Intertextualidade: perspectivas feministas e foucaultianas

tania navarro swain *

 Resumo:

Os múltiplos feminismos , desnaturalizando as essências do humano criam o solo dos questionamentos que atravessam a segunda metade do século XX. De fato, " diferença dos sexos", aparece como a "evidência"maior, inquestionável , nos diferentes discursos sociais, que atravessam e constituem as sociedades atuais. Foucault, bem como outros autores ditos " pós-modernos" enveredam pela desconstrução das certezas e a destruição das evidências: neste texto, pretendo traçar linhas de convergência entre as perspectivas foucaultianas e os feminismos, que parecem criar campos de inspiração mútua.

Palavras-chave: feminismos, Foucault, diferença dos sexos.

 

 

Se a noção de intertextualidade nos conduz a uma intersecção de textos e discursos, instituinte e instituidores de formações discursivas e suas respectivas condições de produção, é inegável que as reflexões e propostas feministas cruzam-se com as análises feitas por Foucault sobre a formulação dos discursos e sua pregnância social.

O " linguistic turn" está presente neste movimento de rediscussão do caráter construído do social e da própria ciência e neste sentido, a autoridade de Foucault é incontornável, mesmo que seja para criticá-lo. A literatura acadêmica feminista, porém, nos mais diversos campos disciplinares tem sido sistematicamente ignorada no seio institucional, notadamente no Brasil. Esta é uma ocasião para refletir sobre esta invisibilidade e sobre a imbricação das propostas de crítica do social e de transformação política do agenciamento humano, pois  falar de feminismo significa tocar em um dos tabus mais evitados, principalmente por mulheres, que temem ser consideradas “feias, mal amadas, lesbianas, inadequadas” .

* * *

A História nunca mais será a mesma, a das certezas e dos positivismos, a das visões de mundo, e das contradições a serem resolvidas. A História hoje, é uma disciplina instigante, aberta às questões e aos paradoxos, perguntando, em lugar de concluir, cuja preocupação central não é a descrição ou a compreensão de fatos ou comportamentos esperados. A História, hoje, seria fator de desordem do discurso, apontando a falácia das hegemonias, como construções interpretativas.

A História, hoje, não tenta esconder ou driblar o conteúdo imaginativo de suas narrativas; ao contrário, reivindica a  poderosa força da imaginação para detectar o possível, o silenciado, os comportamentos e relações humanas que não obedecem aos estereótipos e padrões; aponta para um universo onde a fissura é a superfície, pois reconhece como construídos os paradigmas de “ mentalidades hegemônicas” ou de “ visões de mundo” , compartilhadas por uma maioria.Depois de Foucault, a própria idéia de “maioria” se torna disseminação, aglutinações provisórias e temporais.

A História , hoje, de fato, é meta- crítica política de sua própria instituição, enquanto disciplina acadêmica e discurso normatizador, alicerce de tradições e costumes, recriadora de valores e modelos,  cuja justificação está apenas em sua constante repetição.

 Esta força imaginativa nos permite adentrar regiões desconhecidas apesar dos moldes das representações sociais em que somos construídas, ensinadas, preparadas para repetir e re- instituir  uma realidade solidificada em cânones  interpretativos. Nada mais difícil que ultrapassar horizontes epistemológicos, caminhos trilhados apenas por quem não se conforma, não abdica da idéia da transformação, da mudança, da diversidade. O fazer história é mais do que nunca uma atividade política, recusando a repetição do mesmo, aquele murmúrio infindável de reafirmação da ordem,  de criação incessante de um mundo pensado de forma binária, conjugado no masculino, nas articulações de poder, nas economias gerais do saber, construtoras de hierarquias, diferenças  e desigualdades.

Mas  que meandros criaram este momento profícuo de se fazer “ histórias”, num presente ainda de confrontações, onde alguns campos são “ mais históricos” que outros?

            Foucault  sonhava

“ [...]com intelectual destruidor das evidências e das universalidades, que localiza e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em que está, de passagem, a colocar a questão da revolução, se ela vale a pena ( quero dizer qual revolução e qual pena” (Foucault,1988:242)

 

 Para Foucault também estava claro, somente quem aceitasse arriscar a vida, poderia falar de revolução. Não me refiro aqui a revoluções armadas ou terrorismos, a uma inversão simplória de poderes – falo de revoluções epistemológicas, da criação de condições de imaginação para uma transformação das relações humanas, para além  de um binarismo simplificador, cuja aparente evidência em opostos complementares, mas diferentes, arquiteta toda uma economia humana traçada em linhas de poder e força.

 As feministas em geral vivenciaram este desafio em seu desejo de mudanças, e  transformação das relações sociais pode ser o único ponto em comum entre a pluralidade dos movimentos e correntes militantes e teóricas feministas, pois assim se nomeando arriscaram e arriscam  suas reputações, suas carreiras, seu lugar de fala, seus amores. Cherrie Moraga, chicana, crítica de um feminismo branco e pretensamente hegemônico falava de feminismo como “teoria da carne”, a que  arranha e  machuca ao anunciar transformações, apontando para um comprometimento incontornável com o político, na prática dos feminismos.  

Em termos de uma concepção tradicional de ciência, ou seja, um discurso produtor de verdades sobre o mundo, os saberes só caminham  em linha ascendente, do simples para o complexo, do primitivo para o civilizado, num continuum ininterrupto.  A ciência seria portanto, O saber, aquele que detém a chave explicativa da natureza, do social, do humano. Como bem sublinha Foucault,

« Não reconhecendo na ciência senão o acúmulo linear de verdades ou a ortogenese da razão, não reconhecendo nela uma prática discursiva que tem seus níveis, suas bordas , suas rupturas diversas, não podemos descrever senão uma só divisão histórica, cujo modelo é reconduzida sem cessar ao longo do tempo para qualquer forma de saber : a divisão entre o que  não é ainda científico e o que o é definitivamente. Toda a espessura das interrupções, toda dispersão das rupturas, todo desnível de seus efeitos e o jogo de sua interdependência encontram-se reduzidos ao ato monótono de uma fundação que é preciso sempre repetir.”  ( Foucault, 1969: 245, 246) “

De certa forma, a ciência seria o discurso substituto do dogma religioso, baseando-se no mesmo sistema de crenças, onde os pressuposto axiomáticos substituem os dogmas, onde a autoridade do cientista supera a do sacerdote.

O sistema é similar: a enunciação de verdades, cujo fundamento enunciativo se sustenta no lugar de fala de uma autoridade instituída, com caráter universal e incontestável; os efeitos políticos deste poderio discursivo tornam-se maiores, na medida em que a construção social e histórica destes enunciados desaparece, para dar lugar à força simbólica da própria enunciação.

O discurso, esta prática modeladora de significados no social e no político é , portanto, força que engendra a percepção do real, ou seja, aquilo que interpretamos como real é o que toma forma e sentido na nossa rede de percepção, em nossas condições de imaginação, recortadas por “verdades” circulantes em discursos científico-religiosos, que Foucault nomeia “ regime de verdade”.

Esta imaginação esteve sempre presente nas elaborações e analises das ciências físicas e sociais,  vestidas, entretanto, do manto da verdade e da autoridade oriundas da univocidade do “racional” como expressão do real, livro a ser decifrado pela ciência. .

Os feminismos e Foucault, em suas imbricações e eventuais desencontros foram marcos para a mudança nas perspectivas de se pensar e de se fazer história e ciência, apontando para suas condições de produção, compostas de todo um aparato simbólico / político, discursivo e não discursivo.

Foucault, neste caso, exerce a função de autor, como ele mesmo define, precipitando, no sentido químico da palavra, o magma borbulhante das significações sociais,  como “ [...]o indivíduo que se põe a escrever um texto no horizonte do qual ronda uma obra possível” (Foucault, 1971:10) expondo as heterotopias discursivas  do século XX,  no sentido “ das formas

 

«  que inquietam, pois minam secretamente a linguagem, [...] pois quebram os nomes comuns ou os entrelaçam,  arruínam de imediato a “sintaxe” e não apenas a que constrói as frases, mas aquela, menos evidente, que “mantém juntas” [...]as palavras e as coisas. ( Foucault, 1966:.10)  

Nesta ótica, os feminismos contemporâneos são expressão desta heterotopias, quebrando as palavras e abrindo-as às suas significações políticas De fato, se tomamos o Segundo Sexo de Simone de Beauvoir, escrito em 1945 como a eclosão da visibilidade dos saberes engendrados pelas mulheres e pelos feminismos, adentramos  uma perspectiva genealógica, na qual se contempla um dos  momentos em que as “palavras e as coisas” se desfazem de sua univocidade fictícia e em que “mulher” deixa de significar o “outro” do humano para reivindicar  sua posição de agente histórico e político, de sujeito, enfim.

 Em que “mulher”, dotada de uma essência única e “ verdadeira”, desdobra-se em mulheres, seres localizados em suas especificidades e experiências múltiplas. Betty Friedan, (1964) em seu The Feminine Mystique , mostra, nos anos 50, a reconstrução da “verdadeira” mulher no pós-guerra, em diferentes práticas de assujeitamento e convencimento. A construção da diferença, na ciência e nas práticas sociais, aí já estão explicitadas; podemos apontar, por exemplo, na descontinuidade, de  Virginia Wolf , no início do século XX ou Nísia Floresta,  que já no século XIX em sua função de tradutora desfazia a noção de “fidelidade” ao sentido prescrito pelo autor,  anunciando a co-enunciação entre receptores e autores, ou ainda Margareth Rago,[1] uma das primeiras historiadoras da atualidade que ousou nomear-se feminista, em suas obras de importância incontornável..

 Assim, a eclosão de saberes não se dá em um ponto específico do tempo apenas; é um movimento, que acompanha a dinâmica da vida social e se contrapõe às pretensas  hegemonias ao reivindicar existência, voz, práticas instauradoras das diversidade. Vários foram, portanto,  os momentos de  desnaturalização das relações humanas baseadas em uma essência biologia, anunciados por incontáveis vozes femininas, desvelando-se as práticas políticas de exclusão e de dominação nela fundamentada.

Destruir as evidencias, propunha Foucault.  A  natureza sexuada  do humano, divididos em opostos, hierarquizados segundo sua essência, esta dotada de razão e de criatividade,  aquela de uma vaga intuição e de uma passividade receptora foi  a evidencia maior descontruída pelos feminismos.

 Este idéia, disseminada em diferentes práticas discursivas, entre as quais as ciências, como bem explicita Gayle Rubin( 1975), instituiu a norma do humano conjugado no masculino, articulado em hierarquia, reiterado pelos discursos mais variados, criando, de fato, a desigualdade política ao instaurar uma diferença. Esta autora discute alguns pressupostos de  Freud e Lévy-Strauss, apontando  como suas elaborações teóricas de pretensão universal  repousam sobre  construções e distinções  de gênero, apresentadas como evidentes e naturais, como a troca de mulheres, ou a inveja do pênis e a sexualidade como eixo e essência do humano e suas relações; esta evidencia da “ natureza humana”, repousa, entretanto, apenas em sua própria enunciação e engendra o  sistema ao enunciá-lo.. Como diriam os positivistas: é porque é.

Monique Wittig, por sua vez indaga :

 «  quem deu aos psicanalistas seu saber ? Por exemplo, para Lacan, o que chama de ´discurso psicanalítico  ‘ a experiência analítica´ ambos “ lhe ensinam” o que ele sabe. E cada um ensina-lhe o que o outro lhe ensinou (Wittig, février 1980 :47)

 

Foucault é um dos  arauto desta percepção, pois  comenta que “

 

“Se os dos grandes vencidos destes últimos quinze anos são o marxismo e a psicanálise, é porque tinham uma parte muito ligada, não à classe no poder, mas aos mecanismos do poder. “ (Foucault, 1970-1975 :724)

 

            A ciência trabalha, portanto,  com representações generizadas, representações sociais que são premissas  “indiscutíveis” de suas análises, como mostram as feministas nos mais diversos campos do saber. Emily Martin, por exemplo, aponta   nos discursos sobre a concepção humana, os papéis do óvulo ( passivo, inerte, receptor) e os espermatozóides em plena ação, a reprodução, ipsis literis, das representações sociais sobre o feminino e o masculino.  Anne Fausto-Sterling expõe as representações binárias e a imagem da “verdadeira” mulher contidas nos enunciados médicos sobre a menopausa ou a famosa “ tensão pré-menstrual”, que reinstituem na atualidade as imagens do feminino, doente de seu corpo e presa de seus hormônios, que lhe dá e lhe retira seu lugar no social, na cotação da bolsa de valores da sedução da procriação.( Sterling,1999)

A filosofia, como analisa Genevieve Fraisse (1995), não cessa de re-instaurar esta natureza de duas formas: por um lado,  utilizando sem cessar metáforas sexuadas e hierarquizadas, que sublinham o valor do viril e do masculino e  por outro , recusando-se a pensar  as instaurações políticas de gênero, pois já que “naturais”, não apresentam interesse para análise. Assim, por exemplo, a existência de esferas  públicas e  privadas no social são tomadas como axiomas, baseadas na diferença “natural” entre os sexos;  Carole Pateman (1993), porém,  . analisa com brilho a genealogia destas categorias, a priori histórico de muitos trabalhos e teses.  

A apropriação simbólica e material dos corpos e do trabalho das mulheres, explicitada por  Colette Guillaumin,(1978) a noção de patriarcado como sistema , como mecanismo de poder e de instituição do real, imbricado ao capitalismo mas a ele não redutível , como explicita Christine Delphy (1970) com a categoria “modo de produção doméstico”, são obras feministas descontrutoras de realidades criadas e cristalizadas pelas ciências e pelas práticas socais.

 No fim dos anos 1970, a reflexão de Monique Wittig contribui a criar o solo sobre o qual se apoio a crítica pós-moderna de todas as evidencias e de todos os naturalismos.  Nomeia “ pensée straight’ o quadro de pensamento binário e heterossexual e esta categoria exprime de forma densa a íntima relação entre o pensamento e suas condições de produção, pois pensar, é também pensar historicamente, um ato ancorado em um horizonte possível de interpretações e de interpelações.  A “pensée straight » para esta autora, é assim o fundamento de todas as naturalizações e evidencias, escondendo sua construção histórica sob o universal de um humano, inventado segundo normas e valores locais e temporais.  Wittig explicita:

“ Não posso senão sublinhar o caráter opressivo que reveste a “ pénsée straight” em sua tendência a imediatamente universalizar sua produção de conceitos, a formar leis gerais que valem para todas as sociedades, todas as épocas, todos os indivíduos” (février 1980 :49 )

A  « pensée straight » é, portanto, um quadro de pensamento histórico, cujos conceitos criam uma certa realidade e a inauguram como fundadora do humano em uma iteração incessante. Desta forma, não é suficiente desnaturalizar o natural, mas, sobretudo mostrar os mecanismos históricos, materiais, simbólicos, imaginários, que criam as relações sociais e a própria realidade.

Os feminismos tem sido, assim,  ponta de lança para a crítica da ciência , das verdades instituídas, dos valores transformados em leis, apontando para a historicidade absoluta do humano e dos sentidos criados em práticas discursivas, marcadas de tempo e de espaço e por elas universalizadas. Fala-se inclusive de “ o feminismo”, ignorando a pluralidade e a riqueza das análises produzidas em milhares de textos, marcando a produção do conhecimento no feminino da mesma essência única que se atribui às mulheres. De fato “ o homem” designa o universal, o humano, “os homens”, as suas divisões individuais; a “ mulher” aponta para uma espécie do humano, o “outro”, e “as mulheres” apenas o quantitativo.  

A ausência das análises e da epistemologia feminista atuais da academia e da economia do saber institucional, o anonimato da intensa produção feminista em todos os campos do conhecimento,  demonstra de maneira clara a falácia  histórica da  construção dos saberes:  historiadores do futuro poderiam afirmar, a partir dos compêndios acadêmicos e dos programas dos cursos universitários, que as mulheres  não participavam da  produção do saber, como vem fazendo a história em suas narrativas tradicionais.  E como costumo afirmar, “ o que a história não diz, não existiu”.

Falando da educação Foucault comenta que 

“ ´[...]ela segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as oposições e as lutas sociais Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que carregam com eles.” (Foucault, 1971:46)

Ignorar a produção feminista do saber é tentar manter uma ordem discursiva androcêntrica. .Até o advento da “história das mulheres” tudo se passava na narrativa histórica como se elas fossem invisíveis participantes das relações sociais, matrizes, objetos de troca e de uso, parte dos móveis e utensílios necessários, porém estáticos,a receptivos, passivos. A própria história das mulheres, em algumas vertentes, padece dos limites do quadro binário de pensamento, apontando para as mulheres , na história, apenas em seus papéis tradicionais , dentro de seu “ destino biológico” .

Em seu questionamento sobre a instituição dos corpos sexuados e seus corolários de atributos e características sociais, os feminismos solaparam, assim, a base arenosa da evidencia considerada a mais clara e incontestável: a divisão biológica do humano em feminino e masculino e este destino biológico procriativo, atribuído às mulheres, aí nomeadas “ a mulher”.

 Desta forma, considero que os feminismos, em seus desdobramentos diversos , abalando as certezas ancoradas no que seria o mais sólido, a natureza, criaram o solo para a crítica sistemática das verdades científicas, no que se configurou o chamado pós-modernismo. Trabalhando a noção de “diferença dos sexos”, os feminismos apontam para a construção política de modelos humanos cuja base, o sexo e a sexualidade, são a parte que passa a representar o todo, arbitrariamente.

Se no vórtice das desigualdades, as raças se definiram pelas características externas da pele e dos traços, derramando-se em arcabouços culturais ou fenótipos ditos  “ primitivos” ,no caso dos sexos, feminino / masculino, a naturalização de uma diferença construída alicerça, na exterioridade genital, características internas apontadas como inatas, como constitutivas da identidade primária do humano.

A desigualdade de gênero precede a de raça na ordem do discurso, pois se é mulher ou homem antes de ser branco, negro ou amarelo, azul ou roxo. No ápice das desigualdades se é, portanto,  mulher, negra,  lésbica, pobre, gorda, velha, feia,  etc., numa escala que parte do “ natural”, da norma,  para as diferentes formas de “ diferença”.

Igualdade  e diferença são categorias de extrema atualidade nas ciências sociais, cuja imbricação é uma expressiva elisão  do binômio  identidade / diferença, como bem explicita a filósofa Géneviève Fraisse; (1995)  De fato, o par de igualdade é desigualdade , esta última enquanto resultado de uma política da diferença. Uma desigualdade instaurada no político, como fundamental na taxionomia do humano, é enraizada, assim,  na noção de diferença entre o feminino e o masculino; esta categoria ancora-se na noção de “natural”, que toma uma parte do humano- seu aparelho genital- como sendo a expressão de sua totalidade. O valor social que cimenta esta divisão binária é a reprodução, traduzida em heterossexualidade compulsória, como afirmam Monique Wittig( 1980) e Adrienne Rich (1980), entre outras.

Ao mesmo tempo, atrela à “ natureza” uma série de características socialmente construídas, criando uma escala binária de atributos, cujo pólo positivo encontra-se fixado no masculino.Porém, só existem diferenças lá onde se estabelece um referente e a “ diferença” dos sexos aponta apenas para uma construção social de um parâmetro corpóreo, fundamento de hierarquias.

O referente assim, é modelo desdobrado em homem, branco, ocidental, jovem, de posses, origem de uma cascata de desigualdades; classificou-se enquanto “outro” todas /os que não se adequassem ao perfil do referente. A igualdade na diferença, a meu ver, é uma expressão antinômica, já que é a própria noção e instituição de diferença que cria a desigualdade entre os seres. Quando esta diferença é apresentada como “ natural”, sua construção social desaparece da ordem do discurso e ancora crenças e tradições que organizam o feminino e o masculino em outro binômio:  inferior / superior, instituídas em sistemas de dominação. Foucault explicita o que entende por dominação:

 

« [...] nas relações humanas, há todo um feixe de relações de poder, que podem se exercer entre os indivíduos, no seio de uma família, em uma relação pedagógica, no corpo político. Esta análise das relações de poder constitui um campo extremamente complexo. Encontra, às vezes, o que podemos chamar fatos, ou estados de dominação, nos quais as relações de poder, em lugar de serem móveis e de permitir aos diferentes parceiros uma estratégia que as modifique, encontram-se bloqueadas e fixas. Quando um individuo ou um grupo social consegue bloquear um campo de relações de poder, a torná-las imóveis e fixas e a impedir uma reversibilidade do movimento [...] estamos diante do que se pode chamar de estado de dominação (Foucault, 1980-1988:  710/711)

 

A naturalização das relações entre o feminino e o masculino criam este tipo de “ estado de dominação”. As desigualdades encontram-se , deste modo,  fundadas num discurso de “evidência”, ocultando-se , desta forma,  que a própria idéia de diferença  pressupõe todo um aparato valorativo, onde o sexo biológico é tomado como parâmetro principal na classificação do humano.

As epistemologias feministas e os movimentos de mulheres são expressão de práticas de liberdade e de liberação; em alguns países os estados de dominação são quase herméticos, mas mesmo assim é possível trabalhar ass fissuras no sistema; em outros, mais permeáveis, como os ocidentais, a dominação se faz, não pela força, mas pela repetição, pela educação, pela religião, por assujeitamentos diversos que flexionam as auto-representações nos quadros binários habituais. Dos discursos midiáticos à atividade legislativa, os corpos das mulheres são criados enquanto sexuados, apropriados, destinados à procriação e à sedução, como bem explana Susan Bordo (labrys 4, 2003)

O referente é o masculino, o sujeito que exige, para compor sua identidade , a existência de um outro desigual, feito de oposição, de uma suposta complementaridade, que apenas acentua a disparidade entre o feminino e o masculino nas práticas políticas, em seu sentido mais amplo. De fato a “igualdade” hoje, para as mulheres significa dupla ou tripla jornada de trabalho, salários inferiores para tarefas iguais, ínfima representação política, e corpos submetidos a uma violência social naturalizada, como a doméstica ou a prostituição, a pedofilia. E  a luta pela igualdade se faz sob o signo da diferença, solo construído sobre o qual se instauram as assimetrias e as desigualdades sociais.

Neste sentido, os feminismos se pluralizam, em diversos graus de comprometimento com os quadros de pensamento habituais, como o binarismo explicitado na expressão sexo/ gênero, ou o diálogo com narrativas universalizantes, como a psicanálise , presas de condições de inteligibilidade coercitivas. Os feminismos vem fazendo teorias, porém, não como  quadros de pensamento rígidos, modelares, substitutivos; os feminismos, hoje, ao teorizar, fazem uma poética, como sublinha Linda Hutcheon, (1991: 29-30) “aberta e em constante mutação”, enunciados  provisórios, sem a ânsia das respostas e das definições, sem medo dos paradoxos, traçando heterotopias ao decodificar as artimanhas do poder sobre o simbólico / material do relacionamento humano.

Estaria  Foucault pensando nas feministas quando afirmou que:

papel do intelectual não é mais de se colocar um pouco antes ou um pouco de lado para dizer a verdade muda a todos; é ao contrário, lutar contra as formas de poder onde é ao mesmo tempo objeto e instrumento na ordem do “saber”, da “verdade”, da “consciência” , do “discurso”. É assim que a teoria não exprimirá, não traduzirá, não se aplicará à uma prática, ela é uma prática. Mas local e regional, nunca totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e estocá-lo, ali onde é o mais invisível e o mais insidioso. “ (Foucault,  1970-75: 308/309)

 

Neste grande, imenso dispositivo da sexualidade identificado por Foucault , em que o sexo se torna o eixo da existência, da identidade , atraindo todos os olhares e investimentos individuais e sociais, não se pode esquecer que sua definição é , de início, binária: a heterossexualidade é portanto, a norma. Feministas como Monique Wittig e Adrienne Rich, nos anos 1970 identificam na heterossexualidade compulsória a prática social fundadora do “natural” da divisão binária dos sexos e de sua hierarquização.

De fato, se Foucault expõe as tecnologias do sexo, fundadora dos corpos normatizados e disciplinados, mas seu discurso permanece generalizante . Diz ele:

“O poder seria essencialmente o que, ao sexo, dita sua lei. O que significa, antes de tudo, que o sexo se encontra colocado por ele em um sistema binário: lícito e ilícito, permitido e proibido. O que significa que o poder  prescreve ao sexo uma “ordem”, que funciona ao mesmo tempo como forma de inteligibilidade: o sexo se decifra em relação à lei. [...] a tomada de poder sobre o sexo se faria pela linguagem ou melhor, por um ato de discurso, criando, ao ser articulado, um estado de direito. [...] a forma pura do poder, seria encontrada na função do legislador, e seu modo de ação seria, em relação ao sexo, do tipo jurídico- discursivo. (Foucault, 1976:10)

 

A sexualidade criada pela linguagem, em matrizes de inteligibilidade, a lei como materialização em normas, aqui é explicitada. Foucault vê também, nas tecnologias do sexo, a criação do “ sexo verdadeiro” e nisto está clara a oposição heterossexualidade / homossexualidade. Mas e a própria constituição da heterossexualidade?

Teresa de Lauretis ,( 1987) por sua vez, nos expõe as tecnologias de gênero, que inventam corpos sexuados nos diferentes discursos sociais e lhes atribuem diferenças incontornáveis, em hierarquia e assimetria. De fato, o binarismo primário é o feminino - masculino , a construção da heterossexualidade e da norma em termos de natureza.  Neste sentido, antes de terem sexualidade, os corpos devem se tornar sexuados.

As tecnologias do gênero compõem os corpos humanos em uma forma binária e neste sentido, como sublinha Judith Butler (1990), não existem gêneros fora de expressões de gênero, ou seja, é o social, com seus sentidos, valores e escolhas que define o sexo como prioritário nas expressões do humano. É assim, que para Butler, é o gênero que constrói o sexo, invertendo a proposição sexo / gênero, que deixa intacta e sem questionamento a naturalização da diferença.( Butler,1990) Desta forma, fica claro que a diferença entre os sexos é criação político - discursiva da economia binária dos gêneros “naturais”, cujo fundamento é a procriação.

Como método, a crítica feminista da produção do conhecimento trabalha num constante re- significar de suas próprias proposições e tem como ponto de partido o que Sandra Harding chama de “objetividade forte “ (Harding, 1998) ou seja , a constante reflexão sobre as condições de produção do conhecimento, incluindo as suas próprias, explicitadas em saberes localizados e específicos, no tempo e no espaço.

 Teresa de Lauretis sublinha a noção de experiência, incontornável para os feminismos, “ um complexo de efeitos significativos, de hábitos , disposições, associações e percepções”  ( De Lauretis, 1987:.18) “ um processo pelo qual todos os seres sociais são construídos” ( 18)Localizando sua produção de saber e assentando-a na experiência, os feminismos escapam assim às generalizações abusivas , às características biológicas universalizantes com as quais se institui a representação DA mulher, inclusive em seus próprios discursos.

De fato, quando a crítica feminista  se anuncia, é o domínio do arquivo foucaultiano que se desvela, ou seja

 

 “[...] o conjunto de regras, que em uma dada época e para uma sociedade determinada, definem os limites e as formas do dizível [...] quais são os enunciados destinados a não deixar traço? Quais são destinados, ao contrário, a entrar na memória dos homens ( pela recitação ritual, a pedagogia, o ensino, a distração, ou a festa, a publicidade)? Quais são anotados para poder ser reutilizados e com que fins?[...](Foucault, 1954-1969:681)

 

A história das mulheres tem aberto este arquivo, localizando em seus  silêncios e suas fissuras o espaço de ação do poder instituidor dos corpos sexuados em hierarquia, discursos recitados em ladainhas pela tecnologias do gênero.

Acrescenta Foucault, a respeito das perspectivas do arquivo:

 

“Quais são os enunciados  reconhecidos como válidos ou discutíveis ou definitivamente invalidades? Quais os tipos de relações são estabelecidas entre o sistema de enunciados presentes e o corpus de enunciados passados?[...] Que indivíduos, que grupos, que classes tem acesso à que tipo de discurso?Como é institucionalizado a relação do discurso com aquele que o pronuncia, com aquele o recebe? Como se desenvolve, entre classes, nações, coletividades lingüísticas, culturais ou étnicas, a luta pela tomada dos discursos? (Foucault, 1954-1969: 682)

 

Poderia ser aqui uma feminista falando da exclusão das mulheres da ordem do discurso acadêmico, político, social e a desqualificação da reflexão feminista no sistema de  apropriação social simbólico – discursiva. .

            A crítica feminista da realidade em que vivemos poderia ela mesma ser uma das heterotopias descritas por Foucault, entre aquela de crise e aquela do desvio: dentro da norma e em processo de ruptura, em crise e  fora da norma, lá  onde, como aponta Foucault, estão os indivíduos cujo comportamento é desviante em relação à média ou à norma exigida”.( Foucault, 1980-1988: 757) Este é o sujeito feminista, nomeado eccentric subject por Teresa de Lauretis, dentro de suas condições de produção e de sua experiência designada enquanto mulher ; fora delas, ao indicar as linhas de força e de poder que constituem o humano em corpos sexuados.(De Lauretis, 1990)

E a história, afinal? A história encontra-se valorizada enquanto disciplina, já que todas as outras reconhecem, em maior ou menor grau, a incontornável historicidade de suas proposições. Enquanto historiadoras feministas, procuramos não o ecoar monótono da repetição do mesmo, mas as vibrações  dos acordes múltiplos de uma história possível, instauradora de diversidade, não da diferença.

 

*Este texto foi apresentado em mesa redonda no encontro " O legado de Foucault", UNESP/ Araraquara, agosto 2004.

 Referências

Butler, Judith, 1990. Gender trouble. Feminism and the Subversion of Identity , New York : Routledge.

De Lauretis, Teresa (1987) Technologies of gender. Essays on Theory, Film, and Fiction., Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press

De Lauretis, Teresa. 1990. « Eccentric subjects : feminist theory and historical consciousness ». Feminist Studies, Maryland, Vol. 16, no 1, Spring, p. 115-150.

Delphy, Christine.(1970) « L´ennemi principal », Partisans, Paris, vol. 54-55. pp.157-172

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Wittig, Monique  (1980) La pensée straight. Questions Féministes, Paris, Ed. Tierce, février,  n.7.

 


 

[1] Ver, por exemplo, livros de sua autoria como O que é Taylorismo? ,Brasiliense,1984; Do Cabaré ao Lar. A utopia da cidade disciplinar, Paz e Terra,1985; Os Prazeres da Noite.Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo, Paz e Terra,1989; Narrar o Passado, Repensar a História, com Renato Aloisio Gimenes ,Unicamp,2000 e Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo Contemporâneo, ED.da Unesp, 2001.