O IMAGINÁRIO E A HISTÓRIA ... EM QUADRINHOS.

 

( foi publicado na revista Universa)

O que seria, afinal, o imaginário?  Seria um simples modismo? Quais seriam os objetos, quais as fontes? Quais os limiares deste imaginário ?  Confunde-se com mentalidade, deriva de imaginação, de ficcional?  Imaginário opõe-se à realidade, significa ilusão , engano, refúgio diante de uma materialidade às vezes insuportável?

Antes de mais nada, na perspecitva deste trabalho,o imaginário seria uma faceta constitutiva do social e neste sentido tem uma realidade que é sua, própria, articulada ao material/ concreto de nossa percepção imediata. Neste ótica, o imaginário cria realidades vivenciadas e ao mesmo tempo, efetua leituras do social, que passam a ser matéria prima da produção imagética.

Assim, entre o imaginário e o real  existiria uma ação de circularidade, de atuação mútua, sem hierarquizações. Esta seria uma conceituação de imaginário tal  como a utilizaremos aqui, e não siginifica uma definição - que é, por excelência excludente e delimitadora.

E o modismo? Porque se fala tanto de imaginário hoje em dia? Apenas atualmente as condições de possibilidade no Brasil  permitem que  se pesquise, se escreva, se analise a partir desta categoria. Há alguns anos, porém, não muitos,nada que se aproximasse da produção específica do imaginário era suficientemente sério/ relevante  para ser trabalhado na academia, dentro de uma visão estreita e mesquinha do social e sobretudo, estreita e mesquinha da própria academia, cada disciplina reivindicando uma importância maior , em quadros e limites bem estabelecidos.   Mitos? Isto é coisa de antropólogo. Linguagem, discurso? Coisa de linguistas. Imaginação, imaginário? coisa de burguês. 

     Entretanto,os estudos sobre o imaginário  atravessam o seculo: a partir dos anos 30,  trabalhos como  os de George Dumézil, cujas últimas publicações datam dos anos 80 [1] e  de Bachelard,[2] que esculpe a noção de imaginação criadora, tornam-se  referência quase obrigatória   nas rellexõe sobre o imaginário. Da mesma forma, Roger Caillois, que participou do movimento surrealista, reflete sobre as a arte em geral, a literatura, o religioso, em uma extensa obra, utilizando, já, à época, a noção de imaginário .[3] No fim dos anos 60, Gilbert Durand cria o " Centre d' Études sur l' ïmaginaire", em Grenoble, França,que realiza uma imensa produção de teses e pesquisas interdisciplinares sobre o imaginário.

         Por outro lado, historiadores como George Duby e Jacques LeGoff , nos anos 70, produzem trabalhos que põem em relêvo a categoria imaginário , porém com acepções diversas: Duby em seu livro," As três Ordens ou o imaginário do feudalismo"  [4]toma como exemplo o trifuncionalismo de Dumézil  e LeGoff , com seu " O imaginário medieval ", ou "o Nascimento do Purgatório" [5] apresenta esta noção numa perspectiva de reflexo do real, ou seja, o imaginário seria uma exlusiva produção do real , observado na longa duração.

         Os anos 80 assistem a uma produção cada vez maior de trabalhos que gravitam em torno do conceito de imaginário, como "A colonização do imaginário", deSerge Gruzinsky  ou "A guilhotina ou o imaginário do terror,"de  Daniel Arasse .[6] Isto sem falar do estudo dos mitos desenvolvido por Jean Pierre Vernant e Marecel Deétienne -[7], Moses Finley etc, com suas óticas específicas.No Brasil , Laura de Mello e Souza e outros, por exemplo, trabalham igualmente imagens, que podem ser iconográficas ou criações mentais com força de imagem.[8]

Mais recentemente, Peter Burke[9] analisa a criação da imagem de Luis XIV, como oriunda de uma ação consciente de um certo grupo difusor que, através das imagens do rei assentam e constroem a dimensão de seu poder.

Quanto a métodos, objetos e fontes,o estudo do imaginário revela-se definitivamente interdisciplinar, no cruzamento da antropologia, da história, da linguística, da psicanálise, da psiclogia social, da sociologia , etc. Se o seu domínio principal é a iconografia, a produção e atuação das imagens nas formações sociais, não podemos excluir do estudo do imaginário a produção de imagens no discurso. Neste sentido, a imagem é texto,  e o texto , a materialização do discurso.

Segundo Bakthin, "na realidade não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis e desagradáveis. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial."[10]

  Assim, os textos imagéticos, o imaginário que desponta nos mais diversos tipos de discurso é forjador de sentidos, fixador de identidades, locus de conflito, de adesão, de (in)coerências. Segundo Bronislaw Baczko, "não se pode separar os agentes/atos de suas representações/ imagens de si e do outro, que, de fato, definem comportamentos, inculcam valores, atribuem méritos, corroboram ou condensam atitudes/decisões"[11].

Nesta acepção de Baczko, a ação do imaginário é decisiva no agenciamento do social, no estabelecimento de relações, hierarquias, definições normativas entre o certo e o errado,o bom/ mal, normal/patológico, verdade/mentira. 

Claude Gilbert Dubois [12], na trilha da "imagination imaginante" de  Bachelard explora a idéia de imaginação mimética - reflexo do real - e  estabelece o conceito de imaginação simbólica, que tem em seu conteúdo representacional uma função instituinte. Nesta ótica não podemos esquecer Castoriadis,[13] para quem o imaginário é força constituidora do real.

  Esta ação dinâmica do imaginário aproxima este conceito da noção de Representação Social de Moscovici para quem a representação social é estímulo,  variável independente nas investigações empíricas.[14]

 Jodelet , ainda no campo da psicologia social, trabalha com o seguinte conceito de RS

"forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social"[15]

Roger Chartier, discutindo as representaões sociais no âmbito da história cultural, dissocia-as dos processos psicológicos individuais ou de ordem partilhada e  indica que seriam esquemas interpretativos,aquilo que "à revelia dos atores sociais traduzem suas posições e interesses objetivamente confrontados e que paralelamente,descrevem e modelam a sociedade tal como pensam que ela é ou como gostariam que fosse.[16]

Nesta rápida confrontação, vemos uma noção de representação que  se confunde e se imbrica  com a de imaginário, na medida em que este constrói ou reproduz o real segundo as confrontações, as divisões, as clivagens que se manifestam na formulação de imgens estabelecedoras de um social específico.

Assim, o imaginário, na organização imagética do mundo, constrói sua realidade,  apreendida e comunicada. Entretanto, o imaginário, enquanto categoria de análise, é composto de duas partes: a primeira que recolhe, na produção de imagens em um tempo e lugar específicos , o já-dito, os sentidos possíveis que rondam a atualização do discurso  em sua singularização, em sua historicidade. Ou seja, são imagens do passado que se atualizam na fixação de sentido procurada pela imagem; é o domínio do interdiscurso, do Outro constitutivo, que faz com que todo discurso seja dialógico.

Desta forma,a nova imagem é matizada de imagens latentes, o que faz com que novos sentidos, adquiridos em situações particulares, façam brilhar, em filigrana, traços de enunciados anteriores.

Num dado momento histórico, porém,os sentidos fixam-se apenas quando inseridos em uma determinada rede de , que compõe o que Foucault [17]denomina "regime de verdade", ou seja, os sentidos que circulam no social com valor de verdade.

Assim, em sua determinação de sentido específica, a imagem estabelece relação com outras constelações de sentido anteriores.  Por exemplo, a imagem de Eva carrega uma rede de sentidos relativos à Antiguidade - serpente, árvore, a propria mulher,a nudez, o vegetal, símbolos que foram associados em diversas formações sociais à figura de uma Deusa onipotente e criadora.[18] Em sua atualização, hoje,esta imagem evoca o pecado, a sensualidade, o mal, cristalizados na figura da mulher.

Entretanto, ao lado deste aspecto que opera o já-dito, o imaginário, em sua atualização temporal - o aqui e agora - possui uma dimensão criativa, que cria realidades, na medida em que implanta novos tipos de relacionamento, estabelece novos perfis de identidade, implanta novos tipos comportamento e de normas sociais. Por exemplo, a imagem do homem viril é devastada pelo macho-gay, que exacerba ps traços exteriores de virilidade para melhor inverte-los. Quando se reflete sobre as relações de gêneros no imaginário atual, percebe-se claramente estas duas características: a criação de novas imagens para a mulher e para o homem , atravessadas, porém,  por sentidos anteriores, que enfraquecem as cores do novo/novíssimo.

Assim, o imaginário é criador de realidade e ao mesmo tempo por ela criado, numa circularidade de ação em que não se pode hierarquizar o instituidor e o instituído.

Peter Burke afirmou, em recente conferência, [19]que a designação de  Imaginário tendia apenas a substituir a de mentalidade, e isto é evidente em muitos historiadores. Entretanto, se a mentalidade contempla a transformação de atitudes mentais na longa duração, o estudo do imaginário compreende a transformação, sim, em sua atualização histórica e sobretudo seu dinamismo na construção do real. 

RELAÇÕES DE GÊNERO E IMAGINÁRIO

No caso da história do tempo presente, as fontes para o estudo do imaginário estão estreitamente ligadas aos meios de comunicação, tv, cinema, jornais, revistas , etc. De forma geral, a música, o teatro, os mitos, as lendas, os contos de fada, a literatura em geral, pintura, escultura, são expressões precípuas do imaginário social, ou seja, são produtos e produtoras de sua época, documentos portanto, para o trabalho do historiador.

Neste trabalho, pretendo fazer um recorte específico do imaginário no tempo presente,mas as categorias aqui explicitadas adequam-se igualmente às análises do passado, próximo ou recuado.    

     Escolhi a análise de uma revista em quadrinhos,A espada selvagem de Conan, visto em apenas um exemplar, na tentativa de captar os sentidos sociais no diferentes aspectos aqui apontados e mais particularmente no que diz respeito às relações de gênero.

  Pretende-se   trabalhar aqui  com o conceito do processo metafórico da linguagem de Paul Ricoeur [20]para o qual  toda expressão possui uma zona de obscuridade, que não é evidente nem linear e que compõem o campo conotativo da linguagem- o campo paradigmático- do sentido indireto, que galvaniza o que Todorov chamaria de memória coletiva,[21]Maingueneau de interdiscurso,[22]  Pechêux de esquecimento número 1.[23]

São as evocações mútliplas que constituem o sentido dos enunciados e dos textos em determinados registros de produção de verdade- ou seja, é o receptor, é o leitor que incorpora e decifra os sentidos de forma ativa ou passiva, consciente ou inconsciente, crítica ou receptivamente. Esta é a estrutura contextual, singular , específica, o domínio da atualização histórica.

Na formação de sentido, temos assim, de um lado a revista, seu autor, sua divulgação, sua intencionalidade e de outro o receptor, que decifra e interpreta segundo sua próprias condições de produção de sentido; a revista desenvolve sua história linear e seu sentido denotativo, e a recepção traduz/ interpreta dentro do campo sêmico e conotativo no qual se constitui.

Desta forma, considera-se que os sentidos veiculados tem um caráter essencialmente polissêmico: sua atualização ( no caso dos sentidos possíveis) e sua fixação se fazem através do que Umberto Eco[24] qualifica como  efeito estético - apelo à sensibilidade , à emoção , o que Maffesoli, por sua vez chama de hiper-racionalidade  [25]-  variável  no tempo e no espaço. Ou seja, cada época faz vibrar determinadas cordas da sensibilidade social, que é interpelada segundo seus próprios critérios e valores. Neste caso considera-se a eficácia dos efeitos de sentido, isto é,a galvanização dos aspectos conotativos, direta ou indiretamente, na recepção do discurso linear.

A revista a ser aqui contemplada , A espada selvagem de Conan,[26] é  antiga, ( cerca de 50 anos) de grande tiragem e  grande prestígio entre o público receptor de histórias em quadrinhos. De modo geral, as histórias desenvolvidas na coleção dão margem a uma  grande quantidade de temas que poderiam ser analisados na perspectiva que nos interessa : míticos, simbólicos, paradigmáticos, normativos, morais,etc. A constelação de sentidos do tempo presente aponta-nos, portanto, para algumas interpretações possíveis dos enunciados textuais / imagéticos

A análise desta revista permite-nos detectar o tipo de ação exercida pela história ficcional,  pela produção do imaginário na construção de um regime de verdade ou seja, na formulação de imagens que tomam foros de verdade e determinam posturas naturais na divisão social dos papéis;neste caso,a afirmação de certas características  aparecem como fazendo parte do ser humano, de uma pretensa natureza do qual todos participariam, cada qual em seu lugar bem definido, em um mundo cujos valores e normas ficam perfeitamento expressos para um olhar crítico e impressos no imaginário dos leitores reafirmando/ re-criando o mundo. 

A capa da revista, de uma certa forma condensa todo o material interpretativo, em seus traços principais: ocupa o centro da cena uma figura masculina - protetora,  ativa, forte .Protege um portal e uma mulher, luta com sua espada e retesando os músculo, mostra sua força. É um vencedor, em pé, face aos inimigos caídos, curvados, inertes. A espada manchada de sangue, um grito feroz contorce seus traços. A cena introduz a  violência e a morte, eixos principais da história, elementos constitutivos do quotidiano do tempo presente. O amarelo - luminoso- e o fogo - purificador- envolvem os personagens e anunciam a jornada do herói, baluarte do bem na luta contra o mal e as trevas. A temporalidade é indefinida sugere apenas um passado , abertos os limites associativos.

A figura feminina , que compõe o centro da cena de capa , é extremamente passiva, apoia-se, pendura-se no homem; localiza-se ligeiramente atrás dele, um personagem secundário, descartável, como aparece no resto da história. Entretanto, está  seminua, transmitindo uma sensualidade à flor da pele, roupas esvoaçantes, transparentes, formas perfeitas. A mulher é desnecessária ao sentido principal da cena, da ação - olhar distante, etérea, desligada do mundo real, de lutas -apenas aponta para a sexualidade definida como moralmente correta na relação de gêneros, a heterosexual.

Os estereótipos dos gêneros estão perfeitamente desenhados , não só em suas características físicas, mas igualmente em seus aspectos morais/qualitativos.

Na ação,o herói vence a batalha, e defende o portal- dimensão que anuncia a história, seu clima e os papéis que vão ser desempenhados.Seu olhar dirige-se diretamente ao leitor, acompanhado de seu grito ameaçador/vencedor . Esta figura interpela o leitor - eu-  e vai traze-lo para dentro da revista : passa a ser um personagem integrante da história.

Assim, ao abrir a revista, o leitor já escolheu seu campo de identificação e de projeção. Identifica-se ao viril, à força, à ação, à vitória, ao socialmente estabelecido como desempenho  masculino.

As categorias que aparecem com mais evidência em toda a história, anunciadas pela capa são a  luta /violência / mutilação/ morte/ sexo. É uma história sem dor, sem piedade, sem quartel, sem repouso, girando em torno da busca de um tesouro que , finalmente, não tem a menor importância para Conan. É a longa caminhada de um herói em busca de si mesmo, a mais antiga meta dos ritos iniciáticos, a busca constante de uma pedra filosofal, símbolo de transformação e elevação espiritual.

Com exceção de dois personagens femininos, cujo perfil vai da perfídia à insensatez, passando pela debilidade e prostituição - é uma história que se passa entre homens; desta caminhada iniciática, as mulheres estão excluídas.

Trabalha-se nos desenhos e expressões a construção da imagem da virilidade com um   paradigma corporal  : branco, alto, forte e muscoloso, sério, introspectivo, taciturno. Bons ou maus, vencedores e vencidos, todos os personagens masculinos tem o mesmo tipo físico e em todo o desenrolar da trama, ninguém sorri, as expressões são de indiferença, ódio ou temor. A  emoção aparece apenas no ódio e a sensibilidade no apêlo ao sexo.

Conan já é o herói da história,( dá o nome à revista) mas esta característica vai sendo afirmada ao longo da ação: a luta  entre dois personagens, eixo da narração, é atravessada por um sentido paradigmático, conotativo, que tece a eterna trama da luta entre o bem e o mal, apesar de uma pretensa a-moralidade explícita.Conan aparece com as características de um certo tipo de herói mítico, apontado por Girardet:

"Este não traz nem o cetro, nem o símbolo              

da  justiça real, mas a espada. Ele não faz

'dom de si mesmo';apodera-se das multidões

que subjuga. A legitimidade de seu poder

não provém  do passado,não depende do

fervor da lembrança; inscreve-se no brilho

da ação imediata[...] Herói da juventude e

do movimento, sua impetuosidade chega a  

ponto de domar a natureza;transpõe as              

montanhas, atravessa os desertos, salta

              por cima dos rios."

Conan é uma figura mágica, protegido pelos deuses em íntima ligação com os elementos da natureza: a água em geral,- mar, tempestades, elementos que revigoram sua força - e o  fogo purificador.Este discurso simbólico-mítico reafirma o caráter supra- natural de Conan, herói regenerador, imbatível,  tipo projetivo, modelar. Apolo/Marte mesclados, beleza e força bruta estimulam o efeito de identificação e projeção do leitor, como  observa  Edgar Morin , em suas considerações sobre o cinema.[27]

Assim,a atualização desta figura de herói- mítico, que mescla juventude e poder, um poder emando de si mesmo, ou da própria natureza, galvaniza os leitores, cujas condições de recepção valorizam ao máximo o jovem, o forte, automaticamente transformado no belo. O processo de identificação ao masculino paradigmático é, assim, sublinhado e reforçado.         

No início da trama, percebe-se a descontrução de valores pretensamente civilizatórios: Conan, o bárbaro ( como é chamado) é prisioneiro de um povo civilizado, desprezível porém. A legenda comenta:

"Conan aprendeu que os chamados 'civilizados' possuem um gênio para declarar o óbvio. Todavia,o bárbaro é tolerante  com essas idiossincrasias e faz tudo que pode para ignorá-las . Afinal de contas, a vida é por demais efêmera para que um homem se preocupe com suas insignificâncias"[28]

 Conan, entretanto, é a encarnação do bem, em seus aspectos convencionais: sua brutalidade é matizada de qualidades morais afirmadas indiretamente: é honesto ( apesar de pirata) é bom (socorre, ajuda),protege os fracos; destemido e sem ambição, sua violência aparece apenas se necessário, em atitude de defesa, nunca gratuita.

A barbárie, portanto, encarna os valores "eternos" destruídos pelo processo civilizatório: num deslizamento de sentido, da negação surge a reafirmação dos valores morais "civilizados" . Ele é o bárbaro, mas apresenta todas as qualidades da justiça e temperança. A violência contra a mulher, da qual se apropria ao mesmo tempo que o navio, não existe no discurso da imagem ou da legenda, pois em sua ambiguidade, ela não resiste aos charmes de Conan.

Ao mesmo tempo em que a imagem e o poder de Conan se afirmam sobre todos os que o cercam,ao longo da história dá-se a  descontrução física de seu oponente, o mau e o mal, encarnado no pirata ,que aos poucos se torna um monstro, apenas refletindo sua monstruosidade interna, novo Dorian Gray desmascarado.  O oponente de Conan no início da história já tem sua mão direita cortada - castigo clássico dos ladrões/malfeitores; além disso,  perde um olho e é desfigurado pelo fogo, seu fim negro é inevitável.

O personagem de Conan é exaltado pela desconstrução, não só de seu oponente ( o mal) como também de seu oposto - a mulher - cuja figura representa a inversão de todos os aspectos positivos do herói.

Nesta história, a  relação de gêneros  elabora uma  típica  imagem de mulher :   personagem ambíguo, mesclando traços de traição e fidelelidade,separando na ação o prazer ( que vivencia com Conan) e o amor ( que sente pelo pirata). Esta atitude é condenável na formação discursiva ocidental/cristã  sobre os gêneros, condenável numa certa concepção do feminino na qual  o valor da fidelidade supera o da própria vida. Isto será reafirmado no fim da história, como veremos mais adiante.

A mulher semeia a dúvida e a desconfiança: Conan é resgatado do mar pelo navio pirata e em sua primeira aparição incita o pirata contra o herói : " Sem dúvida o maldito é um espião enviado pelos Zíngaros. Na certa eles querem ver todos nós enforcados"[29]

Ela não tem uma identidade , seu nome é citado apenas uma vez na história e no resto do tempo é chamada de "mulher". Sua presença é  estímulo à sexualidade : " Venha para meus aposentos, mulher. Parece que vamos ter que ficar enfiados lá embaixo até passar a borrasca."diz o pirata. " Não vai ser tão mal assim, querido. Aposto que acharemos algo interessante pra fazer" [30]responde ela.

Por outro lado, estimula a luta e a crueldade:

" Vá em frente, querido. Lute com o bárbaro."

No quadrinho seguinte:

"[...] Será divertido ver o bárbaro cortado em pedacinhos."[31]

Conan, porém, vence a luta e o pirata é atirado ao mar:  a história prossegue na  construção dos contornos dados ao personagem feminino, "continente obscuro", misto de inconstância,  perfídia, malícia. Ela assim se exprime: " [...] Um dia ele voltará para esfacelar sua cabeça.""E quando ele fizer isso, realmente será uma pena... pois, embora grosseiro, seu rosto não deixa de ser atraente..." Depois de um beijo,continua "Não importa o quanto eu possa gostar de sentir suas mãos em mim, bárbaro. Nunca vou pertencer a você, nunca!"[32]  Segundo o velho aforisma que quando a mulher diz não, está querendo dizer sim, no quadrinho seguinte ela aparece nos braços de Conan, que se dirige à cabine,sem resistência da parte dela.

Enquanto isso,o pirata consegue escapar e atinge uma praia, começando uma longa trajetória de ódio, vingança e morte, Conan comanda o navio, sempre taciturno e invencível e irresistível,  ao lado da mulher do pirata. Segundo a legenda " Quanto a Nahrela, que agora compartilha o leito de Conan,... ela já retribui com entusiasmo às suas investidas e não o insulta mais como antes fazia."  Esta é a única vez em que a mulher é nomeada , individualizada, mas sugere uma adesão entusiasta à violência de uma relação imposta, ao estupro sugerido; isto faz parte da rede de sentidos do mundo ocidental, onde, tantas vezes a vítima da violência é transformada em ré, instigadora e merecedora  do estupro.

Mas a ambiguidade da mulher inquieta Conan, que se mostra furioso com a nostalgia e a fé no retorno do pirata; ela se explica, entretanto, e o herói permanece calado e perplexo. As ponderações que se seguem delineiam com nitidez e aprofundam a imagem de mulher veiculada pela revista, tanto mais forte porque é expressa pela própria mulher: " Você tem sido bom para mim nessas semanas que passaram. Eu não sinto mais aquele ódio que sentia antes"[33]

Prisioneira de fato de um homem que matou seu amado e obriga-a a manter constantes relações sexuais - suas investidas- qual o  significado de "ser bom"?  Enigmático personagem que ratifica a violência  e por ela toma gosto, figura familiar da "mulher de malandro".

Ela se explica, porém, o olhar perdido ao longe e neste discurso  traça o retrato da mulher ideal nesta rede de sentidos de um modo de ver masculino,  veiculada pela revista: "... Mas há mulheres, Cimério, que estão destinadas a pertencer a um homem só a vida toda! Eu sou uma delas! "[34]

Suas palavras continuam num balão onde apenas se vê um  navio num mar calmo, sob um céu quase sem nuvens: "Não importa se algumas vêzes, quando ficava bêbado, ele me batia, ou mesmo me entregava para outros homens! E conclui: "  Apesar de tudo isso, bárbaro, eu continuo sendo mulher de Sharag! Por inteiro e para sempre![35] De forma lapidar e definitiva, a mulher perde sua identidade e condição de sujeito, submissa ao homem ,ao amor, e ao prazer,quando se interpenetram e se confundem as imagens de Conan e do pirata Sharag.

O lugar da mulher nesta história é totalmente secundário: companheira eventual de Conan, com a qual se preocupa e protege dos muitos perigos ao longo das páginas.Sua presença marca o exercício do sexo e sua desconstrução afirma, por oposição, a imagem do masculino como motor da vida e da ação. A outra mulher que aparece na trama é uma prostituta encontrada pelo pirata, que a despreza e a maltrata.Esta ima gem de sedução barata compõe o quadro do feminino na história em questão: mulher/ prostituta, mulher/mercadoria, mulher/ descartável, presença incongruente na história, imprescindível, porém, ao processo de produção da imagem da mulher.

Temos assim, o masculino-mítico atualizado e idealizado na figura do herói, mortal/ imortal na trilha de um destino de glória e poder. A seu lado, a mulher , poço de imperfeiçoes e de fraquezas,de submissão e passividade, cuja presença afirma apenas um certo exércicio da heterosexualidade; sua presença serve entretanto, para realçar e dar brilho às qualidades e atributos do homem. Este é finalmente o objetivo do processo de desconstrução no discurso e na prática social: o esfacelamento do Outro leva ao enaltecimento do Eu. Neste caso, "Eu sou o Outro", como queria Rimbaud, não passa de licença poética.

Terry Eagleton, comentando  Derrida observa que :

"[...] a descontrução é para ele uma    prática política; é,em última análise, uma um sistema particular de pensamentoe, por                detrás disto, todo um sistema de;   estruturas políticas e instituições sociais mantém sua força."[36]

Esta imagem desconstruída de mulher, portanto, apenas reforça no imaginário social a naturalização dos papéis construídos na concepção e atualizaão dos gêneros.

 A fidelidade de coração da mulher desta história, o amor que cultiva pelo pirata é punido com a morte, pois fora violentada, pertencera a um outro. Como as mulheres judias, nos tempos bíblicos[37] ou as mulheres de alguns países árabes nos tempos atuais .[38]    

Ao final da história, quando, no templo da criatura de 12 olhos, dá-se o encontro final entre Conan e o pirata Sharaq, o destino da mulher é selado. Ela corre ao encontro dele, os braços abertos,apesar das advertências de Conan, gritando : "{...] meu amado! Graças aos deuses! você está vivo! Eu sabia! Eu rezei!"  Em resposta a este impulso, o pirata atravessa-a com sua espada, insultando-a :"Rameira! Pensouque, durante todas essas semanas, poderia partilar o leito com o bárbaro e ainda voltar para mim?" Já em outro quadrinho , ele em pé, ela agonizante: "Imaginou realmente que poderia me trair e mesmo assim receber meu perdão?"

Ela implora: "Não!" E morrendo : "Eu ... te amo."

Uma vez morta, nem Conan nem o pirata sequer lançam a ela um segundo olhar: deixou de existir na mente de todo mundo. Vemos aí o caráter substitutivo da mulher - todas iguais, perde uma, muitas outras virão. Desaparece a mulher para que o climax da história se desenvolva, agora é sério, uma luta entre homens, de vida ou de morte.

Nesta luta final, afirma-se o embate entre o bem e o mal e o caráter mítico/ heróico de Conan é sublinhado. Entre eles aparece o monstro de 12 olhos, estátua de ouro que se  transforma em ser em putrefação, imperecível, porém. O pirata, movido pela ambição e pelo ódio, não consegue derrotá-lo e morre em suas garras. Conan, porém, detém o saber de sua morte e este saber representa seu poder sobre o mal e a morte.

Fim da história, Conan sai do templo, sozinho, e abandona o tesouro, pelo qual não mais se interessa.

Nestas imagens forjadas fora do tempo real, a produção de sentido é  reafirmadoras de paradigmas,  re-consntrutora de ordem moral e normativa em relação aos valores institucionais vigentes e à divisão de papéis sociais . No dinamismo de seu efeito estético é uma prática política que se descortina na linguagem dos quadrinhos. Nos sentidos veiculados, o bem vence o mal, o homem é  infinitamente superior à mulher. A violência é justa e a morte inexorável no destino dos vilões.

Ressalta-se o culto ao herói e à virilidade, bem como o culto à ação , pois a felicidade encontra-se na própria vida, na aventura,e no despreendimento. É uma elegia à intensidade da vida, desde que dentro dos padrões do masculino e do bem.

Do lado da recepção , os meninos/ adolescentes/ homens identificam-se imediatamente a Conan, valorizados pela sua sabedoria e poder; as meninas/ adolescentes/ mulheres não encontram um personagem feminimo positivo a que se identificar. Ou realizam o movimento de projeção em relação  ao herói, recusando o feminino, e  assim desprezando-o, ou pior, identificam-se à imagem de mulher traçada pela história..

A análise deste exemplar de Conan não significa que toda a coleção trabalhe o mesmo regime de verdade- mostra apenas, num momento de fragmentação de certezas , de desmoronamento de verdades inquestionáveis, de re-dimensionamento das relações de gênero no Ocidente, como o imaginário social procura reafirmar e reproduzir esquemas de interpretação do mundo que se re-atualizam antes mesmo de haver desaparecido.


 

[1]Geoges Dumézil cria a "teoria  do tri-funcionalismo" com a qual tenta esbabelecer uma correspondência entre a elaboração mítica e a organização do social. Da grande obra por ele produzida , ver, a título de exemplo, La religion  romaine archaique, Paris,Payot, 1987, ;Les dieux souverains des Indo-européens,Paris, Gallimard, 1986,: Fêtes romaines d'été et d'automne, Paris, Gallimard, 1986, : Mythes et dieux des indo-européens, Paris, Flammarion,1992

[2] ver, principalmente, os livros de Gaston Bachelard que se referem aos 4 elementos: água, terra, ar e fogo, já traduzidos para o português. La terre et les rêveries du repos, Paris, José Corti, 1948 ;  La terre et les rêveries de la volonté, Paris, José Corti, 1947 ;L'eau et les rêves, Paris, José Corti,1942 ; L'air et les songes,Paris, José Corti, 1943 ;  La psychamalyse du feu, Gallimard (Folio/Essais), 1949.

> [3] A obra de Roger Caillois conta com mais de 20  títulos, apenas nas Editions Gallimard. Reflete sobre a produção específica do imaginário, tal como a poesia, o romance, o sonho, o sagrado, o mito, etc. A título de ilustração, indicamos  Approches de l'imaginaire, Paris, Gallimard, 1977.

> [4]Georges Duby, As três ordens ou o imaginário do feudalismo, Lisboa, Estampa, 1982.

> [5]Jacques LeGoff. L'imaginaire médieval, Paris, Galliomard, 1985 e La naissance du purgatoire, Paris, Gallimard/Folio-Histoire, 1981.

> [6]Serge Gruzinsku. La colonisation de límaginaire, Paris, Gallimard,1988, Daniel Arasse, La guilhotine ou límaginaire de la terreur,,Paris, Champs/Flammarion, 1987.

> [7] ver, por exemplo, obra conjunta de Marcel Detienne et Jean-Pierre Vernant.  La cuisine du sacrifice en pays grec, Paris, Galimard, 1987 ou Marcel Detinenne, L'invention de la mythologie,Paris, Galimmard, 1981. A obra destes dois autores é extensa e estes títulos  são apenas ilustrativos.

> [8]Laura de Mello e Souza, O diabo na terra de Santa Cruz, S.P. Cia das Letras,           trabalha o imaginário que presidiu o descobrimento do Brasil. Tania Navarro Swain , Os mitos do descobrimento do Brasil, Revista Humanidades, Brasília, EdUnB, vol.8, n.2 (28) 1992   contempla igualmente a força das imagens entre os descobridores e primeiros povoadores. no século XVI.  

> [9]Peter Burke. A fabricação do rei, R.J., Zahar, 1994

> [10]Mikhail Bakthin ( Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem, S.P., Hucitec, 1990,p.95

> [11]Bronislaw Baczko. A imaginação social. Enciclopédia Einaudi,Ed. portuguesa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985 p.306.

> [12]Claude-Gilbert Dubois. L' imaginaire de la Renaissance,Paris, PUF, 1985.

> [13]Cornelius Castoriadis. A instituição imaginária da sociedade, R.J., Paz e Terra, 1982.

> [14]  citado por ..Sandra Jovchelovitch e.Pedrinho Guareschi (org.) Textos em Representações  Sociais Petropolis, Vozes, 1974 , p. 175

> [15]idem, ibid., p.202.

> [16]Roger Chartier. História Cultural  , entre práticas e representações , Lisboa, Difel, 1990 ,p.19

> [17] ver Michel Foucault, Microfísica do poder, RJ. Graal, 1987.Nesta coletânea de conferências/ artigos/ entrevistas, Foucault explica  em vários momentos o que entende por "regime de verdade"e seu funcionamento na formulação dos traçados de poder nas relações sociais.

> [18]ver, a respeito da Deusa na antiguidade, Tania Navarro Swain.De Deusa à Bruxa: uma história de silêncio. Revista HumanidadesBrasília, EdUnb, vol.9, n.1, p, 45 a 57, que contém ampla bibliografia sobre o assunto.

> [19]Conferência pronunciada na Univeeridade de Brasília, em outubro de 1994, por iniciativa do CLIIHO - Circulo de Leitura e Investigação sobre Imaginário e História Oral, grupo de estudos do Departamento de História.

> [20]Paul Ricoeur . Mito, uma interpretação filosófica.,in Paul Ricoeur et allii. Grécia e Mito, Lisboa, Gradiva, 1988, Panfletos 11, p. 9 a 40

> [21]Tzvetan Todorov.Symbolisme et interprétation Paris, Seuil, 1978.

> [22]ver em Dominique Maingueneau. Novas tendências em análise do discurso.Campinas/SP, Pontes, 1989.

> [23]conf. em F.Gadet e T. Hak (orgs.)Por uma  análise automática do discurso.,Campinas, Unicamp. 1990.

> [24]ver esta noção em Umberto Eco. L'oeuvre ouverte. Paris, Seuil, 1965.

> [25]Michel Maffesoli. Au creux des apparences, pour une éthique de l'estéthique, Paris, Plon, 1990, p. 12

> [26]A espada selvagem de Conan, São Paulo,Abril Jovem,1990, n.69.

> [27]Edgar Morin. Le cinéma et l'homme imaginaire.Paris, Les Editions de Minuit, 1956.

> [28] A espada selvagem de Conan, op. cit. p.8

> [29]idem, ibid. p.12

> [30] idem , ibid., p. 15

> [31]idem, ibid. p. 16

> [32]idem, ibid. p. 18

> [33]idem, ivid. p.25

> [34]idem, ibid. p. 26

> [35]idem, ibid.

> [36]Terry Eagleton .Teoria da Literatura, uma introdução, S.P. Martins Fontes, 1983, p. 159.

> [37]cf. Deuterônimo. 22. 23-25 .Neste treco, a Bíblia exorta à lapidação, tanto a mulher  virgem violentada, se já for prometida à um omem,  quanto seu estuprador. No caso de uma virgem não comprometida, o estuprador deve pagar uma certa soma a seu pai e com ela se casar.

> [38] Segundo relatória de Amnesty International, em Banglades, jovens são lapidadas ou queimadas vivas, segundo os vereditos dos conselos islâmicos. Relata o caso de uma menina de 14 anos, emDaar Tana, que foi condenada a cem chicotadas por ter sido violentada por um dos notáveis da cidade. O estuprador foi inocentado. cf. Elisabeth Schemla "Révisoniste contre Talisma" in Le nouvel observateur, Paris, n01572, 22/24 décembre 1994, p. 47