É simples  apagar as mulheres da memória social: “o homem universal”

tania navarro swain

 

  No dia 23 de outubro os jornais noticiaram que um pai havia transformado sua filha em uma tocha viva pois ela havia falado com um homem longe de suas vistas, no Iêmen; em Brasília, no mesmo dia, um homem ateou fogo em sua namorada pois ela não queria continuar o relacionamento. Segundo dados da Secretaria para a Mulher, a cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil, que teve, em 2012 o espantoso número de 56 mil estupros, ou seja, quase 7 por minuto. Estes são exemplos da violência dos homens contra as mulheres, nesta coalizão chamada “patriarcado” que apodrece o mundo. Mas aqui quero falar de uma outra violência: a simbólica.

Nas “Palavras e as coisas” , Foucault mostra o aparecimento do homem no pensamento moderno, substituindo as formas de representação que podiam explicar o conhecimento. É portanto no empirismo da existência do homem que se buscará as condições de produção do saber.

A análise da finitude, própria ao pensamento moderno, como explicita Foucault, insere o cogito soberano do pensamento clássico no empirismo  do corpo, que se encontra  implantado no fluxo da linguagem e de suas condições de possibilidade de expressão do desejo de poder, de vida, do trabalho, do conhecimento.Diz ele:

«  [...] à experiência do homem, um corpo é dado que é seu corpo – fragmento de espaço ambíguo, cuja espacialidade própria e irredutível se articula entretanto sobre o espaço das coisas; à esta mesma experiência, o desejo é dado como apetite primordial a partir do qual todas as coisas adquirem valor, e valor relativo [...]”( Foucault, 1966::325)

            Os limites do corpo encontram porém, sm sua incontornável degenerescência,  e anunciam portanto, a morte, a finitude. O pensamento se encontra face ao fluxo do impensado, fonte de todas as possibilidades de expansão do saber; este último – o saber- envia igualmente a seus limites temporais  (idem:327), cujos conteúdos empíricos revelam suas condições de produção.

E é nos meandros da análise filosófica de Foucault sobre o pensamento moderno, que se vê os corpos  e suas contingências como superfície do saber sobre o  homem  enquanto objeto e sujeito do conhecimento. (idem:331) Não são porém  as formas de representação que reenviam à possibilidade de conhecimento, mas o próprio homem, na analítica da finitude (idem:329)

Desta forma, em uma épistemé moderna, a análise do vivido é o meio de penetrar a opacidade da linguagem, pois as palavras não significam mais as coisas em sua positividade inatingível. O corpo torna-se o lócus da experiência de um vivido temporal e das condições que o tornam possível e inteligível.

De fato, trata-se aqui de uma articulação entre o vivido do corpo e suas condições de produção e possibilidade (idem:332) que dão lugar à experiência vivida .

Temos assim, nesta análise de Foucault a aparição de um ser cuja  expressão se encontra no corpo, do qual a  existência se desenvolve em um campo cultural limitado no tempo e no espaço.

As significações existem neste campo e buscam  um selo de verdade, de ratificação, de origem fundadora.. Entretanto, não é na natureza das coisas que suas origens se encontram, pois, segundo Foucault, não existe origem, somente um saber em movimento.

Se pensarmos a experiência cultural cujos valores e significações são constitutivas do corpo, seu lugar na atualização dos discursos “verdadeiros” fornece-lhe uma identidade e inteligibilidade..

Assim, se é possível apreender esta aparição do homem como sujeito /objeto do conhecimento, percebe-se a criação, na experiência vivida de um corpo que se faz carne, a imagem singular do masculino. Ao ser criado, o corpo masculino se desfaz no universal de sua construção significativa. O homem é a imagem do humano que se pretende universal mas o sentido que esta apelação carrega não se estende além do masculino. “ O homem fez, criou, agiu, inventou, construiu, descobriu, e assim por diante.

A imagem do masculino universal tornou-se desta maneira um instrumento para centrar a reflexão e as análises sobre o masculino, dotado de um lugar de fala, de expressão e de constituição do  saber. O cogito perde seu status de revelador do mundo natural para que um sujeito se levante: o homem – o masculino – e suas coisas.

É assim que quando o homem trabalha, expressa seu desejo, toma a palavra, constrói um saber, as mulheres tornam-se coisa.

Esta coisa vai então ser analisada, desprovida de seus  direitos sobre seus corpos, definidas em limites constritores, condenada a um destino biológico único, ignorada pela história, inferiorizada pela psicanálise, considerada enquanto objeto de troca por uma certa antropologia.

Se a denominação « homem », o masculino genérico, sugere o universal do humano, seu efeito de linguagem é de apagar o feminino e sua experiência vivida do interesse científico e da memória social, ligando-o inexoravelmente a seu corpo, expressão da “natureza” .

Assim, os enunciados “verdadeiros” se lançam sobre o espaço cultural para definir os papéis e os pertencimentos, para assegurar ou criar novas estratégias de poder.

Vê-se então no pensamento moderno, no que concerne o humano, a reaparição da natureza das coisas no corpo feminino, pois se admite o pressuposto da precedência do masculino-trancendente - sobre o feminino - imanente. A representação não é mais, aqui, a imagem da coisa, ao contrário, é o processo de sua construção.

As ciências humanas e outras não examinam inocentemente as coisas, como queria o positivismo deletério; ao contrário, elas as criam, com novas denominações,  como é o caso da mulher histérica ou da perversão que Foucault analisa na História da sexualidade. (VI).

Aliás, coerente em sua reflexão, Foucault propõe, nas Arqueologia do Saber, uma análise das práticas em sua elaboração discursiva, cujos enunciados revelam suas condições de produção e de possibilidade. (AS). É , através de suas práticas que as ciências criam o solo sobre o qual se apóiam.

A antropologia, a sociologia continuam a se interessar apenas aos feitos e gestos dos homens, tomando como premissa a superioridade do masculino e deixando na sombra o papel e a importância do trabalho, da presença, da palavra das mulheres. O universal filosófico “homem” se encontra assim nos pressupostos das ciências. “Sempre foi assim”.

Emily Martin sublinha, entretanto:

«  Gostaria de dizer que a dominação masculina é o produto do sistema social , da organização de grupos e da compreensão dos significados da vida social. Como se pode entender de outra maneira as diferentes posições de homens e mulheres em diferentes períodos históricos e em diferentes lugares?”  (web.Labrys: juillet / décembre 2010).

O homem revestido de um duplos empírico transcendental que desvela Foucault no pensamento moderno « [...] é um ser tal que é nele que se tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento no pensamento moderno” (329) mas o saber se desenvolve no domínio exclusivo do masculino e as mulheres permanecem na imanência– por lei, pela força, pelo convencimento, pela tradição aventada – que as palavras devem decifrar.

Não há nenhuma preocupação de dissociar o feminino do masculino sob a égide do “homem universal”, pois o valor que rege as significações, os atos, o desejo, o trabalho são apenas atributos masculinos. O feminino não teve a ocasião de se investir enquanto sujeito pois foi ancorado e limitado ao lugar de objeto-corpo. A representação que dizia as coisas torna-se aquela que cria a imagem de um feminino acorrentado a seu corpo, condenado à posição estática de um espelho distorcido face à limpidez do reflexo masculino.

Se desta forma, na formação do saber a função vai além da simples descrição, como mostra Foucault na mudança de épistemé, os corpos das mulheres tornam-se objeto de todas as disciplinas para entender seu funcionamento mas sobretudo para reduzi-las a uma única entidade: a mulher, no singular, protótipo de todas as mulheres reais, das quais a experiência constitutiva é assim negada.

Emily Martin estuda esta transformação de episteme onde os corpos das mulheres são reduzidos à sua funcionalidade.: sua produtividade se estende no tempo desde a menstruação até a menopausa. Isto é, o período fértil do corpo feminino, limitado a uma máquina a procriar. Esta imagem cria igualmente a função social “mãe /esposa” que lhes retira um lugar nos espaço público para enclausura-las na domesticidade e na subordinação econômica.

Além disto, como discute esta autora, textos médicos como referencia, a menstruação é vista como uma deficiência do corpo feminino, pois

“ Elas não estão procriando, elas não estão dando continuidade à espécie, elas não se preparam à ficar em casa com o bebê, elas não estão preparando um ventre cálido e seguro para abrigar o esperma do homem”(Martin, 2006:, 94)

Da mesma forma, a metáfora da degenerescência é aplicada à menopausa que em 1965 era ainda considerada como um estado possivelmente patológico, cuja prevenção seria desejável. (idem :101) A TPM foi criada para desqualificar qualquer atitude feminina que saia do padrão esperado.

 É  a partir da função da procriação que se constrói a imagem do corpo das mulheres tanto para a ciência que para o social, que navegam nas mesmas águas de valores e significações. E na linguagem, a diversidade das mulheres desaparece sob a égide da “verdadeira mulher”, a mãe.

Mas como formula Teresa de Lauretis, não há absolutamente nada no “ser mulher” que possa aglutinar todas as mulheres (idem:250), a não ser a construção social de uma categoria imaginária. Nomear, entretanto, é criar e o afluxo em direção às clínicas de fertilização artificial não é senão o desejo das mulheres inférteis de se inserir no modelo de mulher verdadeira, a mãe.

A filósofa francesa  Geneviève Fraisse,  também deputada européia, explica sua posição :

“ É como se os sexos não pertencessem à questão histórica. A razão pode ser compreendida simplesmente: pertencer à história, é imaginar sua possível transformação, um amanhã diferente de hoje. É assim que minha única ambição filosófica é de convencer da historicidade dos sexos. E a subversão, toda subversão é sua conseqüência lógica.” (web, Labrys: 23 janvier/juin 2013)

O que fica claro é que a construção se dá de forma temporal, e “ a mulher” é uma figura histórica. Quem pode afirmar que sempre foi assim sem sucumbir ao discurso positivista da “natureza humana”,  que pretende justificar, por exemplo, tanto o sexismo quanto o racismo?

O que é a análise do vivido senão o exame de uma experiência constitutiva do humano segundo os quadros espaço/ temporais? Para Teresa de Lauretis a experiência é o processo pelo qual a subjetividade é construída socialmente. (TL:228) em um conjunto de efeitos, de hábitos, de disposições e percepções significantes que realizam a interação do sujeito com o mundo. Mas ainda assim é preciso um sujeito para realizar esta interação. E não uma coisa.

A construção social dos sexos desvendada, resta a incrível superfície de uma “história do  possível”, aquela que existiu em outros moldes e que ainda não chegamos a conhecer pela limitação das narrativas históricas.

É com os feminismos contemporâneos que as mulheres se reconhecem enquanto sujeitos políticos, sujeitos de ação e de reflexão, cujo destino não se reduz à função / destino procriador. Nomes de mulheres e suas ações, perdidos no esquecimento, escondidos nos corredores sombrios da história explodem hoje em toda parte, em todos os domínios: a produção do conhecimento, a aventura, a criação artística, literária, o esporte, a descoberta, a construção,  etc. É o desvelar da história do possível

Se  Foucault analisa as tecnologias que constroem o sexo e a sexualidade, Teresa de Lauretis identifica as tecnologias que instituem o gênero, como dado da natureza. O cinema, entre outras, inspira-lhe a noção de space off, um espaço outro de significação fora das narrativas androcêntricas, fundadoras dos discursos teóricos, literários, ideológicos sobre o mundo e a produção do saber do homem universal. Fora do contrato heterossexual que cimenta o feminino e o masculino em papéis pré determinados e hierárquicos. Sobre esta noção, de Lauretis diz:

“ Eu a imagino como espaços situados nas margens dos discursos hegemônicos, espaços sociais entalhados nos interstícios das instituições e nas fendas e brechas dos aparelhos de poder-conhecimento” (De Lauretis, 1994:: 237)

Este transito entre as fronteiras da diferença sexual e de gênero, esta ponte categorial flexível pode permitir uma outra percepção das mulheres sobre elas mesma, um espaço de representação e de auto-representação que lhes restitui um lugar de fala perdido na vacuidade dos discursos masculinos sobre o feminino.

Segundo  Geneviève Fraisse,

« Demonstrar o funcionamento da dominação é considerado como uma necessidade, para permitir em seguida a ação, a resistência, a subversão. Analisar e transformar, desvelar para refazer, tais seriam as lógicas de uma prática feminista. Teoria, em seguida prática, em suma.”(web, Labrys: 23 janvier/juin 2013)

As democracias se prometem de abrir as vias da igualdade para todos, mas o que se constata é a existência de uma “democracia exclusiva” (Fraisse) que resiste à inserir nos direitos humanos os direitos das mulheres, políticos, econômicos e sobretudo o direito da plena posse de seus corpos. Uma democracia na qual a dominação se perpetua no interior mesmo da luta das mulheres por seus direitos.

Os movimentos feministas tornam obsoletas as normas de gênero e a diferença sexuada : a marcha das vadias, o  Femen, o beijaço público das lesbianas desafiam a categoria “mulher” no imaginário social pois ela não existe senão na diferença cujo objetivo é exaltar o masculino, posto como referente universal.

Entretanto, a negação dos estereótipos tem um lado negativo, que é de perpetuá-las com sendo entidades ahistóricas, referenciais, como bem sublinha Fraisse :

“É como se houvesse uma fascinação pelo que é preciso destruir: a heterossexualidade e a dualidade oposta dos sexos. E se a diferença dos sexos fosse uma categoria vazia, uma categoria sim, mas sem conteúdo definido?” (idem)

De fato, centrar o desejo de transformação social sobre o sexo e a sexualidade não faz senão tornar inútil a contestação pois seus fundamentos são solapados por um dado “natural”. Ora, há uma assexuação do pensamento filosófico e científico – o homem universal- ao mesmo tempo em que a diferença sexual e sua assimetria é afirmada. Segundo Fraisse, (idem), o neutro científico não oferece nenhuma perspectiva heurística pois é uma maneira de escapar à questão da assexuação do social/ filosófico e da sexuação do político /econômico.

>Na prática política, os movimentos feministas são percebidos como a desordem e o caos nas normas heterossexuais que pressupõe a dominação e a assimetria: o feminicídio, a utilização de ácido para deformar mulheres rebeldes, os projetos de lei que agrilhoam  as mulheres à maternidade, o estupro no quotidiano e como arma de guerra são banais como expressão do ódio contra as mulheres e seu desejo de independência enquanto mestras de seu destino.

Ao homem universal, com o risco de desagradar muitos, os feminismos opõe um sujeito político em movimento, um sujeito múltiplo e em movimento, um sujeito mulher que no momento de sua aparição, descobre também que é múltiplo, impalpável, indefinível e que do destino e do futuro não conhece senão a cartografia de seu passado.  

A todos aqueles que querem falar do homem, de sua liberação, de sua essência, de suas verdades,  a quem Foucault opõem um  “riso filosófico”. (353-354), um riso silencioso, nós, feministas, opomos um gargalhar irônico e indômito, um riso amplo e fragoroso que assim  como as trombetas derrubaram as muralhas de Jericó, despedacem as fortalezas do androcentrismo. Do homem universal, que seqüestra do humano, em sua utilização indiscriminada, a metade da humanidade..

Bibliographie

Michel Foucault. 1966 (2010) Les mots et les choses, Paris : Folio, Foucault élétronique. ( As palavras e as coisas, 1967, São Paulo, : Martins Fontes)

______ 1988.A arqueologia do saber, Rio de Janeiro :Graal

______ História da Sexualidade, vols.1/2/3, Paris:Gallimard

Emily Martin,2006. A mulher no corpo, Rio de Janeiro :Garamond

________   web.Labrys: juillet / décembre 2010rwww.labrys.net.br

Teresa de Lauretis. 1994 A tecnologia do gênero in Buarque de Holanda, Heloísa. Tendências e impasses, Rio de Janeiro: Rocco

Geneviève Fraisse 2013. Voir et savoir la contradiction des égalités, Labrys, études féministes, estudos feministas, n.23, janvier/juin, Brasilia, Québec, Paris. www.labrys.net.br