Feminismo e prática sexuais: quais os desafios?

                                                           

 Resumo

 

Os paradigmas do gênero são parte constituinte da homogeneização da realidade social e do caráter de evidência que recobre a erotização do sistema sexo/gênero no modelo da heterossexualidade. Mas mesmo neste fim de milênio,  questioná-lo é problemático: face à  diferença física dos caracteres sexuais entre fêmea e macho e  à força das representações socias que demandam a correspondência exata entre gênero social e sexo biológico, a multiplicidade do desejo é obscurecida e domesticada. Mas a existência deste plural estende o espaço discursivo e neste sentido, o feminismo encontra-se com o lesbianismo nesta problemática que analisa a noção de sexo biológico e das prática sexuais no movimento contínuo de  uma identidade múltipla e nômade.

Abstract

FEMINISM AND SEXUAL PRACTICES : WHAT ARE THE ISSUES !

Gender paradigms are a constitutive part of the homogeneity of social reality and of the character of evidence that covers all the erotization of the sex-gender system, within the heterosexual mould. Even at the beginning of this millenium, questionning heterosexuality is a problematic issue. Considering the physical unlikeness between female and male characteristics and the power of social representations  that seek exact gender-sex correspondence, desire multiplicity proves to be overshadowed and above all, domesticated. But the very existence of this multiplicity expands the discursive space and, in this sense, feminism and lesbianism meet on a common ground where the problematics of the biological sex fixed notion and sexual practices are analyzed within the quicksands of a multiple and nomadic identity.

 

 

Résumé

Les paradigmes du genre sont partie intégrante de l’homogénéisation de la réalité sociale et du caractère d’évidence qui recouvre l’érotisation du système sexe/genre dans le moule de l’hétérosexualité. Mais même en cette fin de millénaire, la mise en question de l’hétérosexualité fait problème : face à la dissemblance physique des caractères sexuels entre femelle et mâle et à la force des représentations sociales dans la correspondance exacte genre/sexe, la multiplicité du désir se trouve obscurcie et surtout domestiquée. Mais l’’ existence de ce pluriel élargit l’espace discursif e dans ce sens, le féminisme rencontre le lesbianisme  sur le terrain commun de la problématique qui jaillit de la fixité de la notion du sexe biologique et des pratiques sexuelles sur le sable mouvant d’une identité  disséminée, multiple et nomade

 

 

O que é o feminismo? Em que solo florescem as definições , quais são as redes de poder que compõem as noções de feminismo , de mulher e de identidade sexual?

O feminismo contemporâneo desabrocha no meio do século XX no Ocidente como uma poderosa corrente, que regrupa análises e movimentos sociais em torno da denúncia da opressão do patriarcado, ponto estratégico comum à todas as mulheres, para romper um quadro multisecular de dominação. Com efeito, como nota de Lauretis, o  feminismo começa quando os textos feministas, escritos por mulheres aparecem ao mesmo tempo que os movimentos sociais de consciência feminista.[1] Mas este feminismo unitário, universalista cede, aos poucos, lugar aos “feminismos”que tentam responder às especificidades e às variáveis  da experiência das mulheres no social.

Esta nova face do feminismo, a pluralidade, estimulou o refinamento das análises teóricas que desconstróem os moldes unívocos, dos quais, entre outros, a coerência da identidade marcada pela homologia entre o sexo biológioco e o gênero social.

Com OS feminismos, desenvolvem-se  teoriaS feministaS, cujos debates e contradições são a demonstração de seu dinamismo; um trabalho de meta-crítica se interroga sobre as categorias de análise utilisadas nos discursos feministas e desvela os fundamentos de uma reflexão fortemente marcada pelo binarismo da representação que apreende o mundo. As múltiplas dimensões da constituição do sujeito e do social aí são evocadas: a linguagem , o inconsciente, o gênero, o processo de subjetivação, os sistemas simbólicos, as constelações de sentido, a memória interdiscursiva, a produção do imaginário, a pesada materialidade das práticas e da experiência sexuada.

Para chegar a este ponto, as teorias feministas se debruçaram sobre suas condições de inserção no discurso social, sobre os quadros de pensamento e de representações sociais que limitam o alcance de seu olhar. Esta tarefa se insere em uma das proposições mais fecundas de Foucualt [2] : a inversão das evidências, em busca da vontade de verdade que as sustentam, das redes de poder estabelecidas na ordem da “verdade”.

O aprofundamento do debate conduziu assim à recusa dos moldes identitários unívocos definidores dos limites de gênero: além do gênero e da diferença sexual, o sexo e a sexualidade são deslocados de sua confortável situação de “evidência natural”.

Para de Lauretis, a teoria crítica feminista vê a luz quando

“[...] torna-se consciente de si mesma e busca as raízes desta consciência, bem como de uma cumplicidade possível com as ideologias, seus fins e pressupostos fundamentais, suas formas heterogêneas de escrita e interpretação, as práticas que são suas e das quais emerge.” [3] 

O questionamento do sexo biológico, da sexualidade  e das práticas sexuais tem sido  um terreno explorado pelo feminismo na medida em que a cartografia identitária não recupera senão  traços, sobre a areia movediça de uma identidade disseminada, múltipla e constantemente modificada: eu não sou jamais a mesma ao atravessar os dias .

 Questiona-se assim as relações binárias de sexo, pondo em relevo a heterossesxualidade, enquanto mecanismo de sujeição e dominação do masculino sobre o feminino, num mundo de representações  e auto-representação. Mas no questionamento da heterossexualidade há a intersecção de outras formas de relacionamento, amoroso ou sexual, de práticas sexuais múltiplas,  entre os quais pretendo observar aqui,   o lesbianismo. De fato, no senso comum, feminismo e lesbianismo são quase sinônimos, e as práticas sexuais que definiriam o lesbianismo referem-se ao relacionamento entre mulheres, objeto  do feminismo.

Como se chega a tais reflexões?

Se voltamos o olhar, hoje, para os caminhos plurais do feminismo detectamos movimentos de cruzamento, de oposição ou de imbricação com o lesbianismo. Classificadas como radicais, separatistas, recusando os homens aos mesmo tempo que a dominação masculina, as lesbianas sempre atemorizaram as feministas, num mêdo despertado pelas imagens forjadas no cadinho dos enunciados do senso comum, cuja repetição criava a realidade: machonas, viragos, feiosas, mal amadas. Rebotalho da natureza, desprezadas ou detestadas pelos homens, mesmo Simone de Beauvoir via as lesbianas como seres inacabados ou irrealizados. Enquanto feminista, como aproximar-se ou trabalhar em conjunto com estes seres marcados, sem se contaminar, sem partilhar as nódoas e os insultos contra “aberrações da natureza”, “imitações de macho”?

A história dos movimentos das mulheres mostra, entretanto, a presença constante das lesbianas nas práticas políticas de reivindicação, tanto quanto nas reflexões teóricas. No calor dos anos 70, viu-se mesmo algumas feministas heterossexuais quase se desculpando da escolha de seu companheiro, diante da avalanche de análises que demonstravam a violência implícita ou explícita da dominação, da apropriação dos corpos e da exploração sexual das mulheres em um mundo patriarcal.[4] .  Como, enquanto feministas, não se sentir cúmplice em uma relação mulher/homem? Esta era a questão.

As lesbianas reivindicavam, então, a construção de uma outra realidade social, com a evacuação do poder e da presença masculina: foram criadas assim comunidades lésbicas nos Estados Unidos e Canadá, principalmente . [5] A “lésbica política” apareceu  à época, figura cujos desejos sexuais não se voltavam necessariamente para outras mulheres, mas que se engajavam em uma luta sem tréguas e sem cumplicidade. [6]  Definição metafórica ou não, para o lesbianismo engajado a sexualidade estava no centro da resistência e as lesbianas eram, antes de mais nada, mulheres, já que inseridas em um social que assim as definia.

Mas neste caminhar, passou-se da identificação da mulher-objeto-apropriação às estratégias da afirmação da diferença e do igualitarismo, cujos objetivos eram, por um lado, a criação de uma “cultura feminina”e por outro, o fim da hierarquia social fundada sobre o sexo.

 

. gênero e experiência plural

A noção de “gênero” aparece, igualmente, para desmascarar a construção social dos papéis feminino/ masculino e enriquece assim a produção acadêmica em todos os domínios das ciências sociais e humanas; a teoria e a prática se imbricam, pois a categoria “gênero”, enquanto instrumento analítico do social, passa a sustentar as práticas políticas dos movimentos das mulheres. Desfaz um primeiro estágio da construção social do feminino/masculino, isto é, apaga a noção de essência, do fundamento intrínseco que supostamente sustentaria a representação de mulheres e homens , designando-lhes papéis sociais segundo sua “natureza”.

Pode-se aí, entretanto, detectar uma espécie de domesticação epistemológica, na medida em que o “gênero”opera na “casa do senhor”, como sublinha de Lauretis. [7]. Seu aspecto relacional obscurece a economia hierárquica e assimétrica da construção dos gêneros; é igualmente operacional no quadro instituído das representações binárias da sociedade e assim naturaliza o que é igualmente uma construção social. Seu alcance subversivo fica, portanto, limitado e isto explica o sucesso dos “Women Studies”, nos países anglófonos, ou dos “Estudos de Gênero”, na América Latina. O perigo de turvar a ordem do discurso e sobretudo, a ordem das representações sociais, é dirimido, pois a divisão polarizada da sociedade não é posta em questão. Eis aí uma “evidência” que permanece sem o menor arranhão.

Os problemas de definição e de identidade recortam a trajetória e a utilização da categoria “gênero”:  o que é finalmente a mulher? O que é o feminino? Como pensar a diversidada da experiência vivida das mulheres em contextos culturais e espaço/temporais diversos? Como pensar a resistência nas estratégias desenvolvidadas contra a opressão em todas suas formas, quando se considera a construção social homogênea dos papéis sexuais? Como encarar a diferença entre as mulheres? Estas questões, que aparecem nos textos teóricos atuais, referem-se à crítica da categoria “gênero” e apelam à uma ultrapassagem de seus limites: neste sentido, as lésbicas, as negras americanas, as mulheres originárias dos países colonizados denunciam uma nova representação hegemônica sob a imagem da mulher branca, rica, heterossexual e abrem assim caminho ao múltiplo.

A raça, a classe, a opção sexual, o formato físico, todas estas variáveis se impõem e determinam uma inflexão na crítica teórica feminista, instalando a diversidade de imagens e de experiências das “mulheres”, após ter desconstruído o mito da natureza “da mulher”. Butler sublinha que “as mulheres”, no plural não é mais um significante estável que ancora o que deve descrever ou representar; ao contrário, “[...] tornou-se um termo perturbador, um local de contestação, uma causa de ansiedade.”[8]  A idéia de um feminismo singular, dotado de estratégias e de discursos unificados, dilui-se assim face ao múltiplo.

A crítica teórica feminista explora, deste modo, suas próprias categorias de análise, tais como o gênero e a diferença sexual, o que lhe permite encadear com a descontrução dos fundamentos epistemológicos, dos pressupostos modeladores dos instrumentos, das formas, das imagens e  representações das quais dispõem os feminismos para a análise do social.

O eccentric subject proposto por Teresa de Lauretis [9] seria o novo sujeito do feminismo, aquele que analisa sua determinação histórica e social, a especificidade de sua deixis discursiva – seu lugar de fala – para desembocar na crítica de seu próprio pensamento. Os discursos feministas iniciam, assim, um movimento contínuo e voluntário de des-alojamento, de des-identificação, que leva em consideração seu quadro epistemológico e sua inserção social, para melhor ultrapassá-los. O eccentric subject cria , desta forma, o solo sobre o qual se apoia e desabrocha. Nesta perspectiva, as teorias feministas se demarcam,  no pensamento contemporâneo, não somente pela atenção que concedem às condições de exterioridade, mas igualmente à suas contradições internas num continuum de crítica/autocrítica.

O pós-modernismo,  denunciando as verdades essenciais, os discursos do “natural”, a existência de um sujeito estável e coerente como artifiícios do poder, encontra-se na démarche feminista, que recusa a idéia de uma “verdade do sexo”, expressa por uma prática sexual diretamente ligada ao sexo biológico. [10]. Pois, como sublinha Foucault, 

“[...] a verdade está ligada de modo circular aos efeitos de poder que cria e que a reproduzem.” [11] É o caso da identificação presumida do gênero/sexo como um fato de natureza unívoco, do qual a heterossexualidade é a marca da norma instituída socialmente.

A identidade não aparece mais como um dado, mas como um processo, que constrói uma forma e faz sentido no interior de um regime de verdade singular: na visão do múltiplo, os lugares designados ao centro/periferia ou hegemonia/marginalidade são desta forma , questionados .

Quando a crítica feminista questiona a evidência do sexo biológico, interroga o regime de verdade que construiu sua significação na dualidade natureza/cultura; contribui, assim, a evocar as vozes abafadas pelos silêncios impostos na superfício do discurso social. A hora soou, sem dúvida, para que os movimentos feministas reflitam sobre o binário que orientou e modelou suas práticas enquanto mulheres e sujeitos do desejo , cujo comportamento sexual será o desafio.

 

A domesticação das práticas sexuais.

 

Uma das perspectivas teóricas do feminismo parte do pressuposto que o assujeitamento do sujeito se exprime e se constitui na economia da linguagem e das representações sociais nas quais é formado : a construção do mundo  se faz ao mesmo tempo em que se desenvolve a  análise da realidade. É assim que em certas análises feministas, a utilização da categoria “gênero” não faz senão afirmar e perpetuar a realidade que criticam, pois tudo se passa em um quadro binário de pensamento; o desvelamento da construção social das relações assimétricas que possibilita, trabalha ao mesmo tempo,  no sentido de reforçar a estrutura polarizada da sociedade.

Se de um lado a opressão de gênero é desmascarada, enquanto construção social, de outro permance sujeita à divisão maniqueísta do social e de suas representações: sexo/gênero, mulher/homem, bem/mal, natureza/cultura, verdade/mentira, etc. Onde se emcontra o múltiplo? Como , neste esquema, analisar as inúmeras combinações de sexo e gênero que nos oferece a etnologia e o próprio cotidiano ?[12]  Tal como os físicos, que incorporam à suas proposições os Princípios de Incerteza e de Indeterminação, as analistas feministas não hesitam em considerar as contradições  que quebram as visões unificadas do feminismo, mesmo se isto representa desafios epistemológicos por ocasião das rupturas na ordem do discurso “falogocentrico”[13].

Com efeito, evitar os riscos é se aninhar no conforto dos modelos fixos, das exigências de um certo racionalismo. As visões homogêneas da realidade social obscurecem o plural das práticas sexuais que rondam no sopro do contra- imaginário social, no cadinho das representações marginais, esperando as condições de possibilidade simbólicas para obter um lugar.

As representações hegemônicas esteiam sua posição de poder e sua legitimidade sobre sábios discursos  que escondem , de fato, os fundamentos externos de seu poder sobre a realidade. Este é o caso da naturalização do binário heterossexual. Os paradigmas de gênero e a heterossexualidade fazem parte da homogeneização da realidade social e do caráter de evidência que emcobre a erotização obrigatória do sexo biológico generizado. Mesmo neste início de milênio, questionar a heterossexualidade é problemático: em vista da diferença física dos caracteres sexuais entre fêmea e macho e da força das representações sociais, que exigem a correspondência exata gênero/sexo, a multiplicidade do desejo é obscurecida e sobretudo domesticada.

Mas porque os grupos humanos estariam repartidos segundo uma convergência genital? Ou ainda, porque o exercício de uma certa sexualidade derfiniria a identidade, o ser do indivíduo?

Há, em todo caso, uma infinidade de variáveis que povoam os discursos e o imaginário social em torno de uma prática intensa da sexualidade proliferando, segundo Foucault, pela ação de um “dispositivo da sexualidade”: “[...]  conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”.[14]  Uma sexualidade polimorfa é criada, desta maneira, por este dispositivo e fixada sobre os corpos disciplinados pela norma, modelada por um desejo sexual, que os constitui enquanto indivíduos e lhes designa uma identidade.

Mas seria a natureza do biológico que assim decide ou o sistema de pensamento que imporia suas representações ao mundo como sendo sua realidade? Não seria o regime de  verdade e a vontade de poder que erigiriam os valores em evidências, como sublinha Foucault?[15]  Não seria a imbricação do mundo colocado em discurso e das práticas sociais sustentadas por uma memória discursiva/ imaginada/representada socialmente, que definiria os eixos em torno dos quais se tecem as relações sociais e as distribuições de poderes?

A ênfase dada ao aspecto anatômico  dos gêneros faz economia dos  valores  que compõem a “evidência” da norma heterossexual: a reprodução é um dos elementos organizadores dos gêneros e determina a importância dada ao sexo biológico. Assim, a maternidade está estreitamente ligada à construção do gênero “mulher”, da representação social “mulher”, do sexo biológico “mulher”.

Esta construção faz parte da prática sexual – a heterossexualidade- a chave do poder disciplinar e da instituição hierarquizada do gender/sex system na ordem do discurso normativo.

Faz-se amálgama do sexo biológico, do papel social e da sexualidade potencial, este amálgama tornando-se norma no quadro da “reprodução”. Como quebrar o peso da norma e da evidência?

Interrogar as lacunas do discurso pode criar espaços para a multiplicação das representações sociais; Baczko comenta que “[...] imaginar uma contra-legitimidade, um poder fundado sobre uma legitimidade outra que não a dominante e estabelecida, é um elemento essencial deste questionamento.”[16]  Pois, para este autor, a dominação simbólica não significa acrescentar o ilusório ao poder “real”, mas “[...] duplicar e reforçar uma dominação efetiva pela apropriação dos símbolos, pela conjugação de relações de sentido e de poder”. [17]

De Lauretis sublinha a importância das práticas socioculturais específicas do imaginário social , voltadas para a produção e re-produção das especificades de gênero mulher/homem, tais como o cinema, a literatura, a poesia, os mídia. [18] A utilização da categoria “gênero” e a naturalização da heterossexualidade delimitam a legitimidade de seus espaços discursivos; tudo que ultrapassa as margens é “desviante” e apresentado como tal. Desta zona de sombra desabrocha o que eu chamaria de “práticas patogênero”, as que recebem o estígma da doença, da vergonha, da inversão da ordem “natural”do mundo.

Assim, a crítica realizada pela categoria gênero limita-se à construção social dos papéis, pois não questiona seus próprios fundamentos: a construção sexuada dos corpos, a compulsória heterossexualidade e a coerência sexo biológico/gênero. Entretanto, em que matrizes de inteligibilidade, em que redes simbólicas e em que lógica de poder se insere a imposição do binário heterossexual?

Se o simbólico faz sentido, as instituições sociais de inculcação – a escola, a religião, a ciência, entre outros – não cessam de aprodundar um sentido no cadinho inesgotável da realidade. E se a função dos símbolos

“[...] não é somente de instituir distinções mas também de introduzir valores e modelos de condutas individuais e coletivas[...][19] as críticas feministas podem, desta forma, encontrar um terreno fértil no imaginário social que as abriga e as impõe.

O “gênero”, enquanto categoria de análise desvenda o leque de práticas sociais que instituem o feminino e o masculino: mas mantém ainda a parte substantiva que liga a construção cultural ao sexo biológico. Ora, esta démarche é a expressão de um imaginário social especular que “[...] consiste em crer que a imagem dá acesso a um real objetivável, enquanto que ela apenas encena o teatro do interior, materializando o desejo do sujeito [...]”[20] e constrói assim as redes de sentido que deveria romper.

Neste caso, a identificação perfeita do sexo ao gênero é igualmente um valor que erige a heterossexualidade em norma e disciplina como eixo de exercício do poder. Nesta perspectiva, Foucault indaga:

“[...] o sexo, que parece ser uma instância dotada de leis, coerções, à partir das quais se definem o sexo masculino e o sexo feminino, não seria ele, ao contrário, produzido pelo dispositivo da sexualidade?” [21]

 

O heterogênero: uma noção a ser retida

 

No âmago do imaginário hegemônico ocidental, o lesbianismo aparece como um desvio.Mas o fato mesmo de sua possibilidade e de sua existência abre brechas no bloco monolítico da heterossexualidade, protegido ferozmente por mulheres e homens generizados, pois assegura seu lugar na partilha do mundo. Na ordem do discurso, ser “mulher”, com toda a assimetria que implica esta denominação, ou “mulher negra”, “mulher latina” ou “mulher imigrante”é considerado ainda melhor que ser lésbica.

Se a categoria “mulher”pode admitir a diversidade, é  no domínio da prática sexual que se encontra o traço de união : a heterossexualidade. Acordo tácito, lugar assegurado na ordem do verdadeiro, pois ser lesbiana des-naturaliza o gênero, que pretende, enquanto categoria, des- naturalizar a natureza.

Para Butler, a construção do gênero é performativa e isto sugere a falta de um estatuto ontológico, isto é,  é a prática do gênero,  os gestos e os desejo dirigidos, que define a ilusão de uma essência interior. Segundo esta autora, a identidade generizada constitui-se de maneira tenaz ao longo do temp por uma repetição estitlística dos atos e movimentos, que produzem o efeito e a ilusão do gênero.[22] Existe aí um mecanismo de fetichização de uma certa relação e sua decodificação permite detectar esta construção no registro do simbólico, dos valores, das constelações de sentidos, que determinam a divisão binária do mundo.

O lesbianismo , nesta perspectiva, não é desvio ou marginalidade, é um locus de significação e sua identidade paródica – butch/femme[23]- ilumina a construção social do sex/gender system, o que Butler denomina “ficção reguladora da coerência heterossexual”. [24]

Teresa de Lauretis sublinha esta característica do sex/gender system – sistema de sexo/gênero- , mantenedora da oposição estrutural e rígida do sexo biológico em uma construção semiótica, socio-cultual e representacional.[25]  Mas em um projeto crítico de inversão de evidências, a questão que se impõe é : a noção do sexo biológico não é igualmente uma construção social? Se a construção do gênero social e do biológico humano repousa sobre um sistema simbólico ou de significações que atrela o sexo ao gênero, segundo valores sociais variáveis e dinâmicos, a noção de heterossexismo é um instrumento de análise que vem quebrar o quadro circular da reprodução de papéis, no âmbito da crítica destinada a tranformá-los.[26]

Nicole Claude Mathieu estima que entre sexo e gênero estabeleceu-se uma correspondência sócio-lógica e política que a torna evidente, natural e inquestionável . [27] Para desmontar a construção social desta correspondência exata, a autora traça uma tipologia da heteronomia da articulação sexo/gênero em três partes: identidade sexual ( homologia entre sexo e gênero: o gênero traduz o sexo); identidade sexuada ( elaboração do social sobre o biológico: o gênero simboliza o sexo”); identidade de sexo ( heterogeneidade do sexo e gênero). [28] Baseada em dados etnográficos, sua trabalho permite a inferência de que “[...] é a própria idéia desta heterogeneidade entre sexo e gênero ( sua natureza diferente) que leva a pensar [...] que o gênero constrói o sexo”.[29]

Isto significa que a construção da pessoa generizada permite sua classificação enquanto pessoa sexuada; o sexo biológico é assim erigido em eixo de definição do ser humano. É desta forma que se definem as identidades fixas pelo sexo biológico e pela prática sexual decorrente, segundo as normas estabelecidas socialmente.

Para Butler, [30] quando a categoria « gênero » coloca o binário como seu fundamento, abre ao mesmo tempo os caminhos de sua desconstrução à crítica, pois se o gênero é construído, o sexo  não o segue necessáriamente em uma correspondência perfeita, o que a etnologia não cessa de demonstrar.[31]  Nas sociedades ocidentais as « drag-kings”ou os “drag-queens” mostram, por sua paródia do gênero, a ilusão da persona generizada, expondo assim a fragilidade do laço “inexorável”entre sexo biológico e gênero. Em sua performance, @s “drags” revelam os mecanismos culturais de construção do gênero e el@s desvelam o múltiplo, escondido sob a unidade aparente.

Em sua análise da construção dos corpos sexuados, Butler insiste sobre a naturalização do desejo heterossexual, cuja identificação à essência do sujeito generizado é

“[...] um efeito discursivo sobre a superfício dos corpos, uma ilusão de um gênero organizado do interior, uma ilusão discursiva que regula a sexualidade no molde da heterossexualidade reprodutiva.” [32]

É assim que o gênero constrói o sexo biológico: não em sua materialidade, é óbvio, mas em sua apreensão mediatizada pelas redes de sentido, pelas representações sociais, que a definem enquanto diferença incontornável, ligada à

“[...] sistemas de pensamento mais amplos, ideológicos ou culturais, à um estado de conhecimentos científicos, assim como à conditão social e à esfera de experiência privada e afetiva dos indivíduos.” [33]

Os discursos médicos, jurídicos, religiosos, educacionais, bem como os do senso comum, são unânimes em afirmar que o sexo biológico é um dado da natureza , incontestavelmente. Mas, como sublinha Foucault,

“[...] deve-se dele falar não como algo  condenável ou simplesmente tolerável, mas como alguma coisa a ser gerida, inserida em sistemas de utilidade, regulamentada pelo bem de todos, a funcionar segundo um optimum. O sexo, isto não se julga apenas, isto se administra. Faz parte do poder público [...]”[34]

A crítica da heterossexualidade não é aceita de forma sistemática nos estudos feministas e a categoria “gênero”exprime, além da construção cultural dos papéis sociais, uma heteronormatividade intrínseca à sua formulação. Mas como sublinha Butler, “[...] quando a construção social do gênero é teorizada independentemente do sexo, o gênero torna-se un artifício flutuante[...]”[35] Assim, um corpo de mulher ou de homem pode indiferentemente significar o masculino ou o feminino.

O gênero produz o sexo, na erotização das relações sociais polarizadas, introduzindo, na signifcação do papel social, a prática de uma sexualidade “natural”, cujo desejo é assujeitado às representações sociais do amor, da maternidade, do casamento. A monogamia, a durabilidade do amor, as faixas etárias apropriadas, os paradigmas, que tornam os contornos físicos aceitáveis, são representações sociais instituídas em leis implícitas, que esculpem os corpos segundo os moldes mulheres/homens e isto de modo assimétrico, utilizando dois pesos e duas medidas .

 Estas representações projetam suas imagens na materialidade do social, verdadeiros sistemas de significação do mundo que comportam “[...] uma parte de re-construção, de interpretação do objeto e de expressão do sujeito.” »[36]

Butler sublinha que « […] o gênero não está para a cultura como o sexo está para a natureza; o gênero é a significação cultural/discursiva pela qual a ‘natureza sexuada’ou o ‘sexo natural’ é produzido e concebido como um elemento pré-discursivo, uma superfície neutra, sobre a qual a cultura pode trabalhar.” [37]

Entretanto, as representações de gênero são constitutivas do universo discursivo das teorias feministas e permaneceriam ocultas se não fosse o esforço metodológico de desconstrução, exigido pela perspectiva do eccentric subject . Isto explica talvez, em parte o apagamento da sexualidade nos estudos de gênero, pois a representação social, modo de apreensão do mundo, modo de significação no mundo,  torna-se igualmente auto-representação. Esta ausência faz com que, na atualidade , a sexualidade seja reivindicada enquanto objeto específico dos Estudos Lésbicos e Gay. [38]

O desejo heterossexual retoma assim seu lugar, em meio às práticas sexuais que compõem um social plurívoco, no momento em que se desvela enquanto norma cultural e  a imagem do “verdadeiro sexo” fica assim deslocada. Se a norma não mais é decisiva entre a “boa”e “má” sexualidade,  esta pode finalmente retomar seu lugar na esfera da privacidade de cada pessoa.

A noção de heterogênero[39]  foi assim proposta como categoria de análise a fim de apontar para a heterossexualidade implícita no “gênero” e explicitar  o heterossexismo [40] existente nos discursos feministas, emitidos no quadro de um certo imaginário hegemônico[41],  mergulhado em representações binárias e heterossexuais que deveriam desfazer.

A denominação heterogênero ilumina o “natural , sublinha a “essência”que retorna em surdina nas análises utilizando a categoria “gênero”, a fim de indicar a marca do social na formação do feminino e do masculino , não apenas em seus papéis, mas em seus corpos.

Se a questão de desvelar o processo de construção do sentido, ligado ao sexo biológico, é  observar como sua significação se instala nas redes de saber e de poder, que tecem a trama do social, a historicidade da opressão das mulheres revela que a heterossexualidade compulsória foi e é ainda um dos eixos maiores de seu assujeitamento voluntário – ou não – no mundo dominado pelo masculino.

Com efeito, as práticas sociais são ordenadas pelos valores cuja codificação define as normas instituídas; os valores são, por sua vez , veiculados e inculcados pelas representações sociais, que determinan os sentidos atribuídos aos atos, aos gestos, aos comportamentos, às imagens ligadas aos papéis sociais e aos corpos sexuados.

A atitude de crianças muito pequenas,  estudada pela Psicologia Social, mostra que nenhum domínio reflete melhor a dinâmica constitutiva das representações sociais, que a constituição progressiva de categorias sexuais. [42] É assim que valores ligados , por exemplo, aos atributos físicos – força, tamanho, beleza – à divisão do trabalho em casa, à contribuição monetária na família, à autoridade do pai, à doçura da mãe são constitutivas das representações que indicam às crianças seu pertencimento à um sexo determinado. Tornam-se assim “naturais” pois fazem parte do ser sexuado e de sua imagem no mundo.

Doise comenta, entretanto, que um menino pode ser misógino , mesmo se não foi assim educado em sua família, pois vive em uma sociedade que separa e categoriza os sexos de forma hierárquica.[43] Da mesma maneira, a menina incorpora e é assujeitada pelas representações da “verdadeira mulher”, da qual a maternidade e o desejo do casamento são partes constitutivas.

Enquanto saber socialmente elaborado e partilhado, as representações sociais contém a memória discursiva e a tradição que fundam sua autoridade, atravessam a sociedade pela linguagem, discursos, palavras, imagens e textos.

As representações sociais são assim

“[...] o produto e o processo de uma atividade de apropriação da realidade exterior ao pensamento e de elaboração psicológica e social desta realidade.”[44]

Da escola aos meios de comunicação, as representações sociais hegemônicas mostram sua pregnância na produção imagética e textual: de Lauretis [45]enumera as tecnologias que difundem estas representações e contribuem à produção não somente do sexo, mas igualmente da “boa” sexualidade: o cinema, a literatura e acrescento, revistas em quadrinho, propaganda, televisão, novelas, manuais escolares, revistas “femininas” e/ ou “masculinas”, jornais, canções, etc. As imagens centrais ainda são em torno de família, da  dona-de-casa, do casamento, maternidade, do homem provedor, da busca incessante do amor, apesar das aparições de um contra-imaginário que sugere o múltiplo, pela proliferação e visibilidade crescente de formas de relação social/sexual.

Betty Friedan mostrava a imagem da mulher americana dos anos 60, ainda hoje atual, que tenta “[...] tirar partido de seus charmes para reter um homem, criar uma descendência, dar atenção e cuidados ao marido, crianças, ao lar.” [46] E isto, comenta de Lauretis, « [...] contribui a fixar a sexualidade feminina [...] sobre o estreito leito de Procusto da reprodução onde a confina o patriarcado em nome da maternidade.”[47]

Daí o mêdo da perda da feminilidade, o mêdo do feminismo, o mêdo das feministas face à crítica da heterossexualidade.

 

Uma identidade lesbiana?

 

Como negar o assujeitamento, quando mesmo nas práticas ditas “desviantes”vemos instalar-se “casais” e sua divisão binária de papéis, tais butch/femme, a busca de uma família com filhos, a inserção nos quadros civis e jurídicos para os homossexuais? As paródias de gênero não são sempre subversivas e se,  por um lado, demonstram a não correspondência entre sexo e gênero, por outro assumem às vêzes os papéis culturais de gênero.

 O “natural”do sexo biológico e a heterossexualidade que daí advém é invocado, atualmente, da mesma maneira que a “natureza”da mulher era o argumento principal de sua exclusão e de sua depreciação na esfera pública. É assim que Wittig afirmava já em 1980 que “[...] o que tomamos por causa não é senão a marca que o opressor impõe sobre os oprimidos[...]”[48]

Assim, quando se ilumina o heterossexismo, a mesma lógica faz aparecer a norma institucional do coito regular – pela obrigação do casamento  ou pela auto-persuasão – como meio de criação e de apropriação do grupo de “mulheres”.

Adrienne Rich propunha , nos anos 80 , a análise da heterossexualidade enquanto instituição, como um sistema complexo de imposições, de leis, de controle, nas esferas do político, religioso ou jurídico. Os corpos das mulheres são, assim, delimitados em seu desejo e práticas sexuais através dos ritos de iniciação, dos tabus e dos interditos que restringem sua mobilidade, suas tendências, a erotização de seus gestos fora da esfera do masculino.[49] Mas como sublinha esta autora, todas estas formas

“[...] contribuem à rede de limitações que culminam na convicção feminina de que o casamento e a orientação sexual para os homens são componentes inevitáveis de sua existência.” [50]

O “continnum lesbiano”, mencionado por Rich, compreende um vasto registro – tanto na história quanto na vida de cada mulher –de experiências implicando uma identificação às mulheres e não somente o fato que uma mulher tenha tido ou conscientemente desejado uma experiência sexual genital com outra mulher “[51] O “continuum lesbiano” seria assim a face oculta das redes que ligam as mulheres durante toda sua vida, mas que desaparecem sob o peso das representações de rivalidade e sobretudo devido a seu enclausuramento doméstico. A solidariedade e o erotismo entre as mulheres, em quadros de poligamia, não são sequer mencionadas, obscurecidas pela atenção dada à imagem do masculino e de sua dominação.

Os traços da existência das lesbianas, de suas comunidades, das Amazonas, foram apagados da história, enviados ao mito, ao domínio das impossibilidades. Com efeito, mulheres que dispensavam os homens em sua vida quotidiana, em sua vida amorosa e erótica, representam um problema maior na ordem do masculino, pois elas desmistificam a prática da heterossexualidade obrigatória.

Wittig afirma que  “[...] esta tendência à universalidade tem como consequência que o pensamento straight não pode conceber uma cultura, uma sociedade onde a heterossexualidade não ordene, não somente todas as relações humanas, mas igualmente sua produção de conceitos, enquanto todos estes processos escapam à consciência.”[52] Para Rich, as lesbianas criam uma significação: a recusa da dominação, a recusa das imposições masculinas no social . Mas em sua vulnerabilidade social elas são, antes de tudo, mulheres.

Volto aqui ao início desta reflexão: o que é uma lesbiana? Que prática fundamenta esta denominação? Pode-se marcar um locus de identidade a partir de uma utilização particular de seu corpo, este corpo mesmo que é delimitado, significado pelas representações que o construíram? Haraway sublinha mesmo que

“[...] os corpos enquanto objetos de conhecimento são nós gerativos materiais e semióticos[...] . Os objetos não existem antes de ser criados, são projetos de fronteira. O que contém de maneira provisória continua a ser gerativo, produtor de significações e de corpo.”[53]

>Com efeito, uma prática sexual não pode ser considerada como o fundamento de uma identidade, sobretudo no quadro de pensamento atual, que vê na identidade um processo em construção.

O que é assim o desejo lésbico, já que seu objeto, as mulheres, é também uma complexa rede de referências? Se prosseguimos a inversão das evidências, como o “lesbianismo” poderia tornar homogêneo o leque de experiências eróticas que podem atravessar os corpos sexuados? Como classificar  o desejo entre uma mulher “dyke”e um homem “gay”? É o corpo que definiria esta relação como heterossexual, mesmo se os papéis são invertidos? Que lugar se daria ao desejo atravessando estes corpos que recusam as representações fêmea/ macho?

A prática sexual, a sexualidade é aqui evidentemente dissociada da aparência, da persona  generizada. O fundamento artificial e ritual da heterossexualidade aí aparece explicitado; nesta perspectiva, Haraway sublinha que os corpos abrigam processos contínuos de geração de sentido: “[...] não se nasce organismo”, sublinha ela. [54]

Qual a especificidade do desejo lésbico se pensarmos à pan-erotização do corpo, como meio de fugir ao fechamento de uma sexualidade centrada sobre os aparelhos genitais? Não há um modelo da “verdadeira” lesbiana, mas há certamente corpos construídos segundo modelos, corpos definidos pelas significações que lhe são dadas: sob este ângulo, a simples inversão da aordem não faz senão acentuá-la em uma percepção imediata. O aspecto subversivo da parodia, da performance é percebido após um trabalho de crítica e teorização de ponta.

Sob a denominação “lesbianismo” misturam-se referências múltiplas, ligadas às representações sociais das mulheres: doçura, sensibilidade, emoção partilhada, sexualidade minimizada ou então uma relação butch/femme, parodiando os papéis masculinos/femininos,atravessados de violência, baseado sobre hierarquias e dominâncias.

O vocabulário e as práticas de engajamento reproduzem, igualmente, as normas heterossexuais: casal, família, sogro, sogra, casamento, fidelidade, ciúme, traição. Entretanto, em que medida a sexualidade é o verdadeiro laço entre estas mulheres e qual é a medida do desejo e da prática sexual que as une na coerência da palavra que deveria designá-las?

 É lesbiana aquela que ama, dorme, se sente atraída, vive com outra mulher? Todas estas opções ou uma dentre elas pode definir uma lésbica? É preciso ter um amor exclusivo pelas mulheres? É preciso haver sexo genital para tornar-se uma? Estas simples questões desfazem a evidência da categoria e apagam os limites das definições esboçadas rapidamente.

A sexualidade faz parte constitutiva da representação DA MULHER: seja para dela  privá-la, seja para a ela condená-la pela força ou obrigação social ou para força-la na prostituição, no casamento incontornável ou na heterossexualidade obrigatória. As lesbianas estão mergulhadas neste imaginário, que as constitui em torno da significação “mullher”; mas que importância pode ter a prática sexual genital para elas? Em que medida seu desejo se classifica nas representações do sexo, em um discurso de sexualidade que está longe de acompanhar os costumes?

Entretanto, em nível de linguagem a sexualidade é o que as nomeia pois no “dispositivo da sexualidade” o verdadeiro, a “verdade”do indivíduo encontra-se no sexo. Mas esta palavra “lesbiana” pode designar um solo estável, um significante unívoco? Butler[55] sublinha que não há gênero além da expressão de gênero; da mesma forma, pode-se dizer que não há lesbianismo fora de sua expressão sexual, segundo práticas fragmentadas e disseminadas que contém a sexualidade entre mulheres? Quais são , finalmente, as matrizes de inteligibilidade que podem dar uma coerência ao lesbianismo cujas práticas, elas mesmas, são estilhaçadas em experiências múltiplas? Quais são as auto-representações das lésbicas, em que imaginário simbólico , em que rede de imagens significantes se inserem? [56]

Nos anos 80, Wittig definiu a lesbiana fora das relações de gênero:

“[...] seria impróprio dizer que as lesbianas vivem, se associam, fazem amor com mulheres, pois ‘mulher’ não tem sentido senão nos sistemas de pensamento e nos sistemas econômicos heterossexuais. As lésbicas não são mulheres.”[57]

Esta afirmação ocasionou debates acirrados: em primeiro lugar, apresenta uma sedutora posição fora do binário do gênero, posição de resistência e de recusa de um quadro de dominação omnipresente. Se neste caso, a lesbiana aparece dotada de uma espécie de coerência abstrata, que lhe concede uma natureza quase à parte, paradoxalmente se apoia sobre uma prática social cuja significação é eminentemente social.

Entretanto, Wittig precisa o que uma lésbica não é :”[...]  ‘lesbiana’é o único conceito que conheço que se encontra além das categorias do sexo ( mulher e homem) porque o sujeito designado ( lesbiana) não é uma mulher, nem econômicamente, nem politicamente, nem ideologicamente. Pois com efeito, o que faz uma mulher é uma relação social particular ao homem [...]”[58] Mas afinal, o que é uma lesbiana?

No discurso de Wittig o lesbianismo seria um ponto epistemológico e material de resistência ao binário e seus efeitos de poder; mas a sexualidade, destinada a definir a palavra e a prática que aí designa, está ausente. Seria possível colocar a lésbica na posição eccentric em relação à sexualidade, a fim de  delimitar outros contornos para os corpos sexuados? Qual seria a pertinência da denominação ‘lesbiana”? E quem diz lésbica, quer dizer feminista? Pouco  provável, assim como quem diz feminista pode pretender  uma derivação de sentido, sobretudo no senso comum.

Butler considera que , refreseando de início de Beauvoir e em seguida Monique Wittig que  “[...] não se  nasce mulher, torna-se  uma. E mais, não se nasce fêmea, torna-se fêmea;”[59] Nesta perspectiva, assim ,   [...] a lesbiana aparece como [...] uma categoria que problematiza radicalmente o sexo e o gênero como categorias polítcas estáveis  de descrição [60]

Enquanto categoria denominada por uma prática sexual, desafia a própria noção de identidade baseada no sexo ou na sexualidade e do sexo como definidor do humano.   Assim, argumento que o lesbianismo não pode constituir uma identidade, pois esta denominação representa apenas um amálgama de questões, um conjunto de práticas diluídas, no desenraizamento das categorias “mulher” e “gênero”. Reinvidicar uma identidade lesbiana seria fazer parte de um contra-imaginário domesticado e ver nisto uma coerência identitária, tão ilusória quanto a coerência de gênero.

  É preciso admitir, entretanto, que as intuições de Wittig aparecem na atual crítica à categoria “gênero”; é desta forma que a idéia de identidades múltiplas está implícita em sua afirmação sobre a constituição de sujeitos: “[...] digamos que uma nova definição da pessoa e do sujeito para toda a humanidade não pode ser encontrada que além das categorias de sexo ( mulher e homem) e que novos sujeitos individuais exigem primeiramente a destruição das categorias de sexo, o fim de sua utilização e a rejeição de todas as ciências que as De Lauretis ,[62] por sua vez, considera indispensável para a teoria crítica feminista, que seja adotada uma posição ultrapassando, totalmente ou em parte, o quadro da heterossexualidade e do gênero binário, pois as constelações de sentido e de representações nas quais se inserem os discursos feministas, ainda são conjugadas no masculino.

Ultrapassar um quadro categorial de pensamento não é possível senão no desvelamento das estruturas ordenadoras da reflexão; o assujeitamento às representações sociais, que constituem as condições de possibilidade de apreensão, é imperativo mas não incontronável, como o demonstra a crítica da “natureza”e/ ou da categoria “gênero”, a partir de diferentes posições de sujeito. Assim, o lugar de fala social da lesbiana não definiria uma identidade, mas marcaria um espaço crítico, fora do imaginário hegemônico da heterossexualidade.

Buscar as evidências na circulação de “verdades” é finalmente uma tarefa com multiplas sendas. A existência do plural no espaço do desejo e da sexualidade alarga o território discursivo que não pode ser ocupado senão pelo contra-imaginário e sua expansão em imagens, em textos e questões.

Alguns problemas foram aqui colocados no que concerne o lesbianismo enquanto prática social: identificação, núcleo de coerência, imagem de si, inserção no mundo, definições. São, de fato, as mesmas questões que atravessam o feminismo quando se interroga sobre o sujeito e o objeto de sua elaboração teórica e política. E encontramo-nos no início de nossa reflexão: com efeito, o que é uma mulher, o que é uma lesbiana?

A necessidade de definir faz parte igualmente de um sistema de pensamento “falogocêntrico”, funcionalista, “cada coisa em seu lugar, cada lugar sua função” na ordem da verdade, na univocidade do sentido, na ordem do Pai. Definir uma identidade não é senão criar seu próprio campo de exclusão: a “verdadeira lésbica”, a “verdadeira mulher”. Com que direito uma imagem se torna mais verdadeira que as outras? E o que elas representam? Que poder se esconde em seus mecanismos de produção e circulação?

Se tomamos o simbólico como vetor de sentidos, torna-se claro  que  a divisão do poder é uma questão de afirmação, de legitimação, de autoridade, de exclusão, de reatualização de lutas em torno de símbolos, significações, que instauram e sustentam a prática social, tal como a binaridade do gênero. Esta é a importância do espaço simbólico, estreitamente ligado ao material, cuja separação é ilusória na medida em que o imaginário e o real não se separam, senão em termos de dimensões de materialidade.

Em nossos dias, as questões identitárias tornam-se uma questão teórica maior e o trabalho de Rosi Braidoatti [63]é disto um exemplo: sustenta que a subjetividade das “mulheres reais”, construída social e simbolicamente é uma multiplicidade em si. Dividida, fraturada, é constituída pela imbricação de vários níveis de experiência. .                                                              

  Nenhuma definição fixa, assim para as mulheres, mas um campo de estruturação girando em torno do corpo, do inconsciente e da experiência social. Para esta autora, renomear ou redefinir não é a solução para se chegar a um novo perfil de identidades sociais que demandam, com efeito, intervenções sociosimbólicas. [64] 

Para Braidotti, a subjetividade das mulheres e sua identidade  encontram-se no âmago de uma posição simbólica que não as fixa, mas reconhece-lhes a diversidade de experiências.[65] . Não é, acrescenta, “[...] uma nova versão da consciência cartesiana, mas uma entidade descontruída e múltipla em si [...] a identidade múltipla é relacional, no sentido em que pede um movimento na direção do outro e é igualmente retrospectiva, composta de um conjunto de identificações imaginárias, de internalizações inconscientes de imagens que escapam à seu controle. “[66]

Braidotti trabalha assim o  conceito de 

“[...] identidade nômade[...] que possui um agudo sentido de território, mas sobre o qual não existe possessividade [...] que não é fluida e sem limites, mas muito atenta à não fixidez dos limites. É o intenso desejo de transgredir, de ultrapassar.”[67]

Na fluidez de um desejo móvel, de uma identidade sempre em construção, a sexualidade ocupa um espaço de sombras chinesas: o ângulo da luz e o movimento modificam os contornos e o perfil . O lesbianismo e o feminismo se imbricam, pois não há mais representação de lesbiana, onde não mais existem representações de mulheres: não há desejo unívoco onde a identidade se desfaz.

Um novo sujeito do desejo não é senão o contra-imaginário que abre suas asas para tomar vôo: como mudar a realidade sem uma nova rede simbólica que traça por sua vez novas imagens de corpo? Com que direito a sexualidade e a heterossexualidade definem o sujeito do desejo? E que vontade de saber/poder torna o desejo o ponto nodal do discurso? Como destruir o labirinto que nos faz andar em círculos?Feminismo e lesbianismo encontram -se ou se afastam ao longo de seu caminho discursivo e/ou político e se encontram, hoje, na perspectiva de novos horizontes , de entendimento ou desacordo, pouco importa. Colocar questões que empurrem o pensamento para seus últimos bastiões é uma estratégia que sacode os fundamentos mais profundos, o das evidências, das representações. Constatar a pluralidade conduz à estratégias diversificadas e as contradições teóricas que povoam o pensamento feminista ou lesbiano representam sua maior riqueza.

 

Biografia.

 

Tania Navarro Swain é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre e na Université du Québec à Montréal, (UQAM), onde foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et Etudes Féministes. Ministra um curso de Estudos Feministas na graduação e trabalha em linha de pesquisa com a mesma denominação na pós-graduação. Publicou recentemente um livro pela Brasiliense, “O que é o lesbianismo”, além de vários artigos em revistas nacionais e interncionais.                                              


 

[1]  Tereza de Lauretis. . « Eccentric subjects: feminist theory and historical consciousness”, Feminist Studies 16, n.1 (Spring) 1990 p. 115/150, .pg.138. ( tradução livre de todas as citações em língua estrangeira.

[2] Michel Foucault. L'ordre du discours, Paris : Gallimard. 1971,pg.53

[3] Teresa de Lauretis,. “ Eccentric subjets”, op,cit. pg 138

 

[4] Emmanuelle de Lesseps. Hétérosexualité et féminisme. Questions Féministes, février , n.7, Editions Tierce, Paris, 1980, pg 55

[5] Taylor, Verta and Rupp Leila J.  Women’s culture and Lesbian Feminist Activism: a Reconsiderations of Cultural Feminism, Signs, Autumn ,  vol 19, n.11993, pg. 43/44

[6] Ti Grace Atkinson. L’odysée d’une Amazone, Paris, Des Femmes, 1975.281 p.155

[7] Teresa de Lauretis .. Technologies of Gender,Eessays onTtheory, Film and Fiction, Bloomington/ Indiana :  Indiana University Press. 1987

 

 

.[8]  Judith Butler. Gender Trouble. Feminism and the subversion of identity , New York : Routledge., 1990,pg 3

[9] Teresa de Lauretis,. « Eccentric subjets, op,cit, pg.116

[10] Jane Flax. Postmodernism and Gender Relations in Feminist Theory, Signs, Journal of Women in Culture and Society, vol 12, n041 ( Summer) p. 621/643, 1987. pg.624

[11] Michel  Foucault. Microfísica do poder , Rio de Janeiro : Ed.Graal. 1988, pg.14

 

[12] ver por exemplo, Marilyn Strathern. “ No Nature, No Culture: The Hagen Case” , In Mac Cormack Carol and  Marilyn Strathern. Nature, Culture and Gender, Cambridge, UK: Cambridge University Press,  1998.

[13] Falo+logos+centro.

[14] Michel Foucault, Microfísica do poder, op. Cit. 244

[15] idem, ibid. pg.13

[16] Bronislaw Baczko . Les imaginaires sociaux, mémoires et espoirs collectifs, Paris, Payot.1984, pg.33

[17] idem, pg 18

[18] Teresa de Lauretis .. Technologies of Gender,Eessays onTtheory,op.cit. , pg. 11

[19] Baczko , op.cit.pg. 34

[20] Claude-Gilbert Dubois.. L’imaginaire de la Rennaissance , Paris: PUF. 1985, pg30

 

[21] Michel Foucault, Microfísica… op.cit.pg 259

[22] Judith Butler,. Gender Trouble. Feminism and the subversion of identity , New York : Routledge., 1990 ,pg 141

[23] nome atribuído a um casal de lesbianas com papéis definidos : masculino e feminino.

[24] idem, pg.  136

[25] Teresa de Lauretis .. Technologies of Gender… op.cit. pg. 3

[26] idem, ibid. pg. 5

[27] , Nicole-Caude Mathieu . L’anatomie politique, catégorisations et idéologies du sexe, Paris: Côté Femmes. 1991, pg. 256

[28] idem, ibd, 231

[29] idem, ibid, 256

[30] Judith Butler, Gender Trouble, op. cit. pg.6

[31] ver Mathieu et Strathern, op. cit.

[32] Judith  Butler, op.cit, pg 136

[33] Denise Jodelet,. « Les representations sociales, un domaine en expansion » dans Denise Jodelet (dir) Représentations sociales, Paris : PUF. 1989, pg.35

[34] Michel Foucault. Histoire de la sexualité I, la volonté de savoir, Paris : Gallimard., 1976, pg. 34/35

[35] Butler, Gender and Trouble, op.cit., pg. 6

[36] Denise Jodelet. Op, cit., pg.37

[37] Judtih Butler, Gender … op.cit. pg 7

[38] Elisabeth Weed and Naomi Schor . Feminism meets queer theory,  Bloomington/Indiana:  Indiana University Press, p. 31 a 67.

[39] Chrys Ingraham The Heterosexual Imaginary: Feminist Sociology and Theories of Gender  in Seidman Steven (dir), Queer Theory / Sociology, Cambridge /Mass. : Blackwell Publishers,   1996. p. 168-192

[40] Teresa de Lauretis . Technologies of Gender… op.cit. pg.6

[41] ver Baczko, op.cit. et Cornelius Castoriadis,.. Domaines de l'homme, Paris : Seuil. 1986 e

. A Instituição Imaginária Da Sociedade, Rio de Janeiro : Editora Paz e Terra. 1995

[42]Willem Doise Cognitions et représentations sociales, in Jodelet, Denise, Les représentations sociales, Paris, Puf, 1989, pg.352

 

[43]idem, ibid.

[44] Denise Jodelet, op. cit. pg 37

[45] Teresa de Lauretis,  Techonolies of gender ....op. cit

[46] Betty Friedan. La femme mystifiée, Gonthier, Paris, 1964,  pg32/33

[47] Teresa de Lauretis, Eccentric subject… op. cit.pg.124

[48] Monique Wittig,. « La pensée straight ». Questions Féministes,  février, n.7., Paris, Ed. Tierce 1980. pg 77

[49] Adrienne Rich .. La contrainte à l'hétérosexualité et l'existence lesbienne, Nouvelles Questions Féministes,  mars , n01, 1981, p.15-43, pg 20/21

 

[50] idem, ibid. pg.32

[51] idem,ibid. pg,23

[52] Monique Wittig,. . « La pensée straight ».op.cit. pg.50

[53] Donna Haraway.. Ciencia, Cyborgs y Mujeres. La reinvención de la naturaleza, Valencia : Ediciones Catedra1, `1991. Pg.343

 

 

[54] idem, ibd. 357

[55] Judith Butler,  Gender Trouble, op.cit. 25

 

[56] Claude Gilbert Dubois, op.cit. pg.18

[57] Monique Wittig, op.cit. pg. 53

[58] Monique Wittig . On ne naît pas femmes. Questions Féministes . Editions Tierce, Paris mai 1980, pg.83

[59] Judith Butler. Gender Trouble…op. cit. pg.113

 

[60] idem , pg.113

[61]  Monique Wittig . On ne naît pas femmes… op. cit. pg. 83

 

[62] Teresa de  Lauretis .  « Eccentric subjets… op.cit. pg. 127

[63] Rosi B raidotti, and Judith Butler . Feminism by any other name” in Elisabeth Weed and Naomi Schor . Feminism meets queer theory,  Bloomington/Indiana:  Indiana University Press,,997, p. 31 a 67. pg. 44

[64] idem,ibid. pg.56

[65] idem, ibid.pg.46

[66] idem,ibid.

[67] Rosi Braudotti..  Nomadic Subjects.Embodiment and sexual difference in contemporay feminist theory, New   York : Columbia  University Press, 1994. pg. 35/36