaariano:
o império do Gana, o do Mali e o do Songhai. No século XIX este
território tornou-se o Sudão francês, que compreendia igualmente
o futuro Senegal. Sua independência se deu em 1960, fazendo assim
nascer a Federação do Mali, da qual o Senegal se separou em 1961.
Kim faz de Bamako, a capital
do Mali, seu ponto de partida para Old Segou, que na realidade era
o início de sua longa viagem de quase 1000 km, com seu pequeno caiaque
vermelho.
Em Bamako, Kira se hospeda
em um hotel horrível, semelhante a tantos espalhados pelo mundo:
“I stay in another of the world´s cheap hotel
rooms [...] Cockroaches crouch behind this cracked porcelain toilet
bowl. Beetles climb the walls, mosquitoes hover over me, half dazed.[...]
But I am fortunate, because my room includes a shower, however basic,
with a weary trickle of water. [...]I lie on a thin green bedspread,
wondering when it was last washed, trying to guess the source of
the various stains on it.[...] The toilet smelling strongly of piss.
[...]Very little changes about these rooms except the languages.”
(11-12)
Mas ela não se desencorajava com facilidade :
“ Still when a person
tells me I can´t do something I´ll want to do it all the more”.
(14)
Esta frase descreve bem
sua vontade, seu desejo de aventura, sua impulsão para o movimento,
a mudança, o aprendizado que se consegue em viagem:
“I need doses of the
new before me, the strange, the completely unfamiliar, in order
to feel truly alive.” (14)
Os perigos, entretanto,
eram múltiplos : as correntes poderosas do rio Niger, os crocodilos,
os hipopótamos, os habitantes hostis, a travessia do Lake Debo –
um verdadeiro mar interior – as doenças de tocaia. E ainda mais:
uma mulher branca, sozinha em um país muçulmano, onde as mulheres
são controladas, impedidas de realizar várias atividades, entre
elas , remar ali onde o rio era a estrada disponível. Não podiam
assim se movimentar segundo sua vontade, pois os homens eram os
reis das águas, do transporte, do movimento . Apenas com sua presença,
Kira podia representar uma afronta.
Mas ela narra poucos episódios
de violência: um assediador sexual, que ela afasta com veemência,
uma tentativa de roubo à noite, quando dormia no chão, e o assédio
de rapazes, em um assentamento onde o chefe tinha trejeitos
lúbricos. “ Quer fazer sexo conosco?” perguntavam. « No place
is safe. Safety is an illusion » (53) conclui Kira. Deste modo,
ela parece ter incorporado a insegurança como parte da Aventura.
« And while I felt fear, I didn´t let it become
my modus operandi, ruling my life and decisions to the point of
immobility. This is the trade-off that I have acknowledged and accepted
for my life: I am willing to sacrifice some of my security for the
excitement of raw adventure. […] And which also means, generally,
that my trips have large helpings of this unpleasant side of things »
(51-52)
À parte estes aborrecimentos,
foi bem recebida em toda parte, principalmente na primeira parte
da viagem, onde era convidada e dormir e comer com os habitantes
de cada local. As três principais questões eram sempre: “ Está sozinha?
Para onde vai? Onde está seu marido ? » Mas na segunda
parte de sua viagem encontrou malineses francamente hostis.
Onde fora bem recebida,
Kira trazia grande alegria aos adultos e ainda mais às crianças,
que corriam nas margens do rio para acompanhar o caiaque e em terra
faziam um círculo em volta dela, a tal ponto que mal podia mover-se.
Os sorrisos, o encantamento demonstrado quando a viam passar em
seu caiaque eram para ela um deleite. É possível que as aldeias
pudessem se comunicar de alguma forma e passar a notícia de que
ela estava chegando e o ambiente era de festa ao vê-se se aproximar.
« I am a greater novelty because Malian women don’t
paddle, not ever. It is a man´s job. So there is no good explanation
for me, and the people want to understand. They want to see if I´m
strong enough for it, or if I even know how to use a paddle.[..
.] They gather on the shore in front of their villages to watch
me pass, the kids screaming and jumping in excitement,[...] »
(22)
Em seu primeiro dia de
viagem, Kira machucou um músculo o que provocou uma dor constante
durante todo o trajeto, já que dependia de seus braços para remar.
Porém, já no espírito da aventura, ela
“[...] wrap up my injured arm, part of which
has swollen to the size of a grapefruit. I´m not worried about the
injury no more. I´m not worried about anything..[...] To reach a
place of not worrying is a greater freedom than anything I could
hope to find on one of these trips. It is my Undiscovered Country.”
(21)
Para descansar ou comer,
ela levantava os pés sobre os dois lados do caiaque e se deitava.
Para dormir, buscava lugares isolados sem ninguém ou então ia diretamente
a uma aldeia e pedia permissão ao chefe para ali passar a noite.
Nunca recebeu uma recusa.
Esta aventura, para Kira,
levou-a a reconsiderar suas necessidades para viver, pois neste
longo trajeto não dispunha de nada daquilo com o qual estava habituada
no quotidiano. Eletricidade, telefone, estradas, carros, restaurantes,
hotéis, toaletes, água encanada. Nenhum motor no rio, silêncio
que acompanhava suas horas, a não ser o canto dos pássaros e os
gritos dos animais noturnos. (56-57). As casa eram feitas
de lama seca, as canoas de madeira, a vida submetida aos humores
do rio e do clima. As muheres sorriam timidamente a Kira :
« I notice how different we look from each
other : I, in my long patterned skirt, my blond hair and T-shirt
and my Australian hat : they, in their colourful pagnes, rests
bared, hair in elaborate cornrows woven with rings of pure gold.
But as we stare at each other, the differences dissolve. Beyond
the confines of sight, there is no division. We share all those
things that make us uniquely human – the joys and pains, loss and
hope. » (58)
Kira considerava que a
viagem duraria o quanto fosse, quando via seus esforços não lhe
darem muito resultado, muita rapidez; ela sofria do calor
e da queimadura do sol sobre sua pelo clara. Usava shorts e uma
saia por cima, pois para os aldeões uma mulher de calça comprida,
e ainda mais de short, era vista como prostituta. Esta saia, entretanto,
que a protegia do sol, logo era abolida quando não havia canoas
ou ninguém à vista, devido à canícula impiedosa. .(60-61)
« I´ll soon be arriving at Sansanding. My
injured right arm is so swollen and painful that paddling has turned
into an act of masochism, but doctors and hospitals are two things
that don´t exist on the river. I put on a wrist brace about it. »
(61-62)
A aventura impõe
suas leis: há muito sofrimento, um grande aprendizado, uma mudança
sutil na maneira de ser no mundo, em relação à natureza, aos humanos.
O objetivo era claro: chegar a Timbuktu, sem outros planos, sem
a angústia da performance , do tempo que se escoa. A dor fazia parte
da viagem.
Sansading mostrou-se
a Kira como uma aldeia mágica, com seus minaretes brancos rodeado
de casas de adobe marrom, circundados de árvores gigantes, o mercado
no centro da aglomeração. As canoas pontudas repousavam nas margens
do rio e as crianças brincavam nuas nas águas, enquanto as mulheres
lavavam a roupa. Kira sentiu-se estranha nesta paisagem, sobretudo
a humana.
« I feel like one
of the explorers of old, coming upon some secret desert kingdom.
(62)
Ao chegar, Kira remou até
as margens próximas à aldeia e saudou os habitantes em sua própria
língua. Houve um momento de estupefação diante desta mulher, branca,
loira e só, em um caiaque vermelho, “falando” sua língua. Mas logo
se precipitaram em sua direção, mais de uma centena, aguardando
seu desembarque, uma multidão excitada, barulhenta, feliz em acolhe-la.
Kira não havia nunca experimentado esta sensação de estar em meio
a uma aglomeração tão enorme: em seus olhos ela via o medo, a curiosidade,
a timidez, a alegria diante desta ocasião tão inesperada, da chegada
desta visitante exótica.
Uma vez em terra, Kira
procurou o chefe da aldeia para lhe demandar a permissão de pernoitar;
era um senhor de idade, vestido em cores vivas, o rosto fechado.
Queria um presente e após recebê-lo ( queriam sempre dinheiro) deu-lhe
a permissão para ficar. Enviou-a a cabana do professor de inglês
da aldeia, cuja eloquência foi extremamente difícil a decodificar.
Quando ele e sua mulher conheceram seu objetivo, ir a Timbuktu em
caiaque, com um braço inchado e quase inútil, deram-lhe um conselho,
divertindo-se: “ Você está maluca, tome o ônibus”. (73)
E de aldeia em aldeia,
Kira continuou seu caminho, lentamente, vogando sobre as águas;
grupos de palmeiras quebravam a monotonia da areia nas margens.
As aldeias acolhiam-na com alegria e gentileza. Kira considerou
que eram as pessoas mais gentis que havia conhecido em sua vida.
E as mulheres !
« The women in particular cheer me on, yelling
out accolades for ' les femmes fortes', strong women, which surprises
and delights me. Malian women are themselves an undercalls, relegated
to purely domestic pursuits, 70% of them illiterate. According to
various health organizations, at least 90% of them have their clitoris
and external genitalia completely removed by the time they´re teenagers
– one of the highest rates in he world. » (77)
Kira, em seu livro, tenta
explicar o que são a excisão e a infibulação que atinge a quase
totalidade das mulheres no Mali: a primeira é o ato de cortar fora
o clitóris, com uma faca às vezes enferrujada e uma dor inimaginável.
A segunda, a infibulação, é a eliminação total do sexo das mulheres:
os grandes e pequenos lábios são extirpados e a ferida sanguinolenta
é COSTURADA, deixando apenas um pequeno buraco para o escoamento
da urina e do sangue menstrual. A jovem ou a criança permanecem
deitadas durante semanas, as pernas amarradas, para esperar que
a ferida se feche. Quando se casa, o sexo da jovem é cortado para
a introdução do pênis; se o marido se ausenta, o sexo da mulher
é costurado de novo para manter sua “fidelidade”.
Para mascarar o horror
destas práticas, são chamadas de “circuncisão feminina”, em um paralelo
aberrante com a masculina, tendo em vista a dor e a mutilação cujas
consequências podem ser devastadoras para a saúde das mulheres.
Infecções diversas, doenças dos canais urinários, dores contínuas,
tumores , etc, etc.
Le résultat du massacre
A explicação dada pelos
adeptos destas práticas – os homens- é que o clitóris representa
um pênis nas mulheres e por isto deve ser eliminado. É uma delimitação
que reforça o imaginário da “diferença” entre os sexos, mesmo se
isto demanda a tortura e a mutilação das meninas e mulheres. É a
expressão mais brutal da dominação patriarcal, pois o sexo das mulheres,
deve desaparecer para realçar a importância do masculino.
Se uma mulher por acaso
ou por sorte não é excisada ou infibulada, não se casará nunca,
e na África as mulheres que não são esposas de alguém não existem
socialmente, são párias. Mesmo se os homens se servem das mulheres
para esta tarefa inominável, esta prática assegura um poder total
sobre as mulheres e seus corpos, não somente físico, mas igualmente
social, pois são eles que lhes dão um lugar ao sol. (77-80)
No Mali quase 100%
das mulheres são infibuladas. Atualmente estima-se que mais de 150
milhões de mulheres no mundo sofreram esta ignóbil prática. Isto
revela o desejo profundo dos homens de eliminar o feminino, seja
completamente, matando-as, seja mutilando-as através de uma enorme
gama de violências, das quais a infibulação é um paroxismo. É o
ódio pelas mulheres que transborda, o medo de perder a dominação
sobre seus corpos e mentes, um poder que se afirma pela intimidação
e pela brutalidade.
A afirmação de uma superioridade
masculina se faz pela construção de um feminino debilitado, através
de um imaginário infame que esmaga a metade da humanidade em nome
da “ diferença”. Assim as mulheres no Mali não tinham liberdade
para locomover-se de um lugar para outro, já que impedidas de remar
e o rio era a principal via de transporte. Ficaram completamente
atordoadas de ver uma mulher, branca, remando no rio, SOZINHA. “
Onde está teu marido?” exclamavam elas.
« The women crowed around me, holding up a
single finger and speaking in fervent Bambarra. I´m unsure what
the finger means, until one woman says two words in their language
that I recognize : « husband » and « where ».
I gesture to them that I´m alone. This they cannot believe. They
point to the river, then to me, holding up a finger again and pretending
to paddle. » (83)
O imaginário destas mulheres
não podia conceber uma mulher sem homem. Uma incongruência
para elas, assujeitadas à lei do macho, polígamo, todo-poderoso.
Kira foi convidada a comer com elas, que a desafiaram a preparar
o almoço. Sem sucesso, mas com muita hilaridade. Durante horas,
insistiam sobre o paradeiro de seu marido, como ele a deixava remar,
quantos filhos tinha, e assim por diante, até a hora de dormir.
“We all lie down side by side on foam mattresses
spread outside the huts. Mosquito nets stretch overhead, blurring
the stars. Fleas hop on my skin; chickens jump on us. I fall asleep
to the sound of the old folks´ snoring, goats nibbling at our feet.”
(86)
As pessoas desta região
do Mali aparentemente jamais haviam visto brancos. E cada vez que
Kira se aproximava das margens, uma excitação sem limites tomava
todos os aldeões que se apressavam, se empurravam para vê-la melhor,
tocá-la, olha-la de perto. Nesta etapa Kira não sentiu nenhuma hostilidade,
somente uma imensa curiosidade.
« The winds are getting even worse, the river
sloshing with three-foot-high whitecaps. It is the Jekyll-Hyde phenomenon
of the Niger, the river utterly calm one moment, only to burst into
waves and rapids the next.” (130)
E um dia o inevitável aconteceu : o caiaque
virou e ela caiu na água. Não esqueçamos os crocodilos, os hipopótamos,
as águas barrentas, as correntes, os ventos..
“I lean forward to secure my bags, and a
wave broadsides my boat and flips it over. I fall and swim to the
surface, seeing my kayak bottom up and speeding steadily away. I
dive for it and grab its tail, turning it over and retrieving my
paddle, only to see my little backpack- the one with passport, money,
journal-- starting to sink nearby.” (130-131)
Perder seus documentos
é um dos piores pesadelos que pode acontecer em uma viagem. Mas
ela conseguiu recuperá-los na água, com muita dificuldades. O Niger
cobrava seu pedágio, com, felizmente, poucas perdas. Não foi atacada
pelos “monstros” e conseguiu voltar ao caiaque.
Kira observa que
uma tal viagem faz reconsiderar o que pensamos ser necessário: ela
só dispunha do que seu caiaque podia conter: alimentos, água, algumas
roupas, remédios, uma tenda. . « My journey on the river is
inevitably teaching me humility. » (131) escreve.
Finalmente chega a Mopti,
a metade do caminho. Escolheu para desembarcar um lugar longe das
multidões que povoavam os precários cais, mas mesmo assim foi rodeada
por vagas de crianças. Pela primeira vez esvaziou seu caiaque e
levou-o com todo seu material para se instalar no único hotel de
Mopti, o Kananga Hotel. (133)
Nesta
cidade encontra o fotógrafo de seu patrocinador, National Geographic,
que viera documentar sua viagem. Uma vez finda as fotos, Kira tomou
um ônibus para visitar a Grande Mesquita, em Dejenné. Completamente
lotado, o veículo levou 6 h para fazer 90 milhas até seu destino.
(mais 6h para voltar.) Sua descrição é pitoresca.
“The taxi brousse doesn´t leave until it´s
“full”, though what constitutes “full” is a matter of individual
opinion. Drivers will squeeze in as many human bodies as can be
fitted inside, barring suffocation.[...] Before long, my right thigh
is sitting on someone else´s, my feet are in some woman´s lap, an
a baby is perched on my shoulders.”(141)
Lá chegando, evidentemente
não pode entrar na Grande Mesquita, interditada aos “infiéis” (146)
Djenné havia sido antigamente uma cidade tão importante quanto Timbuktu,
centro do comércio saariano, principalmente pelo ouro, sal, marfim
e, sobretudo, escravos. Ela notou que algumas famílias ainda tinham
escravos, que passavam de geração em geração. (145)
Kira decidiu ver os feiticeiros,
entre os quais uma mulher, muito respeitada e temida na aldeia.
Se considerarmos o número de excursões que fez, 5 dias em Mopti
não lhe permitiram muito repouso. Pois havia ainda muito chão ou
muita água a percorrer.
A partir de Mopti o rio
fica repleto de redes de pesca e Kira precisava mergulhar sem cessar
naquelas águas escuras para desembaraçar seu caiaque. Apesar de
seu medo dos hipopótamos (176). Nesta parte de sua viagem, Kira
observa que os aldeões continuam curiosos quando ela passava, mas
desta vez, pediam “presentes” de forma insistente, ou seja, dinheiro.
Estavam habituados à chegada de turistas, vindos de Timbuktu e todo
estrangeiro branco era para eles fonte de benefícios.
Uma tempestade furiosa
obrigou-a a remar rapidamente para as margens do rio, esperando
que os aldeões fossem acolhedores, pois nada era garantido. Ainda
mais que no Mali o fetichismo era muito forte com muitos sacrifícios
de animais e mesmo de pessoas: os albinos, por exemplo, corriam
sempre o risco de serem mortos, pois seu sacrifício deveria trazer
sorte.(138)
Eram história assustadora,
sobretudo para uma mulher branca e sozinha, remando pelo rio. Kira
conta que:
« Women have been found dead on the streets of
Mopti with their breasts removed for special spells » (137)
A acolhida na aldeia onde
foi obrigada a parar não fugiu à regra: todos se empurrando e espremendo
para vê-la, tocá-la, e, sobretudo pedir dinheiro. A diferença era
que todo mundo gritava, em vez de falar. Kira chamou esta
etapa de “ a aldeia berrante”. (139)
A medida de seu avanço,
o rio se tornava cada vez mais estreito e as 5 ou 6 horas que havia
estimado para chegar em Barga se revelaram ser 9 ou 10h. As margens
estavam cada vez mais próximas uma da outra e Kira foi seguida por
um homem que corria e seguia sua direção pela margem, gritando e
exigindo dinheiro com berros violentos.
Como o rio se tornava cada
vez mais estreito ela começou a temer que o homem a esperasse na
primeira curva. Naquele instante estava só, mas era plausível que
outros aparecessem para ataca-la e roubá-la. (196)
Kira ignorou-0 e continuou
a remar sem parar. Mas com o medo instalado. Aliás, ela se deu conta
que o medo a havia acompanhado sempre nesta aventura. l
« I realize, but without surprise, that I´ve
lived with constant fear on this trip. Fear of being chased, assaulted
and robbed. Fear of bad weather and waves that might capsize my
boat. Lots of fear. Fear of the wind, of harsh storms. Fear of hippos,
crocodiles. Fear of being harassed by young men in passing boats,
or of having my things stolen if I stop at villages. Endless fear.
Fear of getting lost. Fear of not being able to find anyone if I
do. All kinds of fear. » (197)
Apesar disto, Kira nunca
pensou em parar sua viagem. Uma mulher de aventura tem consciência
dos perigos, tem medo também, mas nada vai impedi-la de seguir seu
caminho, atingir seu objetivo.Em certo trecho o rio, estreitando
cada vez mais se dividiu em dois braços e... Qual deles tomar para
chegar ao lago? Tentou perguntar nas aldeias, mas os habitantes
eram hostis. Ou não respondiam, ou se agrupavam para exigir dinheiro,
mexendo em seu equipamento.
« I pull up to the island and dig my paddle
into the mud to hold my kayak steady. The crowd is so thick that
I can´t move. Hands pull and clutch at my clothes, my body. Everything
I own, including myself, is up for grabs. » (204)
O velho chefe de uma das
aldeias olhava-a lascivamente, não soltava sua mão, não respondia
suas questões e não cessava de lhe perguntar onde estava seu marido,
se ele tinha namorado, para finalmente pedir-lhe dinheiro. Ela teve
a infelicidade de mostrar algumas notas e a multidão se precipitou
para arrancá-las de suas mãos. Kira perdeu então toda civilidade
e abriu caminho empurrando, gritando, dando cotoveladas, pontapés,
para afinal chegar a seu caiaque e partir o mais rápido possível,
com alguns habitantes se jogando na água atrás dela, para agarrar
seu barco. (207)
“Eeverything about this
scene is absolutely surreal.” (207) dit-elle.
Esta segunda parte de seu
caminho foi a mais difícil, mais estressante. Devia atravessar o
Lake Debo, o que tomaria um dia inteiro; Kira considerava este percurso
perigoso, pois era uma imensa extensão de água, sem pontos de verificação
para encontrar o outro lado.
« Getting lost in the middle of it is a major
concern. And then if a storm should catch me, overturning and separating
me from my boat, the nearest land would be many miles in any direction,
and there´s a chance I could drown. » (194)
Para evitar esta eventualidade,
Kira decidiu encontrar o fotógrafo do National Geographic em Barga,
aldeia às margens do lago, para seguir seu barco na travessia,
driblando assim o perigo de se perder. Mas perdeu logo de vista
o barco e encontrou-se só. Felizmente havia de tempos em tempos
uma boia que provavelmente indicava a direção. A travessia se fez
sem maiores problemas, eliminando assim um de seus maiores receios.
(215-216)
Ao deixar o lago, Kira
decidiu parar na primeira aldeia para comprar frutas ou alguma coisa
comestível, pois seu estoque estava quase no fim. Havia lá uma frágil
distancia entre a curiosidade e a hostilidade. Jovens rapazes começaram
a assediá-la: Onde está seu marido? Como ele permitiu que viajasse
sozinha? Quer fazer sexo conosco? Enquanto esperava a chegado do
chefe, estes jovens sentaram-se em torno dela, pedindo dinheiro,
mexendo em sua mochila, sem contar a multidão que a cercava igualmente.
(218-219)
“The young men nudge me, speak threateningly to
me […] the chief – traditionally my benefactor- standing by and
doing nothing. When one man puts his hand around my wrist, I wrench
my arm, holding up a fist. “Don´t touch me, I say”. The village
people laugh.” (220)
Kira se retirou e conseguiu
chegar a seu caiaque, mas como a noite estava próxima, não pode
partir. Ficou horas sentada na margem, atenta a todo ruído e de
madrugada retomou sua navegação no rio.
É
de se espantar que ela tenha podido sair desta e de outras situações
sem maiores danos: as mulheres, no Mali, são aparentemente objetos
que os homens podem dominar e utilizar, mutiladas sexualmente, são
apenas máquinas a procriar e mão de obra disponível. O patriarcado
decide as relações sociais e uma mulher branca sozinha se torna
uma presa ideal. Não houve nenhum ataque mais sério, mas esta aldeia
mostrou claramente os perigos que podia enfrentar. A insegurança
evidentemente existe em toda parte, mas há ocasiões onde o perigo
é quase palpável.
Isto,
porém, nunca desviou as mulheres de aventura de seus objetivos.
Haverá sempre críticas pelo fato de assumir tais riscos: a morte,
o estupro, o roubo, o desaparecimento puro e simples. Mas se as
mulheres parassem de quebrar os moldes e desafiar os perigos, seriam
ainda cidadãs de segunda classe, reclamando sua autonomia e sua
independência. As mulheres de aventura são os faróis que iluminam
as trilhas repletas de armadilhas para aquelas que não suportam
as interdições apenas porque são mulheres.
Kira afirma ter tido um
sentimento de fracasso, em em face de situações onde quase não podia
se defender. Mas suas reações foram sadias, como quando sua raiva
fez recuar os agressores. Diz, entretanto,
“There is depression that I chose to do a
trip that has proved so exhausting and difficult. Disappointment
over getting so angry in the village last night. Despair at how
much further I have to go, through the storm and heat and increasingly
hostile country. “(222)
Kira observou que
o importante para os habitantes das aldeias não era ela, mas o que
ela poderia lhes dar, que vantagem poderiam auferir.
“They see my white skin
and reduce me to an identity I can´t shake: Rich White Woman, Bearer
of Gifts, nothing more.” (223)
Os contatos, assim, que
ela contava obter durante sua viagem, um de seus objetivos, tornaram-se
cada vez mais raros ao longo de seu trajeto. De toda maneira, remar
já era exaustivo demais para se preocupar muito com os gritos dos
que exigiam dinheiro.
Timbuktou estava agora
bem próximo e o Niger passava pelo deserto do Saara. A paisagem
havia mudado completamente: quase nenhuma vegetação ou árvore, um
calor infernal, nada que mudasse o vislumbre da infinita extensão
de areia às margens do rio. À noite, sem saber nunca como seria
acolhida, Kira buscava parar perto de alguma aldeia. E sempre a
litania “dinheiro, dinheiro, madame”. Havia em seu caminho aldeias
fortificadas que testemunhavam a história das incursões invasoras
em busca de escravos. (232)
Kira só conseguia remar
nas primeiras horas do dia, ou no fim da tarde, por causa do terrível
calor. (230-231)
O protetor solar não protegia
mais nada, já que ela transpirava em abundancia. Kira avistou alguns
objetos marrons que flutuavam ao redor de seu caiaque, talvez algumas
boias deixadas pelos pescadores, nada demais; mas de repente, olhos
saem da água para fita-la: eram hipopótamos, os seres mais perigosos
do rio, toda uma colônia deles. (233-234) E ela não havia
visto nenhum ainda !
« Nice hippos,'
I said to them.' Good hippos' » diz ela baixinho... e começa
a remar como uma louca, pois seu caiaque de borracha não aguentaria
um segundo face a seus dentes.
O Niger tornou-se também
mais perigoso, devido a forte correnteza formada pelos blocos de
rocha negra que bloqueavam a passagem da água. Era preciso escolher
bem a abertura para não afundar ou arrancar um pedaço de seu caiaque
sobre os rochedos na superfície da água. (234) Um longo trecho de
rafting.
Já de noite, Kira se aproxima
de uma aldeia e lá, oh! Surpresa! Nenhuma multidão para assediá-la,
ninguém pedindo dinheiro. ( 236-237)
Entretanto, mesmo com toda
sua vivência anterior, caiu na armadilha de dar dinheiro às mulheres
que a haviam tão bem recebido e em breve um fluxo contínuo de pessoas
começou a rodeá-la. Queriam dinheiro, explicavam que era medicar
para crianças doentes, feridas e meninas mutiladas. Kira explica
que no Mali havia uma das maiores taxas de mortalidade infantil
do mundo: 12 bebês em cada 100. (239)
De volta ao rio, Kira começou
a se sentir doente : vômitos, disenteria, fraqueza. Mas continuou
a remar. Timbuktu estava bem próximo. E a rotina: aldeães agressivos,
gritando para pedir dinheiro, batendo os pés, exigindo. (143) O
sol era implacável:
« I feel as if I could pass out from the sun. Red
dots of dizziness have been filling my eyes, regardless of all the
water I drink.” (244)
Parar ? Nem pensar. Timbuktu estava a seu alcance.
Entretanto o rio se tornava de novo mais estreito e não havia
meio de não ser percebida. Era a terra dos Tuaregs, povo feroz,
escravocrata, nunca realmente colonizado. A multidão a seguia pelas
margens, gritando, e alguns mergulharam para alcança-la; outros
usavam suas canoas para ir a seu encontro. Kira nunca remou com
tanta força desde o inicio de sua viagem, apesar de seu estado
de fraqueza. (249-250)
« But it is more of the same at the next village,
and at the next after that, so that the mere sight of the pointy
canoes on the shores frightens me. No time to drink now, or to splash
myself with water to try to cool off. To stop is to give them an
incentive to come after me. I round the great bend of the Niger,
the sun getting hotter and hotter, my head aching. » (250)
E finalmente... Timbuktu !
As narrativas sobre esta
cidade criaram uma auréola de riqueza, de beleza, de magnificência
durante séculos, por ocasião dos reinos de Mansa Musa no século
XIV e Songhai no século XV. Centro principal de comércio,
de tráfico de escravos, de ouro, rolando na riqueza e na seda, mansões
esplendidas e suntuosas, Timbuktu era o eldorado sonhado por tantos
exploradores. (260-261 )
O mito da opulência da
cidade durou até o século XVII quando o primeiro europeu nela chegou,
para ser em seguida torturado e morto pelos Tuaregs. (263) O francês
René Caillié foi o segundo europeu a lá penetrar, dois anos
depois, em 1826 e o primeiro a voltar para contar que a riqueza
da cidade era uma fantasia. (264)
Para Kira, Timbuktu foi
uma verdadeira decepção, um anti-clímax:
« It is the world´s greatest anti-climax.
Hard to believe that this spread of uninspiring adobe houses, this
slipshod latticework of garbage-strewn streets and crumbling dwellings,
was once the height of worldly sophistication and knowledge. The
'gateway to the Sahara' the ' pearl of the desert', the ' African
El Dorado' is nothing now but a haggard outpost in a plain of scrub
brush and sand. After having had such a long and difficult journey
to get here, I feel as if I´m the butt of a great joke.” (259)
O calor era esmagador.
Kira não conseguiu um quarto
com ar condicionado no único hotel decente da cidade, apenas um
ventilador. Vagueou nas ruas cheias de areia e sujeira, para finalmente
voltar a seu quarto sufocante, esperando seu guia de Mopti, que
viria encontra-la.Kira precisava de sua ajuda para realizar um plano,
urdido desde o início de sua viagem: libertar uma ou duas escravas,
mulheres em suma.
O discurso oficial do governo
de Mali negava a existência da excisão/ infibulação e também da
escravidão, pois havia leis que proibiam estas práticas. Com
o relato de Kira e os relatórios das organizações mundiais de saúde,
sabe-se que cerca de 90% das mulheres eram excisadas ou infibuladas.
Mas o governo não se interessava a esta realidade que impunha estes
odiosos costumes em todo país.
No que diz respeito à escravidão,
a etnia dos Bella, cujo status social equivale ao dos párias na
Índia, sofre ainda hoje a escravidão e isto há gerações. Todo mundo
sabe disto. Nada se faz a respeito.
Depois de muitas negociações,
acompanhada de seu guia-tradutor, Kira conseguiu “comprar” duas
mulheres a um senhor tuareg, coberto de panos azuis, do qual se
via apenas os olhos.
As mulheres estavam amedrontadas,
sem compreender muito bem o que lhes acontecia. Kira pode lhes oferecer
a liberdade e uma moeda de ouro – de muito valor- para que pudessem
iniciar uma nova vida. Sua emoção, seu sorriso fizeram desaparecer
todas as angústias e fadigas da viagem. (272-285) Finalemente, ir
a Timbuktu, valeu bem a pena!!
Timbuctu afinal era apenas
um ponto de chegada, pouco importava sua decadência.
A viagem, para as mulheres
de aventura é em si o desafio e a conquista. Para Kira, a própria
vida deve ser uma aventura:
“ I want the world to always be offering
me the new, the grace of the unfamiliar. Which means – and I pause
with the thought – a path that will only lead through my fears.
Where there are certainty and guarantees, I will never be able to
meet that unknown world.” (254)
Nota
biográfica :
tania
navarro swain professora da Universidade de Brasília, doutora pela
Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade
de Montréal, onde lecionou durante um semestre .Na Université
du Québec à Montréal, (UQAM), foi professora associada ao IREF,
Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Criou, na Universidade
de Brasília, o primeiro curso de Estudos Feministas no Brasil, na
graduação e na pós-graduação,em níveis de Doutorado e Mestradol,
iniciado em 2002. Publicou, pela Brasiliense, “O que é lesbianismo”,
2000 , organizou um número especial “Feminismos: teorias e perspectivas”
da revista Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente
os livros “História no Plural” e "Mulheres em ação: práticas
discursivas, práticas políticas" publicado em 2005 pela
editora das Mulheres além de "A construção dos corpos, em2008.
Tem dezenas de publicações em revistas nacionais e internacionais,
bem como capítulos de livros. ( ver site
www.tanianavarroswain.com.br) É editora da revista digital
Labrys, estudos feministas".
Notas:
1Voir les dossiers “femmes d´aventure dans plusieurs numéros
de Labrys
2 Salak, Kira (2001). Four Corners (2 ed.). National Geographic
Books. p. 320.
ISBN 0792274172.
3Toutes les photos ont été prises au site de Kira Salak,
http://www.kirasalak.com/
4 Trachtenberg, Jeffery (July 26, 2008).
"Imaginary Journey". Wall Street Journa
5 Kira Salak, 2006, The cruellest Journey, 600 miles in a
canoe to the legendary city of Timbuktu, London:Bantam Books.
[i] Ver em números precedentes de Labrys, os dossiês sobre
“mulheres de aventura” |
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