Mulheres indômitas e malditas: a loucura da Razão.

 

 

A elegia à razão constitui uma parte crucial para o desenvolvimento do saber; porém, na partilha social da produção do conhecimento, tomou uma identidade masculina. Assim, ser racional não significa ser humano, cuja razão seria o traço de diferença com os outros animais. Ser racional significa ser um homem, gênero masculino, origem dos discursos de verdade.

Marcada pela temporalidade e pelas redes de significações sociais, a loucura aparece como a antítese da razão, instrumento natural, pronto para ser utilizado quando se conhece seu manejo – domínio dos eleitos, domínio dos homens, criados “à imagem e semelhança”.

A famosa frase de Foucault :

“Sabe-se bem que não se tem o direito de tudo dizer, que não  se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (OD 11)

é a explicitação  da palavra autorizada e da divisão de competências entre feminino e masculino na produção do saber e na expressão do racional. Tomar a palavra, em seu sentido próprio e figurado é um ato de poder e de silenciamento de outrem.

A razão é, todavia, habitada pela loucura, ao classificar  metade da humanidade – as mulheres - em modelos forjados sobre premissas sem fundamento, sobre argumentos baseados em preconceitos, em representações sociais infamantes, diatribes ávidas de poder, cuja falta de substância leva à sua constante iteração.

Uma vez que a razão foi declarada domínio do masculino, as mulheres, por definição dela foram excluídas. Nenhum lugar de fala ou de expressão autorizada. O feminino é definido pelo corpo, por um aparelho genital específico que, de fato, não é um sexo senão para a reprodução ou para marcar o assujeitamento social.

O verdadeiro sexo, portanto, é da alçada do masculino, pois o falo é o fundamento e significante geral do poder, símbolo de autoridade, direito e uso da palavra em todo lugar, sobre todos os assuntos, principalmente no que diz respeito às mulheres.

A histerização do corpo das mulheres, traçada por uma certa economia discursiva, apresenta-se assim como uma manifestação palpável da loucura feminina, pois sua “natureza” seria causa e lócus do caos.

Foucault comenta os discursos médicos do século XVIII a respeito da histeria, doença feminina. Alojada em seus corpos:

«Quanto mais o espaço interior é facilmente penetrável, mais freqüente será a histeria e múltiplos seus aspectos; mas se o corpo é firme e resistente, o espaço interior é denso, organizado e solidamente heterogêneo em suas diferentes regiões, os sintomas da histeria são raros e seus efeitos permanecem simples. Não é  isto, justamente  que separa a histeria feminina da hipocondria. “ [...] esta densidade espacial oferece um de seus sentidos; é que é também uma densidade moral; a resistência dos órgãos à penetração desordenada dos espíritos é talvez uma só com a força da alma que faz reinar a ordem nos pensamentos e nos desejos” (HF 364-65)

Assim, a densidade física e moral, atributo masculino separa a ordem da desordem. 0s corpos das mulheres, por destino biológico e por decreto moral sofrem de fraqueza e fragilidade intrínsecas. Definidas pela ausência do falo, seus corpos não tem o eixo central do verdadeiro sexo e se tornam porosos, desordenados, presa fácil dos demônios da loucura.

Como bem sublinha Foucault, trata-se de um traçado em que o corpo material se torna imagem e seus contornos carregam valores morais e históricos.  

« Este corpo interior [...] não é o corpo objetivo que se oferece ao olha r macilento  de uma observação neutralizada ; é o local onde vem se encontrar uma certa maneira de imaginar o corpos, de decifrar seus movimentos internos, e uma certa maneira de nele investir valores morais. “O vir a ser se completa, o trabalho se faz em nível desta percepção ética» (HF, 366)

Cria-se uma imagem das mulheres e do feminino e esta ressurge em outros momentos, com alcance e limites diversos.

A reaparição do mesmo tipo de enunciados médicos, em outra ordem discursiva, reforça um imaginário social onde a moral e o poder definem o ser das mulheres a partir de um conceito historicamente construído do corpo feminino. Este é o acontecimento discursivo foucaultiano que cria, de fato, o solo sobre o qual se apóia.

A loucura que habitaria o corpo das mulheres, cujo pequeno cérebro seria dominado pelo útero, exprime desta maneira, sua desordem interior, sua ausência de razão. Seu destino biológico está traçado: atreladas a um corpo obscuro que as comanda, tomadas pelo vácuo da razão tornam-se apenas matrizes para a reprodução do masculino. De preferência.

Entretanto, se a loucura habita os corpos das mulheres, cuja única função seria a de procriar, a reprodução não seria ela mesma uma forma de insanidade? A explosão demográfica, as crianças abandonadas, a mortalidade infantil não estariam  ligadas à loucura inconsiderada da apropriação / utilização dos corpos das mulheres?

A nau dos insensatos não seria composta por estas mulheres que  adotam o destino biológico  de procriadoras e que, de fato, as exclui do mundo do racional e dos poderes sociais?. Que loucura é esta que as dobra e assujeita às normas que não agem senão para melhor inferiorizá-las?

Seu périplo seria a viagem simbólica de uma busca de liberdade? Ou apenas a “imagem de seu destino ou de sua verdade”, como diria Foucault. (Foucault HF:22) ?

Simbólica ou não, no imaginário social, a Nau das Insensatas é a das desatinadas, mulheres cuja essência seria marcada pelo desequilíbrio, a perturbação, a indisposição, a alienação, o oposto do masculino. Marcadas pelo assujeitamento, a ele coagidas social ou moralmente.

Da desrazão social e representacional das mulheres, portanto, resultam todas as culpas, desde o pecado original até a malformação ou a morte dos nascituros, passando pela força dos íncubos maléficos, portadoras da irresistível luxúria, da sedução à qual atraem os pobres desavisados. É assim que a loucura presente na definição do ser mulher faz dela alvo, presa, vítima, objeto de controle, de dominação e, sobretudo, de um desejo irrefreável, justificativa de todas as exclusões e violências. 

Assim, incapaz de ultrapassar o estado da « natureza » o feminino não atingiria o nível de consciência definido pela razão, pois estaria obscurecido pela espessura de um corpo saturado de hormônios e de caprichos. Daí a necessidade moral do domínio e do controle para prevenir todo e qualquer “louco” desregramento, como, por exemplo, recusar seu destino biológico, resistir à norma e à restrição física e social.

Os corpos das mulheres tornam-se o domínio preferido dos médicos que vão explicar analisar e, sobretudo determinar seus limites e suas possibilidades. Pois os corpos das mulheres, considerados o lócus da desordem e do caos encontram uma aparência de razão quando cumprem seu destino: a reprodução. Mas não é A razão, lócus de verdade. É uma razão prática, “natural, intuitiva, que não atinge o nível da consciência, da lógica, do pensamento abstrato, da transcendência..

A menopausa marca o fim da vida útil das mulheres, pobres mecanismos enferrujados, fora de uso, fora do mercado da sedução, do casamento e da procriação. Aliás, atualmente o que é o discurso sobre a TPM senão a re-significação da histerização dos corpos das mulheres?

A loucura não reside no assujeitamento a esta ingerência e a estes diagnósticos sobre seus corpos sem detectar neles as manobras do poder que aí se abrigam? A Nau das Insensatas continua a vogar em que direção?

 Pois os corpos das mulheres, considerados o lócus da desordem e do caos encontram uma aparência de razão quando cumprem seu destino: a reprodução. Mas não é A razão, lócus de verdade. É uma razão prática, “natural”, intuitiva, que não atinge o nível da consciência, da lógica, do pensamento abstrato, da transcendência..

Quando Foucault  discorre sobre os loucos em determinados períodos poderia estar falando das mulheres, por volta dos século XVI e ainda hoje, em determinados lugares/países que desqualificam as mulheres nas lides públicas:

“Acontece que sua palavra é considerada nula e sem propósito, não tendo verdade ou importância, não podendo testemunhar em justiça, nem autenticar um ato ou um contrato [...]” (OD, 12-13).

Da História da Loucura, que aqui nos inspira,  retenho um dentre seus numerosos pontos expressivos: a descontinuidade dos objetos. Assim,  vê-se  que a significação da loucura depende da dêixis discursiva na qual se insere. Isto é, a loucura não percorre a continuidade do tempo e da história, atacando certos indivíduos como uma doença. A significação da loucura enquanto desrazão se dá na entronização da razão como árbitro de todas as significações, caminho único de todas as verdades do humano , sobre o humano e sobre o mundo. Se a razão impõe a idéia da continuidade e da evolução nas correntes majoritárias da história, Foucault desfaz esta “verdade”, da corrente causa/efeito, em movimentos plurais de resignificação:

Diz ele, por exemplo :

« Fato curioso a constatar : é sob a influencia do mundo da internação tal como se construiu no século XVII que a doença venérea se destacou, em uma certa medida, de seu contexto médico e que é integrada, ao lado da loucura, em um espaço moral de exclusão.”»(21)

É, portanto em grandes movimentos de mudança da episteme que se transformam as significações e o imaginário social, dando lugar a outras problemáticas, outras representações e outras práticas sociais.

Mas diante desta mudança de perspectiva, Foucault ele mesmo é acusado de insensatez quando se sentem abalados  os especialistas da razão , certos de suas verdades. Entretanto, a loucura é crer que existe uma verdade profunda, escondida, a ser detectada pelas análises  dos fatos. Quem escolhe os fatos importantes para a história do humano? A razão ou a louca pretensão de enunciar a verdade sobre o mundo

A loucura, porém não é um objeto estável que caminha na história sob diferentes roupagens, como explicita Foucault. A significação da loucura enquanto desrazão se dá na entronização da razão como árbitro de todas as significações, caminho único de todas as verdades do humano, sobre o humano e sobre o mundo.

 E se a razão é lócus do masculino e da verdade, a desrazão e a loucura passam a compor a imagem do feminino, do diferente. Histórica, portanto, fundada em aspectos morais e na criação de um poder baseado no sexo biológico, e a genealogia desta imagem é tarefa para as historiadoras feministas. Se a razão impõe a idéia da continuidade e da evolução nas correntes majoritárias da história, Foucault desfaz esta “verdade”, da evolução de um mesmo objeto ao longo do tempo.

Pois a verdade do “sempre foi assim” é uma construção histórica da razão.

É, portanto em grandes movimentos de mudança da episteme que se transformam as significações e o imaginário social, dando lugar a outras problemáticas, outras representações e outras práticas sociais. Assim como hoje vivemos momentos de transformação de representações de feminino e masculino, na história do humano nada foi sempre igual.

Mas diante desta mudança de perspectiva, Foucault ele mesmo é acusado de insensatez quando se sentem abalados os especialistas da razão, certos de suas verdades. Entretanto, a loucura não seria crer que existe uma verdade profunda, escondida, a ser detectada pelas análises dos fatos? Quem escolhe os fatos importantes para a história do humano? A razão ou a louca pretensão de enunciar a verdade sobre o mundo?

 A noção de internamento geral em Foucault, em meu entender, é um farol que ilumina caminhos e alerta sobre os escolhos dos regimes de verdade, das profundezas abissais que escondem a vontade de poder sob os discursos da razão.

Nesta ótica, aproximo aqui este internamento geral dos desempregados, vagabundos, errantes, doentes venéreos, ora denominados loucos sobre os quais discorre Foucault à construção do feminino e sua definição, dotado de uma natureza cuja fragilidade mental  exigiria o controle e a vigilância masculina. Este é o internamento geral do feminino, em um asilo representacional, cuja imagem é a clausura do destino biológico e da inferioridade natural.

E este movimento de internamento é múltiplo, em práticas diversas e resignificações constantes. Resta, entretanto, o fenômeno do acontecimento foucaultiano: o fato de sua reaparição.

Mulheres foram internadas nos asilos psiquiátricos, por exemplo, no século XVII na  Pitié-Salpétrière  de Paris por problemas de comportamento (alain corbin); da mesma forma que no Brasil, no início do século XX, no Juqueri, em São Paulo (M. Clementina) pois não se portavam conforme a imagem de uma verdadeira mulher, esposa e mãe.

 É a iteração discursiva das definições das mulheres que re-instalam práticas oriundas de uma razão toda poderosa. É a vontade de poder que orienta a descrição das doenças psicológicas femininas e determina seu internamento, em clausuras múltiplas.

Toda veleidade de independência, toda tentativa de escapar ao destino biológico, às tarefas costumeiras e ao assujeitamento eram punidas com o internamento. As indômitas são as malditas sociais. Os homens da família internam as mulheres sob os mais variados pretextos com a cumplicidade dos médicos que as diagnosticam como loucas, pois afinal, por via das dúvidas... Quem sabe? Na época clássica, Foucault sublinha que:

«  Depravação, prodigalidade, ligação inconfessável, casamentos vergonhosos contam entre os motivos mais numerosos do internamento. Este poder de repressão que não era exatamente nem da justiça, nem da religião [...] não representa no fundo o arbítrio do despotismo, mas o caráter rigoroso que passam a ter as exigências familiares. O internamento foi colocado pela monarquia absoluta ao dispor da família burguesa.  (HF 125)

É a força e a defesa da norma, de um patriarcado que se instala e protege seus territórios.

A desrazão se alia ao pecado e à imoralidade para designar a “natureza” das mulheres. Internadas na velhice, loucas, queimadas como bruxas, o Ocidente traça um retrato das mulheres que se incrusta e reaparece enquanto acontecimento discursivo em diferentes momentos da história, pois, como sublinha Foucault,

“ O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de seu retorno”. (OD, 1971 : 28)

As mulheres são internadas fisicamente ao desobedecer à norma ou ao rebelar-se contra os modelos que lhe são impostos. São internadas também em uma representação social, cujos muros e cadeias são tão espessos quanto os de uma prisão ou asilo.

Quem me nomeia « louca » invoca a norma. E a norma sofre as flutuações inevitáveis da temporalidade. Pois se razão existe, é a razão histórica que se manifesta, ou seja, a incontornável historicidade que compõe todas as formações sociais.

 Portanto, na descontinuidade cara à Foucault, quais são as normas que instituem a razão e esculpem as representações sociais do feminino e do masculino em um discurso de “diferença” e hierarquia?

No passado e no presente, a quem interessa a criação de certos modelos identitários, quem desfruta da construção de uma alteridade feminina cuja “diferença”  reforça a imagem, o poder, a razão de seu referente?

A loucura feminina é de fato uma condenação implacável de todo desvio feito às regras, às condutas pré-fixadas, aos laços de servidão, de desrazão imposta, desenhados pelos contornos de um corpo em desordem simbólica.Histéricas, nervosas, instáveis, malditas, certos epítetos acompanham a vida de toda mulher, marcada pela contradição de seu ser, no imaginário patriarcal: corpos perturbados pelos hormônios em ebulição, cuja única tranqüilidade se encontra na gravidez.

 Eis um novo ser que se destaca, um objeto histórico identificado por um sexo biológico/ social dicotômico, entre norma e desrazão. As normas, o casamento, a heterossexualidade compulsória fazem parte do arsenal que definem o “idiotismo”, a desrazão feminina:

Diz Foucault,

« O asilo reduzirá as diferenças, reprimirá os vícios, apagará as irregularidades. Denunciará tudo que se opõe às virtudes essenciais da sociedade : o celibato – o número de jovens marcadas de idiotismo é 7 vezes maior que o número de mulheres casadas[...] quanto à demência, a proporção é de duas a quatro vezes; pode-se portanto presumir que o casamento para as mulheres é uma espécie de preservativo contra as duas espécies de alienação as mais incorrigíveis e quase sempre incuráveis. » (HF, 612)

A construção desta imagem do feminino se faz em diferentes momentos, que por intermédio da “razão” se transforma em verdade absoluta sobre as mulheres: elas passam a ser assim.

Pode-se identificar já em torno do século XIII um movimento de exclusão das mulheres com a constituição das universidades, que começava a se mostrar como domínio específico da construção laica do saber. À mesma época, a luta de Clara de Assis contra a dominação do clero sobre a ordem que ela fundara e o confinamento em uma clausura estrita ilustra muito bem as tentativas tentaculares de afastar as mulheres do espaço público, religioso ou laico.

Nos séculos XIV e XV a Nau das Loucas carrega também as bruxas, pois os corpos indomados tornam-se habitação do demônio, súcubos malditos que sugam a energia do masculino pela  esperteza de seu sexo.  As mulheres que recusam a norma e tornam-se cúmplices do demônio, perversas criaturas que tecem sortilégios para subverter a ordem divina, a ordem do pai, do poder cujo fundamento é a aliança do homem com o homem.

Assegurados pela palavra de deus, dos mandamentos, dos livros santos, julgam e cospem pecados sobre as mulheres para melhor defender seus privilégio com a ferocidade das fogueiras.

O “martelo das feiticeiras”, Malleus Malleficarum, livro de cabeceira dos confessores, publicado em 1486 é uma obra prima de má fé para acusar as mulheres de todo o mal do mundo. Finalmente, não estavam elas na origem do pecado original? É de fato um manual para encontrar a feiticeira em todas as mulheres.

Foucault sublinha a histerização dos corpos das mulheres no século XVIII:

«Histerização do corpo da mulher : triplo processo pelo qual o corpos da mulher é analisado – qualificado e desqualificado – como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo qual o corpo é integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo qual enfim é colocado em comunicação orgânica com o corpo social ( do qual deve assegurar a fecundidade regulada) o espaço familiar ( do qual é um elemento substancial e funcional) e a vida das crianças ( que deve produzir e garantir, por uma responsabilidade biológica- moral que dura todo o período da educação); a Mãe, com sua imagem em negativo que é a ‘mulher nervosa’ constitui a forma mais visível da histerização”. (HS 1, :137)

O século XIX realiza o internamento geral das mulheres no Ocidente, sem muros, sem asilo, sem prisão: é um internamento na exclusão do espaço público e dos direitos cívicos, num conjunto de leis que as marcam do selo da fraqueza, da ignorância, das proibições mais diversas : de trabalhar, de estudar, de sair, de escrever, de se expressar, enfim.

Se o internamento geral das mulheres no espaço privado e no modelo da « verdadeira mulher » constrói e é construído pela norma representacional, a reclusão individual, por sua vez, remete à punição, ao aprisionamento  físico das mulheres que agem ou se manifestam contra ela: é o domínio da lei que  garante o domínio social dos corpos e da vontade das mulheres.

O debate atual sobre o aborto é uma réplica deste movimento, pois a gravidez indesejada é uma prisão que confina as mulheres a seus corpos.

Entretanto, este movimento que abraça vários séculos se faz na diversidade temporal, nada se passa em um único movimento. Se na França, por exemplo, as mulheres perdem o direito ao trono, na Inglaterra, na Bélgica, na Holanda, elas o conservam até hoje.Assim, a crença em uma evolução do status das mulheres ao longo do tempo não se sustenta. A história que nos ensina Foucault é feita de rupturas e não de encadeamentos e o social estrutura as relações humanas na diversidade.

A idéia de uma ‘natureza’ feminina não é senão uma invenção do poder. Nesta perspectiva, a própria divisão do humano em dois sexos pode ser colocada em questão, na medida em que todo tipo de relação humana é possível.

Mas na definição que se faz, aos poucos, do humano em feminino e masculino, a loucura é evocada para negar às mulheres um local de fala, um local de autoridade. Pois seus corpos abrigam a desordem e exigem, por conseguinte, o controle.

Fora das normas, as rebeldes que reivindicam direitos civis e políticos, o direito elementar sobre seus próprios corpos são mulheres banidas das famílias, da sociedade, mal vistas e mal vindas. Toda ação contestatória ou autônoma é considerada imoral ou irracional e o tratamento é, de fato, punição.

As análises de Foucault mostram o alcance destas estratégias, na época que ele estuda:

 «Em  Bethléem, as loucas agitadas eram acorrentadas pelos tornozelos à parede de uma longa galeria . Em um outro hospital, em  Bethnal Green , uma mulher estava sujeita a violentas crises de excitação; foi colocada então num estábulo para porcos, pés e mão atados; passada a crise, era amarrada em seu leito, protegida somente por uma coberta. »  (HF, 196)

Assim, qualquer veleidade de protesto, de recusa, de contestação era logo taxado de crise de loucura ou de excitação e o resultado é a violência extrema das correntes, tal escravo fugitivo ou condenado pela justiça.

Elas partilham uma taxionomia do absurdo, pois renegam sua “natureza”, condenadas pela enunciação de seu diagnóstico: todos seus gestos e palavras são mostra de loucura, de desrazão. Loucas, histéricas, lésbicas, estas mulheres perderam seu lugar no social para nunca mais ganhar sua liberdade. E por reivindicá-la.

Extravagantes, serão punidas, para além do internamento, pelo ostracismo, pelos olhares reprovadores, monstros que renegam sua « natureza » essencial. Ou então, são simplesmente velhas, fora do mercado do casamento e da procriação, inúteis, portanto, são afastadas para melhor serem esquecidas. Quer seja hoje nos asilos de velhos ou casas de repouso, o envelhecimento dos corpos femininos as colocam fora do social, presas de desrazão.:

Foucault encontra em 1690,

«  [...]20 mulheres caducas em  Saint-Paul ;na Madeleine encontram-se   91 «mulheres velhas doentes ou recaídas na infância; em   Sainte-Geneviève 80 «velhas fiandeiras»;[...]em Saint-Hilaire,  80 mulheres consideradas como crianças, em  Sainte-Catherine 69 «inocentes ou disformes» ; as loucas são divididas entre Sainte-Elizabeth, Sainte-Jeanne em celas, segundo o grau de ´espírito fraco´, loucura intermitente ou loucas violentas. Enfim, 22 ´incorrigíveis´ foram colocadas, por esta razão, na Correção » (HF, 113-114)

Deformidades, velhice, mulheres aspirando à independência, todo desvio do social produtivo ou « natural » é condenado à prisão, à clausura, ao afastamento do corpo social. Mas de fato, esta clausura é um longo discurso sobre as estruturas de poder que regem tal formação social.

O que é a razão, afinal?  Não é ela, como a loucura, uma significação temporal, histórica? As estruturas sociais não são elas também irracionais quando se estabelecem sobre a inferiorização de metade da humanidade?

A loucura está no cerne da razão e de suas “verdades”, da violência, da destruição, da desigualdade que instauram.

 Prefiro a bela loucura destas mulheres indômitas e “malditas” tais como Nellie Bly, jornalista, que em 1887 se internou num manicômio para denunciar as condições nas quais eram encerradas as mulheres. Esta é a lógica da desrazão, a coragem de enfrentar  o risco,  de quebrar as cadeias da  taxionomia do humano cujo mote é  o cultivo da “razão” para melhor criar  estruturas de poder. 

É assim que na ordem do discurso do pai o “homem” é o universal que apaga descaradamente as mulheres da história, da ação, do político. Oi necessário Simone de Beauvoir por acrescer a esta questão “ o que é uma mulher”?

Construída no singular, “ a mulher” faz desaparecer o colorido e as potencialidades das mulheres em sua diversidade. Este singular encurrala o feminino nos limites do corpo, de um útero que passará a definir seu ser.

E assim se criou “ a mulher”, em práticas concretas de exclusão, objeto funcional e utilizável, sujeito oculto sob o implacável discurso racional sobre a “ natureza” humana.

Entretanto, existem aquelas que recusam a antropologia do unversal, as práticas discursivas e não discursivas que fazem do corpo uma fatalidade. Aquelas que quebram as norma , destoem as regras, refutam o governo do mesmo e o assujeitamento à figura da outra.

Quem são elas?

Somo nós, aqui e agora, cartógrafas de nosso destino, criamos o solo sobre o qual não se espalham os ruídos da razão, e nele traçamos os caminhos de uma desrazão que não é loucura, mas espaços móveis de transfor4mação, sinônimo de liberdade.