Entrevista com tania navarro swain para a revista Textos de História, feita pelo prof. Estevão de Rezende Martins

 

 

1)                 A escrita histórica contemporânea parece estar cada vez mais dependente das injunções de temas do tempo presente, como no caso dos estudos feministas ou de gênero. Isso lhe parece pertinente? Que itinerário teórico a conduziu a dedicar-se, com a reconhecida proficiência que possui, aos estudos feministas?

A escrita da história sempre esteve jungida às suas condições de produção, ou seja, aos pressupostos, valores que a constroem, representações e interpretações do mundo e do relacionamento humano, em espaços e temporalidades diversas. Neste sentido, a história é sempre uma história do presente, pois se atrela às grades de interpretação da/o analista. A historicidade é, pois, incontornável à própria história, e a importância dada a certos objetos e temáticas está estreitamente ligada às problemáticas levantadas pela dinâmica do social. Afinal, é importante apenas aquilo a que damos importância.

Ao adquirir um caráter “científico” no século XIX, a história passa a narrar o humano no masculino, reproduzindo a misoginia das representações sociais à época, imanentes à produção do conhecimento. Benoîte Groult e Elisabeth Badinter mostram, por exemplo, a construção de um feminino passivo e deficiente, avesso do masculino triunfante, nos discursos fundadores da filosofia. Os espaços sociais e a divisão do trabalho com base no sexo biológico encontram em Hegel, por exemplo, a naturalização do “público / privado”, afastando o olhar analítico das relações e instituição de gêneros em espaços de poder ou exclusão marcados de temporalidade. Em outra vertente, apesar de suas críticas à produção de verdades, Nietzsche não consegue se descartar de sua misoginia quando se refere ao feminino.

A própria agitação epistemológica que, desde as primeiras décadas do século XX,  atingiu não só a história e as ciências humanas e sociais, mas igualmente os movimentos artísticos e literários, trata a produção humana como própria ao masculino. História do humano, advogava Lucien Febvre, contra as descrições positivistas, mas “história viril”, concentrando no masculino a produção de uma “nova história”.

É assim que, dado o pressuposto de sua domesticidade “natural”, as mulheres são apagadas das narrativas históricas que se debruçam sobre o político e o social. Uma vez pré-definido seu lugar, o feminino só aparece em curvas de fecundidade ou em imagens de sordidez, a prostituição transformada em natureza. As próprias lutas das mulheres pelo direito ao voto e à escolaridade, a um lugar na cena política, são relegadas ao anedótico e assim, na memória social, naturaliza-se uma situação de inferioridade, como tendo existido desde sempre, a-histórica.

Os movimentos sociais do século XX, operários e negros, atacaram a univocidade das narrativas positivistas, onde a descrição tomava lugar da análise, e a riqueza ou a raça determinavam os lugares sociais. Nasce a história dos oprimidos, dos “vencidos”. Note-se, porém, que as lutas destes movimentos, apesar da intensa participação das mulheres, foram conjugadas no masculino e assim registradas.

Os movimentos feministas e das mulheres, no século XX, em diferentes países, rasgaram o tecido epistemológico das certezas e das verdades, pois atingiram, em suas críticas, o intocável, o não problematizável, ou seja, a “natureza” humana, fundamento da divisão binária e hierárquica do humano em masculino e feminino, construída em práticas discursivas / não discursivas e narrada em uma história de exclusão da metade da humanidade. Lócus de poder, o masculino se erige e se funda na negação do feminino e um longo combate foi necessário para a obtenção espaços e lugares de fala, em termos de direitos políticos e civis, em termos da própria existência das mulheres enquanto sujeito de suas ações, sujeitos políticos. Que continua em nossos dias.

Os feminismos questionam a própria produção sexista do conhecimento, que descarta o múltiplo das relações sociais e cria uma memória, no caso específico da história, unívoca, onde, em se tratando de gênero ou de sexualidade, tudo se passaria de forma igual, natureza humana ou vontade divina, “sempre foi assim”. É a história do Mesmo, do singular, instituindo a imagem  “ da mulher”, categoria que designa todas as mulheres num mesmo contorno e “o homem”, o universal, a humanidade, “ à imagem e semelhança”.

Em sua extensa produção bibliográfica, as críticas feministas a esta arrogância, que pretende falar da humanidade e das relações humanas como pré-existentes ao social, destilando “verdades”  sobre as práticas construídas em sociedade como sendo imutáveis, criaram, a meu ver, o solo para a desconstrução de um pensamento binário, com pretensões à universalidade, que necessariamente apagam a riqueza inesgotável do múltiplo social. Sempre achei curioso, e de certa forma triste, os/as jovens que alertam, em sala de aula, para o “perigo” do múltiplo, como se a história fosse um território para se aplainar e esconder a eclosão da pluralidade nas relações sociais; “viver é perigoso”, já dizia Guimarães Rosa. Uma história universalizante, a meu ver, apaga a própria historicidade das relações sociais, dissimula as arestas do tempo, daquilo que destoa da ordem do discurso, como a presença e a ação política das mulheres em territórios hoje considerados exclusivos do masculino.Os “perigos” são, de fato, a ameaça à tranqüilidade dos esquemas interpretativos que localizam na natureza o resultado das invenções sociais, como a divisão de trabalho e de importância hierárquica entre feminino e masculino.

 Os feminismos, portanto, não constituem uma temática “na moda” ou um “avanço” qualquer nas relações humanas, quando os homens abririam, condescendentes, um espaço ao feminino, mas, ao contrário, tem representado um abalo sísmico às certezas da ciência, já que questionam a própria existência de uma diferença sexual, e da divisão básica de trabalho e de poder, propondo a análise dos processos de diferenciação do humano, histórico, centrado no aparelho genital. Ou seja, investiga-se a própria criação de lugares separados, de representações excludentes, buscando sua emergência na história e nos discursos sociais, naquilo que Foucault chama de “genealogia”. A pergunta política é: a quem serve a divisão “natural” entre os sexos, com uma ancoragem na “diferença” sexual? Como se institui o “referente” para se apontar o “diferente”? Aliás, e neste sentido, a escrita da história é a construção de uma memória social e, desta forma, revela sua pregnância política, seja na manutenção, seja na transformação das práticas discursivas e institucionais do social.

  Eu diria mesmo que o questionamento, a negação de uma diferença “natural” entre os sexos, do “viril” como expressão máxima do humano e detentor das chaves do político lato sensu, cria uma tal desordem nas relações de poder e no imaginário social, que se prefere silenciar a produção de conhecimento feminista. Assim, a presença de estudos feministas na academia, nas mais diversas disciplinas só tem sido possível como resultado da ação de mulheres cientistas, de embates materiais e representacionais, custando, às vezes, suas reputações e carreiras. Sem falar nos movimentos de mulheres que reivindicam seus direitos, direitos às suas decisões, a seus corpos, a uma vontade própria, à sua representação social enquanto sujeito político.

Neste sentido, acredito que minha trajetória enquanto historiadora e teórica feminista traçou-se na experiência social constitutiva de ser “mulher” e de recusar as injunções que acompanham esta categoria, modelando a “verdadeira mulher”. Minha indignação face às violências perpetradas contra as mulheres, pelo simples fato de serem mulheres, atreladas a uma condição de seres apropriáveis e desfrutáveis, levou-me a direcionar meus trabalhos na direção da análise e denúncia da construção social e histórica do “ser mulher”, tanto em termos de prescrições, normas, leis, costumes, quanto em termos de auto-representações e assujeitamentos aos condicionamentos sociais. Excisão, infibulação, feminicídos, lapidações, mutilações diversas, cárceres privados, casamentos forçados, estupros na guerra e na paz, todo tipo de violência material e simbólica, tráfico de mulheres e leilão de meninas, prostituição,o fato é que, hoje, a mídia impressa e imagética faz da violência contra as mulheres um espetáculo cotidiano, cuja banalização estimula estas práticas. “Mulheres e bebidas”, esta é a imagem da festa.   

Minha repulsa a estas práticas correntes marcou meu trabalho acadêmico, pois não concebo a produção do saber fora do campo político das relações humanas. O que busco, assim, é uma história do possível, aquela encoberta pelos discursos naturalizantes. Uma história do possível, a ser revelada, em que as relações humanas não padeciam necessariamente de uma divisão binária do social baseada no sexo biológico, onde talvez nem existissem as categorias e a divisão de trabalho “natural” entre mulheres e homens, com os sentidos que hoje lhes são atribuídos, ou seja, um binarismo baseado num detalhe anatômico. De toda forma, partindo-se do pressuposto da historicidade das relações sociais, uma história do possível é o desvelamento do múltiplo onde hoje só conhecemos o Mesmo. Uma história do possível é uma história desnaturalizada, que despreza as evidências do presente e se debruça sobre as possíveis relações humanas existentes em formações sociais distintas no espaço e no tempo. É uma história descontínua, pois não pretende apagar a infinita riqueza do humano em uma linha temporal ascendente, fruto de pressupostos fundados na crença ou em sua própria enunciação.

Esta concepção da história implica, como apontei, em um posicionamento político definido, enquanto feminista, no meu caso, e neste sentido é um trabalho cuja concepção do científico recusa a falácia da neutralidade e adverte sobre as próprias condições de produção da analista, a problemática sobre a qual se debruça. Sem pretensões a um universal ilusório, é um trabalho que incorpora uma política de localização e expõe o alcance e limitações de sua posição de sujeito, de seus resultados, sempre provisórios, sempre abertos a novas perspectivas. Trabalho político, sim, pois intenta, de alguma forma e de um lugar parcial de fala, trazer um sopro de transformação nas condições de imaginação e representação, pois é através da consciência de um humano construído em relações sociais e não determinado pela biologia que se pode modificar o ser no mundo e esta concepção fundadora da injustiça e da desigualdade que é a noção de “diferença de sexo”.

 

2)      A prática da pesquisa e do ensino em História forja experiências e preferências. Quais são os momentos mais marcantes de sua carreira profissional?

Acredito que são as experiências que forjam as problemáticas orientadoras da prática de pesquisa e do ensino em História e não o contrário. Quantas vezes não fui acusada de ser feminista, como se fosse uma tara ?  Quantas vezes não fui vilipendiada por não seguir as ideologias correntes? Quantas vezes não sofri o paradoxo de ser chamada de “conservadora” porque não me dobrava aos axiomas marxistas? Para Foucault o papel da/do intelectual é transformar o regime de verdade no qual está inserido e mesmo antes de tomar conhecimento desta proposta, acredito que minha trajetória orientou-se nesta perspectiva.

O momento negativo mais marcante de minha carreira foi justamente a época do totalitarismo de um deus ex machina  marxista, redutor, que impunha suas verdades, suas análises teleológicas e positivistas e só se admitia textos e discussões em torno de tese/antítese/síntese, de dominador /dominado, e de uma futurologia desencarnada de um comunismo paradisíaco, finalidade de toda história humana. Imagem caricatural, mas reveladora de um fascismo ideológico que grassou na UnB durante muitos anos, invertendo apenas o discurso da ditadura militar, para impor a sua.  

Por outro lado, outro momento marcante de minha carreira, desta vez positivo, foi o trabalho com a linguagem e sua materialização em discursos, criadores de realidades e de representações sociais. Quand dire c´est faire, dizia Austin. A construção da realidade múltipla, entre imaginário e materialidades plurais, pelos discursos e seus efeitos de sentido e de poder, em grades de interpretação temporais, passou a ser um caminho de pesquisa, ao mesmo tempo teórico e metodológico, através da Análise do Discurso, notadamente em uma ótica foucaultiana.

Da mesma forma, as perspectivas avançadas por Denise Jodelet a respeito do papel das representações sociais enriqueceram meu instrumental de análise, aprofundando questões com as quais já trabalhava, relativas à imaginação e imaginários sociais, seguindo trilhas abertas por Castoriadis, Baczko e outros. Nessa ótica, representações e discursos imbricam-se na construção do real, composto de materialidades e formações imaginárias, ponto de partida teórico para o trabalho de pesquisa. A docência na disciplina Teoria da História foi muito instigante em minha trajetória, permitindo-me incursões em territórios interdisciplinares, todos sacudidos por uma grande vaga de incerteza e indeterminação (como diria Heisenberg), repensando o próprio conceito de ciência e as implicações da produção do conhecimento e do saber constituído na materialidade das relações sociais. A epistemologia feminista, em suas diferentes correntes, foi crucial neste período, permitindo-me pensar a produção do saber como arma e estratégia política de divisão e imposição de disciplinas diversas.

Neste sentido, em meu entender, a Teoria da História, por um lado, expande-se hoje em um leque de pressupostos que orientam diferentes tipos do “fazer histórico”. Por outro, se as opções teóricas são múltiplas, uma escolha é necessária no trabalho de pesquisa e a minha tem tido como objetivo a busca de uma história do possível, como já observei, da pluralidade do humano em formações históricas distintas, dos sentidos elaborados em relações sociais, materiais e imagéticas, dando contornos múltiplos à “evidência” do unívoco. O pressuposto é a descontinuidade e a impossibilidade total de acesso a um passado inatingível, a não ser através de mediações discursivas diversas. Um quadro teórico é algo definido e delimitado e, nesta ótica, acompanho a proposta de Linda Hutcheon, para quem a teoria se transforma em uma poética do conhecimento, em que os marcos são sempre provisórios os resultados nunca definitivos, pois  o que impulsiona a análise e crítica da construção da materialidade social  é um incessante questionamento a respeito do regime de verdade que a institui, no presente e na interpretação do passado.

O período em que lecionei Teoria da História na Université de Montreal (UdM) e fiz parte do corpo docente do Institut dé Recherches et Études féministes n Université du Québec a Montréal – IREF- foi extremamente importante em minha experiência acadêmica. Foi gratificante a experiência com o alunado da UdM, estimulado por um aporte inovador, pois apesar de constar do curriculum do curso de História, a disciplina Teoria nunca havia sido ofertada naquela instituição.Os resultados foram extremamente positivos nas avaliações dos trabalhos finais e na avaliação dos discentes a respeito do curso.

O período no IREF revelou-se profícuo em meus estudos sobre a produção do conhecimento feminista, pois entrei em contato não apenas com uma bibliografia até então desconhecida por mim, como passei a fazer parte de um grupo feminista engajado acadêmica e politicamente, liderado por Francine Descarries, trabalhando em um clima produtivo, marcado pela harmonia e tranqüilidade, fatores desconhecidos em minha carreira. Aprendi muito destas trocas, aportes incontornáveis para meu trabalho atual. Deste período, resultaram inúmeras publicações e, sobretudo a criação, em 2002, da revista feminista eletrônica, Labrys, estudos feministas / études féministes, internacional, interdisciplinar e multilingüe, no site www.unb.br/ih/his/gefem , hoje já com 13 edições disponíveis on line. Dossiês temáticos, artigos teóricos ou resultados de pesquisa, mais de 200 textos on line, gratuitos compõem os diferentes números da revista, presente no portal da Capes e indexada internacionalmente.

Um outro momento de singular importância em minha carreira acadêmica foi o encontro com a profa. Margareth Rago, cujo traço principal, além da competência, é a extrema generosidade. A partir de seu lugar de fala autorizado e consagrado como historiadora e feminista, Margareth Rago tem iluminado todas/os que dela de aproximam, incentivando e apoiando suas carreiras e pesquisas, bem ao contrário daquelas/es que criam obstáculos e denigrem o trabalho alheio por falta de brilho próprio. Sinto-me gratificada por ela  ter-me distinguido com sua amizade.

 

3)      Que temas lhe parecem, ao longo de sua experiência de pesquisadora cidadã do mundo, carentes de tratamento historiográfico ou de renovação teórica na historiografia consagrada? 

   Nas orientações de monografias, dissertações e teses que realizei e que hoje estão em torno de 30, estimulei uma crítica à historiografia em relação aos objetos estudados, no sentido de rever as afirmações que veiculavam uma constante repetição do Mesmo nas relações sociais, principalmente no que diz respeito à divisão social do trabalho, à sexualidade, à construção dos gêneros, aos papéis instituídos e fundados em um determinismo biológico e, claro, ao processo histórico de diferenciação dos sexos.

Existe a tendência hegemônica na historiografia tradicional a perpetuar os sistemas sócio-políticos baseados em um passado recente, persistentemente eurocêntrico, desprezando as experiências de outras formações sociais em temporalidades diversas. É assim que as mulheres desaparecem das formas religiosas, por exemplo, ou são relegadas a um saber especializado, a respeito dos “primitivos”. Sabe-se, porém, que representações do feminino compuseram a produção imagética de mais de 40.000 anos de história da humanidade, revelada pela arqueologia. Na arquitetura discursiva dos museus, aparecem, entretanto como “imagem feminina”, “figura feminina”, enquanto qualquer objeto ereto ou imagem masculina é nomeada “deus”, “rei”, “escriba” e assim por diante.

As mulheres desaparecem, também, de atividades hoje consideradas masculinas, como o manejo das armas, a produção material, a invenção, a criação artística. A arqueologia atual tem mostrado vestígios que contradizem tais representações, como aponta Jeannine Davis Kimball. Quando se diz “o homem”, supõe-se a inclusão das mulheres, mas no sentido corrente e no imaginário social restringe-se ao masculino. Quem pode afirmar, por exemplo, que os desenhos de Lascaux foram feitos por homens, se é que existia esta divisão sexuada naquele período?

De toda forma, o que tem sido observado nas pesquisas feministas é a construção do humano em formas diversas, que nem sempre fazem distinções de gênero. Isto significa que os discursos e as representações assentam e reproduzem um imaginário binário e hierárquico entre um incontornável masculino, detentor dos poderes sociais e um feminino submisso e assujeitado, num constante processo de iteração. Tudo se passa como se desde os homens das cavernas as mulheres tenham existido como presas e nem sabemos se no tempo das cavernas havia divisões de sexo / gênero. Mas a imagem do homem arrastando uma mulher pelos cabelos faz parte do estoque imaginário social.

Inúmeros achados arqueológicos apontam para a importância de um feminino no social, um sem número de indícios aparecem nos discursos mediadores do passado, mas estes dados não penetram nas bibliografias das disciplinas e no debate acadêmico. São descartados, ou simplesmente não vistos, já que não possuem uma inteligibilidade acadêmica. Ou seja, não fazem parte do que é considerado “importante” para o trabalho científico, do repertório temático inteligível. Se o pressuposto é que as mulheres sempre estiveram “em seu lugar”, ou seja, num mundo privado imutável e a-histórico, esta questão passa a ser localizada em um domínio do não-problematizável, o “natural”. Quem pode afirmar, entretanto, que sempre existiu a divisão público / privado, em todas as sociedades e todos os tempos? Muitos não temem o ridículo ao reiterar tais invenções.

Foucault apontava como caminho metodológico a destruição das evidências e este é o modo profícuo para se desvirtuar as certezas e a determinações positivistas, mesmo que elas se apresentem sob outra denominação. Gayle Rubin aponta o papel da produção do conhecimento na naturalização das relações sociais, como por exemplo, a “troca de mulheres” de Lévi Strauss, que supõe um estado a-histórico em que desde sempre as mulheres eram propriedade dos homens. Como se pode fazer esta pressuposição a não ser baseado em representações imaginárias das relações histórico-sociais humanas? Hoje as mulheres e feministas do mundo todo estão renovando as ciências e questionando seus pressupostos, as transformações estão em curso e as temáticas se desdobram em quase todos os campos científicos.

Quando se fala de Estudos Culturais em que estariam contemplados não apenas as condições materiais do humano, mas também de possibilidade e de imaginação, é claro que não se pode descartar os estudos feministas que contemplam a criação de um sexo social, a produção de um conhecimento androcêntrico e dos sistemas patriarcais que permitem e vêem com condescendência as violências materiais e simbólicas na construção de imagens do feminino e na apropriação social das mulheres. No entanto, a epistemologia feminista não tem aparecido nas bibliografias dos cursos que reivindicam este recorte.

Como afirmam os feminismos, não só o privado é político, mas o pessoal também o é. Assim, desconstruir a idéia segundo a qual existe uma essência determinante do indivíduo, uma coerência interna que representa o eu mais profundo, é uma das práticas feministas: o que é uma mulher? pergunta Simone de Beauvoir. Que práticas e representações instituíram a imagem da “verdadeira” mulher, feita para a reprodução e a domesticidade? Em que momentos da história aparece esta figura e em que práticas discursivas e institucionais é criada?

Radicais, as feministas? Claro que sim, na defesa de direitos das mulheres e, sobretudo, no sentido de raiz, como sublinha Christine Delphy, procurando os fundamentos, as bases daquilo que permite a identificação das mulheres a seus corpos, e ao mesmo tempo lhes retira o poder de decisão sobre eles. Porque é legítimo lutar pelos direitos do operariado, dos negros e não o seria igualmente denunciar o assujeitamento e a apropriação social das mulheres, sua redução a papéis biológicos e sua negação enquanto sujeitos políticos?

Como cidadã do mundo, mochileira inveterada que já visitou uns 40 países, fico perplexa ao cotejar os discursos ufanistas que proclamam “ o feminismo acabou”, “as mulheres já conseguiram seus objetivos” e a crescente violência contra as mulheres, que se espalha na esteira da globalização e se percebe nos mais diferentes locais. Não porque seja “natural”, mas porque a ênfase no masculino vem se espalhando pelo mundo a partir do século dos “descobrimentos”.  Os integrismos diversos se voltam em primeiro lugar para o status das mulheres no social, como no caso dos países islâmicos, em maior ou menor grau, impedindo-as de estudar, sair, falar, mostrar seu rosto, trabalhar, dirigir um carro, andar pelas ruas, existir. E, por favor, não me falem de cultura, pois quando se trata de discriminação, exclusão, violência contra as mulheres tudo passa a se justificar pelo “cultural”.

Se a cultura é composta por práticas sociais engendradas pela própria formação sócio-política, nada justifica o direito à discriminação por sexo, sexualidade, cor, conformação física. Autonomia dos povos? Quando se trata do tratamento imposto às mulheres, isto torna-se argumento, o que não acontece, por exemplo, quando a questão passa pelos interesses capitalistas. Neste caso, o apartheid também seria cultural, porque foi então condenado internacionalmente? Porque os tribunais internacionais julgam crimes contra a humanidade, mas não se ocupam dos estupros como arma de guerra, das lapidações de mulheres por supostos adultérios, da venda de meninas a anciãos, como práticas “culturais”? Afinal, são apenas mulheres, que importa! Não há compromisso possível entre os feminismos e uma ordem, seja ela qual for, religiosa ou laica, que permita a mutilação, a utilização de mulheres e meninas como carne a ser consumida, que delas retire toda possibilidade de se construir enquanto cidadãs e sujeitos de sua ação.

Na geografia da desigualdade, as mulheres, no mundo, são as mais pobres, excluídas do conhecimento (mais alto índice de analfabetismo), as que experimentam as violências materiais e simbólicas mais extremas em seus corpos e em seus processos de subjetivação,  não apenas em tempos de guerra, mas em um quotidiano desenhado em normas e poderes que constroem e instituem a superioridade do masculino e seus direitos de delas se apropriarem no social.

Em âmbito mundial, os governos reconhecem e assinam Convenções que determinam, em seus termos, a necessidade de promover a situação das mulheres de modo geral, para conseguir um índice maior de desenvolvimento humano. É assim que as Nações Unidas, em Resolução aprovada em 2005[1], afirmam, em seu artigo 58, que “[...] el progreso de la mujer es el progreso de todos.”

E em seu artigo 59 declaram que:

“Reconocemos la importancia de la incorporación de la perspectiva de gênero en la actividad general como instrumento para conseguir la igualdad entre los géneros. Con ese fin, nos comprometemos a promover activamente la incorporación de la perspectiva de género en la elaboración, la aplicación, la vigilancia y la evaluación de las políticas y los programas en todas las esferas políticas, económicas y sociales, y nos comprometemos además a fortalecer.” [2]

Está claro que hoje não se pode mais trabalhar em ciências humanas e sociais sem se levar em conta as construções da desigualdade e os direitos humanos das mulheres. Olympe de Gouges, que reivindicou os direitos das mulheres na revolução francesa, foi guilhotinada por ser “desnaturada” e isto é extremamente significativo. No que diz respeito à história, seu papel de memória social contribui para justificar tais exações, criando discursos de tradição e de costumes ancestrais ou para transformá-las, na medida em que aponta para as práticas de violência simbólica e material na construção do sexo social. As imagens e representações carreadas e construídas nas narrativas históricas são parte das pedagogias sociais que instituem as diferenças e, sobretudo, a diferença binária dos sexos de forma assimétrica e hierárquica. Na medida em que o viver não é neutro, é impossível o trabalho em ciência de forma apolítica. 

 

4)      Que etapas marcaram sua formação de historiadora, notadamente a experiência na França?

      Nos seis anos que passei na França, fazendo mestrado e doutorado percorri um caminho  acadêmico dos mais tradicionais. Minha tese de doutoramento foi sobre as estruturas agrícolas e agrárias do Paraná entre 1940 e 1960. Entretanto, meus interesses sempre foram múltiplos e minhas leituras acompanharam minhas inquietações. Desta forma, foi na França dos anos 1970 que comecei a me interessar por leituras acadêmicas feministas, pelos movimentos sociais das mulheres, pelas reivindicações, encontros, análises, debates, passeatas, dos quais participei de uma forma ou de outra.

Quando voltei para o Brasil, em 1980, com diplomas de doutorado e mestrado pela Université de Paris III, Sorbonne Nouvelle,em história das sociedades latino-americanas, trazia também uma enorme quantidade de livros de teóricas feministas; entretanto, apenas cerca de 10 anos depois é que pude começar a trabalhar com este recorte, abrindo espaço de docência, não sem esforço. A implantação de uma área de concentração em Estudos Feministas e de Gênero, em 2002, na Pós-Graduação do Departamento de História da UnB, coordenada por mim e pela professora Diva do Couto Gontijo Muniz foi pioneira no Brasil e, atualmente, o CnPQ e a CAPES apóiam e financiam cursos e pesquisas nestas perspectivas. A competência, firmeza, profissionalismo e apoio da profa. Diva foram de incalculável valor para minha carreira acadêmica e minha vida pessoal, minha amiga de todas as horas e de todas as lutas, não poucas, nem fáceis.

  Não é preciso rememorar em detalhes o difícil processo de implantação desta área, combatida com ferocidade, mas fica a alegria de ter inovado e perseverado, apesar dos obstáculos, abrindo caminho para esta renovação na academia brasileira. Hoje há outro mestrado e doutorado em Estudos Feministas, na Universidade Federal da Bahia, e tem tido um apoio institucional considerável. Em toda parte fazem-se pesquisas e colóquios sobre gênero (onde os homens são os grandes ausentes) e as mulheres sentem-se mais à vontade, hoje, para trabalhar com esta perspectiva.

Entretanto, a palavra “feminista” ainda é carregada de sentidos pejorativos, pois perturba a ordem do discurso / estruturas de poder, e muitas mulheres preferem se esconder sob a alegação: “feminina, não feminista”. Isto resulta, por um lado, de uma profunda ignorância do que são os feminismos e, por outro, do medo de ser rejeitada, de não ser respeitada, se não seguir os cânones da ciência “neutra”, logo, soletrada no masculino. O que se constata, afinal, é que na academia, como na vida cotidiana, luta-se pelos lugares de fala e pela produção de sentidos, pois como sublinha Foucault, existe a rarefação da palavra, os lugares autorizados de produção do saber. Nesta ótica, alguns até se apropriam da produção de conhecimento feminista para alinhá-la em seu próprio nome, como é o caso de Pierre Bourdieu, em seu livro “a dominação masculina”. Nicole Claude Mathieu glosa este texto na revista “Les temps modernes” e afirma que se Bourdieu fosse aluno de doutorado, seria expulso por plágio.

Existe talvez um despertar para a epistemologia feminista, ainda encoberta sob o estigma da especificidade, do privado, da domesticidade, sob a égide de um político redutor e androcêntrico. “O privado é político, o pessoal é político” dizem as feministas desde os anos 1970. De toda forma, não pode existir uma ação mais política que construir um domínio do “privado” para nele enclausurar as mulheres; entretanto, os discursos sobre a maternidade, o destino biológico das mulheres, encobriu nesta estratégia social autoridades diversas, desde a filosofia até a religião, passando pela biologia, psicanálise, antropologia, história e assim por diante. Descarte-se o “sempre”, o ‘nunca”, o “universal” e abrir-se-á um novo horizonte de conhecimento e de relações sociais.

 

5)      Quais são as principais fontes de que se serviu para elaborar sua concepção teórica do trabalho de historiadora? Que relevância atribui, a essas fontes, para a formação de um historiador no Brasil, hoje?

Para a formação de um historiador, é necessário, a meu ver, uma abertura teórica para as problemáticas e produção acadêmica feminista, pois sua contribuição parece-me fundamental para a própria concepção do que é ciência hoje, como procurei discutir acima.

No que diz respeito a meu trabalho enquanto historiadora, considero-o essencialmente interdisciplinar. Os aportes das teorias feministas (com destaque para Teresa de Lauretis, Linda Hutcheon, Colette Guillaumin, Monique Wittig, Adrienne Rich), de Análise do Discurso, de Representações Sociais, do Imaginário e Imaginação Social e, sobretudo, da extraordinária obra de Michel Foucault têm me auxiliado a compor uma interpretação do real e uma concepção de ciência sobre a qual constitui meu trabalho. Algumas noções, oriundas destes diversos vieses teóricos foram nodais ao longo de minha carreira acadêmica, tanto na docência, quanto na produção bibliográfica, tais como: discurso, descontinuidade, sexo social, patriarcado, tecnologias de produção de gênero, dispositivo da sexualidade (ao qual acrescentei o dispositivo amoroso, da violência), processo de subjetivação, assujeitamento, pedagogias sociais, condições de possibilidade, condições de produção e de imaginação, matrizes discursivas, política de localização, inteligibilidade social, matrizes de sentido e muitas outras, suscetíveis de fundamentar minha interpretação do real, etc.

Acredito, como já explicitei acima, que a ciência não se faz mais velando os pressupostos, valores e representações que regem a codificação do real e a elaboração de problemáticas construídas e explicitadas. O objeto é composto pelo sujeito da análise e as escolhas dos corpora que o constituem é uma ação extremamente subjetiva.  A exposição do local de enunciação - quem diz, para quem, o que diz – é essencial para a própria credibilidade do trabalho, seja em história, seja em outras ciências, em meu entender.  

Não acredito em especializações, em uma erudição compiladora de eventos e análises tradicionais, para isto existem os compêndios e as enciclopédias. Por isso a importância da teoria enquanto utensílio de problematizações situadas na busca dos sentidos expostos nos discursos e interpretações das formações sociais. De posse de perspectivas teóricas e de uma metodologia de análise explícitas, todos os territórios do humano estão abertos à pesquisa, sem que seja necessária a leitura de tudo que já foi escrito e dito sobre a temática abordada. Aliás, na busca de uma história do possível, toda interpretação do mundo torna-se fonte, produção do humano.

 Desta forma, considero completamente defasada a divisão da disciplina História em recortes temporais precisos – antiga, medieval, moderna, contemporânea – que expõem com clareza o etnocentrismo e as dobras ideológicas nelas existentes, reservando para as épocas mais “relevantes”, em uma ótica do presente, tempos e espaços mais amplos no ensino e no “fazer histórico”.

Os feminismos se propõem a uma constante metacrítica de seus pressupostos e elaborações teóricas. É assim que, por exemplo, a categoria “gênero”, que nos anos 1970/80 difundiu-se e foi primordial na desconstrução do “natural” das relações sociais, ao apontar o papel do cultural e do ideológico nas relações humanas, hoje encontra-se domesticada pela academia, na medida em que é tomada muitas vezes apenas para significar “mulher” ou divisão de sexos. Sua radicalidade perdeu-se no caminho, pois ao se instaurar no social como sistema incontornável o “sexo / gênero” voltou-se à premissa de que o sexo biológico é “natural” e o gênero “cultural”. Na história, a utilização de “gênero” passou a ser descritiva de um estado “natural” baseado na “diferença sexual”.

Tenho escrito numerosos artigos e realizado conferências por todo o Brasil, tentando mostrar que a diferença sexual é um processo em construção, pois localiza arbitrariamente em um detalhe anatômico o eixo do binarismo. Sua importância baseia-se, obviamente, na reprodução da espécie e as mulheres passam, a partir deste viés, a ser especificidade, corpo, útero, biologia sob controle. Como se todas as mulheres precisassem procriar para existir socialmente e dar continuidade à espécie.... Da mesma forma, a utilização constante e sistemática do singular “a mulher” para designar a imensa diversidade das mulheres parece-me um sinal de reprodução do “natural”. Os feminismos, em sua produção e crítica do conhecimento, as feministas em suas lutas cotidianas continuam a denunciar as injustiças e violências contra as mulheres e pensar um mundo outro. Infatigáveis, destemidas, abrindo espaços e desordenando os discursos.  Afinal, como sublinha Margareth Rago, os feminismos surgiram para libertar as mulheres da “mulher”.

Agradeço aqui, professor Estevão, suas questões, que me deram oportunidade de esboçar alguns traços de meu trabalho e momentos de meu percurso acadêmico. Conhecemo-nos num seminário de Fréderic Mauro, no Institut des Hautes Études d´Amérique Latine , e desde lá, nestes mais de trinta anos de amizade, foi  meu especial colega, aberto à  diversidade.


 

[1] !Naciones Unidas A/RES/60/1,Asamblea General Distr. General, 24 de octubre de 2005 Sexagésimo período de sesiones, Temas 46 y 120 del programa 05-48763, Resolución aprobada por la Asamblea General [sin remisión previa a una Comisión Principal (A/60/L.1)]60/1. Documento Final de la Cumbre Mundial 2005  http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N05/487/63/PDF/N0548763.pdf?OpenElement

[2]Idem. ibidem. Igualdad entre los géneros y empoderamiento de la mujer

Artigo 59. Reafirmamos que el logro pleno y efectivo de los objetivos y metas de la Declaración y la Plataforma de Acción de Beijing22 y los resultados del vigésimo tercer período extraordinario de sesiones de la Asamblea General es una contribución indispensable para que se alcancen los objetivos de desarrollo convenidos internacionalmente, incluidos los que figuran en la Declaración del Milenio, y resolvemos promover la igualdad entre los géneros y eliminar la omnipresente discriminación por motivos de  género: a) Eliminando las desigualdades entre los géneros en la enseñanza primaria y secundaria a la mayor brevedad posible y en todos los niveles de enseñanza para 2015; b) Garantizando el derecho libre e igualitario de la mujer a poseer y heredar bienes y garantizando la tenencia segura de bienes y vivienda por la mujer; c) Asegurando la igualdad de acceso a la salud reproductiva; d) Promoviendo la igualdad de acceso de la mujer a los mercados de trabajo, al empleo sostenible y a una protección laboral adecuada; e) Asegurando la igualdad de acceso de la mujer a los bienes y recursos productivos, incluidos la tierra, el crédito y la tecnología; f) Eliminando todas la formas de discriminación y violencia contra la mujer y la niña, entre otros medios, poniendo fin a la impunidad y asegurando la protección de la población civil, en particular de las mujeres y niñas, en los conflictos armados y después de éstos de conformidad con las obligaciones que imponen a los Estados el derecho internacional humanitario y las normas internacionales de derechos humanos; g) Promoviendo una mayor participación de la mujer en los órganos gubernamentales de adopción de decisiones, incluso garantizando la igualdad de oportunidades de participar plenamente en el proceso político.