Identidade, para que te quero?

palestra?

Resumo:

>A necessidade de delimitar  um espaço onde se reivindica uma identidade, baseada em diferentes posições de sujeito, faz com que esta categoria seja alçada a uma condição da existência, de possibilidade de ser e de atuar no mundo. Ora, um núcleo de coerência que seria o cerne do indivíduo vem sendo denunciado , na atualidade, pelos feminismos e pelas filosofias “pós-modernas” , como a ilusão de uma identidade ou de uma natureza contendo as características a elas inerentes. Desta forma, a proposta de se pensar a identidade e o sujeito como construções no seio de configurações sociais, como processos em curso, ao longo da vivência humana,  traz-nos a perspectiva de uma identidade fluida, transitória, que significa apenas o que fui e não sou mais. Uma cartografia identitária é , afinal, o que nos resta para observarmos o percurso de opções, movimentos e atuações ao longo de nossas histórias pessoais/sociais. Neste caso, a própria reivindicação de identidade faz parte de uma rede de significações onde nos aprisionamos: é o caso, em meu entender, da idéia de “identidade sexual >O objetivo, portanto, deste trabalho, é comentar as perspectivas atuais a respeito da categoria identidade e questionar seus limites e suas margens.

 

Os seres, qualquer que seja sua espécie, não são iguais entre si, pois  cada indivíduo é uma singularidade. A diferença em si não é nem positiva nem negativa , pois somos diferentes mesmo em relação a nós mesmos em nosso caminhar histórico. A criação de uma diferença política cria porém, a desigualdade   quando se erigem hierarquias valores sociais, instituindo referentes,  desenhando corpos, perfis ideais, estabelecendo exclusões, demarcando espaços, limites de ação e posição, mapeando e classificando o social.

 Se considerarmos o material e o simbólico como uma realidade única, ordenadora da inteligibilidade humana, vemos a desigualdade política como um conjunto de práticas discursivas e não discursivas, representações e imagens saturadas de sentido,  instauradoras do desenho das formações sociais.

Uma desigualdade instaurada no político, como fundamental na taxionomia do humano, é enraizada na noção de diferença entre o feminino e o masculino; esta categoria ancora-se na noção de “natural”, que toma uma parte do humano- seu aparelho genital- como sendo a expressão de sua totalidade.

Ao mesmo tempo, atrela à “ natureza” uma série de características socialmente construídas, criando uma escala binária de atributos, cujo pólo positivo encontra-se fixado no masculino. Cria-se assim um referente , modelo desdobrado em homem, branco, ocidental, jovem, de posses, origem de uma cascata de desigualdades; classificou-se enquantooutro” todas /os que não se adequassem ao perfil do referente.

As desigualdades encontram-se assim fundadas num discurso de “evidência”, ocultando-se , desta formaque a própria idéia de diferença  pressupõe todo um aparato valorativo, onde o sexo biológico é tomado como parâmetro principal na classificação do humano. De fato, a afirmação identitária a partir de um sexo biológico bina\ário tem como uma de suas premissas a sexualidade procriativa e a maternidade como o “destino biológico” das mulheres. Como compreender os discursos sobre a “ condição femininasenão em uma perspectiva de marcar e reiterar a diferença e no mesmo movimento, a desigualdade sócio-política?

·        Feminismos em ação

Os feminismos contemporâneos vem desconstruindo a noção de “ natural” e de “natureza humana”,  desde 1949, se tomarmos Simone de Beauvoir, com seu livro “ O Segundo Sexo”,  como marco genealógico, no sentido foucaultiano.(Foucault) A construção de umsujeito feminino” epistemológico e político foi objeto de uma profícua literatura feminista, nos mais diversos campos disciplinares, objetivando a visibilidade das mulheres e a abertura de espaços múltiplos de atuação, dos quais , em tempos e locais diversos,  aos poucos haviam sido excluídas.

 Escrever, neste sentido, também é um ato político, na medida em que o discurso é uma ação (Austin); não apenas a denúncia das práticas de discriminação sexual, mas sobretudo a exposição dos mecanismos simbólicos instauradores das desigualdades Assim, a luta pela igualdade de direitos políticos e civis marcou  a presença dos movimentos feministas nos mais diversos países: direito de voto e de elegibilidade, modificações legislativas quanto à cidadania e plenos direitos civis das mulheres, quanto à proteção e prevenção contra a violência social e doméstica .

“ O privado é político” anunciavam as feministas dos anos 1970 ( Descarries, 2002) apontando para a historicidade da divisão social do trabalho entre público e privado, mostrando que a própriaevidência” deste  esquema binário era uma construção histórico / social. .(Pateman) A luta pela igualdade, porém, apesar de sua importância crucial para a vida das mulheres não questionava , em numerosas vertentes, o aparato conceitual , os mecanismos construtores do referente masculino, aquele sem o qual não há desigualdade política com base no sexo.

A categoriagênero” utilizada para mostrar as variantes culturais dadas ao sexo biológico tem sido profícua ao desnaturalizar os valores componentes das representações do feminino e do masculino. A implantação de sistemas sexo /gênero foi analisada há mais de 30 anos pelos feminismos (Rubin, 1975) e esta quebra da evidência do natural, da  diferença sexual incontornável” foi, penso eu, artífice do questionamento que hoje sofrem os paradigmas científicos. A destruição da evidências, proposta por Foucault (1971) era uma prática feminista desde os anos 1940.

Entretanto, a adoção da categoriagêneropela Academia, que deu projeção, visibilidade e sustentação aos estudos sobre as mulheres veio, ao mesmo tempo, domesticá-la,  retirando-lhe seu cunho subversivo: onde as feministas apontavam para a criação da desigualdade, biológica e política, no exercício da apropriação dos corpos femininos pelo sistema patriarcal,( Guillaumin, Delphy) passou-se a indicar uma espécie de construto relacional, abandonando-se precisamente a perspectiva da construção social dos gêneros em termos de desigualdade.

A própria formulação do binômio sexo /gênero  deixava intacta a dualidade universal como fundamento do humano, desdobrando-se, por exemplo, no inevitávelpúblico / privado”, cuja construção histórica datada é repetida como um esquema de análise por historiadoras ou analistas que trabalham com  a categoriagênero”.

De fato, a desigualdade política persiste e é reconstruída, na medida em que o sexo, permanece enquanto base estável do binômio sexo/ gênero, reproduzindo assim um discurso de naturalização: a cultura (gênero), agindo sobre a natureza (sexo). Vemos assim que a desconstrução do natural justificador da desigualdade , realizada pela categoria gênero, vem  reiterar esta mesma natureza ao aceitar a diferença sexual como dado inquestionável.. Isto significa, como analisa Tereza de Lauretis, ( techn), trabalhar a descontrução e lutar pela igualdade “ na casa do mestre”, ou seja, dentro do aparato conceitual binário que funda, em um sistema de opostos, nossa apreensão, interpretação E instituição da realidade.

As teorias críticas feministas, entretanto, adensando a análise da construção do feminino apontaram para estes próprios mecanismos  , que dotam  de inteligibilidade não as diferentes expressões do “ ser mulher”, mas que estabelecem também o aparato categorial instaurador desta inteligibilidade. Neste caso, os opostos, a binariedade, o sexo, enquanto elementos indubitáveis, fazem parte destes mecanismos.  Os sentidos, portanto, que habitam nossos corpos de valores, normas, expectativas de comportamento, estão, de fato, delimitando e definindo-os em feminino e masculino, em diferentes, em desiguais..

 Os sistemas de pensamento, os aparelhos conceituais e representacionais , como aponta a dinâmica da crítica das ciências, (Harding Khun, Foucault) são, de fato, responsáveis pela interpretação do real, logo, por sua instauração. É assim que por exemplo, o quehistória não diz , não existiu; ou seja, mesmo que tenha existido seu registro foi apagado.. As representações binárias que dirigem o olhar dos historiadores/ antropólogos /sociólogos não lhes permite ver /observar  senão a partir de seus esquemas interpretativos e para isto a literatura feminista vem apontando desde os anos 70.(Rubin, Mathieu). É assim que a presença e atuação das mulheres[1] desaparece da história e da memória social, confinadas em um irredutível esquema datado (Pateman) de público/ privado, doméstico/ político.

A normatividade, expressão dos sentidos simbólicos instauradores de corpos sexuados, atrelam-nos a contornos essencializados: “A” mulher, “ a verdadeira mulher”, criada enquanto oposto, enquanto desigual daquele identificado como referente, como sujeito , o masculino, em face do “outro”. Enquantooutro”, as mulheres foram despossuídas de sua carne, transformada em corpos sexualmente apropriáveis, em força de trabalho disponível e não remunerada na produção e manutenção do humano; enquantooutro”, as mulheres foram despojadas de sua singularidade individual sob a essência de um destino biológico, de  características comuns que as atrelam a um fim único: a maternidade, dentro dos quadros de uma heterossexualidade compulsória (Rich).

Os corpos, portanto, passam a existir em configurações de gênero e nunca fora delas, e como afirma Judith Butler, “é o gênero que constrói o sexo”. Ou seja, é o agenciamento social que  define os “estilos de carne” (Butler), definindo aquilo que é importante, relevante, incontornável: o sexo biológico, enquanto matéria pré-dada, pré-existente, pré-discursiva e a sexualidade heterossexual , ordenadora do desejo, definidora da emoção. O fato é, dizem alguns, que a grande maioria das pessoas é heterossexual; isto é esquecer a domesticação e a disciplinarização exercidas sobre os seres para criá-los enquanto mulheres e homens, opostos que se atraem necessariamente. É esquecer as tecnologias do sexo ( Foucault) e do gênero ( de lauretis) que produzem a sexualidade binária, que criam um centro e suas margens, o natural e o abjeto ( butler)  sempre na ótica do binário, dos opostos, da contradição, da luta engendrada pela desigualdade.

 É ignorar também  o poder da educação na formulação dos seres e do social, como mostra, por exemplo, Marc Ferro, no caso do aparthaid.da África do Sul. (marc ferro) É no âmbito do “desigualque se forjam as dominações, que se destilam a dor e o sofrimento. O próprio discurso científico, como assinalei, que se arroga o direito de falar em nome da verdade das coisas e dos seres, é produtor e reiterador de desigualdades políticas, ao assegurar uma “natureza”  para os seres, o “natural” das relações sociais , convertendo em ciência suas próprias representações históricas do mundo.

Passando do domínio do sexo biológico para o exercício da sexualidade, o binário heterossexual  é também produtor de desigualdade, na medida em que é prerrogativa e “necessidade masculina: a expressão paroxística desta situação é a pornografia ou a prostituição, violência maior do social sobre corpos transformadas em mulheres, presas coletivas de um desejo sexualincontrolável”.( mackinnon) A prostituição transformada em trabalho seria, a meu ver, a definição maior  de uma hipocrisia social que institucionaliza a mercantilização de seres humanos para melhor explorá-los. Afinal, a prostituição movimenta apenas um pouco menos de dólares que o tráfico de armas no mundo.

Os feminismos, portanto, quer seja em movimentos sociais de mulheres, de reivindicações sociais ou políticas strictu sensu, quer seja no domínio da crítica à ciência,(Harding) à percepção interpretativa e instauradora do mundo, vem contribuindo para desfazer os nós das desigualdades. Longe de representar uma corrente monolítica de pensamento, os múltiplos feminismos às vezes têm em comum apenas o desejo da transformação. Nesta pluralidade encontra-se sua maior riqueza, na medida em que a perspectiva falogocêntrica[2] das ciências pretende definir caminhos únicos de verdade.

Nesta perspectiva, um dos caminhos metodológicos feministas de crítica é a proposta do excesso; o exceder, neste caso, leva em consideração o posicionamento social, o lugar de fala, a experiência no processo de subjertivação, na constituição de si no social. De onde se parte , de onde se fala, o que se pode dizer, as condições de possibilidade, as opções simbólicas e representacionais de construção do mundo, são levadas em consideração pelos feminismos, na medida em que a experiência do “ser mulher” , desigual no político, atravessa e urde as direções do olhar. De uma posição singular, portanto, constituída em corpo femininoem mulher no social, parte-se para o excesso, movimento de expansão crítica que desconstrói os referentes binários e essencializados ( feminino , masculino) na medida em que aponta para seu caráter valorativo, histórico e social, sem esquecer porém, a pregnância das  experiências e das significações sociais que, de fato, fazem existir mulheres e homens

Teresa de Lauretis assim descreve esta experiência como 

“[... um complexo de hábitos, associações e percepções, que en-gendram alguém como fêmea” (de Lauretis,182-alice) E prossegue: “[...] desde que ambos, o sujeito e o a realidade social sejam entendidos como entidades de natureza semiótica, comosignos”, a semioise nomeio o processo de seus efeitos constitutivos recíprocos” (idem). 

As mulheres seriam portanto sujeitos constituídos em corpos, femininos, cujo contorno político é traçado na desigualdade.

O corpo feminino é assim a construção imaginária /significante de um sujeito político desigual, representação e auto-representação de um sujeitooutro” A crítica feminista, que pratica o excesso como método, aponta para estemagma de significações imaginárias” (castoriadis) que naturalizam as práticas sociais, sem perder de vista o sujeito interpretante, dotado de um corpo, o sujeito da semiosis (Lauretis, idem) “ que é  o lugar no qual, o corpo em quem o efeito significado dos signos sae fixa e se real-iza.” (idem, 183) Longe da “objetividade positivista ou da busca infrutífera de uma “ verdade qualquer”, a interpretação se desloca para o processo de construção, os mecanismos de significação, a performatividade do real , processo pelo qual se mascara os artefatos que o compõem.

Quando se desvelam os mecanismos de inteligibilidade que , de práticas sociais de gênero  articulam corpos naturalizados em desigualdade, os caminhos para desfazê-la se tornam mais amplos. De fato, a natureza e a diferença na instituição do “outrodesigual são argumentos cuja falácia torna-se evidente no desvelamento histórico de sua construção.

Neste debate sobre os sujeitos constituídos em corpos, passa-se para as questões identitárias.De fato, se minha experiência, se meu processo de subjetivação semiótico se cristaliza em um corpo inserido em práticas sociais, como posso excedê-lo?  Como posso exceder uma identidade que me é imposta pelo olhar, pélas definições, pela burocracia do social? Como exceder a desigualdade sem cair no domínio do metafórico ou sem galvanizar a diferença, reiteradora do desigual naturalizado?

 A categoria identidade tem se tornado, atualmente, um eixo preferencial de debates disciplinares e interdisciplinares.. Fala-se em identidade supondo-se uma essência do indivíduo, um encontro consigo  mesmo: diz-se "em busca de sua identidade"  e supõe-se a busca de um tesouro oculto, prestes a eclodir ao ser liberado; fala-se também, em outra perspectiva, de identidades plurais, em multiplicidades identitárias , em desdobramentos de identidade; considera-se identidade o pertencimento a um grupo ou a um espaço geográfico. Identidade é usada igualmente como sinônimo de raízes, parte oculta de umeuoriginário.

Com estas noções usualmente encontram-se outras categorias, que com elas reiteram a binariedade do sistema de apreensão e construção do real em opostos: por exemplo, identidade/ diferença, diferença/ igualdade, igualdade/ liberdade, identidade / liberdade.. Estes desdobramentos nos fazem percorrer um caminho que vai do epistemológico ( identidade/ diferença) ao político ( igualdade/ diferença; identidade/ liberdade), num atalho em que a diferença permanece como o referente, origem das desigualdades e hierarquias.

 Este encontro com o múltiplo e o diferente, entretanto, não nos faz exceder nosso horizonte epistemológico habitual: se encontro um locus de estabilidade e inteligibilidade identitário , estou , ao mesmo tempo, criando campos adjacentes de exclusões, delimitando o espaço entre eu e o outro, reivindicando neste movimento, um lugar paramimsuperior ou igual aos outros, meus referentes. Eu sou, portanto, em relaçao a algo, a outrem, além da busca de uma coerência interna  perdida, meu "verdadeiro eu".

Em uma perspectiva histórica feminista , podemos  perceber que , quanto às mulheres, ( mais de metade da humanidade, não esqueçamos!) sua posição de sujeito/agente no social foi obscurecida , na análise e na narrativa da História: a procriação seria seu destino natural / social , que traçava e seu ser em torno de uma especificidade corpórea, cuja função produtiva se fixa na idéia da diferença incontornável.

A identidade das mulheres, portanto, ancorada em seus corpos sexuados, realiza-se em um movimento de oposição a seu  referente /outro masculino,  essencializada em uma tarefa social, a maternidade. Esta tarefanaturalcria um campo de silêncio em torno das ações políticas das mulheres, em seu sentido mais amplo, que abrange inclusive o domínio socioeconômico. A idéia comum de uma separação rígida e constante, nas mais diversas culturas, entre o público e o privado funda-se nesta naturalização de papéis.[3]

Esta questão foi colocada há mais de 50 anos por Simone de Beauvoir quando perguntou: o que é uma mulher?[4] Esta pergunta desafiava a naturalização dos papéis femininos e, ao mesmo tempo, apontava para a constituição de um sujeito-mulher, que não fosse constituído apenas por uma essência ou pela referência a um outro masculino. Seria este um sujeito dotado de tal coerência que lhe daria um status de autonomia? Não estaria   porém, em contradição com a desnaturalização  do humano, que se colocava  em evidência os aportes sociais à construção de indivíduos também sociais?

O fato é que o estabelecimento da categoria mulher-sujeito revelou-se, ao longo dos debates feministas ainda mais problemático diante da quotidiana constatação da multiplicidade das experiências deste ser mulher, na própria tessitura dos movimentos das mulheres e seu quotidiano de lutas e reivindicações. Constatou-se que "a mulher" não existe; existem mulheres e enquanto indivíduos ou grupos tem uma trajetória singular.

Fortes de seu dinamismo crítico, as teorias feministas não hesitam em questionar a categoria "mulher", não apenas em sua "diferença" em relação ao outro masculino, mas em relação às próprias mulheres e igualmente quanto ao próprio sujeito que se procurava construir. O que isto significa? Em 1978, Monique Wittig [5]escrevia que não existem “mulheres” ( muito menos “ a mulher”) fora dos construtos que as forjam. Apontava à época, a coerção à heterossexualidade como o ponto nodal da domesticação das mulheres ao destino de seus corpos reprodutivos, ao assujeitamento criador “ da mulher” , a verdadeira, a mãe e a esposa.

Mulheres criadas desde a infância no assujeitamento à representação “da mulher”, no singular, categoria que engloba, unifica, compõe uma única imagem do “ ser mulher”, cujo sentido é unívoco, linear, composto em termos de sedução e/ ou reprodução. “Secretaria da mulher”, “história da mulher”, direitos “ da mulher”, dia “da mulher”. Quem é esta? Que fantasma é este que nos persegue sob o signo do mesmo?

 De fato, intriga-me a  reiteração do singular ao se nomear as mulheres (até por certos discursos sobre gênero ou mesmo feministas); parece-me uma estratégia da ordem androcêntrica para solapar a diversidade que habita o humano classificado como feminino: “ são todas iguais!”. Se “o homem” refere-se ao humano em geral, a “ mulher” , singularidade reiterada incessantemente, reagrupa e ressencializa todas as mulheres, fazendo seu referente único o masculino.

Falar de igualdade para “ a mulher” significa talvez obstruir , velar, na pluralidade das experiências, a opressão que habita o cotidiano das mulheres. É neste sentido que Geneviève Fraisse[6](390) aponta um outro binômio,em lugar de igualdade/ diferença: o de liberdadediferença, pois, como afirma, é na especificidade do ser mulher que sua liberdade lhe é negada ou retirada. Monique Wittig afirma que é a idéia de diferença é política, e neste sentido aponta que a transformações de relações econômicas não são suficientes, pois “ é preciso operar uma transformação política dos conceitos-chave, isto é, dos conceitos que são estratégicos para nós.”[7]

A transformação política iniciou-se em primeiro lugar, com o estabelecimento da categoria socialmulherenquanto sujeito/agente da história e de sua história. Em seguida, os próprios feminismos atacaram este sujeito dando lugar às experiências múltiplas das mulheres, na história passada e presente. Entretanto, a idéia de identidade permanece e desviando-se  da “ diferença[8], a categoriagênero”  irrompe como instrumento de análise política.

Num primeiro momento revela-se eficaz, expondo a construção social dos papéis sexuados. Num segundo momento, porém, a crítica feminista percebe nela a armadilha da identidade/diferença. O sistema sexo/gênero, como denominou Gayle Rubin[9] em 1975 mantém a estrutura binária dos opostos e, sobretudo, mantém intocada a categoriasexo”, enquanto dado natural, a ser observado em relação a gênero, cultura. O antigo binômio natureza/cultura de Levi Strauss é assim retomado, perenizando a perspectiva dos opostos constitutivos da realidade; nas análises de gênero pode-se então perceber a reiteração de uma ordem, a iteração do mesmo sob a aparência do múltiplo. A diferença, enfim, reencontrada na oposição binária sexo/gênero, a natureza fixada em aparelhos genitais diferentes. Quem é o referente, quem é o modelo, quem é diferente? Como pode o gênero ser relacional, sem fincar na natureza a oposição entre os sexos, sem remeter à uma “ naturaldivisão do trabalho, sem retomar, na “ diferença”  sexo/ cultura, a base biológica das hierarquizações? Para onde foi a subversão das feministas dos anos 1970, que previam a eliminação dos gêneros, como o caminho para  a eclosão do humano?

Hoje se torna evidente a domesticação da categoria gênero, na medida em que não se libera da “ pensée straight”, do pensamento binário, da heterossexualidade compulsória, dos modelos que são aplicados à história sem a análise de seus pressupostos, de sua genealogia, tal como, por exemplo público/ privado. Modelos naturalizados, que nos repetem a mesma história dos gêneros, a história do Mesmo.

 Como diz Judith Butler, não existe gênero fora das expressões de gênero, subvertendo assim o sistema sexo/ gênero, campo das análises que utilizam a categoria “gênero”. Afinal, se o  gênero é uma variável cultural, pode se aplicar a configurações sexuadas / sexuais diversas. É o gênero, então, como explica Butler, que determina o sexo.[10]

O que interessa perceber, neste sentido são os processos que criam os corpos como matrizes  sexuadas, em universos culturais diversos, onde o sexo biológico não possui necessariamente a importância que lhe damos.  Ou seja, são as configurações sociais do sentido dado à “diferença”, à “identidade” , como categorias vinculadas ao sexo e à sexualidade, que determinam os perfis do humano. Não o sexoverdadeiro”, denunciado por Foucault[11], mas o sexo político, criado pelo gênero em sua materialização social. Nesta ótica, o gênero “ relacional” não é senão a reedição da “ diferença” , perdendo, em seu trajeto, a perspectiva subversiva da eliminação das diferenças. Sem esquecer que o termo “relacional” deixa supor uma igualdade na oposição, obscurecendo mais uma vez a hierarquização constitutiva da noção de “ diferença dos sexos”.

Na “diferença sexual” residiriam  as características sociais? Se não, qual a evidência, qual a importância da manutenção da polaridade “sexo biológico” na construção dos gêneros? Se o sexo biológico é mantido como uma base estável sobre a qual se erigem as modalidades de gênero , em que nos afastamos da naturalização dos papéis sociais?

A proposta de “igualdade na diferença” tem trazido uma maior visibilidade das mulheres enquanto agentes no social; entretanto, certas conquistas políticas não foram suficientemente fortes para transformar a divisão social do trabalho em termos econômicos e políticos strictu sensu. As mulheres votam, mas tem uma representatividade política mínima; as mulheres trabalham no mercado formal, mas continuam a ganhar menos que os homens, em tarefas iguais. A mídia continua a construir e divulgar as imagens “da mulher”, sujeito unificado , singular, reagrupando todas as mulheres em torno da modelagem dos corpos, da sensualidade, da sedução, ao lado da “verdadeira mulher”, a mãe e esposa. Em nome da diferença, as mulheres continuam atreladas a seus corpos, construída em função de outrem. O que significa, neste caso, a busca de uma identidade, que a própria definição do sujeito depende de seu referente oposto? “ A mulher é um homem inacabado, imperfeito”. Quantos filósofos, quantoscientistasnão repetiram esta frase, incansavelmente, buscando nesta recitação o fundamento de sua própria importância?

O que fazer, então, se a identidademulherou no melhor dos casos mulheresnos enclausura no sistema sexo/gênero, ancorado ainda no natural e na especificidade quemais de 50 anos os feminismos vem combatendo como fonte da desigualdade e da opressão?

A riqueza da epistemologia feminista está em sua incessante auto-crítica, excedendo seus próprios pressupostos  a fim de criar , na linguagem e na experiência, saídas para um pensamento agrilhoado a seus pressupostos. É assim que a identidade , quer seja ela individual ou de grupo passa a ser questionada, no    mesmo movimento em que se questiona, em diferentes campos disciplinares, a coerência de um sujeito, dotado de um núcleo fundador, de um ponto nodal de reconhecimento de si.

Se “ as mulheressão criação do social, de seu simbolismo, de sua  linguagem, das representações que fundam práticas de desigualdade e opressão, porque continuar reivindicando esta identidade, construída, reiterada sem cessar pelos mídia, pela história, pela tradição? O desdobrar-se em  “identidades múltiplas” não é suficiente., em meu entender, para abrir perspectivas.  Permanece, neste caso, subjacente, a idéia de um núcleo central de coerência ,abrigado pela idéia do sujeito, origem de seus atos.

Foucault, entre outros, propõe a idéia de disseminação do sujeito, transformado em lugar de fala, de ação. [12] Íris Young reflete sobre este paradoxo: elimina-se a categoriamulheres”, criação social, mas então o que fazemos nós, feministas, em nossas lutas pelas mulheres e sua liberdadeEla aponta o conceito de serialidade – indivíduos em séries, sem algo realmente em comum ( a experiência singular de cada mulher) que sofre uma precipitação – no sentido químico do termo – e se transforma-se em grupo, quando uma ação política qualquer é requerida.  [13]

Esta interpelação que tende a desconstruir a categoriamulheres”, fixando-as em suas experiências singulares de mulheres, seres marcados no social pelo feminino, com toda sua carga simbólica e valorativa no social, nos torna os sujeitos excêntricos de Teresa de Lauretis [14] aquelas que, ancorados em uma densa materialidade – mulheres- excedem-na, para melhor desconstrui-la.

Porque negar o paradoxo, que somos habitadas por ele, tingidas de morte nossas vidas? As identidades não passam de construções passageiras, fluidas, com pousos esporádicos, onde o presente se torna passado; em processo, eu sou apenas um projeto de mim, aquela que passou e que ainda não é. Que não será nunca, sendo.

As marcas identitárias são apenas pousos momentâneos, que traçam meu perfil no passado.Neste caso, a busca da identidade poderia ser substituída pela procura da liberdade: livre de raízes, de coerções, de modelos, estou em permanente fluxo. Assim como os quarks, sou matéria e onda, fluidez e espessa concretude nas contingências do social.

 O mundo de hoje, suas guerras, integrismos,  fanatismos de toda ordem nos mostra que as mulheres precisam antes de tudo, de liberdade: política, econômica, mas igualmente de uma liberação das disciplinas e assujeitamentos produzidos pelo simbólico, pelas representações sociais, pelos pressupostos de construção da realidade. Pelas matrizes identitárias que fazem do feminino um corpo, um sexo  e uma função


 

[1] Ver, por exemplo, entre inumeráveis outros, o livro de Maria Odila, que nos apresenta a vivacidade e a atuação das mulheres no século XIX, em São Paulo

[2] palavra muito usada na crítica feministas que aponta para o caráter androcêntrico  da ciência

[3]  ver Carole Pateman (1993) O contrato sexual, São Paulo, Paz e Terrapara uma discussão a este respeito

[4] de Beauvoir, Simone. 1966. Le Deuxième Sexe., Paris , Gallimard , 2 vol. (  1a edição em 1949)

style="text-align: justify; "> [5]   Wittig,, Monique 1980 La pensée straight. Questions Féministes, Paris, Ed. Tierce, février,      n.7.

[6] Geneviève Fraisse.1995. “ Entre égalité et liberté », in La place des femmes, les enjeux de l´identité et de l´égalité au regard des sciences sociales.Ephesia, Paris, Editions la Découverte.pp 387-393.

[7] op.cit.pg.51

[8] A “diferença” dos sexos aparece como uma das correntes dos feminismos, liderada por Luce Irigaray e revista, por exemplo, por Rosi Braidotti.

[9] Rubin , Gayle, 1975 . The traffic in Women: Notes  on the “political Economy of Sex” in Reiter,   Rayna, R. Toward an Anthropology of Women, New York an London, Monthly Review Press

[10] Butler , Judith,. 1990. Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity , New York .  Routledge.

[11] ver, por exemplo, em Foucault, Mchel, 1982. Herculine Barbin, Diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro, Francisco Alves

[12] ver  Michel Foucault. 1971. L´ordre du discours, Paris, Gallimard.

[13]Young, Iris.M. 1996. Gender as Seriality : Thinking about Women as a Social Collective, Joeres, Ruth-Ellen B., Laslett, Barbara (ed) The Second Signs Reader: feminist Scholarship, 1983-1996, Chicago-London, University of Chicago Press

[14] de  Lauretis, Teresa, 1990. « Eccentric subjects: feminist theory and historical consciousness”, Feminist Studies , Maryland, 16, n.1 (Spring) p. 115/150