Informação é poder: feminismos quebram barreiras

mesa redonda, Florianópolis, 2010

Os feminismos tem uma dificuldade histórica para divulgar sua produção do conhecimento, seus objetivos, suas estratégias. Dificuldades de subvenções, trabalho voluntário, a maior parte das publicações feministas tem sofrido estes percalços. Na França dos anos 1970, um dos centros  de  mais intenso debate à época, o número de publicações foi enorme, de pouca duração porém. Mas as discussões teóricas ali contidas em, por exemplo “ Questions féministes” “Pénélopes”, “ Les cahiers do Grief”, foram de tal importância, que conservam ainda o frescor da descoberta e da conscientização.

Christine Delphy, por exemplo,  apontava para o  “modo de produção doméstico”, forma de exploração da mão de obra feminina, não remunerada e desconsiderada enquanto trabalho. Não está à margem do capitalismo, faz dele parte constitutiva.

Colette Guillaumin,  discute a apropriação dos corpos e do trabalho feminino, que resultam em uma ampla naturalização de relações de poder erigida em hierarquia. Por sua vez, Nicole Claude Mathieu discute o processo de diferenciação dos sexos, desconstruindo a incontornável “diferença dos sexos” causa e justificação da dominação do feminino.

Monique Wittig, ainda, destaca a construção do sexo social, de um feminino como diferença de um referente geral: o masculino. E nesta ótica sublinha  denuncia o  “contrato heterossexual”, a “ pensée straight” que identifica a heterossexualidade e a procriação como tarefa incontornável no social, como raiz da construção desigual do sexo social. Causou espanto, à época afirmando que “uma lesbiana não é uma mulher” pois não subscreve o contrato heterossexual, instituidor da “diferença dos sexos” e de suas desigualdades. Todas elas publicaram suas reflexões em “Questions féministes”. Aliás, Considero que a feminista que não subscreve o contrato sexual também não é uma mulher, já que sua definição é nele fundada.

Simone de Beauvoir fazia parte também do corpo editorial desta revista e sua questão não cessa de reverberar em estudos feministas e de gênero: o que é uma mulher?

As revistas “Signs”, “Feminist Studies”, “Feminist Studies, Critical Studies” e muitas outras, inglesas e americanas,no Brasil “Nós mulheres” e “ mulherio” contribuíram para uma mudança na face do feminismo, publicando textos de chicanas, lesbianas, negras. Suas reflexões cindiram a face de um feminismo único, que reafirmava a categoria “mulher” reagrupando falaciosamente  toda a diversidade das experiência do se constituir o feminino em diferentes práticas sociais.

Publicações feministas, deste modo, tem sido,  não só  instigadoras da crítica ao “natural”, crítica a um social dividido em hierarquias e poder do masculino sobre o feminino, mas constituem igualmente a memória precisa do desenvolvimento da epistemologia feminista contemporânea e seu arquivo. Com dificuldades, entretanto, de divulgação, pouco ou nada utilizadas nos meios acadêmicos.

Onde se encontram os textos feministas , textos que produzem conhecimento e transformação, senão nas publicações de livros e revistas feministas?  Textos feministas não fazem best sellers, as editoras são precavidas, de olho no mercado. Apenas as editoras das universidades ou que contam com subvenções, como “les editions du remue ménage” de Montreal , arriscam-se. Ou a editora das mulheres, de Florianópolis, que  insiste em suas publicações feministas por pura teimosia, para nosso deleite.

A internet tem permitido às publicações feministas uma maior visibilidade. Antes da utilização da rede, a produção de conhecimento sobre as mulheres encontrava-se ilhada, confinada a pequenos círculos feministas, a uma distribuição pelo correio, ou confinada em pequenas livrarias alternativas. Hoje se pode acessar milhares de textos, produzidos por mulheres sobre mulheres em todos os campos da ciência.

 A palavra feminista, porém, muitas vezes vem sendo substituída por “gênero” que permite a expansão de estudos acadêmicos sem o conteúdo político contido na palavra feminista. Utilizar “gênero” equivale a uma capa de proteção contra as injúrias, as desqualificações feitas aos feminismos.

Porque feminista, se as mulheres já tem tudo que querem, até ajuda doméstica dos homens, é pergunta corrente . Porque feminista se a palavra é associada a lesbianismo, à recusa radical da dominação masculina? Porque feminista, se posso nomear meus estudos de femininos?

A adoção da categoria gênero permite a crítica ao patriarcado, sem entretanto, nomeá-lo. Foi extremamente útil no momento de sua gênese, nos anos 1970, para desconstruir a cisão “natureza/cultura”. Entretanto, utilizada de maneira a-crítica, como um conteúdo pré-existente às formações sociais, retoma a natureza essencializada dos sexos apenas em outro patamar, sem procurar perceber os processos de criação de seres diferenciados, que são fundamentalmente sociais.

Este outro nível de análise critica a desigualdade persistente nas relações sociais , fundada  no sexo biológico, mas não procura desfazer os próprios cânones de construção do feminino e do masculino. Estes aparecem como atributos específicos, dando lugar a uma retomada das delimitações de ação e de papéis sociais em função da genitália considerada.

Analisar uma situação dada de hierarquia de gênero pode contribuir a uma conscientização, mas não acresce à argumentação necessária para se perceber que aquilo que é construído  pode ser desconstruído. É neste sentido que as feministas francesas dos anos 70/80 empregam a noção de “sexo social”, destacando assim o processo de construção da diferença de sexos.

Nunca é demais enfatizar que não há diferença de sexos com a importância que lhe é dada no social, sem um aparato valorativo e histórico, específico a cada formação social. Ou seja, fora de práticas de gênero, de práticas sociais que instituem papéis e delimitações em função do biológico.

É interessante notar que a universalização da diferença de sexos como o laço primário do social esquece de apontar que os valores contidos em uma sociedade constroem os discursos baseados em representações sociais. E a naturalização da “diferença” esquece as similitudes e funda estruturas de hierarquia e dominação desde sempre e para sempre.

Insisto, enquanto historiadora, na pesquisa sobre sociedades que não fundariam suas relações sociais sobre a genitália de sua população.  Chamo-a de pesquisa da história  do possível, pois aplicamos no trabalho acadêmico as questões levantadas pelas teorias feministas.  Neste sentido, a categoria “Sexo social”  apóia esta perspectiva, pois afasta a naturalização contida em “gênero”; aponta para o aprendizado social dos comportamentos sexuais, que se apresentam obrigatoriamente sob o signo da reprodução, sob o selo da heterossexualidade, marca da subordinação das mulheres enquanto “segundo sexo”, “sexo frágil”.

Os próprios feminismos se enredam na categoria gênero, sem perceber muitas vezes a repetição que esta faz do mesmo, do idêntico, de uma relação social imutável, o que seria por definição, antinômico às propostas feministas. Se é social, não pode ser estático, pois toda relação é móvel em suas complexidades. Aliás, a tarefa de transformá-la em lei natural tem sido retomada ad nauseam pela filosofia, pelo positivismo, pelos ismos que disfarçam uma relação de poder sob um discurso de natureza, de religião, de biologismo, de ciência.

Assim,  em meu entender, as publicações feministas devem a si mesma uma perspectiva teórica sempre presente, sempre crítica,que aponte para a necessidade da radicalização, no sentido da busca de raízes para o que, no social, ainda é tomado como natural.

Os feminismos tem em comum o desejo de transformar a face do mundo, mudar as relações sociais, em traçados múltiplos, delas extirpando a violência, o destino biológico infligido a certas categorias do humano, distinguindo-as pelo sexo, pela raça, pelo uso de um certo tipo de lógica normativa.

Falta, entretanto,  a estes, a meu ver, um eixo de solidariedade , que reforce as perspectivas feministas, que expanda as possibilidades de suas análises .

O ranço advindo das estruturas acadêmicas patriarcais faz com que , muitas vezes, haja uma ânsia competitiva entre as publicações. Esta é uma síndrome viril, da qual podemos declinar. Feministas que somos, desejamos abolir um universo de binarismos,  dualidades, desafetos, rivalidades   que prejudiquem um objetivo maior: transformar, modificar, inventar novas relações humanas, abrir os portais de novos horizontes, de perspectivas amplas que não incluam  hierarquias.

Nunca poderemos mudar se não começarmos por nossos  próprios caminhos.  Deste modo, acolhendo a pluralidade de estratégias e análises, trabalhando em função de desenvolver, expandir a conscientização e a solidariedade, as publicações feministas podem e vem quebrando a univocidade de uma pretensa verdade sobre o ser, sobre o humano.

Os enunciados que circulam nas formações sociais com valor de verdade são históricos e assim construídos; a epistemologia feministas mostra seus meandros , os recuos estratégicos e os avanços da dominação masculino.

Ao mostrar a construção histórica da diferença de sexos, os feminismos quebram a naturalização dos corpos em sexo social, em divisões de trabalho e de posição a partir do biológico. E as publicações feministas informam e expõem argumentações e análises neste sentido.

Esta é uma tarefa constante, trabalho de Sísifo , que sem descanso, retoma sua maldição. Pois a naturalização da pretensa “diferença dos sexos” “da guerra dos sexos” se renova a cada dia, na mídia, nos discursos descabelados da religião, seja ela qual for. “A mulher tem que agüentar tudo” disse recentemente um pastor evangélico, e este tipo de frase cristaliza representações sociais que começaram apenas a se desfazer. A da dominação masculino referendada pela ordem do pai, do divino, do transcendente. Afinal, as mulheres ainda não aprenderam qual é seu lugar, na cozinha, na cama, no silencio?

Neste sentido, as publicações feministas são diálogo, trazem vozes, razões e argumentações, trazem  uma consciência que às vezes está apenas delineada, principalmente nas jovens mulheres que experimentam uma certa liberdade, mas suspeitam de seu alcance e de sua durabilidade. Ser feminista é estar em alerta, atenta aos assaltos à dignidade, à cidadania, às imagens, às representações sociais reafirmadas e reforçadas por discursos de autoridade ou de convencimento.

Porque as mulheres se sentem obrigadas à procriação? Foram para isto convencidas, assujeitadas a uma imagem e um destino, fora do qual não se encaixam nem no social, nem no humano. Onde se encontra este tipo de reflexão? Nas publicações feministas, pontas de lança da crítica do social, da crítica do poder e das hierarquias apresentadas como leis naturais, em destinos incontornáveis.

Neste sentido, em meu entender, há uma grande diferença entre publicações feministas e publicações sobre as mulheres, tal como história das mulheres, ou narrativas sócio-antropológicas referentes às relações sociais de sexo, que pressupõem um binarismo e hierarquizado e natural

Publicações feministas contém sempre  rebeldia, subversão, radicalidade, desconstrução de normatividades e aparências. Porque as mulheres desapareceram da história, da arte, da filosofia, da música, senão por um trabalho constante de apagamento e destruição? Mulheres rebeldes são bruxas, mulheres intelectuais são feias e carecas, ( ao pensar caem os cabelos), mulheres cidadãs são, de fato, homens.

Trazer questões, suscitar reflexões, mostrar que relação social é construção, e toda construção é histórica, não natural: estas são tarefas de publicações feministas. Não existem leis naturais no social, não existem destinos pré-determinados pelo corpo, não existem universais ligados à biologia, pois os corpos e sexos se tornam mulheres ou homens no exercício das práticas sociais. Neste sentido, publicações feministas na internet são ponta de lança nos deslocamentos e diversidades, mostrando realidades e estratégias múltiplas de transformação das relações sociais. Não importa apenas o que se passa a nosso lado, mas todo o processo de construção da diferença sexual no mundo faz parte de nosso campo de interesse e de trabalho de modificação. As campanhas na internet contra a lapidação, contra aprisionamentos injustos de mulheres tem mostrado sua eficácia.

Sou editora e webmaster de Labrys, estudos feministas./ études féministes, revista pioneira em sua publicação exclusiva on line. É uma revista interdisciplinar, internacional, multilingüe. Está no ar desde 2002, seu próximo número é o 18. De acesso gratuito, disponibiliza dezenas de artigos  a todas que se dispuserem a um click, a todas que pressentirem a importância da produção feminista em todos os campos do saber. Somos apenas uma, no número incontável de publicações feministas hoje na internet. E esperamos estar contribuindo, de alguma forma, com a transformação deste pesado e violento social hierarquizado em homem/ mulher. Convido-as a nos visitarem e espero que tenham uma boa leitura.