Sozinha no Polo. Com Charilie, meu cachorro tania navarro swain Resumo Nascida na Nova Zelândia em 1938, vive atualmente nos Estados Unidos. Helen é um ícone das mulheres de aventura, um modelo de ação e de vontade. Conta múltiplas conquistas em suas aventuras: atravessou os desertos de Gobi e Saara a pé, mais de uma vez; remou 3.500 km no rio Amazonas, em duas expedições; viveu seis meses com os lobos, estudando-os durante um ano no mar ártico do Canadá; escalou os mais altos picos do mundo... [i] Helen fez igualmente pesquisas antropológicas: viveu alguns anos com vários povos autóctones, em diferentes países. O National Geographic nomeou-a uma das maiores exploradores do século XX. Às vezes com seu marido, mas na maior parte do tempo sozinha, desafiou todos os preconceitos de idade, de resistência, de vontade e sobretudo, de sexo. Palavras chave: aventura, polo, conhecimento, exploração
Ela se chama Helen Thayer
Deserto de Gobi A aventura que comento aqui se passa em 1988. Ela tinha 50 anos. Helen Thayer decidiu ir a pé em busca do polo magnético, só com seu cachorro Charlie, cada um puxando seu próprio trenó, com equipamentos e provisões. Assim se exprime: «Esta expedição me permitiria testar minhas capacidades de viver ao ar livre. Imaginava-me afrontando temperaturas inferiores a 60 graus, furações e placas de água do mar geladas, susceptíveis de ceder sob meus passos a cada instante e estes perigos pareciam-me iminentes. O pior, eram os ursos[...] Tinha confiança em minhas aptidões à vida ao ar livre, que se aperfeiçoaram ao longo cos anos. Mas não havia nunca encontrado um urso branco.» (17)
Ela ainda não sabia, mas suas premonições iam se realizar. Medo? Sim. O que não a impediu de prosseguir com sua ideia. Voltarei a isto. Cada ano, uma nova aventura : com seu marido, em 1999, percorreu 1960 km para seguir e documentar a migração do maior rebanho de antílopes, mais de um milhão de indivíduos. Documentar para educar, para produzir conhecimento, era este sempre o objetivo de suas aventuras. Seguiram o rebanho a partir de Brooks Tange, a mais setentrional das cadeias de montanhas do mundo , até o North Slope do Alaska.
Brooks Tange Ainda fascinada pelos antílopes em 2000 andou mais de 600 km, desde o território do Yukon até o Arctic National Wildlife Reserve no Alaska, para documentar a migração anual de 240 000 animais, rebanho do qual dependia a sobrevivência dos indígenas Gwich'n quando se moviam das pastagens de inverno para as de verão.
Rebanho de Antílopes
Mas Helen não tentava realizar proezas ou criar desafios: queria sobretudo estudar o meio ambiente, os modos de vida dos povos que encontrava em suas viagens. Os sofrimentos de uma travessia do deserto de Gobi, na Mongólia, onde tentava compreender a vida dos nômades, não a desanimaram em 2002[ii] : um calor de mais de 50 graus, tempestade de areia, sede, insetos venenosos, 2 500 km de tortura para qualquer mortal, apesar da beleza do trajeto. Entretanto, ela o fez.
Com 74 anos, em 2011, Ellen retorna ao Saara e anda 1 440 km ( na Argélia, Mali, Mauritânia) para documentar a vida dos Berberes, estudar as reservas de água e comparar os dados sobre o clima com aqueles de sua primeira viagem em 1996-97, De 2008 a 2010 viveu entre os indígenas da Amazônia, entre os Massai da Tanzânia e os Maoris da Nova Zelândia para estudar seus estilos de vida.
Massai Uma mulher extraordinária? Não, um ser humano extraordinário, que não obedeceu aos limites, nem de suas forças, nem das injunções e estigmas colocados sobre as mulheres. Desenvolveu suas tendências, seguiu seu desejo de aventura e realizou projetos que ultrapassam a imensa maioria dos homens. Refiro-me aqui à espécie humana, uma pessoa que se destaca na massa. Não apemas uma mulher formidável que, por suas proezas excepcionais confirmaria a regra da fragilidade feminina. Com efeito, este fascinante personagem que é Helen Thayer em seu processo de subjetivação: dobrou seu corpo, tantas vezes exaurido, a uma vontade de aço, uma resistência a toda prova, um treinamento físico e intelectual incessantesr. O cuidado de si, neste caso, é a utilização de si mesma, o desafio incansável à suas forças; seu desejo de se ultrapassar, de se surpreender, de se renovar. Suas aventuras são um combate contra os elementos sem controle, mas são igualmente aventuras interiores onde testa todas suas capacidades, sozinha, sem competição alguma. « Foi depois de representar os Estados Unidos em competição na Europa que compreendi algo : que não gostava realmente de me medir aos outros. Encontrava mais prazer a me medir a mim mesma, a me fixar objetivos e colocar o desafio a realizá-los... » (14) Face a si mesma, ela se constrói à medida de seu caminhar. Seu processo de subjetivação não se faz em uma mise em abîme da imagem da “mulher”: são as práticas de si que, em sua experiência de vida, a constroem fora das restrições e das normas que governam o imaginário social e a vida das mulheres. O casamento, para ela, não foi uma injunção à domesticidade, mas uma aventura de companheirismo. Apoiada por sua família e seu marido, sua vontade afirmava-se e seu desejo de descoberta, de aventura, desenvolveu-se de modo exponencial. Nada era tão longe ou tão difícil ou perigoso para seu desejo de aventura e conhecimento. De fato, sua posição no social exprime o sujeito excêntrico, descrito por de Lauretis, como sendo um excedente em relação ao sistema heteropatriacal. (de Lauretis, 1990 : 127) no qual as mulheres são assujeitadas a uma imagem e a um destino biológico: a maternidade. Sob o signo da fraqueza e fragilidade, suas asas são cortadas para impedir voos muito independentes ou autônomos. Assim, em cada uma de suas viagens, vozes numerosas elevaram-se para invocar os perigos e as impossibilidades “para uma mulher” realiza-las. Helen conta que quando estava quase partindo, organizando seus pertences no hotel : «Algumas pessoas rodavam por perto, com o objetivo evidente de verificar se haviam bem compreendido meu projeto. Dois alemães vindos caçar focas estavam apavorados com a ideia que uma mulher queira realmente andar até o Polo[...] um dentista [...] levantou uma extremidade do trenó e declarou :’Ele é pesado demais para você. Não aguentará três dias[...] Um turista australiano aproximou-se e disse com um ar autoritário : Dois elementos vão vencê-la: primeiro, os ursos, segundo, o frio. Você morrerá de medo quando encontrar o primeiro urso.» (26-27) Helen nem mesmo respondeu. Para que? Helen Thayer se fez sujeito político e de ação em sua experiência individual que, como sublinha de Lauretis, é o resultado de um feixe de determinações e de lutas, um processo ininterrupto de negociações entre as pressões externas e as resistências externas. (de Lauretis, 1990 : 137). Pouco importa se ela se considera feminista ou não, sua ação no mundo modifica as representações sociais sobre as mulheres e suas capacidades. E isto, não deixa de ser feminismo. Dizer-lhe que uma mulher não pode ou pode realizar algo sequer resvala sobre sua determinação: se ela é do gênero feminino, é muito mais do que isto e mostra em seu caminhar eu existe um space off, onde o sujeito pode se construir fora das representações sócias, um sujeito eccentric, que se revela dentro e fora dos contornos de gênero. Esta política de localização não afasta seus efeitos de significação, ao contrário, cria para o feminino um lugar de fala, um lugar no discurso, uma força de transformação imagética e política. Diz de Lauretis: « [...] a position attained through practices of political and personal displacement across boundaries between sociosexual identities and communities, between bodies and discourses, by what I like to call the eccentric subject.” ( de Lauretis, 1990:145)
A construção da fragilidade O que nos ensinam, estas mulheres de aventura ? Suas proezas mostram que as capacidades das mulheres lhes permitem tudo fazer, tudo compreender, tudo realizar, em qualquer circunstância. É suficiente para isto não serem impedidas, limitadas, reduzidas a uma condição “natural” que não é senão uma construção social. Basta não serem condenadas à domesticidade, à ignorância, à falta de exercício ( nenhuma esportiva poderia se exercitar com uma burka, por exemplo) alimentação insuficiente, como é o caso em numerosos países, onde as mulheres comem apenas os restos deixados pelos homens. Basta não ser « mulher », a outra, aquela que seria inferior ao « homem ». Na espécie humana, portanto, a diversidade dos indivíduos partilha aptidões plurais, tanto no domínio técnico, quanto no das artes, da economia ou do comércio. Mas quando intervém o poder baseado na ideia fictícia da “natureza” humana binária e polarizada, tudo se torna obra masculina. Os discursos sobre a testosterona ou estrogênio são ficções para marcar uma diferença que se realiza na construção social dos papéis sexuados. As mulheres de aventura são a prova viva disto. É fácil invocar a natureza quando as mulheres são impedidas de sair, de correr, de seguir suas preferencias ou suas tendências, quando são prisioneiras de véus, de quartos, de cozinhas, de porões. É também muito fácil pretender que as mulheres nunca exerceram certas profissões por incapacidade, quando, na realidade delas foram excluídas, pela força ou pela persuasão. Impedem-se as meninas de estudar para em seguida alegar que são inaptas para aprender; impõem-se normas de beleza que as levam à beira da inanição e é dito que são fracas. Apagam-nas da história para em seguida afirmar que as mulheres nada fizeram ao longo do tempo, a não ser procriar. Casam-nas à força sob a alegação que foram feitas para tal. Invoca-se um deus pai todo poderoso para dar importância ao pênis, símbolo e âncora do patriarcado. Cria-se assim a tríade dos P: pênis, patriarcado, poder. Desta forma, os meninos são construídos em poder e autoridade sobre as meninas e as mulheres, inclusive suas mães. Para eles,o treino da prática de esportes, da competição, da defesa. Às meninas ensina-se a timidez, o silencio, a contenção, o medo e alega-se assim que não são aguerridas. As jovens são excluídas das competições ou então se produzem separadamente. Os campeonatos são realizados segundo o sexo: os homens teriam assim tanto medo de perder para as mulheres? A jogadora de tênis Billie Jean King mostrou o que pode fazer uma mulher, quando venceu Bobby Riggs, campeão de Wimbledon em 1973 e ganhou 11 jogos mistos. Com efeito, são as práticas sociais que tornam as mulheres mais frágeis no imaginário social, já que na realidade as mulheres realizam todos os trabalhos que exigem força, nos campos, nas indústrias, em casa. Onde não estão presentes, é que foram excluídas ou interditadas. A fragilidade das mulheres e sua suposta inferioridade são construídas socialmente e invocadas para afastá-las dos postos de prestígio, da ação na política, da produção de conhecimento. Sua exclusão é assim resumida: “ São apenas mulheres, finalmente”. As mulheres de aventura mostram que o feminino é capaz e poderoso, dotado de força, persistência e coragem. Dotado também de todas as capacidades do gênero humano, das quais foram despossuídas para estancar a sede de poder e de dominação dos homens. É preciso sublinhar que a apropriação das mulheres não é fruto de um poder abstrato: são os filhos, os pais, os parentes e o conjunto dos homens que trabalham para construir a “diferença” no imaginário e na violência material. Não é, portanto uma apropriação devido a algo impalpável, sem forma e sem nome, mas sim a ação coletiva e individual dos homens que a realiza.
Direção : O Norte.
O Polo Magnético é imaterial, fugidio, move-se todos os dias num raio que pode atingir 150 km. Seu traçado é irregular e elíptico, nos informa Helen. (16) Sua posição é portanto sempre aproximativa. O sol emite partículas elétricas que tocam e modificam o campo magnético da terra, explica ela, e a localização do Polo Magnético disto depende. Pode mudar de localização com rapidez, sempre inatingível, como ouro no fim do arco íris. No momento de preparação de sua viagem, Helen descobriu um grande vazio nas informações sobre este Polo: « […] fui surpreendida ao descobrir como se havia pouco escrito sobre o Ártico e me dei conta que minha expedição seria uma ocasião única de reunir toda espécie de informação – geográfica, históricas e científica – que poderiam formar a base de um programa educativo. » (21) Helen então estendeu seu périplo para atender pedido dos cientistas de Ottawa a fim de colher amostras de neve e fazer anotações sobre a temperatura « [...] que lhes seria úteis para o estudos do meio ambiente ártico. (22) Além disto, Helen pretendia fotografar toda a região em torno para melhor compreender o território do Polo Magnético. Helen Thayer era e é ainda uma esportista completa. Para levar a cabo esta aventura seu treinamento foi rigoroso : « Além de escaladas e esqui nas Cascade Mountains bem próximas, eu corria 16 km todo dia na floresta, levantava peso em nossa sala de ginástica no subsolo e usava um caiaque no Storm Lake, remando de lá para cá, sob o olhar espantado dos hérons azuis. » (18) Que equipamento transportava para uma viagem tão cheia de imprevistos perigosos? Tudo devia ser considerado em relação ao peso, pois ela puxaria seu trenó carregado com o necessário para sua sobrevivência. Ela dá alguns detalhes: arroz, leite, sopas, chocolate em pó, flocos de aveia, muesli, biscoitos, manteiga de amendoim, nozes, caju em envelopes. Isto não parece muito para alimentar alguém que deveria sofrer um frio glacial, mas era sua escolha. Combustível, um fogareiro, um emissor/ receptor ( mais de 3kg). Helen carrega o que considera suficiente para 40 dias. E mais: uma tenda, um saco de dormir, roupas e outros artigos complementares. Tudo pesava 70 kg sobre um trenó em fibra de vidro, de 2m de comprimentos. E a preparação estava feita. (27) Primeiro hesitantes diante de seu projeto, mas face à sua determinação, os Inuits se propuseram rapidamente a lhe ensinar os segredos necessários para percorrer este território cuja população se reduzia às focas, às raposas e aos ursos em grande número. Além disto, ela e seu cachorro, Charlie.
Charlie Os Inuits haviam insistido para que ela levasse um trenó com cachorros, mas ela não se deixou convencer e levou apenas um cão, que poderia adverti-la da proximidade de um urso. E foi assim que encontrou Charlie, um belo cachorro negro com manchas brancas, calmo e decidido. « Foi amor à primeira vista » disse ela. Ele ganhou seu pequeno trenó de criança, azul com correias vermelhas onde transportava sua comida desidratada, própria para cachorros, 40kg, ou seja, um quilo por dia.(31)
« Os cães Inuits tem uma vida dura. Não os tratam como animais de companhia, mas como criaturas que devem aprender a sobreviver. Jogam-lhes um pedaço de carne de foca gelado duas ou três vezes por semana e elas o mastigam, amarrados a um metro de corrente. Não tem nenhum abrigo, mesmo durante as piores tempestades do inverno.» (30) Helen Thayer não tinha a menor intenção de seguir estes costumes ao adotar um dos cães: « Como a maior parte dos cães Inuits, ele não tinha nome. Chamei-o de Charlie; a primeira coisa a fazer era encontrar-lhe um abrigo para dormir [...] Charlie era meu e eu não o deixaria fora sem proteção [...] Tinha a intenção de tratar Charlie de modo bem mais humana e pouco importa se os Inuits se espantavam de ver alguém com cuidados por um cachorro [...]. Perseverei em minha atitude, esperando que Charlie aprendesse a me amar e ter confiança em mim. »(31) Charlie tornou-se um grande amigo, leal companheiro, sempre pronto para partir mas também sempre pronto ao descanso. Charlie aos pouco foi ganhando espaço e Helen encontrou-o mais de uma vez deitado em seu saco de dormir. Ele tinha um método muito eficaz para dividir as refeições de Helen: sentado, olhava-a fixamente até obter a metade de seus biscoitos ou outros alimentos (60). Ele a divertia, protegia, partilhava seus riscos, advertia sobre os perigos e povoava seus longos dias exaustivos.
Pequeno desvio Ouve-se sempre dizer: « é cultural » quando se trata de legitimar as práticas injustificáveis contra os “diferentes”, quer sejam mulheres, indígenas, negros, autóctones e ... animais. É assim que o sexo de milhões de mulheres é talhado pela prática da excisão e da infibulação, que a prática da vivissecção martiriza milhares de animais, sob pretexto de “avanço da ciência” Os novos medicamentos são testados sobre os mais desemparados, principalmente miseráveis; tortura-se e mutila-se animais para experimentação de cosméticos, sem falar dos matadouros habitados pela dor e pelo sangue. E a “caça esportiva”, uma das atividades humanas das mais ignóbeis, é uma matança aceita socialmente para satisfazer o ego daqueles em mal de virilidade. Nos Estados Unidos existem brigadas de polícia especiais para se ocupar de animais maltratados, esfomeados, cortados por correntes apertadas e curtas, surrados até a morte, esfolados etc. Sem mencionar os cavalos, explorados, maltratados, exauridos e finalmente levados ao matadouro. No Brasil há uma legislação de proteção aos animais, mas nada é feito quanto às denúncias. Quer seja no Ocidente “civilizado”, ou em outros lugares, os animais enquanto espécie são submetidos à uma exploração contínua e a maus-tratos sem limites, dos camelos no deserto aos cães /gatos de nossos vizinhos. ( ver dossiê anti-especismo, Labrys n.) Ao lado de inúmeras sociedades de proteção animal, existe atualmente um movimento cujo objetivo é colocar em questão esta ideologia detestável que autoriza a espécie humana, religiões e legislações como apoio, a cometer todos os abusos possíveis e imagináveis contra os animais: é o anti-especismo. ( ver dossiê antiespecismo no n.24) « O especismo é para a espécie o que o racismo e o sexismo são respectivamente para a raça e o sexo : a vontade de não levar em conta os interesses de alguns para benefício de outros, sob o pretexto de diferenças reais ou imaginárias, mas sempre desprovidas de uma ligação lógica com o que tentam justificar» (web, 2012) Aparentemente a capacidade de indignação está perdida. O suplício dos animais não afeta muita gente. A questão não é apenas se manifestar contra os regimes totalitários, as torturas praticadas contra a espécie humana, mas de ser revoltar contra toda forma de abuso, todas as espécies confundidas. De fato, não é a racionalidade que distingue o humano dos animais, mas sim a prodigiosa perversidade que habita os homens. A grande aventura Resolute é uma pequenina cidade do Grande Norte canadense, a última antes do deserto polar, desolado e árido. (46)
Resolute De lá, Helen Thayer tomou um avião que a deixou em um ponto ainda mais ao norte, lá onde há apenas ursos e o mar gelado, o vento e o frio. Ela tinha um mapa detalhado, uma bússola solar e um GPS experimental, em prova. « A meu lado, puxando seu próprio trenó com sua guia amarrada a minha cintura, ( Charlie) sentou sobre suas patas traseiras, esperando o que viria. Era o dia 30 de março de 1988 e estávamos prontas para partir para a viagem mais arriscada de nossas vidas.» (37)
No primeiro dia, sol, -350, , a superfície do gelo não muito ruim. Ela cruza muitas vezes os traços de uma ursa com seus dois ursinhos e de um grande macho, mas sem vê-los. Seu grande medo eram os ursos. Sua vantagem,Charlie, capaz de ouvi-los e pressenti-los de longe. Tinha uma carabina Winchester 338 Magnum que só deveria ser utilizada em último caso, pois um urso ferido é dez vezes mais perigoso, havia sido advertida. Tinha ainda uma pistola de sinalização que poderia eventualmente afastar os animais. De toda maneira, ela não tinha nenhuma vontade de matar um urso, um animal esplendido em seu habitat natural. « O Polo parecia tão distante ! Restava ao menos 550 km a percorrer e deus sabe quantos ursos brancos em meu caminho!! » (45) Ao por do sol, a temperatura caiu a -450. Apesar de minha experiência em altas montanhas, as condições especiais de secura do ar no polo faziam com que o frio começasse a gelar suas mãos. (48) Um a vez que este processo se iniciou, feridas se abriram sobre elas ao longo da viagem, o que tornava difícil toda manobra, quer seja em esqui ou para instalar o acampamento, todos os dias. Já no início, portanto, uma dificuldade suplementar apareceu. Comer era também complicado, pois era necessário fazê-lo rapidamente antes que a comida congelasse. Helen chamava Resolute pelo rádio todos os dias, às 20h para dar conta de sua progressão e era seu único contato com o resto do mundo. E então, no segundo dia, a mamãe ursa e seus ursinhos avançaram em sua direção.
Charlie as havia anunciado com um rosnado baixo. A ursa estava a uns 150m e não parou, apesar dos tiros em sua volta, à direita, à esquerda e o barulho da pistola de sinalização. « [...] meu coração batia tão forte que devia ser ouvido em Resolute » diz Helen. (55) Quinze minutos de tensão, pânico, até que a ursa decidiu, finalmente, que não era interessante arriscar a vida de seus ursinhos ao se aproximar destes estranhos objetos que faziam tanto barulho. E partiu. Uffff ! «E apesar do medo que me paralisava sempre, dentro de mim estava feliz. Sabia agora que era capaz de afrontar um urso em plena natureza, de ficar calma o bastante para reagir e lembrar-me dos conselhos de prudência dos Inuits. [...]Agradecia a Charlie por me haver avisado[...]Sempre alerta, ele mal percebia que o abraçava.» (55) Ver a ursa com seus ursinhos na natureza era tão assustador quanto maravilhoso. “Ela não me temia, era cheia de força, perigosa e graciosa ao mesmo tempo” (56) Mas o dia estava em seu auge e uma hora depois um grande macho apareceu e se encaminhou resoluto em sua direção. Charlie ficou silencioso, mas quando o urso se encontrou a 50m, seu rosnar foi tão poderoso que o animal parou e foi para trás. Entretanto, logo voltou: os tiros deixaram-no indiferente e desta vez os foguetes de sinalização foram a salvação, pois o urso teve o focinho queimado e fugiu correndo. Para Helen, este dia foi o batismo de fogo em relação aos ursos. Temos uma tendência de pensar no polo como uma superfície lisa sobre a qual esquiar deveria ser muito fácil. Mas, composto de água do mar gelado, a banquisa adota todos os movimentos do mar quando este gelou.
Além disto, há as placas de gelo muito finas e perigosas, que podem se fender ou quebrar sob os pés de quem avança sobre elas. Nem um só minuto de inatenção era possível. Helen descreve assim esta situação: « Logo entrei em uma floresta de picos gelados, de montículos e de blocos que me cercavam de todas as partes, mais altos que eu, chegando às vezes a quatro ou cinco metros. Não ouvia senão os estrondos lentos, os gemidos torturados quando as bordas do gelo batiam umas contra as outras.[...]Abria meu caminho na floresta gelada, primeiro em esqui, com dificuldade e mais facilmente depois a pé.» (59-60) Helen explica que cada ano a banquisa muda e naquele momento se apresentava de forma muito acidentada, mas oferecia mesmo assim um espetáculo magnífico: « Encontrava-me no centro de um tesouro, de um esplendor inimaginável.» (60) Os blocos de gelo, com ângulos inesperados, o branco estriado de um azul pálido, formações delicadas como frágeis esculturas. Era preciso, entretanto,, abrir um caminho neste labirinto. (60)
E o segundo dia ainda não havia terminado: de repente, Charlie começa a rosnar e... um outro urso surge a uns 50m! Estava mais para curioso e não insistiu muito face à fúria de Charlie e aos foguetes de Helen. Entretanto, tendo em vista o encontro de três ursos em um só dia, Helen sentiu-se um pouco abalada em seu objetivo de encontrar o polo magnético. Tentou pensar em alguém que já tivesse feito este trajeto a pé: ninguém! Ela seria a primeira. « Minha única tarefa aqui, era sobreviver, tanto psicológica quanto fisicamente. Já me sentia como um todo com meu novo meio ambiente. Isto, acrescentado ao esforço de concentração permanente pela vigilância quanto aos ursos e a obrigação de não cometer nenhum erro fatal, não deixava lugar para outras preocupações. » (81) Sem poder partilhar suas dúvidas com alguém, a tomada de decisão era a objetivação do sujeito em ação, aquele que constrói um eu paradoxal, dividido entre as pressões internas e externas: é este space off que cria os efeitos de subjetividade no processo de subjetivação. ( de Lauretis, 1990:115) Aceitar o desafio não é senão uma des-identificação com o sujeito-mulher, atualizando toda sua capacidade e sua determinação humana. O treinamento lhe dava força, sua vontade, a resistência. É, portanto sua experiência que a constrói a cada instante, sujeito nômade de si-mesma. Em seu lento caminhar, puxando seu trenó em quase 1000 km, Helen Thayer é, a cada instante, outra, sem referente, só a cartografia de seus passos lhe revelam seus avatares.
Tantos desafios, tantos perigos ! No terceiro dia, suas mãos estavam cheias de bolhas e haviam inchado muito: era difícil montar o fogareiro, abrir a tenda, fazer os gestos necessários para montar e desmontar o acampamento. Todos os dias. (67-68) Em uma temperatura de -50 sua máscara de proteção havia se moldado a seu rosto, os cílios gelados, os óculos de proteção embaçados, mas indispensáveis por causa da luminosidade que poderia cegá-la rapidamente.. As paisagens eram magníficas: « O sol, baixo sobre a costa de Bathurst, espalhava uma luz dourada sobre o flanco dos picos de gelo e projetava suas longas sombras fantasmagóricas de outro lado. Uma névoas gelada, dourada pelo por do sol, se espalhava lentamente [...] Era um cenário irreal, sobrenatural. Nenhuma fotografia poderia captar a beleza fria e nua deste monde de gelo, inviolado pelo homem. (75) E para terminar o dia, um quarto urso. Os ursos os haviam seguido o dia inteiro e Charlie não cessava de rosnar baixinho, mas sabia distinguir as intenções agressivas da simples curiosidade destes animais; o rosnar baixo diante deste urso se tornou feroz quando estimou que ele estava perto demais. (78) É estranho pensar que animais tão poderosos e enormes como os ursos polares se deixem intimidar por um cão! Um dos momentos mais dramáticos de seu trajeto foi um ataque repentino e furioso de um urso: « De repente, um urso adulto surgiu, parou um instante para em seguida se lançar como uma flecha sobre meu trenó, com uma rapidez incrível [...]Os rosnados de Charlie eram ensurdecedores. Em seguida, o urso, a cinco metros de nós apenas, pareceu me ver pela primeira vez e se levantou sobre as patas traseiras. Tive a impressão de me tornar anã. Quando arremeteu, reagi.» (87) No momento em que Helen atirou com seu fuzil, o urso recaiu sobre quatro patas e a bala passou acima de sua cabeça. Soltou então Charlie que havia mordido sua pata evitando garras e dentes. Este corpo a corpo durou um bom momento e finalmente o urso decidiu-se a fugir, com Charles em seus calcanhares. E ambos desapareceram ao longe... «Será que ele retorna? Como encontrá-lo ? [..] estava louca de inquietude. » (87) A espera foi insuportável. E se ele estivesse ferido? Ou morto? A perspectiva da perda de Charlie era tão assustadora quanto dolorosa. “De repente, vi um ponto negro, bem longe, sobre a banquisa. Charlie? [...] Era ele [...] Foi um embolar de pelos negros, abraços e beijos. Ele resfolegava. Afundei meu rosto no pelo espesso de seu pescoço. » (88) Charlie havia salvado a vida de Helen. Mais uma vez. Sobre a banquisa, explica Helen, a noção de perspectiva se dilui, veem-se falésias que não existem, avalia-se mal as distancias, percebem-se formas enganadoras, a visibilidade e a proporção são anuladas: « É um universo branco, despojado da paleta de cores, de ruídos e de objetos usuais da civilização. Quando este mundo estranho e solitário se reduz a uma mancha cinza no coração da tormenta [...] sentimo-nos perdidas.».(108) Helen pensou perceber, em plena neblina um ursinho e sentiu-se comovida de vê-lo sozinho, perdido. Prendeu Charlie e dirigiu-se para o ursinho para pegá-lo, a mão estendida para ele. « E lá, diante de mim, na luminosidade enganadora e tremula, o ursinho se transformou de repente em um macho na força da idade. ! » 109) Mais uma vez a sorte lhe é favorável: face à estranha criatura de duas pernas e aos rosnados de Charlie, o urso virou-se e partiu. No mesmo dia, na hora de dormir, outro visitante: um urso que avançava direto sobre eles, chegando a 20 m. Charlie transformou-se em um fera, as flamas da pistola de sinalização caiam sobre o urso que finalmente... fugiu. Helen afirma que em nenhuma de suas aventuras, sua vida esteve tantas vezes em perigo, a todo o momento, como foi o caso desta viagem ao polo. Mas o desafio era atraente demais, as grandes esportistas saboreiam suas aventuras e o perigo delas faz parte. Assim, em meio a tantas dificuldades, Helen demora-se a contemplar, a se maravilhar e fotografar as paisagens. Havia os ursos, mas havia também o gelo que se fendia sob seus pés, as tempestades selvagens, que a retinham e criavam muitos problemas, como veremos adiante. O vento desestabilizava a banquisa e buracos de água negra apareciam em seu caminho. Apenas alguns minutos seriam suficientes, em uma água tão gelada, para encontrar a morte. Helen sabia disto perfeitamente. Mas precisava passar, além de Charlie e seus trenós respectivos. « Houve então uma deflagração e uma brecha correu pelo gelo justamente diante de meus esquis. Tinha a boca seca de medo. Era preciso sair dali e depressa. Atravessei a enorme fenda para encontrar-me na beira de um buraco. » (131) Apenas a adrenalina sustentava o esforço. A coragem não evita o medo, mas a determinação de Helen permitiu-lhe ir sempre para frente, para seu objetivo. Decidiu que os problemas seriam resolvidos na medida em que se apresentassem. « [...] dia após dia aproximava-me do Polo. Agora estou certa de chegar. Nada me deterá daqui para a frente, senão um ferimento grave ou a morte. » (134) Assim, ao longe de seu trajeto, a morte estava lá, vigilante, à espera. Houve colinas difíceis a vencer, descidas nas quais os dois trenós quase se enroscavam, gargantas e riachos presos no gelo que era preciso atravessar, um mundo branco e nebuloso a conquistar. Charlie inventou um escorregão canino, uma descida sobre o ventre, as patas dianteiras estendidas. Helen acompanhou-o e se encontraram embaixo, embolados, pernas e patas, um riso louco para esquecer os perigos. Sim, Helen não estava verdadeiramente só, pois Charlie era seu escudo contra a morte e o desencorajamento. Em 15 dias, ela havia percorrido apenas 171 km, detida muito te,po por uma grande tempestade. E os ursos se aproximavam e não lhe davam descanso; Helen começou a se habituar a eles, se se pode considerar assim este jogo de afrontamentos, mas ela certamente teve muita sorte. Ou então, talvez, os ursos não atacam tão sistematicamente como se afirma: eles parecem inspecionar, avaliar, e sem dúvida são curiosos de observar estas estranhas criaturas em seu território. Quem sabe? Os homens estão sempre prontos a atirar e em seguida de vangloriar de sua “coragem”. Mas o fato é que a população de ursos polares encontra-se em sério perigo de extinção, pois o gelo vem derretendo e a superfície de seu território de caça se reduz. Neste momento, os países limítrofes da calota glacial do pole discutem a partilha do permafrost que surge, a fim de explorar os minérios. É a destruição certa do meio ambiente , pela cupidez humana. Diante da paisagem que se mostrava apenas para ela, Helen não pensava em sua destruição possível: « Eram 3 horas e o sol saía de seu esconderijo aflorando apenas no horizonte e espalhando uma vaga luminosidade dourada sobre a banquisa.[...]O silêncio era absoluto. O vento havia desaparecido e nada se movia. Era um lugar impessoal e totalmente indiferente a mim. Existia há séculos e continuará a existir quando eu, simples mortal, já terei desaparecido há muito tempo » (160) Helen sabia determinar exatamente sua latitude e longitude com seus instrumentos e conhecer também as distancias percorridas. Começou a acelerar o ritmo e conseguiu fazer 56 km por dia, que duravam até 20 h. Era preciso avançar, estava com muito atraso acumulado. A fadiga era tanta que mesmo comer se tornava secundário, comparado à delícia de deitar e dormir. (176) No 19o dia, Helen quase caiu na água negra e gelada: para atravessar um rio, devia utilizar blocos de gelo instáveis e com seu peso combinado àquele de Charlie e dos trenós. E se a placa virasse na posição vertical levaria tudo para o fundo, tudo estaria perdido. (186) A leitura de sua narrativa me fez perder o fôlego. Charlie estava muito reticente para seguir este trajeto. Se ela caísse na água, seu trenó a puxaria para o fundo e se ela cortasse as cordas a ele presas, seu equipamento estaria perdido e a morte seria tão definitiva em um caso como em outro. Mas sua sorte, força e coragem permitiram-lhe atravessar com este perigo, ela e Charlie, à força dos braços: « Minha luta para escapar do gelo flutuante havia me exaurido. Charlie parecia bem recuperado: por sorte, ele não podia me dizer o que pensava. Ele não teria certamente cumprimentado sobre o valor de meu julgamento; ora , sua opinião me era muito importante.» (188)
No vigésimo dia, o Pole estava a 30 km. E a tempestade surgiu com fúria. Ela mal teve tempo para montar sua tenda, apenas fixou os trenós que seriam seu único abrigo. De repente, “[...] um ruído de motor de avião: era o vento que se atirava sobre nós com uma louca violência» (192) Helen foi levantada e jogada por terra pelo vento: só a fixação da corda de Charlie impediu que ele voasse para longe. Mas o vento abriu o saco que continua o equipamento e alimentos, que se espalharam longe no horizonte. Seu rosto estava ferido, seu olho direito fechado. A tempestade não cessava de rugir: ela e Charlie estavam à sua mercê, enrolados no tecido da tende, atrás do trenó. « Súbito, percebi que havia deixado a tempestade superar minha vontade e ditar sua lei. ‘ Que diabos, disse a Charlie em voz alta [...] O Ártico terá feito de tudo : os ursos, as tempestades, o gelo podre e agora, isto !Mas ficarei sentada aqui até a manhã e a vencerei !’ » (193) Restavam-lhe 3 km para atingir o Polo. Helen estava quase com hipotermia quando a tempestade diminuiu ligeiramente e ela pode montar sua tenda, levantada pelo vento rugindo, mas sem conseguir leva-la. Com seu trenó e Charlie na tenda, começou a fazer o inventário do que lhe restava. Todos os víveres haviam desaparecido, com exceção de um pequeno saco de nozes; o fogareiro sobressalente, roupas, grampos, a maior parte do combustível, vários sacos da ração de Charlie, tudo havia sumido. E faltavam-lhe sete dias para terminar o trajeto definido e encontrar o avião que viria busca-la.(197) A ração diária de Charlie seria então reduzida pela metade e para ela, um punhado de nozes por dia, ou seja, 100 calorias e meio litro de água. Em um ambiente glacial e quase sem comida, ferida, Helen arriscava novamente sua vida. (198) Pouco importa! Para uma mulher de aventura, é a resistência que conta. Ela tinha « [...] uma vontade tenaz de vencer, de afrontar este novo desafio e ganhar. » (199) O que afinal vale mais, o percurso ou atingir o destino? Chegou ao Polo no 21º dia. Meio cega por causa dos ferimentos nos olhos, sofrendo de fome, conseguiu realizar seu projeto, sua aventura! « Foi um dos mais belos momentos de minha vida.[...] O que tornava a expedição tão gratificante e o prêmio tão precioso, foi a experiência adquirida e o combate travado. » (201)
Mas a aventura ainda não havia terminado. Era preciso ir a Helena Island, para encontrar o avião que ia leva-la ao campo-base. Helen estimava que, com muita sorte, ela teria ainda cinco dias, quase sem comer e com pouca água, na secura do polo. Sua visão estava embaralhada e a neve que soprava o vento tornava a visibilidade quase nula. Ela não poderia nem ver nem atirar se um urso se aproximasse. Com muita dificuldade conseguiu montar seu acampamento no dia em que atingiu o Polo magnético. (203) E seu fogareiro, quando fazia derreter a neve para tomar uma miserável meia taça de água, pegou fogo! Parecia haver uma maldição, conta ela ! Charlie agora dormia em sua tenda e ela mal conseguia um lugarzinho em seu saco de dormir. A fome se fazia sentir duramente, Helen pensou mesmo em roubar um ou dois grãos da comida de Charlie, mas não! « Uma das razões pelas quais eu puxava sozinha meu trenó era por meu desejo de atingir meu objetivo graças a minhas próprias capacidades e não às de uma atrelagem ou de uma máquina. Charlie era meu companheiro de viagem ; sua sobrevivência tinha tanta importância quanto a minha. A tentação de comer sua comida desapareceu e senti-me culpada de mesmo haver pensado nisto. » (211) O especismo realmente não tinha lugar na vida de Helen. Não era um cão, mas um cúmplice, um amigo, um ser digno de amor e respeito. Seus olhos melhoraram, mas Helen estava desidratada, esfomeada e sua progressão era lenta. A sede era pior que a fome. E o frio, onipresente. A neve turbilhonava, o vento não dava descanso: « Quando uma rajada conseguiu levantar a extremidade de meus esquis ao ponto de me desiquilibrar, retirei-os e comecei a andar.» (213) Andou assim até meia-noite para fazer 33 km. Estas marchas seriam de 18 a 20 h de duração. Neste dia, de medo de perder sua tenda, dormiu no trenó. « Pelas 10h, um vento infernal veio me atormentar. Seu rugido sem cessar, seu assédio contínuo, minha fome e minha sede devorantes se aliaram para me obrigar a usar minhas reservas de resistência, de disciplina e de vontade as mais profundas. Até lá, havia ignorada que possuía tais recursos, mas eles existiam e explorei-os ao máximo para obrigar meu corpo enfraquecido a continuar. Não tinha senão um desejo: avançar. [...] Eu conseguiria. Eu tinha certeza.» (216) Finalmente, no 25o dia, ela avista as falésias de Helena. Ainda faltavam 14 horas de marcha. No dia seguinte, segundo as medidas de longitude/ latitude ela estava no caminho correto « Por milagre, terminei minha viagem exatamente como havia previsto. Percorrera mais quilômetros em torno do Pole que qualquer outra expedição. »(222) Mas ela não podia resistir de escalar as falésias de Helena para atingir o Plateau de onde poderia ter um maravilhoso panorama e uma parte do caminho percorrido. Entretanto, estes 150m poderiam bem ser 6 000 de uma montanha, observa ela. (225) Helen fez 580 km em 27 dias de esforços, em condições impiedosas, dos quais 7 dias de jejum e de sede O que uma mulher não pode fazer? As façanhas destas mulheres de aventura que são feitas de resistência e de sensibilidade, modificam o núcleo das representações sociais sobre as mulheres, transformam o imaginário que as modela como seres frágeis, dependentes, delicados. As mulheres de aventura quebram os moldes, quebram os marcos, fendem as armaduras que as impedem de desabrochar. Elas mostram ao mundo que a vontade, o treinamento, a determinação são mais fortes que os limites que se impõem aos seres nomeados “mulheres”. Estas mulheres de aventura atemorizam o patriarcado, que tenta velar suas proezas, fechá-las nos corredores da literatura, nas coxias do esporte, da descoberta, da pura façanha , como esta de Helen Thayer, que a coloca no rol dos quase sobre-humanos. Sua experiência transformou-a, mas também modificou o olhar social que se coloca sobre as mulheres. « [...] dei-me conta de várias coisas: havia tido esta força interior necessária para ir até o Polo. Havia coexistido em harmonia com a natureza, tantas vezes implacável. (226) Este movimento que negocia as forças internas com as externas, quer seja social ou natural, faz da experiência desta expedição uma contínua construção de si: se o treinamento cria forças, a vontade as multiplica. A conquista do Polo magnético lançava a Helen um desafio a ela mesma, um acréscimo de conhecimento sobre suas próprias possibilidades e meios. « E claro, havia Charlie. Ele estava lá, a meu lado, sua pelagem desfeita pelo vento. O laço que nos unia desabrochou em verdadeiro amor.[...] Lancei um olhar para o norte, para a banquisa fascinante que havíamos atravessado, Charlie e eu, durante tantos dias e voltei-me com pesar. [...] »(226) E ela retornou para casa. Com Charlie. Eu ainda fiquei na banquisa... este vento terrível reaviva meus sonhos de ir ao Grand Nord, terra inóspita e magnífica onde a morte espreita nas dobras do horizonte de gelo azulado. Minha aventura de quem sabe, um dia...
Bibliographie Thayer, Helen. 1993. Plein Nord. À la conquête du Pôle, seule avec mon chien. Paris : Belfond de Lauretis, Teresa. 1990. Eccentric subjets: feminist theory and historical consciousness, Feminist Studies 16, n.1 spring, 115/150 Web. 2012. http://www.cahiers-antispecistes.org/spip.php?article13 notas [i] (voir http://www.helenthayer.com/ pour plus de détails) [ii] Ela fez este périplo com seu marido Bill, 73 ans. |