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Identidade, para
que te quero?
palestra?
Resumo:
>A necessidade
de delimitar um espaço onde se reivindica uma identidade,
baseada em
diferentes
posições de sujeito, faz com
que esta
categoria seja alçada a uma
condição da existência,
de possibilidade de ser e de atuar no mundo. Ora, um núcleo de coerência que
seria o cerne do
indivíduo vem sendo denunciado , na atualidade,
pelos feminismos
e pelas filosofias “pós-modernas”
, como a ilusão
de uma identidade
ou de uma natureza
contendo as características a elas
inerentes. Desta forma,
a proposta de se pensar
a identidade e o
sujeito como construções
no seio de
configurações sociais,
como processos
em curso,
ao longo da vivência
humana, traz-nos a perspectiva
de uma identidade
fluida, transitória,
que significa apenas
o que já
fui e não sou mais.
Uma cartografia identitária é
, afinal, o que nos resta para observarmos o percurso
de opções,
movimentos e atuações
ao longo de nossas histórias
pessoais/sociais. Neste caso,
a própria
reivindicação de identidade
faz parte de uma rede
de significações onde nos aprisionamos:
é o caso, em meu entender, da idéia de
“identidade
sexual >O objetivo,
portanto, deste
trabalho, é comentar as
perspectivas atuais
a respeito da categoria
identidade e questionar
seus limites
e suas margens.
Os seres, qualquer
que seja sua
espécie, não
são iguais
entre si,
pois cada indivíduo
é uma singularidade. A diferença
em si não é nem positiva nem negativa , pois somos diferentes mesmo
em relação
a nós mesmos
em nosso
caminhar histórico.
A criação de uma
diferença política
cria porém,
a desigualdade quando
se erigem hierarquias e
valores sociais,
instituindo referentes, desenhando corpos,
perfis ideais, estabelecendo exclusões,
demarcando espaços,
limites de ação e posição,
mapeando e classificando o social.
Se considerarmos o material e o simbólico como
uma realidade única,
ordenadora da inteligibilidade humana,
vemos a desigualdade política como um conjunto de práticas
discursivas e não discursivas,
representações e imagens
saturadas de sentido, instauradoras
do desenho das formações
sociais.
Uma desigualdade instaurada no político,
como fundamental
na taxionomia do humano,
é enraizada na noção de diferença entre
o feminino e o
masculino; esta categoria
ancora-se na noção de “natural”,
que toma
uma parte do humano- seu aparelho genital-
como sendo a expressão de sua
totalidade.
Ao mesmo tempo,
atrela à “ natureza” uma série de características
socialmente construídas, criando
uma escala binária
de atributos,
cujo pólo positivo
encontra-se fixado no masculino.
Cria-se assim um
referente , modelo
desdobrado em
homem, branco, ocidental,
jovem, de posses,
origem de uma
cascata de desigualdades; classificou-se
enquanto “outro”
todas /os que não
se adequassem ao perfil do referente.
As desigualdades encontram-se
assim fundadas num discurso
de “evidência”, ocultando-se , desta forma,
que a própria idéia
de diferença pressupõe
todo um
aparato valorativo, onde
o sexo biológico é tomado como
parâmetro principal na classificação
do humano. De fato, a afirmação identitária a partir
de um sexo
biológico bina\ário tem como uma
de suas premissas
a sexualidade procriativa e a maternidade como
o “destino biológico” das
mulheres. Como compreender
os discursos
sobre a “ condição
feminina” senão
em uma perspectiva
de marcar e reiterar
a diferença e no
mesmo movimento,
a desigualdade sócio-política?
·
Feminismos em
ação
Os feminismos
contemporâneos vem desconstruindo a noção de “ natural”
e de “natureza
humana”, desde
1949, se tomarmos Simone de Beauvoir, com
seu livro
“ O Segundo Sexo”,
como marco
genealógico, no sentido
foucaultiano.(Foucault) A construção de um “sujeito feminino” epistemológico
e político foi objeto de uma profícua
literatura feminista,
nos mais
diversos campos
disciplinares, objetivando a visibilidade das mulheres
e a abertura de
espaços múltiplos
de atuação, dos quais
, em tempos
e locais diversos,
aos poucos haviam sido excluídas.
Escrever, neste sentido,
também é um
ato político,
na medida em
que o discurso
é uma ação (Austin); não apenas a denúncia das práticas
de discriminação
sexual, mas sobretudo
a exposição dos mecanismos
simbólicos instauradores das desigualdades Assim,
a luta pela
igualdade de
direitos políticos
e civis marcou a presença dos movimentos feministas
nos mais
diversos países:
direito de voto
e de elegibilidade, modificações legislativas quanto
à cidadania e
plenos direitos
civis das mulheres, quanto
à proteção e prevenção
contra a violência
social e doméstica
.
“ O privado é
político” anunciavam as feministas
dos anos 1970 ( Descarries, 2002)
apontando para a historicidade da
divisão social do trabalho
entre público
e privado, mostrando que a própria
“ evidência” deste
esquema binário era uma
construção histórico
/ social. .(Pateman) A luta
pela igualdade,
porém, apesar
de sua
importância crucial
para a vida
das mulheres não
questionava , em numerosas vertentes,
o aparato conceitual
, os mecanismos construtores do
referente masculino,
aquele sem
o qual não
há desigualdade política com base no sexo.
A categoria “gênero”
utilizada para mostrar
as variantes culturais dadas ao
sexo biológico tem sido profícua
ao desnaturalizar os valores
componentes das
representações do feminino
e do masculino. A implantação
de sistemas sexo
/gênero foi analisada há mais
de 30 anos pelos feminismos (Rubin, 1975) e esta
quebra da evidência
do natural, da diferença
sexual “ incontornável” foi,
penso eu, artífice
do questionamento
que hoje sofrem
os paradigmas científicos.
A destruição da evidências,
proposta por
Foucault (1971) já era
uma prática feminista
desde os anos
1940.
Entretanto, a adoção da categoria
“gênero” pela
Academia, que
deu projeção,
visibilidade e sustentação
aos estudos sobre
as mulheres,
veio, ao mesmo
tempo, domesticá-la, retirando-lhe seu cunho subversivo: lá
onde as
feministas apontavam para a
criação da desigualdade, biológica
e política, no
exercício da apropriação dos
corpos
femininos pelo sistema
patriarcal,( Guillaumin, Delphy) passou-se a indicar uma espécie
de construto relacional, abandonando-se precisamente
a perspectiva da
construção social dos
gêneros em
termos de desigualdade.
A própria formulação
do binômio sexo
/gênero deixava
intacta a dualidade universal como fundamento do humano,
desdobrando-se, por
exemplo, no inevitável
“público / privado”,
cuja construção
histórica datada
é repetida como um
esquema de análise
por historiadoras ou
analistas que
trabalham com a categoria
“gênero”.
De fato, a desigualdade
política persiste e é reconstruída, na medida em que o sexo, permanece
enquanto
base estável do
binômio sexo/
gênero, reproduzindo assim
um discurso
de naturalização: a cultura
(gênero), agindo sobre
a natureza (sexo).
Vemos assim que
a desconstrução do natural justificador da desigualdade , realizada pela categoria
gênero, vem reiterar esta mesma
natureza ao aceitar a diferença sexual
como dado
inquestionável..
Isto significa, como
analisa Tereza de Lauretis, ( techn), trabalhar
a descontrução e lutar pela
igualdade “ na casa
do mestre”, ou
seja, dentro do aparato
conceitual binário
que funda,
em um
sistema de opostos,
nossa apreensão,
interpretação E instituição
da realidade.
As teorias críticas
feministas,
entretanto, adensando a análise
da construção do feminino
apontaram para estes
próprios mecanismos
, que dotam de inteligibilidade
não só as diferentes expressões
do “ ser mulher”,
mas que
estabelecem também o aparato categorial instaurador desta inteligibilidade.
Neste caso, os
opostos, a binariedade, o sexo,
enquanto elementos
indubitáveis, fazem
parte destes mecanismos.
Os sentidos, portanto,
que habitam nossos
corpos de valores,
normas, expectativas
de comportamento, estão, de fato,
delimitando e definindo-os em
feminino e masculino,
em diferentes,
em desiguais..
Os sistemas
de pensamento, os
aparelhos conceituais e representacionais , como
aponta a dinâmica da crítica das ciências,
(Harding Khun, Foucault) são, de
fato, responsáveis
pela interpretação
do real, logo,
por sua
instauração. É assim que
por exemplo,
o que a história
não diz , não
existiu; ou seja,
mesmo que tenha
existido seu registro
foi apagado.. As representações
binárias que dirigem o olhar dos historiadores/
antropólogos /sociólogos não lhes permite
ver /observar
senão a partir
de seus esquemas
interpretativos e para
isto a literatura
feminista vem apontando desde
os anos 70.(Rubin, Mathieu). É
assim que a presença
e atuação das
mulheres[1]
desaparece da história e da memória social,
confinadas em um
irredutível esquema
datado (Pateman) de público/
privado,
doméstico/ político.
A normatividade, expressão
dos sentidos simbólicos instauradores de corpos sexuados,
atrelam-nos a contornos essencializados:
“A” mulher, “ a verdadeira mulher”, criada
enquanto oposto,
enquanto desigual
daquele identificado como referente, como
sujeito , o masculino,
em face
do “outro”.
Enquanto “outro”,
as mulheres foram despossuídas
de sua carne, transformada em
corpos
sexualmente apropriáveis, em
força de trabalho
disponível e não
remunerada na produção e manutenção
do humano; enquanto
“outro”, as mulheres
foram despojadas de sua singularidade individual
sob a essência
de um destino
biológico, de características
comuns que
as atrelam a um
fim único: a
maternidade, dentro
dos quadros de uma heterossexualidade
compulsória (Rich).
Os corpos, portanto,
passam a existir em
configurações de
gênero e nunca fora
delas, e como afirma Judith Butler,
“é o gênero que constrói
o sexo”.
Ou seja, é o agenciamento social
que define os “estilos de carne”
(Butler), definindo aquilo que é importante,
relevante, incontornável: o sexo biológico, enquanto
matéria pré-dada, pré-existente,
pré-discursiva e a sexualidade
heterossexual , ordenadora do
desejo, definidora da emoção.
O fato é, dizem alguns,
que a grande
maioria das
pessoas é heterossexual;
isto é esquecer
a domesticação e a disciplinarização
exercidas sobre os seres
para criá-los enquanto
mulheres e homens,
opostos que
se atraem necessariamente. É esquecer as tecnologias
do sexo ( Foucault) e do gênero ( de lauretis) que
produzem a sexualidade binária, que criam
um centro
e suas margens,
o natural e o
abjeto ( butler) sempre
na ótica do
binário, dos opostos,
da contradição, da luta
engendrada pela desigualdade.
É ignorar também
o poder da educação
na formulação dos
seres e do social,
como mostra,
por exemplo,
Marc Ferro, no caso
do aparthaid.da África do Sul. (marc ferro) É
no âmbito do “desigual”
que se forjam as dominações,
que se destilam a dor
e o sofrimento. O próprio
discurso científico,
como assinalei, que
se arroga o direito de falar em nome da verdade das coisas e
dos seres, é
produtor e reiterador de desigualdades políticas,
ao assegurar uma “natureza”
para os seres, o “natural”
das relações
sociais , convertendo em
ciência suas
próprias representações históricas
do mundo.
Passando do domínio
do sexo biológico para o exercício da sexualidade,
o binário
heterossexual é também
produtor de desigualdade, na medida em que é prerrogativa
e “necessidade”
masculina: a expressão
paroxística desta situação é a pornografia
ou a
prostituição, violência
maior do social
sobre corpos
transformadas em mulheres, presas coletivas de um
desejo sexual
“incontrolável”.( mackinnon) A prostituição
transformada em
trabalho seria, a meu
ver, a definição
maior de uma hipocrisia
social que
institucionaliza a mercantilização de seres
humanos para
melhor explorá-los. Afinal,
a prostituição
movimenta apenas
um pouco
menos de dólares que
o tráfico de armas
no mundo.
Os feminismos,
portanto, quer
seja em
movimentos sociais
de mulheres, de reivindicações
sociais ou políticas
strictu sensu, quer seja no
domínio da
crítica à ciência,(Harding)
à percepção interpretativa
e instauradora do mundo, vem contribuindo para
desfazer os nós
das desigualdades. Longe de representar uma corrente monolítica
de pensamento, os múltiplos feminismos
às vezes têm em
comum apenas
o desejo da transformação. Nesta
pluralidade encontra-se sua
maior riqueza,
na medida em
que a perspectiva
falogocêntrica[2] das ciências
pretende definir caminhos
únicos de verdade.
Nesta perspectiva,
um dos caminhos
metodológicos feministas de crítica é a proposta
do excesso; o
exceder, neste caso, leva
em consideração
o posicionamento social,
o lugar de fala,
a experiência no processo
de subjertivação, na constituição de si
no social. De
onde se parte ,
de onde se fala,
o que se pode dizer,
as condições de possibilidade,
as opções simbólicas e representacionais
de construção do mundo, são levadas
em consideração
pelos feminismos,
na medida em
que a experiência
do “ser mulher”
, desigual no
político, atravessa e urde as direções
do olhar. De uma posição
singular,
portanto, constituída em
corpo feminino,
em mulher no social,
parte-se para o excesso,
movimento de expansão
crítica que
desconstrói os referentes binários e essencializados (
feminino , masculino)
na medida em
que aponta para
seu caráter
valorativo, histórico e social,
sem esquecer
porém, a pregnância das experiências
e das significações sociais que, de fato,
fazem existir mulheres
e homens.
Teresa de Lauretis assim
descreve esta experiência
como
“[... um complexo
de hábitos, associações
e percepções, que
en-gendram alguém como
fêmea” (de Lauretis,182-alice)
E prossegue: “[...] desde que ambos, o sujeito e o a realidade social sejam entendidos
como entidades
de natureza semiótica,
como “ signos”,
a semioise nomeio o processo de seus
efeitos constitutivos recíprocos”
(idem).
As mulheres seriam portanto
sujeitos constituídos em corpos, femininos, cujo
contorno político
é traçado na desigualdade.
O corpo feminino
é assim a construção
imaginária /significante
de um sujeito
político desigual,
representação e auto-representação
de um sujeito “outro” A crítica
feminista, que
pratica o excesso como
método, aponta para
este “ magma
de significações imaginárias” (castoriadis) que
naturalizam as práticas sociais,
sem perder
de vista o sujeito
interpretante, dotado de um corpo, o sujeito da semiosis (Lauretis, idem)
“ que é o lugar
no qual, o corpo
em quem
o efeito significado
dos signos sae fixa
e se real-iza.” (idem, 183) Longe
da “objetividade”
positivista ou
da busca infrutífera
de uma “ verdade qualquer”,
a interpretação se desloca para
o processo de construção,
os mecanismos de significação,
a performatividade do real , processo
pelo qual se mascara os artefatos
que o compõem.
Quando se desvelam os mecanismos
de inteligibilidade que , de práticas sociais
de gênero articulam
corpos naturalizados em
desigualdade, os caminhos para desfazê-la se
tornam mais
amplos. De fato,
a natureza e a diferença na instituição
do “outro” desigual
são argumentos
cuja falácia
torna-se evidente no desvelamento
histórico de sua
construção.
Neste debate sobre os sujeitos constituídos em
corpos, passa-se para
as questões identitárias.De fato, se minha
experiência, se meu
processo de subjetivação semiótico se cristaliza
em um corpo inserido em
práticas sociais,
como posso excedê-lo?
Como posso exceder uma identidade
que me
é imposta pelo
olhar, pélas
definições, pela
burocracia do
social? Como exceder
a desigualdade sem cair
no domínio do
metafórico ou sem
galvanizar a diferença,
reiteradora do desigual naturalizado?
A categoria
identidade tem se
tornado, atualmente,
um eixo
preferencial de debates
disciplinares e interdisciplinares..
Fala-se em identidade supondo-se uma essência
do indivíduo, um
encontro consigo
mesmo: diz-se "em
busca de sua
identidade" e supõe-se
a busca de um
tesouro oculto,
prestes a eclodir
ao ser liberado; fala-se também,
em outra perspectiva, de identidades
plurais, em
multiplicidades identitárias , em
desdobramentos de identidade; considera-se
identidade o pertencimento a
um grupo ou
a um espaço
geográfico. Identidade
é usada igualmente como
sinônimo de raízes, parte
oculta de um “eu” originário.
Com estas noções
usualmente encontram-se outras
categorias, que com elas reiteram a binariedade do
sistema de apreensão
e construção do real
em opostos:
por exemplo,
identidade/ diferença,
diferença/ igualdade,
igualdade/ liberdade,
identidade / liberdade..
Estes desdobramentos nos
fazem percorrer um
caminho que
vai do epistemológico ( identidade/ diferença)
ao político (
igualdade/ diferença;
identidade/ liberdade),
num atalho em
que a diferença
permanece como o referente,
origem das desigualdades e hierarquias.
Este encontro
com o múltiplo
e o diferente, entretanto,
não nos
faz exceder nosso
horizonte epistemológico habitual:
se encontro um locus
de estabilidade e inteligibilidade
identitário , estou , ao mesmo
tempo, criando campos
adjacentes de
exclusões, delimitando o espaço
entre eu e o outro, reivindicando neste movimento,
um lugar
para “mim”
superior ou igual aos outros,
meus referentes.
Eu sou, portanto,
em relaçao a algo,
a outrem, além
da busca de uma coerência
interna perdida, meu
"verdadeiro eu".
Em uma perspectiva
histórica feminista
, podemos perceber que , quanto às
mulheres, ( mais
de metade da
humanidade, não
esqueçamos!) sua posição
de sujeito/agente no social
foi obscurecida , na análise e
na narrativa da História:
a procriação seria
seu destino natural
/ social , que
traçava e seu ser
em torno
de uma especificidade corpórea, cuja
função produtiva
se fixa na idéia
da diferença incontornável.
A identidade das
mulheres, portanto,
ancorada em seus
corpos sexuados,
realiza-se em um
movimento de
oposição a seu
referente /outro
masculino, essencializada
em uma tarefa
social, a maternidade.
Esta tarefa “ natural”
cria um
campo de silêncio
em torno
das ações políticas
das mulheres, em
seu sentido
mais amplo,
que abrange inclusive
o domínio socioeconômico.
A idéia comum
de uma separação rígida
e constante, nas mais
diversas culturas, entre
o público e o privado
funda-se nesta naturalização de papéis.[3]
Esta questão foi colocada
há mais de 50 anos
por Simone de Beauvoir quando perguntou: o que
é uma mulher?[4]
Esta pergunta desafiava a
naturalização dos papéis femininos
e, ao mesmo tempo, apontava
para a constituição
de um sujeito-mulher, que não fosse
constituído apenas
por uma essência
ou pela
referência a um
outro masculino.
Seria este um
sujeito dotado de tal
coerência que
lhe daria um
status de autonomia?
Não estaria porém,
em contradição com a desnaturalização
do humano, já
que se colocava em
evidência os aportes sociais à construção de indivíduos também
sociais?
O fato é que
o estabelecimento da categoria mulher-sujeito revelou-se, ao longo dos debates
feministas,
ainda mais problemático
diante da quotidiana constatação da multiplicidade das
experiências deste ser
mulher, na própria
tessitura dos movimentos
das mulheres e seu
quotidiano de lutas e reivindicações.
Constatou-se que "a mulher"
não existe; existem mulheres
e enquanto
indivíduos ou grupos
tem uma trajetória
singular.
Fortes de seu dinamismo
crítico, as teorias
feministas não
hesitam em questionar
a categoria "mulher",
não apenas
em sua
"diferença" em relação ao
outro masculino,
mas em
relação às próprias
mulheres e igualmente
quanto ao próprio
sujeito que se procurava construir.
O que isto
significa? Em 1978, Monique Wittig
[5]escrevia que
não existem “mulheres”
( muito menos “
a mulher”) fora
dos construtos que as forjam. Apontava
à época, a coerção
à heterossexualidade como
o ponto nodal da domesticação
das mulheres ao destino
de seus corpos
reprodutivos, ao assujeitamento
criador “ da mulher”
, a verdadeira, a mãe e a esposa.
Mulheres criadas
desde a
infância no assujeitamento à representação
“da mulher”, no singular,
categoria que
engloba, unifica, compõe uma única
imagem do “ ser mulher”, cujo
sentido é unívoco, linear, composto em termos de sedução e/ ou reprodução. “Secretaria
da mulher”, “história
da mulher”,
direitos “ da mulher”,
dia “da mulher”.
Quem é esta? Que
fantasma é este
que nos
persegue sob o signo
do mesmo?
De fato,
intriga-me a reiteração do singular ao se nomear as mulheres (até
por certos discursos sobre
gênero ou
mesmo feministas);
parece-me uma estratégia da ordem androcêntrica para solapar a diversidade
que habita o
humano classificado
como feminino:
“ são todas iguais!”.
Se “o homem” refere-se ao humano
em geral,
a “ mulher” , singularidade reiterada
incessantemente, reagrupa e ressencializa todas as mulheres, fazendo seu
referente único
o masculino.
Falar de igualdade
para “ a mulher”
significa talvez
obstruir , velar, na pluralidade
das experiências, a
opressão que habita o
cotidiano das mulheres.
É neste sentido que Geneviève
Fraisse[6](390) aponta um
outro binômio,em
lugar de igualdade/
diferença: o de liberdade/
diferença, pois, como afirma, é na especificidade do
ser mulher que
sua liberdade
lhe é negada ou
retirada. Monique Wittig afirma
que é a idéia de
diferença é política,
e neste sentido aponta que
a transformações de relações econômicas não
são suficientes,
pois “ é preciso
operar uma transformação
política dos conceitos-chave, isto
é, dos conceitos que
são estratégicos
para nós.”[7]
A transformação política
iniciou-se em primeiro
lugar, com
o estabelecimento da categoria social
“mulher” enquanto
sujeito/agente
da história e de
sua história. Em
seguida, os
próprios feminismos
atacaram este
sujeito dando lugar
às experiências múltiplas das mulheres, na história
passada e presente.
Entretanto, a
idéia de identidade
permanece e desviando-se da “ diferença”[8],
a categoria “gênero”
irrompe como instrumento
de análise política.
Num primeiro momento revela-se eficaz,
expondo a construção social
dos papéis sexuados. Num segundo momento,
porém, a crítica
feminista percebe nela a
armadilha da identidade/diferença.
O sistema sexo/gênero, como denominou
Gayle Rubin[9] em
1975 mantém a estrutura binária
dos opostos e, sobretudo,
mantém intocada a categoria “
sexo”, enquanto
dado natural,
a ser observado
em relação
a gênero, cultura.
O antigo binômio
natureza/cultura
de Levi Strauss é assim retomado,
perenizando a perspectiva dos opostos constitutivos da realidade;
nas análises de
gênero pode-se então
perceber a reiteração de uma ordem,
a iteração do mesmo sob
a aparência do múltiplo.
A diferença, enfim,
reencontrada na oposição binária sexo/gênero, a natureza
fixada em
aparelhos genitais
diferentes. Quem
é o referente, quem
é o modelo, quem
é diferente? Como
pode o gênero ser
relacional, sem fincar
na natureza a oposição
entre os sexos,
sem remeter
à uma “ natural” divisão
do trabalho, sem retomar, na “ diferença” sexo/ cultura,
a base biológica das hierarquizações? Para onde foi a subversão
das feministas dos
anos 1970, que previam
a eliminação dos gêneros,
como o caminho
para a eclosão
do humano?
Hoje se torna
evidente a domesticação
da categoria gênero,
na medida em
que não
se libera da “ pensée straight”, do pensamento binário,
da heterossexualidade compulsória, dos modelos
que são
aplicados à história sem a análise
de seus pressupostos, de sua genealogia,
tal como,
por exemplo,
público/ privado.
Modelos naturalizados, que nos repetem a mesma história dos gêneros, a
história do Mesmo.
Como diz Judith Butler, não
existe gênero
fora das expressões
de gênero, subvertendo assim o
sistema sexo/ gênero,
campo das análises que utilizam a categoria “gênero”. Afinal, se o
gênero é uma variável
cultural, pode se aplicar a configurações
sexuadas / sexuais diversas. É
o gênero, então, como explica Butler, que determina o sexo.[10]
O que interessa
perceber, neste sentido,
são os processos
que criam os corpos
como matrizes
sexuadas, em universos
culturais diversos,
onde o sexo biológico
não possui necessariamente a importância
que lhe damos.
Ou seja, são
as configurações sociais
do sentido dado
à “diferença”, à “identidade”
, como categorias
vinculadas ao sexo e à sexualidade,
que determinam os perfis do humano. Não o
sexo “ verdadeiro”,
denunciado por Foucault[11],
mas o sexo
político, criado
pelo gênero
em sua materialização
social. Nesta ótica, o gênero
“ relacional” não é
senão a reedição
da “ diferença” , perdendo, em
seu trajeto,
a perspectiva subversiva da eliminação
das diferenças. Sem
esquecer que
o termo “relacional” deixa supor uma igualdade na oposição,
obscurecendo mais uma vez a hierarquização constitutiva
da noção de “ diferença dos sexos”.
Na “diferença sexual” residiriam as
características sociais? Se não,
qual a evidência,
qual a
importância da manutenção
da polaridade “sexo biológico” na construção
dos gêneros? Se o
sexo biológico é mantido como
uma base estável sobre a qual se
erigem as modalidades de gênero , em que nos afastamos
da naturalização dos papéis sociais?
A proposta de
“igualdade na diferença”
tem trazido uma maior visibilidade das mulheres
enquanto agentes
no social;
entretanto, certas
conquistas políticas
não foram suficientemente
fortes para
transformar a divisão social
do trabalho em
termos econômicos
e políticos strictu sensu.
As mulheres votam, mas
tem uma representatividade política mínima;
as mulheres trabalham no mercado formal,
mas continuam a ganhar
menos que
os homens, em
tarefas iguais.
A mídia continua a
construir e divulgar as imagens
“da mulher”, sujeito
unificado , singular, reagrupando
todas as mulheres em
torno da modelagem dos corpos, da sensualidade,
da sedução, ao lado
da “verdadeira mulher”, a mãe e esposa.
Em nome da diferença, as mulheres
continuam atreladas a seus corpos, construída em
função de outrem.
O que significa, neste caso, a busca
de uma identidade,
já que a própria
definição do sujeito
depende de seu
referente oposto? “ A mulher
é um homem
inacabado,
imperfeito”. Quantos
filósofos, quantos “ cientistas”
não repetiram esta frase,
incansavelmente, buscando nesta recitação o fundamento
de sua própria
importância?
O que fazer, então, se a identidade “ mulher”
ou no melhor
dos casos “
mulheres” nos enclausura
no sistema sexo/gênero,
ancorado ainda no
natural e na especificidade que
há mais de 50 anos
os feminismos vem combatendo como fonte da desigualdade
e da opressão?
A riqueza da epistemologia feminista
está em sua
incessante auto-crítica, excedendo
seus próprios
pressupostos a fim de criar
, na linguagem e na experiência,
saídas para
um pensamento agrilhoado a seus
pressupostos. É assim que a identidade
, quer seja ela
individual ou
de grupo passa
a ser questionada, no
mesmo movimento
em que
se questiona, em diferentes
campos disciplinares,
a coerência de um
sujeito, dotado de um
núcleo fundador,
de um ponto
nodal de reconhecimento de si.
Se “ as mulheres
“ são criação
do social, de seu
simbolismo, de
sua linguagem,
das representações que
fundam práticas de desigualdade
e opressão, porque continuar reivindicando esta identidade,
construída, reiterada sem
cessar pelos mídia,
pela história,
pela tradição?
O desdobrar-se em “identidades
múltiplas” não é
suficiente., em
meu entender,
para abrir perspectivas.
Permanece, neste caso, subjacente,
a idéia de um
núcleo central
de coerência ,abrigado pela
idéia do sujeito,
origem de seus
atos.
Foucault, entre
outros, propõe a
idéia de disseminação
do sujeito, transformado em
lugar de fala,
de ação.
[12] Íris Young reflete
sobre este paradoxo:
elimina-se a categoria “mulheres”, criação
social, mas
então o que
fazemos nós,
feministas, em nossas
lutas pelas mulheres
e sua liberdade?
Ela aponta o conceito
de serialidade – indivíduos em
séries, sem algo realmente
em comum ( a experiência singular
de cada mulher)
que sofre uma precipitação – no
sentido químico
do termo – e se transforma-se em grupo, quando uma ação política qualquer
é requerida. [13]
Esta interpelação
que tende a
desconstruir a categoria
“mulheres”, fixando-as em
suas experiências
singulares de mulheres,
seres marcados no social
pelo feminino,
com toda
sua carga
simbólica e valorativa no social,
nos torna os sujeitos excêntricos
de Teresa de Lauretis [14]
aquelas que, ancorados em uma densa materialidade – mulheres- excedem-na,
para melhor desconstrui-la.
Porque negar o paradoxo, já que somos habitadas
por ele,
tingidas de morte nossas
vidas? As identidades
não passam de construções
passageiras, fluidas, com
pousos esporádicos,
lá onde
o presente se torna
passado; em
processo, eu sou apenas
um projeto de
mim, aquela que
já passou e que
ainda não
é. Que não
será nunca, sendo.
As marcas identitárias
são apenas
pousos
momentâneos, que
traçam meu perfil
no passado.Neste caso,
a busca da identidade
poderia ser
substituída pela procura
da liberdade: livre
de raízes, de coerções, de modelos,
estou em permanente
fluxo. Assim
como os quarks, sou matéria
e onda, fluidez e
espessa concretude nas contingências
do social.
O mundo de hoje,
suas guerras,
integrismos, fanatismos de
toda ordem
nos mostra
que as mulheres
precisam antes de
tudo, de liberdade:
política,
econômica, mas igualmente
de uma liberação das disciplinas e assujeitamentos produzidos pelo simbólico, pelas representações
sociais, pelos
pressupostos de construção da
realidade. Pelas matrizes
identitárias que fazem do feminino
um corpo,
um sexo
e uma função.
[1]
Ver,
por exemplo, entre
inumeráveis outros,
o livro de Maria Odila, que
nos apresenta a vivacidade
e a atuação das mulheres
no século XIX, em
São Paulo
[2]
palavra muito
usada na crítica
feministas que
aponta para o caráter
androcêntrico da ciência
[3]
ver Carole Pateman (1993) O contrato
sexual, São
Paulo, Paz e
Terra, para uma discussão a este respeito
[4]
de Beauvoir, Simone. 1966. Le Deuxième Sexe., Paris , Gallimard
, 2 vol. ( 1a edição em
1949)
style="text-align: justify; ">
[5] Wittig,, Monique 1980 La pensée straight. Questions
Féministes, Paris, Ed. Tierce, février, n.7.
[6]
Geneviève Fraisse.1995. “ Entre
égalité et liberté », in La place des femmes, les enjeux de l´identité
et de l´égalité au regard des sciences sociales.Ephesia,
Paris, Editions la Découverte.pp 387-393.
[8]
A “diferença” dos sexos aparece como
uma das correntes dos feminismos, liderada por
Luce Irigaray e revista, por exemplo, por Rosi Braidotti.
[9]
Rubin , Gayle, 1975 . The traffic in Women: Notes on the “political
Economy of Sex” in Reiter, Rayna,
R. Toward an Anthropology of Women, New York an London, Monthly
Review Press
[10]
Butler , Judith,. 1990. Gender Trouble. Feminism and the Subversion
of Identity , New York . Routledge.
[11]
ver, por exemplo, em Foucault, Mchel, 1982. Herculine Barbin, Diário de um hermafrodita. Rio de
Janeiro, Francisco Alves
[12]
ver Michel Foucault. 1971. L´ordre
du discours, Paris, Gallimard.
[13]Young,
Iris.M. 1996. Gender as Seriality : Thinking about Women as a Social
Collective, Joeres, Ruth-Ellen B., Laslett, Barbara (ed) The Second
Signs Reader: feminist Scholarship, 1983-1996, Chicago-London, University
of Chicago Press
[14]
de Lauretis, Teresa, 1990. « Eccentric subjects: feminist
theory and historical consciousness”, Feminist Studies , Maryland,
16, n.1 (Spring) p. 115/150
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