Ella Maillart: desejo de infinitotania navarro swain Sou uma apaixonada por Ella Maillart. A aventura sempre me fascinou, o que me valeu uma vida de viagens, mas, infelizmente, desprovidas de desafios extremos. Ella foi uma mulher que fez da independência seu caminho, da coragem seu alicerce e sua vida constituiu uma ode à liberdade, à busca de horizontes ilimitados, de recantos ignotos. Sua sede de percorrer o mundo fez da aventura um modo de vida, construindo a si mesma como um sujeito de ação, de reflexão, de autonomia. Grande esportiva, Ella praticava todos os esportes, amava o esqui, o mar e seus horizontes sem limites, os navios e barcos, o trbalho insano da navegação a vela, uma vida sem as restrições de um quotidiano banal, trabalho/transporte/casa. Não era uma mulher excepcional, pois em um passado recente ou Longíquo sempre houve mulheres prontas à aventura, ao risco,à descoberta, às proezas extremas que exigem do corpo todas suas forças e capacidades. Começamos a descobrí-las, aos poucos. Desde muito jovem, Ella praticava o esqui, esporte no qual se tornou campeã. Havia também treinado a navegação àvela no lago Leman, na Suíça, com sua amiga Miette, durante anos a fio. Com 19 anos fundou um clube de hockey no gramado e velejou pelas cores de seu país nas regatas olímpicas de 1924. Única mulher na competição. Para fugir do conformismo bem comportado da Suíça, Ella decide sair de casa e ganhar sua vida, o que de imediato não consegue com muito sucesso: começa com aulas de francês em uma escola de meninas na Inglaterra - e isto não se enquadrava muito bem com sua idéia de liberdade! Mas o mar e os portos estavam sempre próximos e Ella tenta e consegue logo um emprego de marinheira, pois havia tirado sua licença de navegação. De início grumete, cozinheira, depois marinheira e em seguida Imediata em vários navios, cruza o Canal da Mancha de alto a baixo e navega nos complicados canais dos Países Baixos.O fato de ser mulher não parece ter atrapalhado esta trajetória. Ella tudo conhece e sabe fazer em um navio e logo desperta a admiração dos marinheiros mais rudes. Enquanto Imediata, ela comanda a equipagem, dirige as manobras, admite e licencia marinheiros. Aparentemente o fato de ser uma mulher não cria problemas pois ela foi engajada em vários navios. Nos anos 1920 a misoginia era talvez menos acerba que costumamos crer.
Em 1925, Ella havia realizado um sonho : cinco moças de cerca de 20 anos embarcam no Bonita, um antigo iate a vela, que as conduzirá de Marselha a Atenas. Esta viagem ancora o desejo de Ella de viver sua vida no mar, entre profundezas e horizontes [1] Esta foi uma viagem inesquecível, nos prazeres do mar e da amizade, prelúdio de outras aventuras. " Não relatarei aqui o que foi este cruzeiro no Bonita. As palavras são incapazes para descrever certas emoções [...}Recuso-me a aprisionar nossos atos no modelo rígido das frases: quero que vivam sempre em mim aquele dia no esplendor de nossa juventude, aquele outro fertilizado pela semente da qual germinaria meu futuro." (VM, 119) Pouco importava os horários impossíveis, exigidos pelo comando de um navio, pouco importa o cansaço de longos períodos de quarto no timão, há sempre o vento do mar, o movimento do barco, a luta contra a deriva e as tempestades. Isto é a vida, isto foi a juventude de Ella, o desejo de ir além dos portos conhecidos, da navegação de cabotagem: ela aspira às ilhas do Pacífico, ao alto mar que guarda com ciúmes seus mistérios e explode em perigos desafiadores. O gosto da aventura que a cinge, torna-a febril, impaciente, abre-lhe todos os portais do imaginário que não busca senão sua realização. " [...] é uma exaltação de preparativos para uma nova expedição quando, ajoelhada diante das cartas marítmas, você se deixa ganhar pelos horizontes infinitos que se abrem [...] em seguida[...] a ação, com sua sucessão de preocupações, de enjoos, de prazer intenso [...] de orgulho no timão de um navio, quando você se sente tão inocente quanto uma criança que acaba de nascer e em perfeita comunhão com o vento divino" (VM,329)
a aventura histórica As mulheres de aventura realizaram ( e realizam atualmente) proezas além das possibilidades da grande maioria dos homens; além disto, não eram práticas de mulheres de exceção, mas de uma infinidade de mulheres que não se colocavam no molde da "verdadeira mulher" assujeitada aos estereótipos e à dominação do masculino. Não era nem mesmo um questão de resistência, pois a divisão de tarefas entre masculino e feminino nem se colocava. Ella escreveu, quando procurava um emprego de marinheiro: " Na releitura desta carta, percebo que nada permite que se saiba que sou uma mulher, mas tenho certeza que isto não tem importância, pois na verdade todos os marinheiros se parecem e sou marinheira primeiro e antes de tudo"(VM,37-37)
As narrativas históricas, bem como grande parte da literatura insistem em nos fazer crer em um só perfil para todas as mulheres, ao longo da história da humanidade: a frágil criatura mal dotade de cérebro e razão, incapaz de criar, de escrever, de produzir, de agir e de pensar. Sua existência só seria justificada por sua capacidade de reprodução, mas unicamente enquanto vaso depositário de uma semente masculina. A partir destas imagens incansavelment afirmadas pelos discursos sociais e "cientificos" as mulheres foram colocadas fora da história, da arte, das descobertas, das proezas. Impedidas de agir e de criar, foram qualificadas em seguida de incapazes. Repetida e sublinhada ad nauseam, uma imagem única das mulheres foi assim erigida em verdade e desta forma, a infinita diversidade do humano foi apagada: resta a inamovível "natureza" dos sexos, tabula rasa da profusão e da diversidade das formações sociais ao longo dos milênios. Há, deste modo, duas perspectivas: 1 - as mulheres são apagadas da história política, econômica, artística, social; 2- a imagem "da mulher" incapaz e submissa se installa no imaginário social de tal maneira que a idéia mesmo de mulheres ativas, sujeitos políticos, sujeitos de seu destino e de sua ação torna-se impossível. Míticas, as Amazonas? A possibilidade de sua existência faria desabar um edifício laboriosamente construído sobre a "natural diferença dos sexos". Da mesma maneira, o brilho desta mulheres de aventura poderia empalidecer as proezas dos homens. Ou mostrar imagens de mulheres não submissas nem assujeitadas a uma “natureza” improvável. Assim , foram apagadas, riscadas da história. O medo masculino da concorrência restringe suas ações e desta forma as possibilidades para as mulheres de mostrar suas capacidades. Por que os esportes são sistematicamente divididos por sexo? É tão somente pelo medo dos homnes de sofrer uma derrota. As formações sociais são construídas pelas representações que elas mesmas engendram. Analisar uma sociedade a partir da categoria"gênero" sem auscultar os valores e imagens que dela fazem parte é anacronismo. De fato, sem um olhar crítico, o "gênero" envia de volta à "natureza" dos sexos, pois retoma a hierarquia e a dominação masculina como ponto de partida. Enquanto historiadora proponho levar em conta a multiplicidade dos gêneros, em temporalidades e espaços diversos, mas recusando as generalidade, pois, ao se aprofundar de maneira mais acurada descobre-se na história tesouros de possibilidades e de arranjos sociais que não limitam necessariamente os indivíduos nos moldes de identidades sexuais /de sexo. O período de entre guerras - os anos "loucos" - foi fasto para as mulheres que sonhavam com independência e liberdade. Assim, nas narrativas de Ella encontramos muitas outras exploradoras que como ela, viajam sozinhas, nos países mais isolados e quase desconhecidos. Mulheres, como por exemplo,Virgine Hériot foram conhecidas por suas proezas na navegação. Em agosto, em Amsterdam, a bordo o iate Aile VI, Virginie ganha a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos e em 1929 retoma a Coupe de France, que estava na mão dos ingleses. Ela venceu também a Coupe d´Italie e a Coupe do Rei de Espanha; contou com mais de 130 vitórias em competições internacionais. Foi esquecida, como tantas outras esportistas, exploradoras, aventureiras. Aquelas que não escreveram livros ou cujas vidas não foram narradas posteriormente, deixaram de existir no imaginário social enquanto sujeitos de ação e aventura, de exploração, de descoberta. E foram esquecidas e apagadas das narrativas históricas. Ella Maillart descreveu-a assim, por ocasião de uma visita feita por Virginie ao navio no qual ela trabalhava: "Ainda a vejo, sua silhueta se recortando na madeira de nossa cabine, um turbante branco e azul marinho amarrado em volta de sua pequena cabeça. Seus cílios sublinhados pela mascara enquadravam imensos olhos cinzentos, da mesma cor que seus cabelos [...] Ela era tão pequena e frágil[...] Mas foi esta mesma mulher que tudo abandonou para viver o ano inteiro a bordo de sua goelette "(VM, 334)
Virginie era uma mulher apaixonante, a quem sua época rendeu homenagem concedendo-lhe mesmo a Legião de Honra. Mas suas proezas ficaram nos porões da história pois, segundo os preconceitos habituais, as mulheres seriam incapazes de navegar, de se arriscar em aventuras de exploração em terra ou no mar, por causa de sua "natureza". Estes mesmos preconceitos quando presidem a produção do conhecimento histórico fazem-nos ler que a divisão do trabalho e a hierarquia entre os sexos foi a mesma desde sempre. A literatura, aqui, restitui à memória social as proezas das mulheres, apagadas pelas narrativas históricas.
desejo de infinito
Em seu livro, « la vagabonde de mers » Ella explode de vitalidade e de alegria de viver. Exprime seu desejo de mudança, de descobertas, de movimento e o cruzeiro no Bonita , só de mulheres, é para ela "[...] um pedaço de meu passado, não consigo evocá-lo sem emoção." (idem) A aventura acaricia suas palavras, o futuro está ao alcance das mãos e sobretudo, exerce a liberdade de decidir sobre sua própria vida, sua direção, suas pausas; levantar as velas, jogar a âncora em tal porto, é a lingagem do mar, mas é também a metáfora de toda uma vida. " [...] diferente de uma excursão de verão, este cruzeiro não tinha nada a ver com um fim nele mesmo. Nós viamos nele um prelúdio de toda uma existência de plenitude et de limpidez"(idem) Todavia, Ella sente uma certa inquietação face a um futuro que não se anunciava de forma muito brilhante, pois não havia terminado seus estudos e não se interessava pelos negócios de sua família. O que fazer? Em todos seus livros aparece esta interrogação, dúvida que não a impede, entretanto, de prosseguir seu desejo de aventura e de infinito.. Ella está sempre em construção e sua escrita, de fato, é uma escrita de si. Escrevendo, ela se institui e cria um sujeito em movimento. faz, assim, uma cartografia dela mesma.Este sujeito que se diz não é o mesmo que já foi, em todo lugar e toda circunstância. A memória, quando Ella escreve seus livros, atualiza as imagens que tinha de si e de seu percurso enquanto sujeito de ação. Em sua vida e em sua escrita, Ella materialza a noção de sujeito nômade: aquele que fora, que não é mais e que será apenas em um momento do presente, logo ultrapassado. Um sujeito inacessível pois está em construção permanente. A finalidade da busca de si é uma finalidade nela mesma e tomará um lugar central ao longo de sua vida. Ella permanece na Índia durante 5 anos para acompanhar o ensinamento de um sábio, inflexão na singularidade de seu caminho. Esta etapa é narrada em seu livroTi-Puss. Com suas dúvidas e hesitações, ela vai em frente, sozinha ou com companheiros/as ou grupos que de passagem para realizar suas viagens e seus sonhos de liberdade, de horizontes sem limites, de independência. Ella é um sujeito nômade que se refaz a todo instante e sua atividade preferida, o esqui, reproduz esta imagem, impalpável, uma mancha que se move ao vento, descida, subida, queda, avalanche .Ella diz: " Se até agora em minha vida, nunca fiz nada de maneira contínua, creio que devo isto ao esqui. Assim que o inverno se anunciava, a lembrança dos esquis lançados sobre a neve fresca me enchia de um desejo lancinante e onde estivesse [...] interrompia o que estava fazendo ou cessava de me aborrecer a respeito do que devia ter feito e corria para as altitudes" (CC , 135)
Não há estabilidade senão no movimento. Sempre com pouco dinheiro , Ella viaja de maneira mais barata, na terceira classe, dormindo ao abrigo das estações quando às vezes havia uma espera de vários dias para a possível e eventual chegada de um trem. Pouco importa. " O calor, os percevejos que saiam dos bancos de madeira, os mendigos esfomeados que avançavam para o trem a cada parada eram odiosos, mas nada conseguia diminuir minha alegria: eu havia deixado Moscou longe atrás de mim e a estepe se mostrava agora ao alcance da mão sob seu rude aspecto de terra nua."(CC,79) Não há, para Ella, limites identitários tais como nacionalidade, gênero, condição social, língua, deste modo penetra em toda brecha que se oferece para a realização de seu desejo de aventura, de conhecimento e diversidade. Quer seja nas montanhas ou nas estepes asiáticas, quer seja nos ashram indianos, seu caminhar é orientado pelo movimento, pela aspiração de ir mais longe, mais alto, apesar das penas e do desconforto. " Mas prefiro morrer que voltar pelo caminho que fiz para ir, o que significa: ´Para a frente!´"(CC, 124) Berlin, Moscou, Ella quer sempre mais: percorre o Cáucaso em 1930, viagem narrada em um pequeno livro: o sucesso de sua venda assegura-lhe uma soma suficiente para retornar à Asia. Em 1932, Ella percorre o Turquestão russo, durante mais de 6 meses. " A primeira noite que passei sobre a terra árida da Ásia foi inesquecível: enfim meu olhar encontra a abóboda ininterrupta do céu[...] enfim, o vento que sopra parece um elemento poderoso e primordial e varre, em seu caminho, todo um continente: meu ser é penetrado por esta sensação nova de imensidão."(CC,80) Em seus livros encontramos um pouco de tudo: peripécias, perigos, detalhes, os tipos físicos encontrados, os medos, as penas e sobretudo, o encantamento. Para Ella, a viagem é uma vida vivida inteiramente, não há senão o presente, o destino se encontra na possibilidade do futuro, a chegada é, com efeito, um pesar. Para as amantes do viajar o translado, a diversidade, o imprevisto é isto que importa. O resto, acontece. Em 1934, Ella vai para a Manchúria e conta esta viagem em Oasis interdites : de Pequim a Srinagar, na India, onde chega em 1935. Durante sete meses percorre uma distância de 6 ooo km. Se atualmente esta travessia seria no mínimo complicada, não podemos senão enaltecer a coragem desta mulher intrépida que a fez há quase oitenta anos atrás. A pé, a cavalo, em camelo, de trem, Ella não hesita entre montanhas e vales, sempre levada pelo desejo de diversidade e conhecimento. Desejo de aventura, desejo de infinito. Em 1937 atravessou a Turquia, o Irã, o Afeganistão, atingindo a India; já em 1939, partiu em um Ford, de Genebra à Cabul com sua amiga Annemarie Schwarzenbach. De 1940 a 1945 esteve cinco anos no sul da Índia, período no qual se iniciou à meditação, sem abandonar, entretanto, suas viagens, passeios, períodos de repouso do calor nas montanhas. Tinha sempre a tendência de minimizar suas proezas, pois diz várias vêzes que em suas viagens não acontecia nada. Sua travessia da Asia foi pontuada pelas guerras sino-japonesas, -nas quais a Manchúria foi invadida[2] - e pelas rebeliões contra a coletivização comunista, " Em toda parte onde se vá, a guerra parece iminente" (OI,32) diz Ella. As estradas estavam muitas vezes fechadas por causa de epidemias de peste, de cólera, de bandidos, de neve; os aborrecimentos administrativos para obter os vistos necessários, as barragens militares eram uma constante. "[...] Não tenho visto e sei que se eu entrasse atualmente no Sin-Dang seria imediatamente aprisionada como suspeita. Quando me informei em Moscou sobre este visto, disseram-me que seria necessário esperar a resposta pelo menos por seis meses"(CC,104) Mas ela irá assim mesmo! Os itinerários e planos deviam ser modificados segundo as circunstancias, as revoltas, as barragens, as condições das estradas: " A pista principal do Tsaidam ao oásis de Cherchen conduzia a um posto de fronteira fortemente vigiado e longos meses se escoaram sem que ninguém pudesse passar por lá. Mas se nós seguissemos um caminho alternativo através do Tibet setentrional teríamos mais possibilidade de entrar no Sin-Dang, sem sermos presos. Para isto, seria necessário viajar a uma altitude de cinco mil metros, passando por vales desertos onde a água era rara e onde podíamos andar duas ou três semanas sem encontrar viva alma." ( CC, 185) Ela tem sede do novo, o desejo de ir lá onde o solo não foi encore pisado: " Diante de nós há milhares de quilometros a serem percorridos, meses felizes de viagem e de descoberta. Que não daria eu para penetrar no desconhecido!" (CC, 104)
Ella foi uma grande etnógrafa, pois em sua itinerância presenteou a Europa com mais de 16 000 fotografias, cujos negativos foram depositados no Musée de l´Elysée, à Lausanne.[3]. De início com uma velha câmera, tipo caixa, depois uma Leica, um presente, que lhe permitiu conseguir as mais belas fotos. Deu a conhecer, através de seus livros, a vida dos nômades, seus comportamentos, as relações entre os sexos, os costumes, a vida quotidiana, os utensílios, a alimentação, lazeres, habitat. Ella conta também a história das colonisações repetidas, das guerras, dos mohameds contra os mohameds, dos sultões contra os emires, os soviéticos, chineses, Douganes ( chineses muçulmanos), mongóis, japoneses, ingleses, heteróclita composição entre lutas e invasões sem fim. Nesta época ( os anos 1930) não se conhecia quase nada sobre estas regiões e seus povos. Nestas imensas extensões, os ocidentais eram raros. Ella juntava-se às caravanas que iam de um oásis a outro e na maior parte do tempo, sozinha entre os indígenas: ela vivia sua vida, comia sua comida, dormia nos mesmos catres, sofria os mesmos ataques de piolhos e pulgas. Como eles e elas. Na mesma pobreza, com quase nada como bagagem, como conforto. Sem falar a língua indígena, com intérpretes ocasionais. Mas feliz. " Então, colocamo-nos em marcha na direção das grandes solidões da Asia [...] Liberta dos entraves criados pelos homens, a vida que amo se abria diante de mim: eu sabia que nenhum dia seria a repetição do precedente e que de cada um eu poderia esperar algo de novo"(CC, 180-181)
Sinkiang- Turquestão chinês
" Janeiro 1935. Pequim, um grande vento do oeste empurra em sua frente um muro opaco de areia amarela"
É assim que Ella começa sua narrativa sobre a travessia " de uma mulher através da Ásia Central", como ela sublinha no subtítulo de Oásis Interdites. Desta vez ela não viaja só, é acompanhada por Peter Fleming, jornalista inglês, mas ela teria certamente preferido ter viajado sozinha, dispondo do tempo a seu bel prazer. Prepara-se para um longo périplo nas regiões onde alguns europeus desapareceram, outros foram aprisionados, outros ainda assassinados. (OI, 17-19) " [...]Nada mais me importa, tudo em mim se volta para a Asia central",(OI,20) afirma. " Vamos entrar em uma parte do país onde ninguém tem a permissão de viver, com exceção de alguns caçadores que dispõem de permissões especiais[...]" ( CC, 102)
As indumentárias, os tipos físicos, tudo a encanta, mesmo a viagem em um caminhão superlotado, agarrada às bagagens em cima, sacudida e empurrada, nada a incomoda além da conta. Está na Asia . A viagem em caminhão, que dura uma semana é no mínimo pitoresca: " [...] somos umas vinte pessoas que se seguram, no alto das bagagens, agarrados pelas mãos, pelos calcanhares, para resistir à pressão dos vizinhos, eles mesmos quase deslizando, torturados pelas caibras"(OI,48) Para dormir, quando o caminhão pára, Ella comenta que: " Nós tiíhamos apenas nossos sacos de dormir, que desenrolávamos sobre a k´ang, a plataforma elevada em terra batida que constitui a única instalação das casa chinesas e que se pode esquentar por baixo"OI, 44) No caminho, Ella fica chocada diante do destino e da dor das mulheres chinesas que encontra, com os pés mutilados por bandagens. Desde a infância, os ossos de seus pés são quebrados para curvá-los e tranformá-los em um espécie de casco de cavalo. É bonito, dizem! " A visão de seus pés mutilados, como cotos pontudos, que batem no chão com um ruído surdo, me corta o coração, quando elas andam, seus joelhos parecem desprovidos de articulação: grotesca imitação de bailarinas sobre as pontas dos pés" (OI, 35)
Durante mil anos os homens exigiram a pequenez dos pés, para que uma mulher seja valiosa no mercado do casamento. A excisão nos países africanos ou muçulmanos muitla ainda selvagemente o sexo das meninas pela mesma razão. São práticas utilizadas para domar as mulheres, para impedí-las de se movimentar, de fugir, de se revoltar e para prevenir uma livre sexualidade. A dor e o sofrimento tornam as mulheres mais dóceis à domesticação. " Quantas vezes, na beira da estrada, vi uma mãe apertando as bandagens sujas em torno dos pés de sua filhinha, pobre coisa resignada. As crianças, lamentáveis, sérias precocemente, são exploradas assim que suas pernas tornam-se sólidas: aqui estão quatro que manejam um arado primitiivo, sob os olhos de um homem que descansa[...] a seus pés, na poeira, uma mãe e uma cadela, igualmente humanas, igualmente aleitando sua progenitura. (OI, 57)
Todas estas práticas, assim como a exigência da virgindade, o uso do véu, a interdição da contracepção, que são incitadas principalmente pelas religiões tem uma só finalidade: uma apropriação cada vez maior dos corpos e do trabalho das mulheres. Na China, apesar do desenvolvimento econômico atual e meio século de revolução comunista, a escolha do feto masculino, no quadro da política de um filho único , criou um desiquilíbrio populacional no qual 100 milhões de mulheres estão ausentes. São, assim, mais do que nunca, objetos de troca e, sobretudo de venda, para os casamentos arranjados e mesmo para satisfazer todos os homens de uma família, incapazes de pagar individualmente os preços pedidos. Nas grandes cidades as mulheres instruídas, com um emprego, devem ganhar menos e ser menores que seus pretendentes. Caso contrário, tornar-se-ão "solteironas", desprezadas [4] É um patriarcado sempre em ação, que para melhor assujeitar as mulheres, primeiro as desprezam enquanto nascituros e em seguida as inferiorizam e submetem às necessidades dos homens. É esta a lógica que é preciso destruir!
o quotidiano Ella nos informa igualmente sobre a situação instável da população das cidades por onde passou: " A situação é grave : há poucos dias a cidade quase caiu nas mãos dos comunistas. Estamos sem notícias de dois casais de missionários que vivem na linha de frente e não podemos fazer nada por eles....[...] há alguns anos [...] nos campos atrás de nossa casa, os cadáveres se amontoavam, tornando o local inabitável. Durante o cerco, centenas de mortos foram devorados pelos famintos cada dia"(OI,38) Narra a vida quotidiana de alguns povos, entre os quais os camponeses de Honan e de Sensi, que moram em cavernas destruidas pelas avalanches de terra durante as chuvas. Descreve a paisagem: " Esta terra impalpável confere o caráter mais marcante da paisagem chinesa. Corre com a chuva, escapa pelos interstícios dos cestos nos quais os camponeses a transportam. A noção mesmo de uma rocha, de uma pedra parece pertencer a um outro planeta." (OI,46) Os estrangeiros são suspeitos de espionagem e as autoridades não cessam de criar empecilhos para a continuação da viagem. Além do fato de ter passaportes, cartas de apresentação, é preciso conversar, negociar e sobretudo, esperar, por um tempo indeterminado. A espera faz parte da viagem na Asia.
O deserto é monótono, o calor e o frio se alternam, avistam-se vê-se alguns asnos selvagnes, às vezes algumas caravanas ou grupos isolados de mongóis. Todavia, o deserto é também um apelo, um fim em si, uma recompensa dos esforços e das dificuldades inerentes a toda viagem. " As montanhas do sul desapareceram atrás de um véu de poeira e como do alto da popa de um navio, vejo o círculo completo do horizonte. Neste deserto imenso, sob o céu vibrante, parece-me que a alma se concetra e durante um instante, com força, sinto-me longe de tudo, separada de tudo o que sei e como tendo chegado ao cabo de mim mesma." (OI,120) Os encontros não são sempre agradáveis, pois a crueldade dos homens, o prazer que sentem de matar , de causar sofrimento seja às mulheres, seja aos animais ou outros homens é uma constante em toda parte. Ella descreve a selvageria da matança de um pequenino asno: " Nós os seguíamos e alcançamos um grupo que se formou em torno de um koulane, cuja pata foi quebrada por um velho Doungane misântropo [...] o pobre animal, o casco pendente em um pedaço de pele era ainda chicoteado pela crueldade inútil dos homens que o seguram por um cabresto e depois de alguns passos sobre o coto, acaba por cair. Em vão em seus olhos , arregalados, a vítima parece pedir ajuda. [...] Enfim, um grande golpe de faca lhe corta a garganta [...] Para impedir as convulsões, os homens se sentam sobre a vítima, que expira enfim, as pernas de súbito esticadas." (OI,111) Se há necessidade de matar para comer, por que fazê-lo de modo tão odioso, por que esta necessidade de ver o sofrimento, de experimentar a dor de outrem? É com certeza este desejo de poder, de se sentir poderoso ao matar ou quando se decide da vida e da morte de alguém - humanos ou animais. Nazismos e todas as ditaduras semelhantes, estupros como arma de guerra, abatedouros, cadeias industriais de abate , criação em confinamento, matança de baleias e golfinho e tutti quanti. Sem falar da crueldade pura e simples com os animais domésticos. A novidade da viagem não traz necessariamente algo de novo sobre os homens. Mesmo assim, Ella aprecia ao mesmo tempo a solidão e as pessoas e saboreia cada instante de sua viagem- os cheiros, os gestos que se tornam habituais, as paradas, as fogueira feitas com esterco, as delícias do chá fervendo, o silêncio e o vento. " Amo esta vida primitiva na qual a fome transforma em alegria cada pedaço que se mastiga, a fadiga sã que faz do sono uma voluptuosidade incomparável e o desejo de avançar que cada passo realiza. (OI,100) "...]Em torno de meia noite enfim, adormecemos, sem tenda entre nossos olhos e as estrelas que, no ar seco dos altos planaltos , parecem escorregar do céu." (OI,116) O caminha de Ella Maillart nos leva de vales magníficos aos rudes desertos, das solidões das montanhas aos perigos das fronteiras. Ao chegar ao Sinkiang, recém-saído de guerras, há o perigo da prisão arbitrária (OI, 187) Pensavam mesmo ter sido aprisionados ao confiscarem seus passaportes e a espera que se segue é angustiante até a resolução feliz de sua situação : eles são libertado! Nós, em plena leitura, suspiramos aliviadas. Para chegar a este ponto de sua viagem, quanta fadiga! " Estamos na beira do imenso Takla Makane, o mar de areia que sobre mais de cem km forma o Turquestão oriental.[...] Neste deserto absoluto, o calor nos atinge tanto quanto a diferença de altitude.[...] Partindo às seis horas da tarde, seguimos em breve a pista sob a claridade das estrelas. É preciso ir a pé para poupar os animais.... Cansaço intenso.... Mais uma vez, trata-se de aguentar, de passar uma hora e depois mais uma. Um pouco antes de meia noite, deitamos sobre a terra, reconfortados um pouco por um quarto de água salobra com uma mistura de conhaque. "(OI,186) Mas a viagem é também feita de risos, de alegria, de cantos, de encontros felizes com pessoas agradáveis. O que é afinal a fadiga diante dos horizontes, a aventura de todos os dias, as descobertas? Mesmo os perigos apimentam os translados, a adrenalina que sobe, o que vai acontecer? A aventura é o vivido dos acontecimentos, o romance em capítulos, a respiração cortada tantas vezes diante da incerteza dos caminhos: poderei continuar? Poderei afrontar os guardas de fronteira, os bandidos, a sede, a exaustão? E as quedas do cavalo? Ella e Peter caíram muitas vezes, sem grandes consequências, mas foi pura sorte: quebrar um braço, uma perna, o quadril e é o fim da viagem. A aventura, é a dúvida!
Há também as dores na coluna, nos músculos, o corpo que se rebela de ser tão maltratado. " Se estou novamente a cavalo é porque um dia de trote em meu burrinho e sem dúvida também a comida gordurosa de Tchertchen provocaram-me um reumatismo tal que durante várias semanas o menor movimento me valia uma dor aguda" (OI,200) Ella chegará às Indias, o último destino desta longa viagem? Quem ler seu livro, saberá! O Turquestão russo que Ella palmilha em 1932 representa também uma longa e apaixonante epopeia: parte de Moscou para os Monts Célestes em Kirghisie, passando pelo deserto das areias vermelhas, no Uzbesquistão. Sempre com o transporte disponível: a cavalo, camelo, a pé. Os detalhes saborosos, as estradas duvidosas são ainda descobertas, outros povos, outros costumes, um desafio, um regalo. A aventura, é Ella. Relato a ser lido, definitivamente! Nas regiões dominadas pelos muçulmanos Ella observa também a situação das mulheres que trabalham da manhã à noite, comem por último, (CC,90) usando pesado véus, consideradas como animais a serem trocadas ou vendidas.CC,190) Esta situação, em muitos países que Ella atravessou não mudou nada, graças ao islamismo e às tradições patriarcais e misóginas muçulmanas.
Ti-Puss, mon amour
" Seu estado civil : Madame Minou Wildhusband nascida Ti-Puss.[...] Ti-Puss, quintessência da alma felina, alia, em seus humores mais diversos, a intensidade à beleza e à flexibilidade" (TP, 11) Ella inicia seu livro assim. Ti-Puss personifica, para ela, " a plenitude do momento presente". Ti-puss é um livro para as amantes dos gatos e dos animais e também para os apaixonados por Ella. Ti-Puss (Ella faz um jogo de palavras entre o inglês – pussy, diminutivo de gato- et Ti (petit) puce, termo carinhoso em francês ) é um bebê gata que Ella adotou, na Índia e que a encantou. E me encantou também. É meu livro preferido Ti-Puss é movimento, em transformações e em caráter. Ela não pertence a ninguém e Ella está bem consciente disto. " Eu lamentava o fim de sua juventude inocente e sempre espantada, durante a qual ela fora minha, quando podia ler seus pensamentos e meu poder a impressionava. Agora, impenetrável, ela tem seu próprio mundo,o verdadeiro mundo dos gatos, fechado à minha compreensão. Sou eu, a partir de agora que pertencerei à minha gata e estarei à sua mercê, quando ela, condescendente, ficará comigo. " (TP,110) Enquanto em seus outros livros ela narra sua interação com o exterior, neste é sua viagem interior que nos expõe. O sujeito nômade que se encontra na dispersão apresenta-se aqui sob a forma de uma busca consciente da perda de si. Ti-Puss está no centro de suas meditações : " Entre outros exercícios espirituais, sirvo-me da gatinha como evocação [...]Este movimento interior nada tem de maquinal , varia todos os dias e leva muitas vêzes além do pensamento, em seguida segue esta meditação: ´Sinto teu calor e ouço teu ronronar, vejo-te como tu me vês e saboreio a paz somente porque o poder da Consciência ilumina estas experiências[...] Sem a intermediação da linguagem, ela nos acorda a possibilidade de comunicar. No santuário de nosso coração, a consciência pura, infinita, imutável, fora da qual nada existe.´" (TP,163. Quando Ella adota sua gatinha, frequentava o Ashram de um sábio, em busca de uma tranquilidade, de um apaziguamento, uma espiritualidade, depois de suas viagens na Ásia e após ter vivido dois anos sozinha em uma vila indiana. Nada se fica sabendo sobre este período, Ella não se abandona facilmente, dá-nos apenas alguns fragmentos, aqui e ali, deste momento. Quando frequentava o Ashram, Ella se instalou em um pequeno quarto e iniciou uma certa rotina quotidiana. " Passo meus dias no ashram e partilho as refeições de meio-dia com o Sábio. Todos os dias tomo uma ducha. Quando volto à noite, adoro a acolhida impaciente de Ti-Puss, miando atrás da porta e ronronando assim que a acaricio. " s (TP,16) Durante todas suas proezas nos desertos asiáticos, Ella nunca se queixou do calor como o faz neste livro. Na India o calor é insuportável, eu sei, já o experimentei, um calor de 400 à noite. As pessoas colocam suas camas nas ruas para ter um pouco de ar fresco. Lencóis molhados ajudam, mas secam rapidamente. " O calor aumenta e sufocamos pois, instintivamente hesitamos a inspirar um ar cuja temperatura é duas vezes mais elevada que do corpo. A poeira torna-se uma praga na hora em que o sol pálido se põe, em um turbilhão de folhas mortas. (TP,28) De noite, esgotada pelo calor, deitada de maneira a ficar dissimulada pela borda do terraço, eu me molho com uma esponja [...] " (TP,30) A literatura de viagem, a meu ver, descobre mais que qualquer outra sua autora. Não há esta busca sob os personagens ou através suas emoções a presença da autora. Ela está naquilo que escreve, sua dor na coluna, sua fadiga, suas alegrias, revela-se um pouco, dá- se a conhecer, sinto-me aspirada por sua narrativa e, sobretudo, por seu próprio personagem. " A gata parece aprovar , lambendo-me delicadamente a face, enquanto uma vaga de amor rola em meu coração e a maneira pela qual ela empurra seu focinho sob meu braço me diz que não estou sozinha e que a alienação não existe. Eu a afago, perguntando-me até que ponto nós nos compreendemos e se uma amizade excepcional vai crescer entre nós. Seu ronron exprime instintivamente a felicidade que vem de me ser revelada, e por isto eu choraria. " (TP,51) . Sinto como se estivéssemos tão próximas,eu viajo com Ella. Seus livros são um itinerário de prazer e de descoberta, aflijo-me com ela pela barbárie contra as mulheres e os animais, mas saboreio também o vento do deserto, a embriaguez das montanhas, o cheiro do mar, as cavalgadas na direção de um horizonte sem fim. E eu sofro com Ella do calor, do medo de perder sua gatinha amedrontada e selvagem ao mesmo tempo, durante os transportes, nos ônibus cheios , nos trens superlotado . Os livros de Ella são eles mesmos uma aventura. Na Índia os europeus são numerosos e tem uma vida à parte, sobretudo os ingleses, nos anos 1940. Ella, entretanto, vive com os indianos, como é de seu costume, mora em um pequenino quarto ( com terraço, por favor!), come como eles, viaja em terceira classe. Sua mobília consiste em duas caixas para fazer uma mesa, seu saco de dormir e uma chaise longue, presente de alguém. E claro, seu inseparável fogareiro. Sua gatinha vem alegrar sua vida, povoá-la, fazer-lhe companhia. É a "outra" de seu diálogo interior. " Por pena de mim mesma, desejava ter um animal para cuidar . Vim para Tiruvannanmal a fim de viver próxima de uma Mestre que representasse a sabedoria hindu. [...] encontro-me trôpega, do início ao fim no árido silêncio do Vedanta, que no fim dos Vedas propõe a essência do conhecimento hindu [...] Uma tendência sentimental me leva a desejar, como recompensa, um brinquedo vivo para acariciar quando quisesse fugir da realidade. Tenho necessidade de sorrir de novo." (TP, 13) Ella é, de fato, uma estrangeira em um país estrangeiro, cuja língua ela não fala, mas ela é estrangeira também entre os europeus, empertigados em suas roupas inadequadas ao calor, que a olham com suspeita. Ella é consciente disto. Mas não se aborrece, não dá importância, pois o valor de algo é aquele que lhe conferimos. « Ti-Puss, estes Ocidentais me parecem estranhos e estrangeiros. Os indianos também. Nós estamos bem juntas, as duas e estou feliz de ter você... » (TP, 40) Diante de um parque e um lago desenhados à maneira inglesa, Ella comenta : " Nenhum destes privilegiados desconhecidos nos convidará, digo a mim mesma. Mas onde está minha gata? No abrigo de um banco, ela observa dois cachorros basset conduzidos por um casal de idade, com sapatos de golfe, roupa de tweed, chapéus de feltro. Se a bondade em seus olhos me alegra, ela me faz também sentir meu exílio. Ti-puss a meu lado, sorrio aos movimentos da água: nós duas não tomaremos um chá à moda inglesa"[...]Por outro lado, foi minha escolha" (TP, 52) Ti- Puss é o pequenino animal que a acompanha por toda parte, em suas mudanças, perdida várias vêzes, encontrada, o medo da perda definitiva sempre presente. Afinal, como proteger um gatinho, como transportá-lo sem o perigo dos empurrões e desencontros nas multidões que viajam na Índia? " Em busca de calor, as patas dobradas sob ela, Ti-Puss ronrona sobre meus joelhos, satisfeita de minha imobilidade. De tempos em tempos, ela questiona, com um pequenino grito, seus olhos brilhando à luz da lâmpada de petróleo. Eu coço seu queixo. ´ Teus desejos estão realizados? Estás feliz?´ Uma vibração sonora aquiesce saindo da garganta até a caixa torácica,que se dilata ou se contrai segundo o ritmo de sua alegria, pequeno dínamo vivo, que deveria acompanhar os melhores momentos de minha vida durante os próximos anos.! Às vezes ela desperta em mim uma felicidade latente em cada um de nós, depositada desde a origem de todo ser vivo " (TP,45) Ti-Puss é o único livro em que Ella exprime sua emoção em torrentes, apesar de que, em outras ocasiões, pode-se sentir sua perturbação. Por exemplo, Ella perde seu querido cavalo Slalom ( CC,187) na China, pela falta de comida adequada e das fadigas da viajem; ela teve que abandoná-lo e isto a perseguiu por toda a vida. " Slalom me olha : sobre seus olhos imensos, suas sobrancelhas se tornam acentos circunflexos. Slalom parece enraizado. Forneceu o máximo que lhe era possível[...] Mas agora é preciso deixar Slalom, este amigo sobre o qual vivi tantos dias inesquecíveis. Beijo-o no focinho [...] e parto, deixando atrás de mim meu pequenino cavalo imóvel na solidão." (OI,176) O abandono dos animais é extremamente penoso para Ella, mas ninguém parece se incomodar com isto, entre os que a acompanham. Eu, leitora, sofro com ela e lamento todos estes animais chicoteados, o dorso ferido, purulento, todos estes animais maltratados, sobrecarregados, esgotados e finalmente abandonados na solidão das planícies áridas para morrerem sós. A respeito de sua camela, Ella observa,9o9o9o " Perle está abaixada, como desgostosa do mundo, tem um forte odor de podridão. Levantando o feltro que cobre seu dorso, sem a carga pela primeira vez há muito tempo, descubro uma ferida aberta, purulenta, entre suas duas bossas. " (OI,175) Muitas vezes, durante suas viagens Ella deverá tratar os animais, cujos lombos estãp quase sempre em carne viva, com vermes, mas sempre carregados ao máximo, um sofrimento inominável. Raramente os viajantes falam dos animais em seus relatos, a maneira como são tratado, cuidados, utilizados. Ella é uma apaixonada pela natureza e pelos animais. Mas não costuma se deter sobre suas emoções e sentimentos que ficam em seu lugar reservado. Comenta, entretanto, a questão : " [...]cada vez que vou me apaixonar, não demorava a constatar dolorosamente que aquilo pelo qual estava apaixonada era a idéia que tinha do amor " (VM, 101) Ti-puss é uma exceção. Em suas meditações sobre o ensinamento de seu Sábio, a pequena gata é o objeto e a ideia do amor. " A gata, tão viva que se tornu parte de mim mesma, tinha-me acordado para o amor, ´O Amor sendo o verdadeiro Eu´ de maneira que amamos por amor do Amor. E quando, brevemente, atinjo o cimo do amor, nem a gata, nem minha própria pessoa limitada não existem mais e atinjo a dimensão sobrenatural do amor contra o qual o tempo não pode fazer nada." . (TP, 191) Este livro seria a alegria de toda a gama de psicólogos e psiquiatras de todas as escolas, ávidos de encontrar os meandros das emoções humanas, a culpa é da mãe, a sexualidade latente em cada respiração . Mas como em todos os livros de Ella, este é uma busca, um caminhar que se faz na experiência da vida que leva que a constrói enquanto sujeito de sua ação. O ponto central aqui é Ti-Puss. Limitado ao estrito mínimo, a vida de Ella na Índia a limita e a libera ao mesmo tempo: os vastos horizontes tão amados na Ásia não estão mais ao seu alcance, mas ela trabalha aqui as dúvidas e hesitações que pontuaram suas narrativas anteriores: sua liberdade interior se expande. Ella é aqui um sujeito em desconstrução, em busca da perda de si. " Poder-se-ia dizer que cada vez que consegui sublimar minha luta interior, atingindo assim ´a ordem natural´ a gata sentia esta paz e esta harmonia próprias às pequenas crianças e aos animais, igualmente desprovidos de objetivação, sem revolta e que não foram expulsos do paraíso. Eles vivem espontaneamente sua plenitude que é a felicidade sem que o saibam, enquanto nós temos consciência de sermos felizes, quando o somos." (TP, 69) Ella ensina sua gatinha como se fosse um cachorro, que assim a acompanha por todo lugar, livremente. Ti-Puss segue-a correndo à direita e à esquerda, cheirando todos os odores, brincando com as folhas, medrosa e aventureira ao mesmo tempo, certa de ter o porto seguro dos braços de Ella, para protegê-la e acolhê-la. Ti-Puss às vezes foge para explorar a vida e deixa Ella em desespero, quem sabe como encontrá-la? " A menos que minha imaginação me engnae, nossa compreensão lhe proporcionava uma alegria sutil[...] Graças a ela, encontro-me ligada ao presente, ela me obriga a viver o detalhe do que encontramos no caminho e não me lembro de nenhum passeio tão agradável quanto os que fizemos juntas[...] Eu tinha consciência aguda de que a cada instante ela podia decidir de me abandonar, assim cada um dos passeios era realmente um milagre. ´ (TP,155-156) Elas passeiam todos os dias e é a ocasião para conhecer os lugares por onde passam, lugares magníficos de cor e de vida, povoados de macacos, pássaros, chacais, panteras, tudo! As viagens em trem eram épicas, é preciso saber empurrar, sofrer com calor e o barulho, mas é também um espetáculo, entre brigas, conversas, querelas ,problemas entre as castas, confusões por causa de lugares: " Esta mulher desagradável, cujo sari vermelho revelava os cabelos cortados rentes, de uma viúva, ficava sentada constantemente evitando ser tocada[...]E a viúva resmungava, com um tom ameaçador, a respeito das trouxas que se encontravam na rede em cima dela [..] Uma cômica personagem entrou então e conseguiu domar a aborrecida viúva [...]Todos os bancos do compartimento eram paralelos e ela logo subiu sobre o seu, preparando suas respostas à agressão da outra e como falava-lhe acima do encosto que as separava, parecia que estávamos em um espetáculo de marionetes. Consciente do efeito produzido sobre o auditório, lançava suas flechas de uma maneira que encantava todo mundo [...] As quarenta mulheres do compartimento riam com vontade , mesmo a horrível viúva. Até a gata parecia apreciar este alegre humor [...](TP,128-129) Ella estava na terceira classe, no vagão das "senhoras" e narra também a história de uma moça que havia perdido sua bolsa no buraco da toalete e amotinou o trem, que logo parou. Os homens descem aflitos, o que se passa, as mulheres intervém, todo o mundo fala e explica os acontecimentos a todo mundo. A moça desce com o chefe do trem e volta sem nada. Ella se diverte muito... e eu também : " No terceiro ato, a moça descabelada bate no peito, cai no chão imundo, enquanto suas vizinhas procuram acalmá-la [...]Enfim aparece um policial de short cáqui e quepe de papelão vermelho [...] Todas as mulheres do compartimento estão de pé em seus lugares, observando com o maior prazer o espetáculo, indagando-se se a moça desempenhava bem em seu papel e a natureza humana é feita de tal forma que eu não era a única a ter vontade de rir e reclamar um bis. Os que preferem viajar em primeira classe não sabem o que perdem" .(TP, 131) A história de Ella a e Ti-Puss é uma história de amor, de companheirismo, de busca, de desconstrução de si, de perda. A separação é sempre trágica, sempre feita de dor, pode-se meditar e impregnar da ideia de afastamento das coisas materiais, da ausência de desejo, o fato é que a separação rasga e magoa. Ti-Puss, em suas fugas, seis semanas aqui, um mês ali, atinge Ella profundamente e ela vagueia, como um fantasma que percorre os caminhos habituais, chamando por toda parte, baixinho, " vem, meu amor, estou te esperando" Como era Ti-Puss ? " Ela poderia ser parente de um morcego com suas orelhas grandes demais[...] Ou de serpente, quando se esgueirava no mato na direção de um pássaro, piando em um arbusto. Da lebre ainda, quando pulava nos campos incultos [...] Ela se tornava uma carpa quando, no mato alto, balançava lentamente a cauda no ritmo de uma nadadeira [...] No crepúsculo seus olhos eram duas esferas negras na face pálida e quando suas orelhas apontavam para a frente em uma interrogação, ela parecia uma corça amedrontada". (TP, 157) Ti-Puss tinha uma quantidade de faces, de movimento, transformação de humor; entretanto, elas se compreendiam, faziam companhia uma à outra, passeavam, meditavam, dormiam, comiam juntas num entendimento quase perfeito. As fugas não eram realmente fuga, apenas escapadas, viagens de exploração que as faziam perder seus encontros, na estação, na nova casa, no caminho do passeio. A pequenina gata de Ella era também uma mulher de aventura!!! " Eu tinha consciência o tempo todo que a cada instante ela podia decidir de me deixar, " (TP, 156) Com sua gatinha listada Ella viveu um caminho iniciático de posse e de perda, de afastamento e de intensa ligação a outrem. Ti –Puss era sua âncora, aquela que permitia a partida do barco, com as velas estufadas, que singra as ondas da meditação, da filosofia , que ensina o desligamento de tudo: " Quando amo um gato, é essencialmente minha noção e minha necessidade pessoal de amor que a ama, tendo em vista que me condiciono a reagir a certos traços. Assim não posso me aproximar do amor senão de um único objeto e o objetivo é atingido de toda maneira, pois o amor criou o gato [...] Mas eu estava longe de chegar a este nível transcendental."(TP,192) Três longas fuga, além de algumas escapadas passageiras deixam Ella sempre alerta, temendo uma separação definitiva . Numa destas ocasiões Ella narra: " Eu me dirijo para a porta, ela me segue impetuosa, ronronando, a cauda ereta. Sua espinha se curva sob minha mão, enquanto que com a outra eu empurro a porta. Ela hesita no portal, cheirando a paz noturna [...] Vai lentamente para o cais, senta-se longamente atrás de um tapume, se orienta, sua coleira branca se destacando na obscuridade [...] Ela não se volta nem uma vez para me olhar. Pertence à noite. Não deveria revê-la durante um bom tempo. " (TP, 132-133) Ella está sempre pensando sobre sua extrema ligação com sua Minou (nome carinhoso dado aos gatinhos em francês), dizendo-se que é uma armadilha sentimental e que sua realidade não é unicamente física. (TP,199) Mas ela se diz também que ´toda esta filosofia é vã´,(TP,1135) o que ela quer é reencontrar as brincadeira, a ligação, os grandes olhos e o ronron apaziguador de Ti-Puss. Ao fim de cinco anos na India, (TP,214) seguindo os ensinamentos do Sábio, dos quais três com sua gatinha, Ella parte para o Norte, uma viagem de um mês no Sikin e no Tibet. Ella deixa Ti-Puss com uma amiga e na manhã da partida, " Eu esperava encontrá-la se espreguiçando ao sol perto da varanda. Levantei-a, ofereci-lhe leite fresco, trouxe-a de volta a seu canto ensolarado apertando-a contra meu rosto, tão macia, tão abandonada e doce como cachemira. " »(TP,225)
Foi a última vez.
Toda uma série de circunstância fez com que Ti-Puss fugisse amedrontada pelas pessoas novas que se instalaram na casa onde ela estava. Quando Ella voltou, a gatinha não estava lá para acolhê-la. Duas semanas se passaram e Ella errava à sua procura: ´Eu a chamava durante todo o caminho, parando, ouvindo, o coração batendo, acreditando muitas vezes ouvir um miado. ." (TP,230) É um grito de desespero, uma imensa tristeza e o sentimento de solidão que se instala em sua vida com o desaparecimento de Ti-Puss. " Minou, minha bem amada, volte para mim uma última vez, permita-ma pegar- te em minha mão e te dizer adeus se tu estáscerta de preferir a liberdade [...] Volte, volte para mim, preciso que me dês um sinal"(TP,231) Eu mesma me sinto abatida. Vivo sua perda, sinto sua tristez. As lágrimas invadem meu olhos. " Minou que amo, onde estás? estou partindo. O que são estes ruídos, seria ela vindo para mim, a telepatia agindo como tantas vezes antes? ? Minou, pela última vez, eu te chamo.. Minou vem! Adeus...Adeus.... [...] sozinha, começo a subir a montanha" (TP, 236) Alguma coisa se quebrou. Ti-Puss ficou na jungle humana. Ella partiu. Ella me deixou. Adeus, Ella. Com suas lacunas e mistérios, viagens e aventuras, com seu desejo de infinito Ella Maillart viverá ainda muito tempo... com mais de 90 anos, ela nos abandona. Quem sabe para encontrar Ti-Puss.
Bibliographie Maillart, Ella. 2001.Des Monts Célestes aux sables rouges. Paris, Editions Payot et Rivages idem . 2002. La vagabonde des mers. Paris. Editions Payot et Rivages idem . 2002. Oasis interdites, Paris, Editions Payot et Rivages idem. 2001. Croisières et caravanes. Paris, Editions Payot et Rivages idem. 2001. La voie cruelle. Paris, Editions Payot et Rivages idem. Ti-puss. 1996. Paris, Editions Payot et Rivages [1] "Quand j'étais matelot" témoigne d'une expérience libératrice partagée sous le soleil de Grèce , Edition 2004 - 279 pages Elles étaient Hermine de Saussure, universitaire, capitaine de Bonita,. Ella Maillart, second du bord, Marthe Oulié, auteur, voyageuse et archéologue, Mariel Jean-Brunhes, géographe, future ethnologue et militante humaniste. Yvonne de Saussure, sœur aînée d'Hermine. [2] guerre sino-japonaise 1937-1945, invasion de la Mandchourie en 1931 [3] http://www.elysee.ch/fr/annexes/recherche/?tx_mnogosearch_pi1%5Bq%5D=ella+maillart&tx_mnogosearch_ pi1%5Bl%5D%5B%5D=&tx_mnogosearch_pi1%5Bl%5D%5B4%5D=2&tx_mnogosearch_pi1%5Bl%5D%5B5%5D=6&tx _mnogosearch_pi1%5Bwm%5D=wrd&tx_mnogosearch_pi1%5Bm%5D=all&tx_mnogosearch_ pi1%5BsearchMode%5D=advancedMode&tx_mnogosearch_pi1%5Bsubmit%5D=Rechercher+maintenant+%21 [4] Le nouvel observateur, n 2407/2408, pg 63 |