O dispositivo amoroso e tutti quanti: as artimanhas do patriarcado 1
setembro2023 É de minha autoria a categoria “dispositivo amoroso [1]” que criei há muitos anos, tomando de empréstimo a noção de “dispositivo”, definido por Foucault, como um sistema de coerções normativas, leis, instituições, tradições, costumes, aquilo que determina e compõe as relações sociais. Os dispositivos regulam o funcionamento do social: no caso da sexualidade, o sexo torna-se o pivô das normas e limites/ obrigações, impostas pelo social, assim definindo uma hierarquia entre feminino e masculino, este último como dominante. No dispositivo da sexualidade identidades são forjadas a partir do sexo biológico, estabelecendo-se a Ordem o Pênis, do Pai, ou seja, o Patriarcado com todos seus tentáculos e obstáculos impostos às mulheres. Tudo circula em torno do pênis , referendado pela ligação do masculino com a deidade, pois “criado à imagem e semelhança”, supõe a existência de um pênis: deus é pai e, nas maiores religiões monoteístas, cria e justifica uma confraria entre os homens. Na santíssima trindade o pai e o filho estão na ordem do pênis, a mãe é substituída pelo espírito santo, como dar um lugar ao feminino? A “ciência” durante muito tempo classificou as mulheres como seres inferiores, assimilando-as às crianças e loucos. Logo, até a ciência é subsumida, pelo aqui nomeio de “dispositivo da masculinidade”, uma nova categoria. Porém, é preciso sublinhar que este dispositivo não é universal, nem atemporal, pois existem e existiram sociedades nas quais as mulheres não eram consideradas inferiores. A indigência de uma “história mal contada” , centrada no masculino, faz crer que assim foi desde sempre ou situa um “matriarcado” numa antiguidade remota, evoluindo para um “patriarcado” glorioso e dominador. Logo, no dispositivo da masculinidade, cria-se um imaginário social no qual a noção de superioridade masculina é outorgada pela presença de um pênis, impondo-se como verdade; ou seja, aos pênis, o poder, o topo da hierarquia, as posições de decisão, de comando e julgamento, de posse, de herança, de direitos civis e políticos, religiosos, inculcados desde o despertar para a vida. As mulheres devem obediência ao pai, ao marido e em seguida ao filho, dizem os chineses, os muçulmanos, inclusive as ocidentais num passado não muito longínquo. O sistema de crenças portanto, não é apenas religioso, é uma rede social da qual faz parte a ciência, pois recolhe a população e a distribui em categorias definidas em hierarquias. Assim se desdobra em dispositivos vários : da violência, da exclusão, do racismo, da misoginia. O vetor principal é assim, o “dispositivo da masculinidade” que engloba todos os outros, uma denominação substitutiva de “patriarcado”. De fato, por uma questão didática, pode-se pensar a categoria “patriarcado” como o arcabouço teórico, imaginário, simbólico e normativo, tendo o “dispositivo da masculinidade” como seu braço executivo, sua expressão material. Revela-se uma aliança, na qual os homens solidificam a condescendência entre si, em relação aos ditames sociais. Formam de tal modo uma classe, uma confraria, ordem unida pelo pênis, qualquer um a ela pertence, desde que possua o órgão “abençoado”. Todas as raças confundidas, na pirâmide social os homens são colocados em degrau superior às mulheres, segundo sua imaginária superioridade. Aliás, esta pretensa superioridade NECESSITA de
algo ou alguém que se produza como inferior, do contrário
não há hierarquia. As mulheres, metade ou mais da humanidade
são assim consideradas inferiores aos homens, os negros aos brancos
, e assim por diante. Vale dizer que os homens negros são considerados
superiores às mulheres negras, dotados do órgão
“precioso”. O pênis é, portanto, o símbolo do poder
de uma classe social sobre outra. É o que chamo de “história mal contada”,
silenciando e acorrentando a história do possível, de
todas as possiblidades de agenciamento do humano. Sistêmicos, interligáveis, os dispositivos se unem no da masculinidade, abrangem todos os escaninhos do social em graus mais amplos ou exíguos, espalham ramificações em todas as direções, em configurações imaginárias com foros de verdade. De fato, o que se constata é que o dispositivo da masculinidade se encontra entre as pernas, não deriva da força, da inteligência, da perspicácia, da habilidade, capacidade, de uma superioridade qualquer. É apenas um sinal para marcar a dominância, um penhor para tomar o poder , para criar e manter uma classe solidária, sem que nada justifique esta coesão. Para dominar, os homens necessitam ter algo que os distinga, que os marque de forma inequívoca face à alteridade do feminino. Esta é a função do pênis. Seria o pênis um substituto do cérebro, da racionalidade, já que apontam sua carência em relação às mulheres? Violência, discriminação, exclusão,
menosprezo, assujeitamento, objetivação, silenciamento,
desdém, assédio, ameaça, estupro, assassinato,
cada um deste itens são referendados pelo patriarcado, de forma
explícita ou subjacente, no imaginário e na materialidade
pelo dispositivo da masculinidade. O estupro coletivo, de preferência
tendo como vítima meninas impúberes é uma expressão
clara da irmandade que une os homens no tratamento dado às
mulheres. O dispositivo amoroso é sutil, é insidioso, invisível, é um processo de convencimento posto em ação sobre as mulheres desde a mais tenra infância quanto a seu papel na sociedade, inserindo-as em um imaginário social pré-determinado. Seu eixo é o “amor”, o cuidado, a complacência, o perdão, a introjeção da culpa por não ser a “verdadeira mulher”: a mãe domesticada, atarefada, descabelada, porém esposa perfeita. Mesmo com um trabalho, cujo salário pode ser até superior à dos maridos, ela “ajuda” com as despesas pois no desenho patriarcal, o homem deve ser o provedor. A dupla ou tripla jornada de trabalho fazem parte integral do dispositivo amoroso. Amar aqueles que delas abusam, maltratam, amar e silenciar sobre os pais e parentes estupradores, amar as tarefas que lhes são impostas, este dispositivo se reveste de um caráter quase religioso. “Amar o próximo” é tarefa das mulheres, seja pela coerção familiar ou social, seja por seu próprio assujeitamento. O cuidado, o serviço, abrangem os doentes, os velhos, as crianças, os animais tarefas para as quais os homens estão sempre indisponíveis. No dispositivo amoroso o feminino é passividade, sujeição, doação, perdão, obediência, deriva entre humilhação e assujeitamento. A perda de autonomia, a dependência afetiva, os entraves à sua liberdade fazem parte do dispositivo amoroso, alimentados pelo imaginário social, que compreende a linguagem, a educação, a família, a mídia, todos os meios de comunicação, as tecnologias que atuam no convencimento e na naturalização dos papéis sociais: as novelas, as séries de TV, os filmes, os sermões, ditados, etc. É preciso agradar e servir os homens, é preciso ser submissa para angariar migalhas do “amor” , para sentir-se adequada, desejada, pois uma mulher sem homem, sem “amor”, não seria ninguém no imaginário social. A “solteirona” é menosprezada, pois não se insere nos ditames do dispositivo da masculinidade. Portanto, deve ser ridicularizada e banida dos laços sociais; entretanto, a figura da mulher que escapa à rede patriarcal é um perigo, algo a ser combatido e eliminado. A solteirona e mesmo a lésbica são válvulas de escape ao domínio masculino e o dispositivo da violência a elas de aplica perfeitamente. As teias do patriarcado se tornam invisíveis, imperceptíveis, poderosos instrumentos que moldam as mentes e as consciências das mulheres. Criam e dispersam o dispositivo amoroso para gerar uma submissão consentida, atendendo todas as exigências masculinas. Pois ser macho é dominar, é subjugar, é impor, decidir, controlar, dispor dos corpos das mulheres; já que estes lhes pertencem, para o sexo, para a venda de seus corpos, para a procriação, para trabalhar, produzir, lhes “dar” um macho, novo depositário das prerrogativas ligadas ao pênis, assegurando assim a permanência do poder. O dispositivo da sexualidade, espelho do patriarcado, não é senão o exercício arbitrário do poder masculino sobre a metade dos seres humanos, sem absolutamente nada que o justifique, a não ser um imaginário social que define como verdade a pura fantasia da superioridade masculina. O dispositivo amoroso é o assujeitamento elevado à última potência, pois faz crer às mulheres que tem um destino, uma função, que a exploração de sua mão de obra e de sua sexualidade são dados naturais. Um carrasco deve ser objeto de amor, este, instrumento de recuperação. Como ensinam os padres. O dispositivo amoroso é um emaranhado de correntes e artimanhas que atrelam as mulheres a um papel social , insidioso em sua invisibilidade, enraizando nas profundezas do “ser mulher” um ardiloso e claro dever de “amar”, para melhor serem dominadas. O dispositivo amoroso cria a culpa, afinal, devem ter feito algo para serem maltratadas ou repudiadas. “As crianças devem ter um pai”, diz o mundo. E as mulheres aceitam a humilhação e a violência em nome do “amor” aos filhos. O dispositivo amoroso faz aceitar a submissão. A mão masculina que “acaricia” também inclina suas cabeças, cala suas bocas, finge ser um gesto “paternal”, com um risinho de soslaio: “seja uma boa menina”. Não denuncie, não fale, não grite, não esperneie os vizinhos podem ouvir. E o assédio persiste: segundo um estudo feito pelo British Journal of Surgery,[2] no Reino Unido, 1/3 das cirurgiãs britânicas, nos últimos 5 anos sofreram importunação ou violência sexual, mesmo o estupro. Aliás, em instituições como o exército, a marinha, a aeronáutica, o assédio e estupro das mulheres nestas corporações tem sido denunciado em grande número, e isto em diversos países. Reações de ódio, de raiva, de recusa são vistas como histeria, ou simplesmente mentiras, as denúncias são em princípio postas em dúvida. Ou então as que se revoltam são acusadas de serem raivosas, radicais, lésbicas, de “não gostarem dos homens”. As meninas são ensinadas a não lutar, não levantar a voz, não resistir, a minimizar toda forma de assédio, “é impróprio”, não é “feminino”, “é a ordem natural”, os homens não podem se conter. Este último argumento sempre foi usado para justificar a prostituição, pois se não houvesse mulheres disponíveis os homens não poderiam jugular seus “desejos” criando a desordem no social. Ensina-se às meninas e mulheres que não deve haver revanche, nem resistência, à “ordem do pênis” , quer seja em relação à legislação, à tradição, às normas existentes na sociedade. Obedecer é preciso. É preciso esconder os cabelos, por que não o corpo todo? A mão que se levanta para bater, massacrar, a faca que apunhala é um simulacro do pênis ereto. Os” heróis” são glorificados, estátuas são erguidas para os napoleões, os alexandres magnos, mesmo que não passem de assassinos em massa. Os “mestres do pensamento” são citados, seguidos, utilizados como armas retóricas e “argumentativas”: “Aristóteles disse”, “ Nietzche pontuou”, “Hegel definiu” , agindo em coro para inferiorizar o feminino. Que importância tem a opinião destes homens, donos da “verdade”? Suas opiniões de fato não valem nada. Só tem importância aquilo a que se dá importância. São de fato, insignificantes. Por outro lado, as guerreiras, as amazonas, as rainhas, as cientistas, as exploradoras, as inventoras, as matemáticas, as físicas, as biólogas, as artistas, as esportistas são todas esquecidas no discurso da história. Afinal, são mulheres. As mulheres foram excluídas do aprendizado, das escolas, dos centros de referência da ciência, dos esportes, da prática de lutas marciais, da defesa pessoal, tirando delas as oportunidades de se aperfeiçoar, de se conscientizar, de se proteger. Pois os homens têm medo de perder o poder da violência ou do poder tout court. O que aconteceria ao dispositivo da masculinidade se as mulheres aprendessem a se defender, a se vingar das agressões, dos estupros, das injúrias, mostrar sua competência, sua potencialidade? Para o patriarcado, tudo se passa como se as mulheres
não tivessem existência no desenrolar da vida humana: desde
as cavernas, no imaginário masculino aparecem em reconstituições
sentadas embalando crianças. Quando não eram arrastadas
pelos cabelos. Forja-se assim um imaginário social em que habitariam
e agiriam apenas homens, desde o alvorecer dos tempos. Mais uma teia
do dispositivo da masculinidade, os discursos “históricos” ou
humanistas. As mulheres precisam ser domesticadas e além
da violência, o dispositivo amoroso é mestre na questão,
pois atrai em surdina, para melhor dominar. O amor está para as mulheres o que o sexo está para os homens: necessidade, razão de viver, razão de ser, fundamento identitário, como já sublinhei em outra ocasião. O dispositivo amoroso investe e constrói corpos-em-mulher, prontos a se sacrificar, a viver no esquecimento de si pelo amor de outrem. Esta é a matriz de inteligibilidade das mulheres sob a égide patriarcal. Não vejo mudanças nesta composição imaginária. As profissões ditas femininas partilham estas características “amorosa”: enfermeira, professora primária, doméstica, babá, etc. São atividades ou profissões para as quais as meninas são cuidadosamente conduzidas, convencidas que este é seu papel e sua razão de existir. Além de uma sexualidade promovida intensamente desde a mais tenra adolescência. Assim, o assujeitamento se faz sempre em relação às necessidades cotidianas e ao olhar masculino, no desejo expresso pela beleza, pelas formas perfeitas, por todo um glamour que se concentra no ser “sexy”. O que é afinal, “ser sexy?” Por outro lado, o dispositivo amoroso as conduz diretamente para uma heterossexualidade incontornável, coercitiva, sem equívocos. Mesmo se o prazer é raro ou ausente, é uma sexualidade sem questões, sem desvios, é que deve ser. Gritos e gemidos nas telas da TV corroboram esta noção, em imagens quanto mais “realistas”, mais cansativas e fictícias. Outro tentáculo do dispositivo da masculinidade é a prostituição que me assombre e enoja; nela as mulheres não passam de orifícios a serem penetrados e usados, afogadas em esperma, mesmo que uma ínfima porcentagem diz ter escolhido a “profissão.” Este alarido individual ou de grupos restritos vivenciam a integração de todos os dispositivos: da masculinidade, da sexualidade, da violência, e também o amoroso. Pois “servir” os homens no imaginário patriarcal dominante, inclui a disponibilidade, seja em casa, no trabalho ou nos prostíbulos: mão de obra gratuita e sexo no âmbito doméstico, objetos passíveis de assédio/ violência em todos os outros níveis do social. Assim, existe uma conivência entre os homens no que concerne seu imaginário sobre as mulheres, figuras disponíveis, corpos desfrutáveis, o que se constata na prostituição como “trabalho”, consignada como tal no rol das profissões do Ministério do Trabalho; o descritivo de suas obrigações e deveres são no mínimo abjetos e repugnantes. Insiste na humilhação, na sujeição e na disponibilidade total das mulheres para qualquer indivíduo dotado do "precioso" pênis. As mulheres são vistas como presas, como potenciais corpos e aberturas de desfrute. Não é à toa que em situações de desequilíbrio social, como as guerras, os estupros individuais e coletivos tornam-se norma, aceitável em todos os níveis de comando. Na 2ª guerra mundial os japoneses raptaram milhares de mulheres coreanas para serem “mulheres de conforto” , destinadas ao bel prazer dos soldados, nos bordéis militares. [3] Quando os laços sociais enfraquecem, não importa a nacionalidade, os homens estupram. As mulheres são ainda a recompensa para os pênis engajados em atritos mortais. Em tempos de paz não é muito diferente, os estupros são contados por minuto. Este é o “dispositivo da masculinidade” que cria e distribui todos os outros. Ou seja, o patriarcado. Esta confraria dos homens pode ser exemplificada ao infinito; para dar apenas 2 exemplos, o Superior Tribunal de Justiça no Brasil [4] em 2023 retirou do ordenamento jurídico a tese da “defesa da honra” que aceita a morte de mulheres sem qualquer punição para os culpados. Ou seja, continuava em vigência até aquele momento. Outro exemplo: no Iraque, neste mesmo mês de setembro pai estrangulou sua filha pois ela ofendia a honra da família, vivendo fora do país. Pena imposta? Três meses de prisão.[5] Em alguns países o dispositivo amoroso nem precisa existir, substituído pelos punhos, os porretes, o apedrejamento, a licença social permitindo toda e qualquer violência contra as mulheres, em público e no âmbito privado. A revolta, a dor da injustiça, dos casamentos forçados, da submissão, a repulsa ao toque dos anciãos, pedófilos aos quais meninas são vendidas, ficam ocultas sob os chadores, os hijab, que escondem as marcas, hematomas e cicatrizes. Encontram-se assim, maximizados os dispositivos da masculinidade e da violência. O medo da perda do controle e do poder enseja mais e mais violência, a nível individual e coletivo, com a repressão de manifestações feministas. Na política as mulheres são discriminadas e assediadas, intimidadas, “lugar de mulher não é na política”, parecem insistir. As quotas para mulheres nunca são preenchidas e continuam a ter uma representatividade minúscula. Neste mês de setembro 2023 ainda, a Câmara dos Deputados propõe reforma eleitoral, que reduz o financiamento partidário para mulheres e negros; mesmo que não seja aprovado, o simples fato de apresentar este projeto já é um ultraje. O dispositivo da masculinidade não descansa, não tem pejo, discute abertamente um projeto que discrimina frontalmente o sexo feminino e a negritude numa dita “democracia”. “Lugar de mulher é onde ela quer”, insistem as ativistas, as feministas, aquelas que não aceitam o assujeitamento. Resta saber se em nível doméstico mantem suas posições ou se dobram ao dispositivo amoroso.
Na atualidade, no Brasil, o feminismo, perde força, energia, perde seu objetivo maior: a transformação das relações sociais não mais fixadas pelo sexo biológico. Mudança dos papéis sociais, e não eliminação do sexo biológico, é preciso sublinhar. O feminismo já não é um desafio ou uma ameaça ao patriarcado, ou seja, ao dispositivo da masculinidade e sua predominância em todas as esferas, pois se encontra esvaziado de sua densidade teórica, política e prática. O imaginário que cria figurações
sociais de aceitação, exclusão, diferenças,
assujeitamentos, continua mantendo a hierarquia masculino / feminino.
Basta ver a representação política das mulheres,
a predominância masculina nos postos de decisão e a permanência
de instituições típicas do patriarcado, como a
prostituição. O feminismo não pretendia abolir o sexo biológico, ao contrário, foi criado por mulheres para apoiar, conscientizar, motivar mulheres a se tornarem rebeldes, autônomas, independentes, livres. Teorias feministas mal interpretadas levaram à perda de vitalidade do feminismo. Por exemplo, “o gênero é uma construção social” tem o significado primeiro de denunciar os PAPÉIS SOCIAIS atribuídos ao sexo feminino ou masculino com a predominância deste último. Ora, isto tem sido entendido atualmente como a possibilidade de se autodesignar mulher ou homem por uma simples declaração. A categoria gênero dizia respeito, portanto, às FUNÇÕES SOCIAIS criadas a partir do sexo biológico e não significava sua abolição. Ou seja, o que se pretendia desconstruir eram as definições sociais do que é ser mulher ou homem. Na atualidade, retoma-se a questão provecta da identidade baseada na simples declaração de pertencimento: sou mulher ( mesmo barbado e com pênis), sou homem, com vulva. Em lugar de mostrar os papéis hierarquizados de sexo social, buscando a desconstrução dos dispositivos em ação no patriarcado, a declaração identitária não faz senão restabelecer o binarismo e os papéis superior/ inferior dentro do dispositivo da masculinidade. Este tipo de discussão é inócuo,
não leva a nada, nenhuma transformação do social,
nenhuma desconstrução de papéis sociais. O feminismo perde sua integridade e o debate sobre a condição feminina no social, sobre a violência que as ameaça a todo instante, com a complacência patriarcal se esvai. O feminismo é uma luta de mulheres pelas mulheres, buscando uma revolução em termos de relações sociais. O sexo biológico permanece definidor do “ser mulher” , aquela que menstrua, que concebe e que é estigmatizada no patriarcado. Hoje isto desaparece no tumulto criado pela reivindicação masculina de ser mulher, invadindo espaços, ameaçando feministas, impedindo conferências, com uma violência característica masculina, apesar de “se sentirem mulher”. “Pessoa com vulva, pessoa com pênis”, novas definições do humano, que afasta qualquer elemento crítico das relações e funções sociais. A naturalização das funções sociais em detrimento de direitos e possibilidades para as mulheres, isto é, a “natureza” ligada ao papel social feminino era questão primordial das teorias feministas. Já não o é, pois o debate agora não se refere aos papéis sociais, mas se prende a fictícias identidades sexuais. Sem nenhuma indicação de transformação do dispositivo da masculinidade. Toda a discussão de décadas sobre as questões de identidade e suas falácias se esgarçou, se perdeu, tornou-se obsoleta. O patriarcado desintegra assim o que era sua maior ameaça: o feminismo. Nesta perspectiva, o feminismo retrocedeu décadas, perdeu força e foco, perdeu o objetivo maior de abolir o sexo social ENQUANTO DIVISOR DE ÁGUAS NA HIERARQUIA CRIADA PELO PATRIARCADO. Restam as feministas radicais, entre as quais me incluo, que não abandonam suas raízes , fincadas num solo revolucionário quanto às relações sociais. Não aceitamos compromissos mitigados de preconceitos ou exploração (como a prostituição), lutamos pela quebra identitária ligada a funções sociais sob pretexto do sexo biológico. Atualmente no discurso social as feministas radicais são minoria, atacadas de todas as formas possíveis em redes sociais. As mulheres encontraram suas vozes no feminismo, na atualidade são mais uma vez silenciadas. O feminismo de resistência, de valentia, da destruição
dos estereótipos, de movimento, de transformação,
acabou. Voltou em força o “gênero identitário”.
Um restrito número de mulheres toma a palavra,
tem a coragem para denunciar o assédio, os estupros, a brutalidade
social que grassa ainda contra o feminino. A violência contra
as mulheres só vem crescendo; as estatísticas mostram
apenas os casos denunciados ou os feminicídios investigados,
os números devem ser muito maiores. E são intoleráveis,
prova viva da prepotência masculina, de sua recusa em aceitar
mulheres independentes, livres, escolhendo seus caminhos. A confraria masculina que caracteriza o patriarcado
continua firme, ativa, distribuindo-se em todos os setores da sociedade. Estas condições de produção do sujeito “mulher” no meu entender, permanecem atualmente. O feminismo é movimento e ação, teoria e prática, análise e compromisso, que exige transformação no imaginário e nas relações dele decorrentes, isto como fundamento e território. Não apenas reivindicar igualdade, mas eliminar qualquer traço de naturalização do feminino como fraqueza, domesticidade, incapacidade, falta de inteligência, de competência, inaptidão. Ou seja, criar um novo imaginário social. Na prática, negar qualquer acordo com o patriarcado, que contenha a subordinação, a exclusão, a naturalização de papéis sociais, a exploração dos corpos como por exemplo, a prostituição e o tráfico de mulheres, quase tão rendoso quanto tráfico de armas. A análise crítica feminista denuncia a infiltração e transformação do patriarcado para continuar a assujeitar e explorar os corpos e o trabalho das mulheres, tentáculos que se estendem dos becos às casas, às ruas, às instituições, às empresas. Diante de reivindicações feministas parece se retrair, revivendo, porém, em outras roupagens, fênix com foros de imortalidade. Em resumo, para mim o feminismo tem como objetivo eliminar todo e qualquer traço de inferiorização do feminino nas relações sociais, abrangendo normas religiosas, legislativas, a desigualdade no âmbito doméstico e profissional, para uma sociedade igualitária que não funcione em torno do sexo e da sexualidade, que não seja definida por identidades ficcionais, por preceitos descabidos, baseados em tradições que se querem atemporais. Feminismo é prática, seja na educação, na teoria, na ciência, na produção artística e literária, nas reuniões e rodas de conversa, na ressureição da sororidade, tão esquecida atualmente. Tudo que dobra as mulheres aos desejos e imposições masculinas, deve ser, no discurso e na prática, demolido. Isto é feminismo, que pode vergar, mas não
quebra.
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