“Epistemologia feminista plural: corpos sexuados, identidades nômades”.

01/2002

             Feministas que somos, temos trabalhado, em nossas condições de produção materiais e simbólicas, em nossos lugares de fala e de interlocução, tentando traçar caminhos de análise e ação com um objetivo comum, apesar de matizado em cores diversas: modificar a face do mundo, das relações humanas sexuadas, em seus traços hierárquicos, assimétricos e profundamente injustos. Que transformações sofreram as práticas e representações sociais a respeito do sexo, da sexualidade, do feminino e do masculino nos últimos cinqüenta anos? O caminhar dos movimentos e das teorias feministas fala-nos de conquistas e de derrotas e o vocabulário ainda é de guerra, de oposição, de lutas.

Ou então, ouve-se dizer que o feminismo acabou e as nossas jovens alunas olham-nos com espanto, quando nos afirmamos “feministas”. Entretanto, um olhar, mesmo casual, para os produtos midiáticos, que povoam nosso cotidiano, mostra-nos o contrário: mulheres são apelo e chamariz para o consumo de um público masculino em outdoors ou propagandas diversas, cinema, novelas, seriados de tv, revistas, etc. Estas representações, discursivas ou imagéticas, difundidas no social, ressematizam atributos e enunciados a respeito das “verdadeiras” mulheres: mulher-corpo, mulher-sexo, mulher-objeto, mulher-mãe, ou seja, finalmente, mulher-mulher, representações poderosas atuantes no imaginário social do presente.

A que sofre em silêncio, que “foi feita para morrer de amor” , como diz a música, guiada pela intuição, pelo coração, com a sensibilidade à flor da pele, vivendo em função de seu homem, que lhe dá filhos e lhe assegura a passagem de um estado incerto para o status seguro de “verdadeira mulher”. “Vem me fazer mulher”, suspira-se em outra música. “Mulher” no singular, significando todas as mulheres, reafirmando o “eterno feminino”, perigo e mistério: quem pode entendê-las? A presença destes significados é clara na sociedade atual e inúmeros trabalhos têm analisado esta questão. No mundo das ciências, o estudo das relações sexuadas é tolerado enquanto domínio mais ou menos folclórico ou de algo separado do conjunto das disciplinas e das áreas de conhecimento.

             Quais as perspectivas hoje, das análises críticas feministas diante deste quadro? Que instrumentos analíticos nos permitem repensar as relações humanas, além do sistema sexo/gênero, apesar de nele ancorados? Uma imensa produção bibliográfica, inúmera corrente teórica, um aguçado instrumental analítico alicerça o solo sobre o qual nos apoiamos, fazendo dos feminismos hoje, incontornável marco teórico de crítica e análise da apreensão e construção do social. O campo de possibilidades epistemológicas, os esquemas de pensamento que orientam e orientaram as produções feministas revelam-se, a meu ver, um dos eixos principais de discussão, desdobrando-se em algumas categorias centrais neste debate, como as questões identitárias, a experiência, a sexualidade, a disseminação do sujeito e a pluralidade, esta última presente nos próprios pressupostos e objetivos dos feminismos contemporâneos.

Por “campo de possibilidades epistemológicas” entendo um horizonte de percepção do social/humano, um universo discursivo povoado de representações e imagens, constituindo uma rede categorial que tende a reduzir a apreensão do mundo e da história a esquemas interpretativos hegemônicos, o que seria denominado por Foucault “regimes de verdade”. (Foucault, 1979:14) Estes blocos de ferramentas analíticas intentam produzir a verdade última e definitiva sobre o mundo físico ou social e contra estes totalitarismos científicos erigiram-se os movimentos feministas da atualidade e o “feminism criticism”.      

        Entretanto, a própria reflexão feminista é tributária deste campo epistemológico, das representações e significados a ele atrelados Por vezes ali se acomoda, sugerindo mudanças mais superficiais, mas em muitos momentos demonstra sua agudeza apontando, na estrutura do pensamento e nas práticas sociais, os mecanismos de constituição das relações humanas, polarizadas em desenhos biológicos.

Toda teoria é baseada em pressupostos e nesta perspectiva, a crítica feminista das ciências, desde  Simone de Beauvoir (1966), vem apontado as bases arbitrárias de um conhecimento,  cuja pretensão seria explicar o universal. As noções de “natureza” humana, de uma mesma e invariável relação entre os sexos ao longo da história, são exemplos de premissas que constituem as ciências, sejam elas sociais/ humanas ou físicas/biológicas. [1]A binariedade talvez seja a principal categoria ordenadora do pensamento ocidental que concebe o real em termos de opostos, de pólos, cujo agenciamento se traduz em lutas e antagonismos.

Os anos 70/80 foram extremamente profícuos em termos de crítica aos pressupostos da ciência e nomes como Gayle Rubin(1975), Colette Guillaumin. (1978) role Pateman(1988), Catherine MacKinnon( 1987), Christine Delphy(1970), Adrienne Rich(1981), Monique Wittig (1980) aprofundam a análise dos mecanismos de apropriação do conhecimento e de instauração do social, desvelando suas premissas “evidentes e verdadeiras”, cuja validade repousa apenas em sua enunciação repetida. O exemplo mais claro disto é o a-priori de que a humanidade, desde sempre, tenha se dividido em dois grupos separados a partir de um sexo biológico; sua importância relativa, em culturas diversas, não seria questionada. Residiria em sua própria evidência. Quem não viu uma imagem de homem pré-histórico arrastando uma mulher pelos cabelos, quem não ouviu ou disse que a prostituição era “a mais antiga profissão do mundo”? As relações sexuadas são tratadas como ahistóricas, evidentes, inquestionáveis.

Entretanto, o “feminism criticism” aponta para estes pressupostos que sustentam as hastes do conhecimento e da ciência. É assim que Gayle Rubin (1975:169-184) critica o edifício antropológico construído por Lévy-Strauss, apontando para seu a-priori básico e inquestionado: os diferentes agrupamentos humanos estabeleceriam seus inter-relacionamentos realizando trocas de mulheres, entre homens. Isto supõe que todos os grupos sociais estivessem estabelecidos sobre uma base sexual/biológica, de forma binária e hierarquizada, com predominância de um segmento sobre o outro. O fundamento, portanto, é de que existe uma “natureza” humana e esta se expressa de forma contínua e homogênea ao longo de um tempo evolutivo, apesar de roupagens diversas. A antropologia feminista aponta, porém, para sociedades em que esta divisão não se realiza desta forma e o lugar dado ao próprio sexo biológico depende das tessituras culturais. (Matei, 1991).

Da mesma forma, analisa certas asserções freudianas ( Rubin,1975:185-204) que assentam na heterossexualidade o desenvolvimento normal da sexualidade; mostra, entretanto, em ambos os autores, que  sua própria construção teórica  contém a explicitação do arbitrário de suas premissas. Indica a existência de um “ sex/gender system”, binário, de um quadro representacional valorativo  do humano, que orienta a própria expressão de humanidade em moldes paradigmáticos. : normal/ anormal, certo/errado.(Rubin, 1975:204).

  Esta mesma “natureza” humana é apontada no discurso filosófico por Carole Pateman (1988-1993), no que denomina “contrato sexual”: é o binário sexuado e biológico, implícito na constituição e justificação da sociedade civil excludente do feminino, em esferas separadas do “público /privado”; o contrato social, aponta Pateman, filosoficamente fundador da sociedade civil, tem como zona de silêncio a divisão primária do humano em duas naturezas distintas, com qualificações definidas: feminina e masculina. Esta idéia é reforçada por Teresa de Lauretis, para quem “[...] o fato de que o gênero e a divisão sexual não são visívies em quadros epistemológicos e teóricos, como a priori inquestionáveis, mostra o pressuposto heterossexual – que a posição sociosexual entre mulher e homem é necessário e fundador momento da cultura”.(de Lauretis, 1990: 130).

 Elisabeth Grosz partilha deste ponto de vista, afirmando que: “O conhecimento, como outras formas de produção social é, ao menos parcialmente, efeito da posição sexualizada de seus produtores e usuários; o conhecimento  deve ser conhecido como sexualmente, determinado, limitado e finito”.(Grosz, 1994:20) A pretensão positivista e neutralidade, porém, permanece ainda hoje bem estabelecida, descartando as configurações do saber ancoradas nas representações binárias do humano. É assim que posições de classe, por exemplo, são relevantes na análise acadêmica, relegando os espaços sociais de gênero à esfera da intimidade.

Adrienne Rich ( 1981) e Monique Wittig ( 1980), por sua vez, aprofundam a análise de Rubin, sublinhando, na divisão dual dos sexos, esta outra premissa não questionada: a heterossexualidade compulsória, forjadora e reiteradora da expressão binária do sexual. Por sua vez, Catherine MacKinnon ( 1987), na constatação de uma sexualidade traduzida em violência naturalizada, na pornografia e na prostituição, encontra igualmente mecanismos representacionais constitutivos da realidade: a violência simbólica e material contida nas práticas sexuais correntes, sempre em esquemas binários, superior/inferior, dominador/ dominado, forte/frágil, ativo/passivo. Discute, de fato, sem nomeá-lo, o “dispositivo da sexualidade” analisado por Foucault (1976), que faz do sexo e, sobretudo da sexualidade o eixo e o motor da vida individual e social. A crítica de  MacKinnon às formas de expressão desta sexualidade, traduzida em violência, foram muitas vezes interpretadas como uma rejeição das práticas sexuais, confundindo-se diagnóstico e argumentação com propostas de ação.

 Christine Delphy ( 1970), em um esquema de classes, percebe o patriarcado não como uma forma anacrônica de agenciamento social, substituído pelas sociedades democráticas modernas, mas como um sistema instituinte de relações binárias. Nele, a classe dos homens se apropria individual e coletivamente da classe das mulheres, em intersecção com o capitalismo, sem esgotar-se, porém, de forma alguma, em seus limites. Esta análise é também aprofundada por Colette Guillaumin(1978), que detalhe a apropriação dos corpos, do trabalho, da reprodução social do humano.

Tais análises parecem-me ainda extremamente pertinentes, na medida em que apontam para a fragilidade conceptual dos grandes edifícios teóricos, destiladores de verdades inquestionáveis e apontam para os mecanismos regulatórios, produtores do magma de sentidos sociais. É nesta perspectiva que a crítica feminista foi e é, na atualidade, parte das condições de produção do chamado pós-modernismo, iconoclasta movimento destruidor de “verdades”, definitivas. Em 1971, Foucault(1971) convida à inversão destas verdades constituídas em “evidências”, o que já vinha sendo feito pelo feminismo contemporâneo há algum tempo, desde os anos 50.

Betty Friedan, nesta época, em sua exposição sobre o difuso mal estar das mulheres de classe média americana com seu estilo de vida, de fato desvelou os mecanismos representacionais forjadores do “ser mulher”, mostrando o papel da mídia na apropriação social do simbólico e na própria construção de seres sexuados, reais, inseridos em relações sociais. Este processo de convencimento, de representação e auto-representação continua a se desenvolver atualmente no discurso social, seja ele acadêmico ou oriundo do senso comum.

Teoria crítica feminista

Para Teresa de Lauretis, porém, a teoria crítica feminista das formações socioculturais, abrangendo discursos e formas de representação, só aparece quando se torna consciente de si própria, questionando seus pressupostos básicos, suas possíveis cumplicidades ideológicas, suas práticas e objetivos propostos, ou seja, suas condições de produção, apreensão e de atuação.(De Lauretis, 1990:138 ) Seu lugar de fala, enfim, como forjadora de sentidos outros dentro das matrizes de inteligibilidade que compõem os significados sociais, entre eles as definições corporais e os papéis sociais.

Esta atividade teórica é uma teoria da carne, um caminho de dor e de risco, como sugere Cherrie Moraga, (in De Lauretis, 1990:138), pois exige o desenraizamento, o deslocamento dentro das balizas seguras de certos pressupostos, como por exemplo, o “ ser mulher” , em um corpo biologicamente definido. O lugar da epistemologia feminista é, portanto, nesta perspectiva, um “não lugar”, pois não há pouso nem repouso neste incessante produzir de consciências e autoconsciências.

Uma heterotopia, como diria Foucault, um lugar que se inventa em espaços outros, práticas e teorias que atuam nas representações de gênero e fora delas; “[...] um lugar no discurso, do qual falar e pensar é no melhor dos casos uma tentativa, incerta, sem garantias[...] um deslocamento do próprio ponto de entendimento e articulação conceitual”; afirma de Lauretis (De Lauretis, 1990:139). Ou seja, a meta-crítica da epistemologia feminista é finalmente seu ponto fulcral, este se debruçar sobre suas próprias construções a fim de melhor desfazê-las, num processo contínuo de interrogações. Nesta perspectiva, o individual e o social estão contemplados, pois se me percebo construída em gênero, é deste lugar de fala que atuo para melhor desfazê-lo. Além do aforismo “o privado é político”, o pessoal aqui também é político.(de Lauretis, 1990:115).

Porque os “Estudos Feministas” suscitam tanta oposição, principalmente da parte de mulheres, em âmbito universitário? Porque as mulheres evitam classificar-se como “feministas”? O próprio binário é aqui explicativo, pois o feminino sugere uma temática destituída de nobreza, contrapondo-se a um masculino genérico, universal, dotado dos valores do humano em geral. Falar de mulheres sugere fraqueza, fragilidade, falta de precisão analítica; falar de feminismo ativa todo um leque de conotações pejorativas, indo da mulher-macho à mulher feia, crime inafiançável. Além deste pesado senso comum, o assujeitamento à imagem e representação da “verdadeira mulher”, o medo da não aceitação entre pares, o ocultamento da inferioridade simbólica e material que compõe a vida quotidiana das mulheres, desqualificam “Estudos feministas”, enquanto poderosos vetores teóricos que desconstróem a ordem do mundo.

 Deslocando-se sem cessar na identificação dos nódulos de poder, dos nichos reguladores do pensamento e das representações sociais, do adensamento das matrizes de sentido que compõem as redes de relações sociais, a epistemologia feminista desestabiliza as mais caras evidências, tais como um corpo modelado pela biologia ou a heterossexualidade como prática sexual por definição. Evidentemente outros autores, como Deleuze e Foucault elaboraram análises neste sentido, porém a epistemologia feminista caracteriza-se, a meu ver, por uma proposta ativa e não apenas filosófica de transformação das relações humanas e porque não, da própria percepção identitária do indivíduo em sua materialidade quotidiana.

Na constatação da rede de poderes que compõe o próprio ser social, ao significante “mulher” não corresponde um significado preciso, mas uma miríade de situações e comportamentos constitutivos de um ser inserido em um social histórica e espacialmente determinado. Assim, as respostas à pergunta de Simone de Beauvoir ( 1966-1949): “ o que é uma mulher?”, desdobraram-se em questionamentos e propostas teóricas múltiplas.  A noção de “ diferença sexual”, por exemplo, oriunda do feminismo francês, sobretudo de Irigaray(1974), muitas vezes criticada por um possível essencialismo em relação ao feminino, foi revista e retomada por Rosi Braidotti(1977), de forma estimulante. Oferece-nos sua interpretação desta “diferença sexual”, que a partir do diagnóstico de uma realidade vivida nestes termos, assenta o feminismo da “diferença sexual” na experiência vivida das mulheres.( Braidotti,1977: 44)

 A questão, para esta autora, é como criar, legitimar e representar uma multiplicidade de formas alternativas à subjetividade feminista, sem cair em um novo essencialismo ou novo relativismo.  Nesta perspectiva, seu ponto de partida seria asseverar a especificidade do vivido, da experiência feminina do corpo.( Braidotti, 1977: 44) Assim, a vida real das mulheres seria o fundamento da subjetividade feminina, múltipla em si mesma: dividida, fraturada e constituída na intersecção de diversos níveis de experiência.(idem)

Aponta, deste modo, para um processo de construção da subjetividade do feminino e esta é uma proposição interessante que mereceria uma análise mais aprofundada de seus termos e conexões, o que não podemos fazer nos limites deste texto. Destaca-se, entretanto, sua postura de contradição com o que chama de “ desincorporação pós-modernista” ou “antiessencialista”, generalizando posturas teóricas e enfatizando um certo entendimento de senso comum sobre a questão da construção dos corpos sexuados, tão bem explicitada, como veremos, nas análises de Judith Butler e também de Foucault.(1976) De fato, a disseminação do sujeito trabalhada por vários autores aponta para a importância dos valores e significados sociais instituidores de realidade, que não é de forma alguma negada; na constituição dos seres sociais/reais em sentidos e normas, o humano não é desincorporado, defronta-se apenas com o ilusório de sua coesão interna, de sua identidade nuclear.

Experiência e corporalidade

Teresa de Lauretis , em 1984, já atrelava à materialidade do corpo o processo de subjetivação do feminino, ou seja, a composição do “ser mulher”, numa operação de interação entre sentido, percepção e experiência; para esta autora, compunha-se assim um movimento de reciprocidade entre e o social o sujeito, que ela nomeia semiosis, cujos efeitos constitutivos estariam em constante modificação segunda a dinâmica das formações sociais. (de Lauretis, 1984:182).

Qual seria, porém, a natureza desta experiência subjetiva/ social/plural do feminino? De Lauretis identifica na sexualidade um tipo particular de relação do feminino com a realidade social. Define experiência como “ [...] um complexo de hábitos, disposições, associações, percepções, os quais generizam um individuo como fêmea[...] ”.Considera que este é o campo precípuo a ser analisado, compreendido, articulado pela teoria feminista.( de Lauretis, 1984:182 ) em torno do corpo, sujeito do processo de semiosis lugar no qual, “ [...]os efeitos significantes do signo se corporificam e se real-izam.”( de Lauretis, 1984:183).

A produção de sentidos sociais, deste modo, se condensa na instituição de corpos sexuados, na composição de sujeitos definidos por uma biologia estabelecida como marco decisório para sua inserção no social. Ou seja, em torno do corpo, da experiência do corpo sexuado e sexualizado, forjado em práticas discursivas específicas, produz-se o feminino, o “ ser mulher”. Na esteira das “tecnologias do sexo” de Foucault (1976), esta autora aponta para as “ tecnologias do gênero” (de Lauretis, 1987) criadoras de representações binárias do sexo biológico e da sexualidade. O assujeitamento à estas representações da “ verdadeira mulher”, do corpo sedutor, de um destino ligado ao corpo materno, faz parte da auto-representação, da subjetivação identitária aos mecanismos regulatórios, destiladoras de normas, modelos e verdades.

Apesar de não estar assim expressa no texto de Teresa de Lauretis, representação aqui, a meu ver, envia à noção de Representação Social formulada por Denise Jodelet: “[...] forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, tendo um objetivo prático e contribuindo à construção de uma realidade comum à um conjunto social”. ( Jodelet, 1989:36) Jodelet que trabalha a representação social da Aids, neste texto, explicita, através de exemplos, como estas “[...] apoiam-se em valores variáveis, segundo os grupos sociais, dos quais adquirem suas significações [...] ligadas à sistemas de pensamento mais amplos, ideológicos ou culturais, à um estado de conhecimento científico, assim como à condição social e à esfera de experiência privada e afetiva dos indivíduos."(idem).

Representação social[2], nesta ótica, é fundamento da experiência humana, pois nascemos em um mundo já constituído em seus termos: representação social aqui entendo, portanto, como imagens , valores, normas, significações materiais e simbólicas  que instituem o real , em seus aspectos social/individual. Nada escapa ao aspecto instituidor das representações sociais, seja na ciência, seja na formação de um senso comum, da “ verdade científica” à “ opinião”.

 Assim, as “ tecnologias do sexo” ou as “ tecnologias do gênero” expressam, manipulam, ressemantizam, reorganizam, atualizam representações sociais, às quais nos assujeitamos... ou não. A existência de representações hegemônicas não significa uma prisão sem saídas. Nesta perspectiva teórica, representações periféricas, em constante circulação, são parte de uma realidade não homogênea, que garantem o dinamismo do social. O próprio feminismo forma grupos de representações periféricas, ponta de lança de profundas transformações sociais.

Acredito que esta noção de representações sociais, imagéticas ou discursivas, instituidoras da realidade, formadas de valores, crenças e normas, de modelos e evidências em práticas discursivas diversas, é importante instrumental teórico/ analítico para o adensamento da epistemologia feminista, em seus objetivos de compreender os mecanismos formadores de subjetividade e assujeitadores às identidades de gênero.  Quem diz normas e valores, crença e verdade pode de fato, pensar em redes de poder, em representações sociais de certo/ errado, de real/ imaginário, instituindo realidades. Pode pensar igualmente em sujeitos formando-se em campos de possibilidades representacionais, às quais se modela ou se rebela. Os corpos femininos, desenhados em relação ao olhar e ao desejo de outrem, segundo normas de sedução e beleza, expressam particularmente a concepção de representações sociais forjadora de materialidades.

Podemos aproximar desta concepção a expressão   “ matrizes de inteligibilidade” utilizada por Butler, ( Butler, 1990:17), pois de fato, as representações sociais que engendram corpos e papéis são os valores e significados sociais circulando e formando nódulos de sentido, redes de significações, mapas ao mesmo tempo constitutivos e interpretativos do mundo. Butler inicia um de seus trabalhos discutindo a noção de representação e finalmente sua definição não a afasta desta discussão. Diz ela: “[...] o domínio da representação política ou lingüística estabelece anteriormente os critérios segundo os quais  os próprios sujeitos são formados, e  só é valida  a representação de sujeito que pode ser compreendida.” ( Butler,1990: 1)  A inteligibilidade, de fato, pertence a um campo de possibilidades epistemológicas e representacionais, como o feminismo vem mostrando há mais de 50 anos. Como sublinha Elisabeth Grosz, “[...] se a subjetividade não pode conformar-se aos ideias universalistas do humanismo, se não há conceito de ´humano´sem violência, perda ou resíduo, então a totalidade da vida cultural, incluindo a formação e avaliação do próprio conhecimento deve ser questionada tendo em vista a especificidade sexual ( e cultural) de suas posições. “ ( Grosz, 1994:20).

As infinitas possibilidades de agenciamento humano, por exemplo, na história , são reduzidas a um monótono murmúrio sobre o Mesmo em uma matriz de inteligibilidade binária: a sexualidade e o sexo como indicadores de identidade e inserção social, a polarização de forças e valores, a luta entre o bem e o mal, a separação entre corpo e alma, o poder como significante geral. As representações sociais ou as matrizes de sentido, de fato, criam aquilo que deveriam estar explicitando, em sua própria enunciação, repetição, atualização, imagética e discursiva. É desta forma que se percebe a categoria analítica “ gênero”, expressa como construção cultural a partir do sexo biológico, como reafirmadora do sex/gender system, pois um de seus termos – sexo- é uma representação social de evidência biológica.

Questões de gênero e sexo

Na tentativa de afirmar o feminino enquanto sujeito, de dar visibilidade, voz e espaço às mulheres, chegou-se à categoria gênero, incontornável em sua desnaturalização das “evidências” culturais. Vemo-nos hoje, porém, em um impasse: se o binômio instigador de tantas análises -sexo/gênero- aparece em um de seus termos como reproduzindo a naturalização criticada, como repensar o mundo além do binário sexual e sexuado, uma vez que estamos nele inseridos, enquanto gênero demarcado pelo biológico?

Não é por acaso que a análise dos corpos sexuados vem tomando vulto e o nome de Judith Butler ressoa em todos os colóquios. Para esta autora, o sexo

“ [...] é sempre produzido pela reiteração de normas hegemônicas [... ], entretanto, esta produtividade do discurso é derivativa, uma forma cultural de iterabilidade ou rearticulação, uma prática de resignificação, não criação ex nihilo. De forma geral, uma função performativa produz aquilo que nomeia.” ( Butler, 1993:107)

O sujeito desdobra-se então na experiência de um corpo, que ao se assumir, assujeita-se aos sentidos hegemônicos articulados no social, torna-se sexuado. O sexo aqui faz parte das construções representacionais da sociedade, dos valores que se expressam em tais ou tais normas, ancorando no biológico a matriz de inteligibilidade do ser e sua identidade.

Performativo, portanto, pois sempre em processo de produção enquanto núcleo formador da identidade, através de práticas sexuais. Pois o sexo afirma-se em sexualidade e é na necessidade de sua reiteração, na incansável domesticação dos corpos à heterossexualidade que o natural do sexo expõe seu aspecto de construção cultural.

Se o gênero é cultural nada pode assegurar sua correspondência exata ao sexo biológico, explicita Butler, desarticulando o binômio inseparável sexo/gênero. Explicita que, neste caso, o gênero passa a ser um significante flutuante, (Butler, 1990.6) capaz de conter diferentes biologias: um homem lésbico, uma mulher pederasta, o jogo entre representações sociais centrais e periféricas engendra combinações desestabilizadoras.

Considera Butler que “Se o gênero é construído, não acompanha o sexo em um só sentido. Assim, o gênero sugere uma distinção radical entre corpos sexuados e gêneros construídos socialmente. Mesmo se estimarmos que os sexos são dois, binários, portanto, biologicamente, não há nenhuma razão para supor que os gêneros assim o sejam igualmente.” (idem) Ou seja, o sexo biológico, considerado inquestionável, pré-existente, superfície pré-discursiva, aparece enfim como um sentido imposto ao social pelo próprio regime de verdade no qual se apóia e institui, pelas constelações de sentido que criam uma evidência social.

 E a realidade surpreende as formulações teóricas, que aparecem como bizarras: @s jovens gays, de ambos os sexos, inventam na atualidade relações sexuadas e sexuais que invertem e subvertem duplamente os papéis de gênero: primeiramente escolhendo a homossexualidade e a partir desta experiência, remapeando seu universo de práticas sexuais. Estariam, assim, modificando radicalmente as representações sociais, embaralhando seus termos, invertendo ordens e valores, criando matrizes desestabilizadoras de uma ordem que não cessa de se rearticular sempre em esquemas binários traduzidos em poder e violência?

O feminino tem sido atrelado ao corpo, em um binômio corpo/alma, presente na filosofia ocidental (Grosz, 1994:3-13)desde seus primórdios, corpo cuja densidade impede o pensamento, corpo a ser domesticado, domado em seus impulsos, burilado em seus contornos e instintos, para permitir os vôos da criatividade, da imaginação e da ciência, do espírito, enfim. . À representação de mulher-no-singular, entretanto, não é dada a transcendência, pois é jungida a seu corpo, definido em sexo, incapaz de raciocínio, de julgamento, de ser agente da história; esta mulher, diagnostica Simone de Beauvoir, é imanência. Estas representações sociais de mulher e homem, que atravessam todos os domínios das relações humanas, são assim fincadas no sexo biológico, constituindo redes interpretativas, que em própria enunciação ativam as significações simbólicas ligadas a estes termos. Os homens- no plural- têm um sexo e a mulher- no singular, já que todas são iguais- É um sexo, como já afirmava Colette Guillaumin ( Guillaumin, 1978) nos anos 70.

 Impondo uma representação de mulheres plurais,  sujeitos de sua ação e de sua história, os feminismos tem buscado desarticular estes binômios hierarquizados, sem atentar, porém, em muitas análises, para a presença do esquema binário, tal como sexo/gênero. Operador analítico de diagnóstico da construção sexuada dos seres, esgota-se, porém, rapidamente em seu aspecto transformador, pois a constatação da desigualdade não elimina os mecanismos reguladores da assimetria e da hierarquia, fundados nas definições de sexo biológico e de práticas sexuais normatizadas. Assim,  Butler afirma ainda que o “[...[gênero  não está para a cultura assim como o sexo para a natureza, pois o gênero é também o significado cultural/ discursivo pelo qual a natureza sexuada ou o sexo natural é produzido e estabelecido como anterior à cultura, uma superfície neutra politicamente, na qual a cultura age.”( Butler,1990: 7)

Elisabeth Grosz enfatiza que esta perspectiva  vê no corpo “[...] um termo crucial, o local da contestação em séries de lutas economicas, políticas, sexuais  e intelectuais”.(Grosz, 1994:19) Observa, na experiência do corpo,

  “[...] um ponto de mediação entre o que é percebido como puramente interno e acessível apenas ao sujeito e o que é externo e publicamente observável, ponto a partir do qual pode-se repensar a oposição dentro/fora, privado e púiblico, o self e o outro,e todos os outros pares binários associados à oposição mente/corpo.” ( idem, 21)

Preocupa-se em sublinhar que se o corpo não é um material bruto ou pré-discursivo sobre o qual se instalariam as marcas culturais, também não pode ser apenas discursivo, social ou efeito de significação,  destituído do peso de sua materialidade. Vê, na ordem do cultural, uma insuficiência “[...[ que requer uma suplementação natural” ( idem, 21)

Parece, entretanto, esquecer que a noção de prática discursiva, ou matrizes de sentido, com as quais trabalham Judith Butler(1990 e outros) ou Moira Gatens(1999), (classificadas por ela no que chama “ construcionismo social” ), não contorna nem ignora a materialidade. Ao contrário, como propõe Foucault, a análise dos discursos sociais “[...]consiste em não mais tratar os discursos como um conjunto de signos

[...] mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam (Foucault,1987:  56) São, portanto, nesta ótica, as regras enunciativas que instituem os objetos , e em nosso caso, os corpos definidos em sexo e sexualidade, em feminino e masculino.

Corpos, não sexos

 Não apenas discursos significando corpos, mas materializando-os em relações sociais, em relações de poder, na medida em que se concebe o discurso enquanto prática instituidora da realidade. O corpo, por sua vez,  pensado em termos de matrizes de inteligibilidade e como proponho, matrizes representacionais, revela, nas práticas sociais, as regras de funcionamento de uma sociedade, as regras de apreensão e articulação específica dos atores sociais.  Os mecanismos reguladores, enfim, que agenciam os domínios do humano e constróem as divisões binárias do social, em diferentes níveis de saber e conhecimento, desde o acadêmico/ científico,  até a sabedoria popular.

A crítica      “ pós-moderna” da  neutralidade científica, aceitando radicalmente a subjetividade na produção do conhecimento e a produção do sujeito pelo significado, inclui as posições ocupadas nos lugares de fala e de autoridade, ocupados majoritariamente por homens e definidos enquanto masculinos. Como diz o senso comum: “ é uma ótima cientista social, ou empresária, ou diretora ou presidente, ou ministra, apesar de ser mulher” .

 Estes lugares de poder são definidos prioritariamente pela divisão binária do social e do trabalho em corpos e sexualidade e como sublinha Teresa de Lauretis, como uma

“ [...[ divisão de poder social mantido e legitimado pelos aparatos ideológicos que constróem o sujeito social , não um sujeito transcendental, mas constituído em relações materiais e sociais” ( de Lauretis, 1990:128)  E continua “ O gênero é um desses aparatos, cujo solo é a sexualidade e o corpo seu suporte, que re-produz e regula através deste, um poder específico e assimétrico entre mulher e homem, mesmo que outros poderes existam em concorrência. E isto não é um fato biológico, mas instituído pela heterossexualidade.” ( idem)

Afinal, é na instituição de um  corpo sexuado feminino, enquanto evidência,  que se apoiam os sentidos atrelados ao gênero, traduzidos em funções sexuadas e heterossexualidade compulsória. Do sexo biológico decorre o destino feminino e sua própria definição: maternidade, família e casamento, domínio do privado, sensibilidade, fragilidade, intuição, atributos da “verdadeira” mulher. Cahterine MacKinnon(1987), Gayle Rubin (1975),  Monique Wittig(1980) e Adrienne Rich (1981), como assinalei, já apontavam nesta direção ao enfatizar a relevância da sexualidade como chave analítica da apropriação social e individual de um gênero pelo outro.

Representação e identidade

A análise da construção dos corpos vem assim auscultar a dimensão dos mecanismos representacionais, imagéticos, linguísticos, instituidores de sentidos e produtores da realidade das práticas sociais/sexuais. A ela alia-se o questionamento sobre a identidade mas agora para além do sujeito feminino, afirmando-se enquanto consciência e ação no mundo.   Confrontar-se com um vazio identitário, lá onde se pensava haver um núcleo ontológico, é perturbador, convenhamos, mesmo no âmbito do próprio feminismo. Mas a questão hoje  é: em que relações de poder se instaura esta categoria, que mecanismos reguladores de conduta, que matrizes de inteligibilidade ancoram esta representação, cujos contornos continuam a desenhar a imagem da “ verdadeira mulher”, depois de mais de 50 anos de feminismo?

Na ótica das representações sociais extingue-se a questão entre a precedência do social sobre o individual e vice-versa. O sujeito se faz em uma relação contínua entre o mundo interno e externo, criando o espaço de construção da identidade à qual se atrela, identidade atravessada de  lugares e posições, investida  de sentidos densos ou voláteis, trabalhando níveis de assujeitamento, tendo, porém, um horizonte indefinido de opções à sua disposição.

A questão da identidade revela-se crucial, portanto, para  modificação de um regime de verdade que insiste em impor o binário como eixo de apreensão e instituição do mundo.  Como sublinha Butler,

“ [...] a não problematização da reivindicação de ser mulher ou heterossexual é sintomática de uma metafísica de substância do gênero. [...] isto leva a subordinar a noção de gênero à de identidade e leva à conclusão que a pessoa é o gênero e o é a partir de seu sexo[...]” (Butler,1990:: 21/22)  

A análise da instituição de corpos sexuados que implicam na coerência entre sexo/ sexualidade e desejo – heterossexual – leva,  portanto, ao desvelamento de mais um nível de essencialização das relações sociais. Já foi mesmo proposto o termo heterogênero, para apontar a carga naturalista contida nesta categoria, opondo-se a sexo. ( Ingraham,1996) A identidade contida na coerência sexo/gênero é portanto, assumida e não evidente. A sexualidade, as práticas sexuais, inseridas no universo das práticas sociais/discursivas, são constituvas do sujeito sexuado e fazem assim, parte das tecnologias produtoras do sistema sexo/gênero, normatizando a heterossexualidade, como expressão paradigmática do ser.

 Afinal, na enunciação identitária, ouvimos “ eu sou uma mulher” , “ eu sou um homem” ou “eu sou gay” , anunciando no sexo e na sexualidade uma essência do sujeito. A heterossexualidade , como eixo de poder social e político foi e continua a ser importante ponto de inflexão analítico no desvelamento das regras de produção da hierarquia social entre os sexos e do próprio sexo. 

Entretanto, mais uma vez, é preciso não confundir diagnóstico com proposta de ação:não apenas apontar a heterossexualidade compulsória como mecanismo regulatório, mas contemplá-la em conexão com a rede de poderes que nos instituiem enquanto corpos sexuados, sujeitos sexualizados, mulheres e homens, enfim. Divisão binária que ordena a taxionomia dos seres e da natureza e cria para a emoção humana corredores estreitos de expressão.

 A chave da modificação das redes de poder que se alimentam e por sua vez reproduzem a sexualidade enquanto lugar de expressão de si e do outro , articulando todas as dimensões do humano, num feixe de práticas discursivas e não discursivas, está talvez na reelaboração das representações identitárias. E não na substituição de umas por outras. Deste modo, a homossexualidade ou bissexualidade não são respostas ou soluções, pois atrelam-se ainda à sexualidade enquanto fator identitário e sobretudo, a um esquema de sexualidade binário, que existe enquanto referente.

 Reencontramos aqui as noções de experiência, sujeito, corporalidade em torno da identidade. Assumida ou negada, ainda estamos no domínio do binário. Nas teóricas feminisitas que venho invocando para sustentar meu discurso encontro uma confluência na idéia de uma identidade em construção: para Teresa de Lauretis,

“ [...[ a identidade é um locus de múltiplas e variadas posições, que se tornam disponíveis no campo social pelo processo histórico e no qual se pode assumir subjetivamente e discursivamente na forma de uma consciência política. (de Lauretis, 1990:137) Para ela, o sujeito da consciência feminista “ [...] não é unificado nem dividido em posições de masculinidade ou feminilidade, mas multiplamente organizado através de posições em diversos eixos de diferença , discursos e práticas que podem ser mutuamente contraditórios.”( De Lauretis, 1990:137/138) 

O questionamento formulado por Judith Butler aponta para sua concepção de identidade. Pergunta ela:

“Em que medida as práticas regulatórias de divisão e formação do gênero constituem identidade, coerência interna do sujeito e igualmente, o lugar de auto- identificação enquanto pessoa? Em que medida identidade é um ideal normativo, em vez de uma descrição da experiência? E como agem as práticas regulatórias que governam o gênero e também governam as noções culturalmente inteligíveis de identidade? Em outras palavras,  a `coerência`e a `continuidade`da `pessoa`não está estabelecida em termos lógicos ou analíticos, mas sim, socialmente instituídas e mantidas por suas normas de inteligibilidade. “ (Butler, 1990: 17)

De fato, para esta autora, “ [...] não existe gênero fora da expressão de gênero; esta identidade é performativamente constituída pelas ´expressões´que deveriam ser seu resultado”. ( Butler, 1990:25)

Elisabeth Grosz, por sua vez, sublinha a importância do corpo na implantação de uma identidade cultural, na medida em que afirma ser ponto nodal para a definição do status e posição social do sujeito, pois “ [...] marca uma diferença em toda função, biológica, social, cultural, se não operacional, pelo menos enquanto significação.” (Grosz,1994:22)

Finalmente, Rosi Braidotti retoma a idéia da experiência, local de fala de um sujeito em processo de construção identitária, inserido em um quadro social e simbólico:” [...] considero a subjetividade feminina como uma multiplicidade em si mesma: dividida, fraturada e constituída entre nívies de experiência interconectados.” (Braidotti, 1997:44) Neste sentido, para esta autora, a identidade é nômade, transitória, é retrospectiva, mapeando o domínio do já percorrido.

Identidade nômade, os termos parecem abrigar uma contradição; o nomadismo , entretanto, é o operador de uma identidade que só se revela congelada em momentos conjungando variáveis específicas. Eu sou apenas o que já fui e o presente é um magma de possibilidades. E meu comprometimento no presente condensa meus traços identitários, a serem decifrados em meu próprio futuro.

Nesta concepção, quebra-se em mil pedaços as representações identitárias fixas, prisões às quais nos acomodamos ou com as quais nos satisfazemos. Desfaz-se a imagem de corpo atrelada à uma sexualidade normativa, a um desejo amordaçado, e desloca-se, sobretudo, a pulsão de vida em direções múltiplas, que não sejam conduzidas apenas pela expressão de um sexo, de práticas sexuais reguladas e reguladoras. Trata-se de compreender que o dispositivo da sexualidade em ação nos escraviza sob a bandeira da libertação, pois a sexualidade passa a ser a música que nos canta

As análises teóricas feministas, em sua multiplicidade,  percebem o mundo em horizontes definidos por suas condições de possibilidade discursivas e materiais, pois não podemos ter a pretensão positivista de estarmos fora da realidade pela qual somos forjadas. A existência de feminismos mostra o dinamismo e a elasticidade destes horizontes teóricos, perfurados e desestruturados com o desvelamento de seus mecanismos de inteligibilidade e suas matrizes de sentido.

 Esta tem sido a tarefa do “ feminism criticism” e hoje, da epistemologia feminista: reinventar o imaginário instituidor do real, desfazer as representações sociais criadoras de identidades, deslocar relações ancoradas na tradição e na norma, apontar para os espaços de sombra e preconceitos e sobretudo, voltar sua crítica a si mesma, à sua própria produção, a seus instrumentos de percepção e análise do social.

Nesta perspectiva,  a epistemologia feminista pode vivenciar o múltiplo e o plural que reivindica em suas críticas à ciência e às práticas sociais, na medida em que não determine UM caminho de análise ou percepção, mas permita o florescimento da diversidade analítica. O diverso não significa necessariamente o excluído/ excludente, mas na riqueza da retórica, das estratégias e das práticas feministas reside seu dinamismo maior.

Talvez as querelas sejam estimuladoras para alguns, mas percebo um imenso disperdício de forças nas tentativas de definição do melhor caminho, da análise correta. Os feminismos ( Descarries,1998), denominados igualitários, socialistas, marxistas, radicais, separatistas, lesbianos, da diferença sexual ou da feminitude, do gênero, da psicanálise, pós-moderno,  tem seu campo de atuação e dinamismo na medida de sua pregnância no social, da demanda e da resposta que criam em torno de si. De suas próprias condições de produção, de apreensão e representação do real.

O que importa é a não fixação de caminhos absolutos de verdade: afinal, a realidade tal como se apresenta, fragmentada, exige atuações diversificadas, se o objetivo é transformá-la. Estar consciente da materialidade da experiência que nos cria em identidades e corpos, que nos designa lugares de fala,  mas procurar excedê-los, esta é a tarefa crítica do feminismo, perseguindo direções múltiplas, pois a vastidão do horizonte é como o arco-íris: sempre em vista, sempre distante, aguilhão do desejo.   

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  n.7.


 

notes

[1] Ver, por exemplo, a observação do mundo animal, que sempre resulta em interpretações binárias e antropomórficas, projetadas a partir do feminino/masculino humanos. Considerações do tipo: “ o cavalo estuprou a égua” , impossível violência entre estes animais ou a importância dada à linhagem do garanhão em detrimento da égua, chamada “ matriz” e assim por diante, são claras transposições das relações humanas ao mundo animal.

[2] representação social aqui tem um sentido bem diverso de «  representação coletiva”, tal como se encontra em Durkheim. RS , na ótica sugerida, gera e é gerada pela formação social na qual aparece e atua, sempre em um perspectiva dinâmica, sofrendo modificações e modificando o espaço de sua abrangência. Temporal, histórica, a representação social carrega traços de tradições, ressemantiza memórias, atualizando-se porém com os sentidos oriundos do regime de verdade no qual se realiza.