IDENTIDADE OU DIFERENÇA?

"Puisque l'homme historique c'est l'homme vivant, travaillant et parlant, tout contenu de l'histoire quel qu'il soit relève de la psychologie, de la sociologie ou des sciences du langage. Mais inversement[...] aucun des contenus analysés par les sciences humaines ne peut rester stable em lui même ni échapper au mouvement de l'histoire."

                                        Foucault.

"[...]  o comprimento é a diferença específica da cor negra; o dissociante, da cor branca.

                                         Deleuze.

 

O discurso histórico, na atualidade, caminha por diferentes vertentes que, em alguns recortes, se cruzam, se imbricam, se completam ou excluem; essas tendências poderiam ser identificadas nos trabalhos realizados pela École des Annales ou das Mentalidades, nas pesquisas que auscultam a dimensão do imaginário social e  nos trabalhos de Foucault e seu corolário, a análise do discurso em história. Estas abordagens apresentam traços de similitude em algumas características gerais, construí­das pelo distanciamento que demonstram em relação a concepções modelares de história, ou seja, concepções que postulam assinalar o sentido e o método "verdadeiros" da análise histórica,totalitá­ria imposição de quadros teórico-metodológicos.

Podemos observar,primeiramente, que estas não aspiram a definir categorias de globalidade/ totalidade, periodizações definitvas, sucessões temporais incon­tornáveis ou interpretações infalíveis, ditas "científicas"; em segundo lugar, os discursos oriundos destas abordagens não se propõem como caminhos únicos de acesso ao conhecimento, não desqualificam perspectivas outras, não se apresentam como únicos detentores do saber histórico,  , e por fim não buscam a verdade dos fatos históricos, a correspondência entre a minúcia narrativa e a realidade acontecida, não procuram a exatidão dos pormenores perdidos para sempre, no tempo.    

De forma geral, estas três tendências encaram a relação sujeito/objeto como um todo produtor do construto histórico, sem uma escala de predominâncias ou hierarquias, levando em conta na narrativa historiográfica, o historiador e suas condições de possibilidade, as fontes e suas condições de produção. O discurso do historiador, portanto, traz o perfil e as limitações de sua formação discursiva, que determina o que pode e deve ser dito, os questionamentos, as hipóteses virtuais, traba­lhando assim, ao mesmo tempo, o presente e o passado, mergulhando nas lacunas dos discursos de outrem, buscando detectar as redes de sentido que orquestram os silêncios e a polifonia da história.

O que diz o "falante", para Eni Pulcinelli Orlandi, no caso, o historiador, traduz, "[...] tem relação com o seu lugar, isto é, com as condições de produção de seu discurso como dinâmica de interação, que estabelece na ordem social em que ele vive."[1]

Se esta perspectiva pode ser aplicada às três correntes a que nos referimos, seus métodos e mesmo objeto de estudo diferem; fazendo uma analogia com o funcionamento da linguagem, trabalham  a polissemia e a paráfrase em graus e modalidades diversas, apontando para a eclosão do múltiplo, para tonalidades desiguais na produção de sentido ou para a repetição do eco sem origem, que perpetua o Mesmo.    Deste modo, na revelação do Idêntico ou no surgimento da Diferença, da ruptura, o discurso histórico aban­dona a literalidade, o irredutível, o dado-em-si e penetra a profusão de significações, labirintos interpretativos, perdido  o fio de Ariadne, condutor para a "verdade" histórica.

O  fato histórico não existe. Esta é uma premissa básica: o acontecimento é histórico porque assim o construíram os historiadores ou os mídia, no tempo presente. Paul Veyne observa que"[...] no máximo pode-se pensar que certos fatos são mais importantes que outros, mas esta importância ela mesma depende inteiramente de critérios escolhidos por cada historiador e não tem grandeza absoluta.[2]             

Nos anos 30, Marc Bloch e Lucien Febvre insurgem-se contra a prepotência da racionalidade e da objetivi­dade histórica, constitutivas da disciplina no século XIX. Na esteria do positivismo, a racionalidade do historiador, à época, exigia o desvelamento dos emaranhados factuais, na abertura de trilhas nomológicas. Assim, o encadeamento de causas e consequên­cias, atestado através dos documentos, traria à luz a realidade dos acontecimentos: o documento conteria a verdade a ser apenas traduzida pelo historiador, isento e imparcial,cuja objetividade seria garantida pelas suas boas intenções: seriedade, confiabili­dade, são aspectos essenciais do historiador positivista.

A elaboração histórica, portanto, que se quer um processo racional/ científico, depende de um traço moral e subjetivo, a honestidade e isenção do pesquisador, diante de seu objeto de estudo e de suas fontes. Busca-se, nesta ótica,a adequação do cobnhecimento histórico à realidade, à "natureza" oculta das coisas, " debaixo dos paralelepípedos, a natureza em flor". Lucien Febvre comentava, nos anos 40, a história positi­vista:

"[...] os historiadores viviam em res­peito pueril e devoto pelo `facto. Habi­tava-os  a convicção ingênua e tocante de que o sábio era um homem que, ao olhar pelo seu microscópio aprendia logo uma braçada de fatos.De factos que lhe era dados, de factos para ele fabricados por uma providêcia codescendente, de factos que não tinham senão que regis­trar."[3]

Assim, o objeto histórico, o acontecimento impõe-se de per se, cuja importância é determinada por ele mesmo. A fonte, o documento é rei, sua voz  contida é revelada pelo historiador, mediador por excelência, simples decifrador de códigos que indicam as leis, as permanências, que permitem a compreensão das licões da história.

                    O objetivo desta história é, portanto, descrição, reconstituição dos fatos exatamento como ocorreram; a história recupera os sentidos ocultos, as origens , demonstra as causas suficientes e necessárias e as repercussões consequentes até os últimos detalhes contidos no documento-fetiche, no docu­mento que contém a verdade pulsante, à espera de um intérprete. 

Esta história seria pura repetição do Idêntico e do Mesmo, interpretação unívoca na exposição da verdade aristotélica, adequção do conhecimento à realidade. Formulação parafrásica, discurso que faz da história um relato redutor, limitado às fronteiras de um político stricto sensu, histórias "universais", de tratados, batalhas, "grandes homens", "grandes feitos",  guerras e datas. Esta foi a abordagem funda­dora da história enquanto disciplina, no século XIX, adotada nos manuais escolares, hoje ainda atravessando o discurso acadêmico em alguns redutos de anacronismo.

Outra tendência que fez circular sentidos hegemônicos, já no século XX, é o marxismo, o materialismo histórico, que trabalha uma história em devir, escatológica, mobilizando energias em torno do desvelemento de uma consciência, obscurecida/oculta/silenciada pela mistificação ideológica. Contempla  a questão da verdade, na medida em que procura a liberação de uma natureza boa e moral, contida na classe oprimida ou proletária, condutora predestinada do fluxo/ construção do progresso histórico. A história seria portanto, constituída por uma série de etapas, necessárias, perpassadas por um sopro maniqueísta e polarizante de luta de classes, dominador/dominado, eixo absoluto do progresso histórico, em movimentos de alternân­cia evolutiva.

A teoria dos Modo de Produção, a divisão da formação social em instâncias hierarquizadas- infra/ super estrutura - com o econômico determinante "em última instância" , passou a dominar as ciências humanas, entre elas a histórica, desqualificando qualquer outro tipo de abordagem, qualquer temática que não fosse percebida na ótica marxista, ou seja: "politicamente correta."

Georges Duby, um dos mais conceituados historiadores da atualidade, fala-nos de  princípios"terroristas" que

   "[...] quiseram fazer-nos tomar o   marxismo por a (sic) ciência, ao passo  que se trata de uma teoria, entre outras, aplicável a certos pontos do campo epistemológico[...] Ora, jsutamente, é   preciso fazer notar que essa teoria,   muito solidamente construída no que  respeita ao Ocidente dos últimos tres    séculos, ficou em esboço para o resto do  mundo e o resto da história."[4]

A pretensão à cientificidade, o "corte epistemológico", ceifando as tramas da ideologia, fizeram da proposta marxista um discurso totaitário e excludente, na acade­mia e na sua objetivação social.

                    Foucault comenta que    

  "[...] o estalinismo pós-estalinista,  excluindo do discurso marxista tudo que  não fosse repetição amendrontada do que  já tinha sido dito, não permitia a   abordagem de camninhos ainda não   percorridos[...] a medicina, a psiquiatria,não eram nem muito nobres nem muito sérias[...] não havia concei­tos já formados, vocabulário válido para tratar de questões como a dos efeitos de poder da psiquiatria ou o funcionamento política da medicina."[5]

   Poderoso instrumento de análise dos mecanismos de funcionamento do capitalismo, o marxismos "cientí­fico" tornou-se o arauto da verdade, de teoria passou a doutrina, com seu cortejo de dogmas e fanatismos. Análises polarizantes (explorador/explorado) em torno de eixos definidos (economia­/Estado) com vistas a um "final feliz" para o desenrolar da história (comunismo) trouxeram o materialismo histórico ao domínio da paráfrase, da repetição: a história passou a ser um longo encadeamento do Mesmo, do poder economico /ideloógico da classe dominante.                   

 Unica perspectiva de análise admitida, afunilando-se para a tarefa predestinada do proletariado, de condutor da história na correta diração, o marxismo reformula o discurso positivista, como tendência igualmente atravessada pela questão platônica essência/aparência, científico/ideológico, propondo-se como a ponte que realiza a travessia entre o ilusório e o real, sob a égide e mediação do racional e do verdadeiro.                      

Temos assim uma teleologia da razão, um progresso 'científico' da consciência, a evolução da luta de classes e das contradições sociais compondo e dirigindo o pro­cesso histórico, obscurecendo a pluralidade de sentidos inerentes ao processo social, reduzindo ao silêncio a polifonia do discurso histórico e da construção do social.

A estas pretensões de hegemonia, seja da história acontecimental do positivismo ou da história-doutrina do marxismo, a Ecole des Annales responde com a inter- disciplinari­dade, como em 1958 expunha Braudel:

"A história,então, quiz-se e fez-se econimista, socióloga, antropóloga, demógafa, psicóloga, linguista[...] Os amigos de Lucien Febvre e de Marc Bloch, fundadores, animadores também dos Anna­les constituíram um colóquio permanente das ciências do homem [...]"[6]

A história-problema afasta a história- narração / dogma e Febvre já anuncia suas cores "[...] que nos dêem uma história não automática, mas problemártica.[...] É que por um problema é precisamente o começo e o fim de toda história. Se não há probleam, não há história. Apenas narração, compilação­.[7]

A Ecole des Annales ou Mentalités desenvolveu- se em torno da revista Annales- Economie, Sociétés, Civilisations, título que resume um programa de pesquisa voltado a todos  os aspectos das formações sociais, sem hierarquizações. Trabalhando a problemática da duração - curta e longa- procura a profundidade, os nívies estruturais/ inconscientes da sociedade, as estabilidade que podem ser detectadas na diacronia.

  Não mais a história das elites, dos "eventos excepcionais", mas das massas, do quotidiano das populações. Este mesmo quotidiano desdobra-se em uma infinidade de temas, ligados a emoções, e pulsões sociais: o amor, a morte, a festa, o casa­mento, o sexo, cheiros, comida, família, etc, utilizando fontes anteriormente "suspeitas" de subjetividade ou tintas de ideolo­gia. Jacques Le Goff sublinha que "[...] a história nova pode fazer-se através do estudo de um objeto a partir do qual toda a História de uma sociedade se desmonata a nossos olhos."[8]

A consciência da intervenção do sujeito e de

seu meio em toda produção acadêmica, e no caso presente, a manipulação da memória aparece aos próprios historiadores tendo um "[...]papel de identificar ( nacional, patriótica, social, religiosamente) para o grupo onde circulava, legitimava, circuns­crevia, doutrinava igualmente", como bem explicita Paul Veyne.[9]

A preocupação com a verdade dos fatos,como eles realmente ocorreram é afastada; o interesse volta-se para a percepção, para a construção dos fatos à época, ou posteriormen­te, através da grande diversidade de fontes, que podem ir dos mitos/lendas/contos de fada, a textos lingsticos, estatísticos ou literários. Para Michel Vovelle, "[...] a literatura veicula as imagens, os clichês, as lembranças e as heranças, as produções sem cessar distorcidas e reutilizadas do imaginário coletivo".[10]­­

A sensibilidade social é auscultada, a história passa a levar em conta as dimensões materiais e imateri­ais da vida humana. Vovelle afirma ainda que "[...] toda uma parte dos campos atuais de estudo, desde a civilização material até os diferentes domínios da cultura ou das mentalidades popula­res se inscrevem assim como uma tentativa obstinada para lidar com o silêncio das fontes, a partir de meios que antes teriam sido julgados como heterodoxos."[11]

  O método é interpretativo. Busca-se os significados nas entrelinhas, o não- dito social presente nas fontes, o substrato inconsciente, o nível estrutural, que perfaz uma história "quase imóvel" como diria Braudel, atravessada porém de traços conjunturais, cuja mobilidade anuncia transformações ou reafirma sistemas vigentes. Mas dentro desta perspectiva, o historiador, de certa forma, percebe-se como o"criador" da história, como aquele que constrói a memória, aquele que ressu­cita formas, re-elabora enunciados e prolong-os em sua materiali­dade específica. Michel de Certeau comenta esta historização da própria história:

" O aue está então em jogo é a capaci­dade da História se explicar como efeito de técnicas contemporâneas, de um meio social ( uma intelligentsia universal) de posições economicas e políticas, isto é, como produto de uma posição particu­lar que mantém atualmente em relação de competição com outras classes e outros lugares de poder,. Quer se queira quer não, o trabalho histórico inscreve-se no interior ( e não fora) das lutas soci­ais, econômicas e ideológicas."[12]

Perspectiva imbricando o passado e o presente, a chamada Escola das Mentalidades nunca foi monolítica e em seus diferentes momentos trabalhou aspectos e temas diversos na análise das formações sociais, priorizando porém, a linha da CONTINUIDADE, da busca do permanente, do estrutural ao longo do tempo. Para Vovelle, a metodologia da longa duração nos leva a "[...] um mergulho no passado mais que secular de onde foram transmitidos os traços de um comportamento que perdura, com inércia real até nossos dias, quando as próprias condições iniciais desapareceram".[13] Assim é ainda a busca do MESMO, sob o heterogêneo e o aleatório, domesticando o acontecimento e reiterando o domínio da paráfrase. 

Dentro deste amplo horizonte de pesquisas desenha-se em filigrana a orientação que se refere ao imaginário social, distinto da mentalidade, na medida em que contempla o elemento adquirido, mas também o transformador, num movimento de circularidade contínua. Esta ótica observa as representações em sua dinâmica social,ou seja, criadas/criaodras do funcionamento relacional. Não diz respeito às representações em sua diacronia, mas em sua especificidade e singularidade espaço -temporais; representação e imagens enquanto locus de poder/força, imaginário agenciador de papéis, criador de normas, valores, instituições, exclusões; imaginário galvanizador de afetos e paixões, de pulsões telúricas e emoções coletivas.

As grandes epifanias políticas modernas trabalham o imaginário coletivo povoando-o de heróis  carismáti­cos/ redentores, de imagens e acenos de Terras Prometidas ou Paraísos de Igualdade e Justiça.  As imagens constróem os gêneros e suas especificidades sociais, distinguem o normal e o patológi­co, o certo e o errado, o bom e o mau, estabelecem relações de poder que delimitam o centro e as margens do social.                                                 Segundo Bronislaw Baczko, não se pode separar os agentes de suas representações, de si e do outro; de fato, são elas que definem os comportamentos, inculcam valores, atribuem méritos, corroboram / condenam/ justificam atitudes, impulsos, decisões.[14]

O imaginário é assim um forjador de sentidos no campo sêmico de uma formação social, engendrando sua trama organizadora. Não seria, entretanto, determinante "em última instância", pois , como argumenta Georges Duby, este "[...] é um falso problema. Não há última instância.O que conta é a globali­dade, a coerência, a correlação."[15]

Cornelius Castoriaidis reforça este papel sancionador/carreador de sentidos, considerando que é a signifi­cação imaginária que dá às coisas e às posições seu status, seu peso específico "[...] princípio de valor, princípio de ação".[16]­­

Para Claude Gilbert Dubois o imaginário simbólico, que se opõe ao mimético, especular, "[...] é um modo de significação constituído em linguagem, não a partir de signos linguísticos, mas de imagens significantes:é o funcionamento individual e coletivo das imagens organizadas em sistemas signif­icantes."[17]

  Pouco teorizado, o estudo do imaginário abre espaço à re -atualização de fontes  e incorporação de novas: propaganda, cinema, televisão, video, desenho animado, comics, charges, o humor em geral, teatro, música, etc. Qualquer texto, seja ele discursivo ou imagético, é produtor de representações, veiculador de sentidos/valores e seu corolário normativo/ insti­tucional. 

Como criador de sentidos novos,o imaginário entrava o processo de produção hegemônica de sentido, como bem sublinha Eni Pulcinelli Orlandi ao comentar a criatividade,"[...] pode  realizar uma ruptura, um deslocamento em relação ao dizível e portanto em relação à determinação das verdades instituídas e normalizadoras".[18]  Na ambiguidade de sua imanência ao so­cial,entretanto,o imaginário igualmente repete e re-produz sentidos e valores   o que Eni Orlandi caracteriza como produti­vidade, que  "[...] procura manter o dizível no mesmo espaço do que já está instituído."[19]

O estudo do imaginário, assim, contempla um processo de atualização poolissêmico e parafrásico na consti­tuição das formações sociais, de renovação e transformação/ contestação de sentidos, ao mesmo tempo de afirmação / fortaleci­mento do já-instituído. O IDENTICO E O DIFERENTE são aqui peças da mesma engrenagem e cabe ao historiador decodificá-los/reorga­nizá-los,colocá-los em evidência ou obscurece-los indefinidamente

A terceira tendência que abordaremos aqui foi formulada por Foucault que "revolucionou a história", como sublinha Paul Veyne.[20] Foucault trabalha a noção de evento que:                       

    "[...] não é substância nem acidente,     nem qualidade nem processo; o evento não é da ordem do corpo. Mas ele não é ima­terial; é sempre em nível de materiali­dade que toma efeito, que é efeito;tem seu lugar e consiste na relação, na coexistência, na acumulação na seleção de elementos materiais".[21]

  O evento é portanto, da ordem do discurso; eventos discursivos devem ser tratados/organizados segundo séries homogêneas, porém descontínuas umas em relação às outras, ou seja, não seguem traços de causalidade/sucessão ou continuidade de movimentos marcados no tempo ou da evolução de uma consciência ou sujeito pensante," [...]quebram o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e funções possíveis.[22]

  Abolindo a causalidade ou o desenrolar de eventos em processo de maturação, Foucault introduz na história a noção do acaso/aleatório (aléa) que com a descontinuidade e materialidade discursivas dão forma à produção dos acontecimen­tos.[23]

      Foucault afasta rapidamente as tendências positivistas e /ou escatológicas, mas recusa igualmente a pers­pectiva da busca de "estruturas anteriores, estranhas, hostis ao acontecimento."[24] Pretende "[...] estabelecer séries diversas, entrecruzdas, divergentes muitas vezes, mas não antônomas, que permitam circunscrever o `lugar'do acontecimento, as margens de seu acaso, as condições de sua aparição."[25]

   Estas condições de aparição não são outras senão as "condições de possibilidade", segundo as quais alguma coisa pode ser dita, em algum lugar, por alguém que detém a posição de sujeito e de autoridade na produção discursiva.[26]

Desta forma, o discurso conteria a distinção entre o verdadeiro e o falso, elaborando sistemas de saber, característicos de uma vontade de verdade "[...] que atravessou tantos séculos de nossa história"[27], cuja própria historicidade aponta para a diferença e a transformação. Trata-se de estabelecer o regime geral de verdade construído/instaurado pelos discursos do saber, de desvendar as instâncias de produção destes discursos assim como seus mecanismos de estratégia e atuação social, geradores de efeitos de poder, os micro-poderes, constitutivos da própria trama do social.

   Foucault insiste sobre as redistribuições recorrentes dos enunciados "[...] que fazem aparecer vários passados, várias formas de encadeamento, várias hierarquias de importância, várias redes de determinação, várias teleologias para uma única e mesma ciência à medida que seu presente se modifica[...]"[28] Assim, quebra-se a perspectiva da continuida­de­, do processo de encadeamento, da evolução do pensamento "[...] sob as manifestações maciças e homogêneas de um espírito ou de uma mentalidade coletiva[...]"[29].

Foucault aponta ainda para os fenômenos de ruptura, de interrupção, apoiando-se em Bachelard e Canguilhem para desvelar uma outra perspectiva  à análise histórica:"[...] não mais a pesquisa dos começos silenciosos, não mais a regressão sem fim em direção aos primeiros precursores, mas a identificação de um novo tipo de racionalidade e seus efeitos múltiplos."

Contemplando o discurso em sua singularidade e em sua exterioridade a partir de sua aparição e de sua regula­ridade, das condições de sua produção e possibilidade de enuncia­ção, Foucault rejeita a hermenêutica, a interpretação das vozes silenciadas pelo não-dito do discurso, [...] de seu núcleo interior e escondido,[...]"[31],  ou de uma significação que se manifestaria nele, das entrelinhas que permitiriam o desvenda­mento de uma realidade oculta. O evento é o discurso e o discurso é e pode ser ruptura e criação de saber, acompanhado de seus sistemas de exclusão/prática de poder.

                    Afirma Foucault:

"É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimento, nessa pontualidade que aparece em nossa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sobretudo esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso remeter o discurso à lon­gínqua presença da origem ; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância.[32]

Modificam-se,portanto, objeto e metodologia na análise da produção histórica. Quanto às fontes, Foucault indica a necessidade da história desligar-se da noção de  uma "[...] memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para reencontrar o frescor de suas lembranças [...] para enfocar uma pluralidade documental - livros, narração, atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, cos­tumes, etc"[33]  transformando-as em monumentos, que permitem a identificação, oranização de elemento em Ñéries, conjuntos, recorrentes/dispersos em movimentos de rupturas/ transformações  /especificidades/limites.

A descontinuidade é assim uma ação determi­nada pelo próprio historiador e é o resultado desta ação, ou seja, trata-se de cortes arbitrários estabelecidos pelo próprio pesquisador, a partir de suas hipóteses, métodos e periodização determinada. " Paradoxal noção de descontinuidade: é, ao mesmo tempo, instrumento e objeto de pesquisa, delimita o campo do qual é efeito, permite individualizar os domínios, mas só pode ser estabelecida  através da comparação desses domínios", precisa Foucault.[34]

Este é um ponto fundamental no que concerne a produção historioráfica, na medida em que a descontinuidade é o    próprio local de onde fala o historiador, ruptura de sua própria história.[35] Assim, incorpora-se e descortina-se a posição/ condição de possibilidade do historiador à produção de uma/ múltiplas histórias, aberto um horizonte ilimitado de discursos históricos em cortes/ séries/enunciados que se cruzam, se imbri­cam, re-aparecem em um novo campo de pertinência ou são perdidos na posição de sujeito do historiador.

  A noção de descontinuidade, as rupturas e escansões trazem à história o movimento da DIFERENçA, mas não aquele que se refere a um modelo, a um paradigma referencial. Aborda-se a história na ótica do SIMULACRO de Deleuze[36], sem fundo, sem referente, sem privilegiar a identidade da reconsti­tuição histórica.

  Aberto o espaço da polissemia/criatividade, desloca-se a produtividade/parafrásica, a busca e repetição do MESMO na vã tentativa de um reprodução impossível.

                    O/a historiador,/a com Foucault, lança um olhar oblíquo  em relação à positividade do passado em sua materialização discursiva, produzida em um incontornável presen­te.A noção de simulacro em Deleuze intenta abolir a idéia de original e cópia, cara à Platão, uma vez que tal relação leva fatalmente a diferença à identidade.[37]Com efeito, para Deleuze, o simulacro não é uma simples imitação "[...] mas sobretudo o ato pelo qual a própria idéia de um modelo ou de uma posição privi­legiada é contestada, revertida. O simulacro é a instância que compreende uma diferença em si [...] toda semelhança tendo sido abolida, sem que se possa, por conseguinte, indicar a existência de um original e uma cópia."[38] enfatiza Deleuze.

Tomando-se por empréstimo esta noção, poder-se-ia identificar uma História-Simulacro, que abandona a repeti­ção do MESMO, a busca do real, a pretensão da explicação total ou do sentido da história para sublinhar a DIFERENçA sem fundo nem origem, no discurso histórico.

História-simulacro, potência positiva de re-criação, confundindo as categorias presente/passado em sua tematização/abordagens, abandonando o modelo e a cópia, a busca impossível da re-pordução de um fato construído/transformado em história. Abandona-se a identidade para vivenciar-se, na pesquisa histórica, a experiência da DIFERENçA sem modelo, numa expansão polissêmica, que justifica a epígrafe:" o comprimento é diferença específica da cor negra". [39]  


 

     [1]Eni Pulcinelli Orlandi. A linguagem e seu funcionamento, Campinas/S.P., 1987, p.138

     [2]Paul Veyne.Comment on écrit l'histoire, Paris, Seuil, 1978,p.22

     [3]Lucien Febvre.Combates pela história. Lisboa, Presença, 1977, p.43.

     [4]Georges Duby, Guy Lardreau.Diálogos sobre a Nova História­,Lisboa, D.Quixote, 1989,p.105

     [5]Michel Foucault.Microfísica do poder. Fio de Janeiro, Graal, 1988, p.2

     [6]Fernand Braudel.Ecrits sur l'histoire, Paris, Flammarion, 1969, p.103.

     [7]Lucien Febvre.op.cit. p.43 e 71

     [8]Jacques Le Goff in G.Duby,G.Lardreau,op.cit.p.14

     [9]Paul Veyne. in Georges Duby, Guy Lardreau.op,cit,p.17

     [10]Michel Vovelle.Ideologia e Mentalidade, São Paulo, Brasi­liense, 1987, p. 63.

     [11]Michel Vovelle. op.cit. p.277

     [12]Michel de Certeau in G.Duby, G.Lardreau.op.cit. p.29

     [13]Michel Vovelle.Ideologia...op.cit. p.289

     [14]Bronislaw Baczko. A imaginação social. Enciclopédia Einaudi,Ed.portuguesa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1985,vo­l.5, p.306

     [15]Georges Dugy, G.Lardreau.op.cit.p.118

     [16]Cornelius Castoriadis. Os destinos do totalitarismo  e outros escritos, RGS, L&PM Ed., 1985, p.105

     [17]Claude Gilbert Dubois. L'imaginaire de la Renais­sance.,­Paris, PUF,1985,p.30

     [18]Eni Pulcinelli Orlandi.Discurso e leitura. SP,Cortez,­1988,p.20.

     [19]idem, ibid.

     [20]ver em Paul Veyne.Commment... op. cit.,ultima parte com este título.

     [21]Michel Foucault. L'ordre du discours.Paris, Gallimard, 1971,p.59.

     [22]idem, ibid, p.60

     [23]idem, ibid. p.61

     [24]idem, ibid.p.58

     [25]idem,ibid.

     [26]idem, ibid. p.11

     [27]idem, ibid. p.16

     [28]Michel Foucault.Arqueologia do saber, RJ, Forense-Univer­sitária, 1987, p.5

     [29]idem, ibid. p.4

     [30]idem, ibid.p.4

     [31]Michel Foucault. L'ordre...op.cit. p. 55

     [32]Michel Foucault.Arqueologia... op.cit. p.28

     [33]idem, ibid. p.7 e 8

     [34]idem, ibid. p.10

     [35]conferir idem.ibid.

     [36] ver em Giles Deleuze.Diferença e repetição,RJ,Graal, 1988.

     [37]conf. Roberto Machado. Deleuze e a filosofia, RJ,Graal, 1990, p.34

     [38]Giles Deleuze.op.cit. p.124

     [39]Giles Deleuze. op.cit. p.68