Daisy Bates no coração da Austrália

 

tania navarro swain

 

 

 

 

 

Resumo:

Os aborígenes chamavam-se Kabbarli, a Grande Mãe. Viveu entre eles durantes 35 anos.  Que personagem instigante, morando em pleno deserto, sob uma tenda, longe da água e da mais exígua vegetação, sempre bem vestida, em um calor que atingia os 50 graus.

Palavras- chave: Daisy Bates, Austrália, deserto, aborígenes

 

Na Austrália, DB não tinha casa, só uma tenda ; não se sabe muito bem como conseguia alimentos, como era sua vida no deserto, pois ela quase não fala a este respeito. Quando estava em seu acampamento, os aborígenes vinham vê-la, de toda parte. Em geral estava sempre se movimentando, indo a seu encontro. Sabe-se, porém, que para conseguir água ela precisava andar quase dois quilômetros. O calor era sufocante, no acampamento onde viveu 16 anos. Terra vermelha, sol implacável, poeira do deserto, um céu de um azul ardente. Que sonhos podiam sustentar tal determinação? Que desejo de aventura a levavam a atravessar milhares de quilômetros  sobre um solo árido, ondese encontrou tantas vezes esgotada e sedenta?

Diz ela:

« I made the decision to dedicate the rest of my life to this fascinating study. I admit that was scarcely a sacrifice. Apart from the joy of the work for its own sake, apart from the enlightenments, the surprises, the clues, and the fresh beginnings that were the stimuli of every day, the paths to never-ending high-roads and byways in a scientific study that was practically virgin country […] meant much more to me now than the life of cities.” (99)

Os aborígenes tornaram-se sua família, seu porto seguro, sua razão de viver. Por eles,  despojou-se a fim de alimentá-los e cuidar de seus ferimentos e doenças. Assim, vendeu tudo que possuía. Morreu na pobreza. Teria ela salvado alguém, teria costurado os farrapos de uma cultura em perdição?

Sidney Nolan [Daisy Bates] 1950, Sydney, New South Wales, Australia . Painting, enamel and oil on composition board

 

Daisy May Bates (1863-1951), irlandesa, partiu para a Austrália em busca de novos horizontes. Trabalhou então para subsistir como governante em um rancho. Algumas de suas biografias, entretanto, insistem em narrar histórias sobre sua vida pessoal, suas ligações amorosas, pois  buscam a “verdade” sobre ela. Para uma mulher, evidentemente, a verdade encontra-se em seu corpo.

Quando se trata de narrativas sobre a vida de mulheres, o casamento, filhos, sexualidade são sempre temas colocados como marcos principais. O fato que ela tenha vivido entre os aborígenes durante décadas, oferecendo-lhes amizade, cuidados, protegendo-os ( principalmente as mulheres) contra os brancos parece-lhes secundário. Entretanto, muito além de maridos, amantes, filhos, Daisy Bates determina suas prioridades: a ciência, o conhecimento, a aproximação e o encontro de outrem.

Enquanto mulher de aventura, o que importa, de fato, é seu espírito indomável, sua coragem de afrontar os colonos, seu amor pelos aborígenes, uma mulher entre outras, que tomou seu destino em mãos e quebrou o cimento das normas. Abriu a trilha de seu destino, construiu sua vida como bem entendia e isto, em meio aos autóctones, cujos costumes eram literalmente antípodas dos seus. Assim, fez questão de construir um personagem singular, a partir de sua maneira de se vestir: chapéu, gola alta, mangas e saias longas, luvas, sapatos fechados com cadarços, pequena gravata. As luvas revelaram-se muito úteis para evitar infecções e ferimentos tendo em vista os rudes trabalhos manuais que efetuava.

« I have always preserved a scrupulous neatness, and all the little trappings and accouterments of my own very particular mode of dress, sometimes under difficulties, [..]”(16)[i]

Jornalista, DB trabalhava para  a Review of Reviews de Londres e foi encarregada de fazer uma pesquisa sobre a vida dos aborígenes. Em 1904 foi nomeada pelo governo da Austrália Ocidental para estudar as tribos dos aborígenes, sua linguagem, dialetos e costumes, mas antes mesmo desta nomeação já estava em campo. Escreveu vários dicionários e era capaz de se comunicar em 188 línguas aborígenes, entre as 250 existented. A qualidade de seu trabalho valeu-lhe sua leitura nas sessões da Royal Society e da Geographical Society.

Ela percorreu  a Austrália meridional e ocidental em suas numerosas viagens, sempre ocupada a tomar notas, a verificar a situação de vida dos aborígenes, a auscultar seus mistérios. Seu trabalho era escutá-los, informar-se em profundidade sobre seus mitos, o “tempo do sonho”, sobre a magia que atravessava suas vidas e relações entre tribos.

A empatia com os aborígenes foi imediata: desde o primeiro encontro sua preocupação era não somente deles tratar e protegê-los das violências dos colonos, mas igualmente pesquisar os valores que orientavam suas vidas. Para isto, aprendeu suas línguas, participou de rituais, debruçou-se sobre suas lendas que definiam os totens de cada grupo. Rapidamente conseguiu comunicar-se com eles.

« They explain in detail the purpose of all weapons and implements [...] they let me watch their making and the chipping of stone tools, and told me the half-legendary stories of their origin. Dances and songs were explained to me at symbolic and play-corroborees, and so we progressed naturally from the world of actuality to the dream world”. (22)

DB escuta e anota tudo, e narra as lendas dos aborígenes, entre as quais a do Jimbin, o país subterrâneo das crianças, onde não há lutas nem brigas, mesmo a morte lá não está presente e não se ouve senão [...] the happy laughter of the little people at play ». (23)

EM 1938, publica The Passing of the Aborigines, livro que utilizo aqui como fonte principal, onde ela reúne suas observações. Sua obra, entretanto, conta com dezenas de artigos sobre os aborígenes, que foram publicados em jornais e revistas científicas.

Em 1899 Daisy Bates iniciou uma viagem a partir de Perth, por uma distancia de 1200 km, que lhe tomou cerca de 6 meses, em uma charrete puxado por cavalos; nos acampamentos durante este périplo encontrou aborígenes nômades e pode constatar a veracidade das denúncias de atrocidades cometidas contra eles.

Mas às vezes, narra o pitoresco de suas viagens ::

« Shortly after I landed in Perth I obtained a buggy and horses and camp-gear, and journeyed by sea to Port Hedland. I stayed at a licensed shanty with earthen floors and blue blankets where the hermit crabs from the seashore nibbled my feet every time I put them to the floor."(2)

Arthur Mee, que escreveu o prefácio de seu livro afirma que:

« She knows them as they know themselves. She knows their languages, their rituals, their traditions, their capacities and their incapacities, as no white man or woman on the earth know them. She can talk to them in 188 dialects […] She is a magical figure to them.”(XII)

Sua vida imbricou-se à dos aborígenes e tornou-se sua protetora e seu apoio. Sua Kabbarli, a grande mãe, para a qual acorriam quando doentes, ou em busca de proteção. Ela dá alguns detalhes sobre sua vida em um dos acampamentos:

« A circular tent, 14 ft. in diameter, sagging about me in the wet and ballooning in the wind, was my home for two years in that little patch of bushland bright with wild flowers, overlooking the beautiful valley of Guildford and the winding river. [....]” (58-59)

Em 1899 Daisy Bates inicia uma viagem a partir de Perth, por uma distancia de 1200 km, que lhe tomou cerca de 6 meses, em um buggy puxado por cavalos; nos acampamentos durante este périplo encontrou aborígenes nômades e pode constatar a veracidade das denúncias de atrocidades cometidas contra eles.

A população aborígene diminuia à vista de olhos e Daisy temia que não pudessem sobreviver no contato forçado com os brancos, medo, aliás, mais do que legítimo. O perigo vinha não somente da violência dos colonos, mas também das doenças que traziam e que dizimavam os nativos aos milhares, da gripe às doenças venéreas. Por outro lado, a expulsão progressiva dos aborígenes de seus caminhos tradicionais afastava-os dos pontos de água em seu caminhar, indispensáveis para a sobrevivência nômade sobre as terras desérticas. E ela tornou-se uma incansável e feroz defensora de suas culturas, de suas vidas e de seu habitat.

« My first camp was established on the Maamba Reserve near the present National Park, a few miles from Cannington [...] in the early years of this century a beautiful kingdom of bush still rich in native foods and fruits. The Bibbulmun race was represented by some thirty or forty stragglers, and these would gladly have gone back to their own various grounds; but their health and sight had failed.” (53)

O número de aborígenes havia sido estimado em um milhão de indivíduos quando da chegada dos ingleses na Austrália, no século XVIII; no início do século XX tribos inteiras haviam desaparecido. [ii] A Tasmânia foi totalmente despovoada e seus últimos nativos foram transferidos a outras ilhas. Tendo em vista sua resistência, o choque com os ingleses no início do século XIX chamou-se a “guerra negra”.[iii]

No continente, à medida do avanço dos colonos sobre suas terras, os aborígenes tiveram que se retirar para o interior do país. « The first landing of the white man was the beginning of the end. » (53) diz DB.

Mas sua resistência[iv]  revelou-se um bom pretexto para os massacres que se seguiram.

Daisy Bates denuncia:

« Change the food, environment, outlook, the burying of the old traditions and customs, inhibitions and the breakdown of the law [...] Can we blame them for the reactions that found vent in violence in certain instances few and far between, punished sometimes with terrible reprisals on the part of the white man?” (56)

[v]

Como em toda colonização que conheceu a história, os nativos foram mortos, maltratados, expulsos de suas terras e arrancados de seus costumes, discriminados, confinados em reserva, escravizados ou utilizados como mão de obra barata. Ingleses, franceses, espanhóis, portugueses, holandeses, alemães, em todo lugar onde os europeus se instalaram, crimes foram praticados contra os povos nativos.

Na Tasmânia e certamente em toda Austrália, os aborígenes foram escravizado. O tráfico de mulheres não se fez esperar em proveito dos europeus e asiáticos. Daisy Bates, aliás, lutou com afinco para proteger as mulheres, vítimas do tráfico e exploração sexual. Encontrou esta prática disfarçada em casamentos entre os homens de Manilha e as mulheres aborígenes, emprestadas em seguida aos “irmãos” ou “amigos” do marido, que delas abusavam sexualmente à vontade. (10-11)

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Combatentes ao lado dos homens, as mulheres aborígenes participaram à defesa tanto de suas vidas quanto de suas terras, à ocasião da chegada do ingleses; a exemplo de Truganini (abaixo), considerada a última aborígene da Tasmânia, lutaram ferozmente na “guerra negra”.

Truganini (ou Truganinny), née vers 1812 et décédée le 7 mai 1876

Outra prática imposta pelos ingleses foi o sequestro das crianças, principalmente mestiças, tiradas de sua família para serem “civilizadas” em orfanatos, internatos ou confiadas a missões cristãs e/ ou famílias brancas que as acolhiam. Pode-se facilmente imaginar o tratamento reservados a estas crianças e a educação que lhes era dispensada.

Durante 100 anos, de 1869 a 1960, as crianças chamadas « Stolen Generations » sofreram toda sorte de abusos. Em 1999 o Parlamento australiano adotou uma moção de escusas pelo uso desta prática, mas apenas em 2008 o estado australiano apresentou oficialmente suas desculpas pelo rapto forçado de mais de 100 mil crianças.

« Children of the woodland, dwelling in a squalor that could not be avoided in their stone-walled houses, closed in from the air that was their breath of life, in the heat of summer and the dark cold of winter, they lost all touch with their native earth.” (57)

Os ingleses obrigavam ainda os aborígenes a se fantasiar com as roupas “civilizadas” da época. Era sem dúvida uma maneira de humilhá-los, de ridicularizá-los e de eliminar seus hábitos ancestrais, de impor valores cristãos completamente desconhecidos, tais como o pudor e a vergonha do corpo.

« They slept in beds – but they could not learn cleanliness. They wore clothing, and developed chest complaints and fevers.” (57)

Uma imagem dos quatros últimos aborígenes de Tasmânia da “linhagem pura”, por volta de 1860.

Nômades, os aborígenes tinham o hábito de perambular nus, com pouquíssima bagagem. Contavam com os meios tradicionais de sobrevivência, oferecidos pelo bush; dormiam a céu aberto ou construíam abrigos com arbustos.

Hut decked with porcupine grass, Eastern Arrernte people, Arltunga district, Northern Territory[vi]

Daisy Bates conheceu a experiência de querer mudar seus hábitos:

« Once, in my inexperience, I myself packed up a plenitude of provisions for them tied neatly in bundles on their heads with new shirts and trousers and medicines and other conveniences I thought they might need. A few days after they had gone, riding to an outlying windmill, I came across a snow-storm of the flour that they had playfully thrown at each other. The tea and sugar had been consumed at this first well, and the trousers and sundries were deposited in a tree-fork.” (2) 

Em 1824 o governador George Arthur estabeleceu a segregação dos aborígenes para dar fim à sua resistência. Oferecia, aliás, recompensas para os brancos que arrastassem os aborígenes aos campos que lhes eram reservados. Esta política não impediu o massacre de tribos inteiras, tais como a de Myall Creek em 1838  e de Pinjarra em 1834.  A transferência forçada dos aborígenes foi assim praticada em todo o território australiano.

No início dos anos 1900, DB partiu para uma longa peregrinação ao encontro das tribos do sudoeste da Austrália. Não encontrou senão desolação: ainda que o governo fornecesse a eles alimentos, roupas, camas e cobertas e mesmo cabanas de madeira, os aborígenes não sabiam o que disto tudo fazer e se contentavam com a farinha, o açúcar e suas cabanas no bush, deixando de lado todos os bens que lhes eram dados. (58) Como sublinha DB, as tribos estavam em plena derrelição, termo que ela utiliza muitas vezes quando se refere aos aborígenes desenraizados, arrancados de  suas terras , de suas tradições, de suas formas de sociabilidade.

As cercas se estendiam por toda parte – para marcar os ranchos contra os coelhos ou os dingos –  eram fonte permanente de conflitos, pois os nativos as destruíam para passar por seus caminhos habituais.

« What a surprise the fences, and the sheep and horses and cattle within their boundaries [...] There was no more happy wandering in the interchange of hospitality. Sources of food supply slowly but surely disappeared, and they were sent away to unfamiliar places, compelled to change completely their mode of life, to clothe themselves in the attire of the strangers, to eat foods unfitted for them, to live within walls.” (55)

Daisy Bates queria antes de tudo preservar sua maneira de viver e vê-los livres e felizes. Dedicou a isto sua vida. Mas já era muito tarde, as tribos desapareciam rapidamente. Em Perth, contava-se 70 tribos na chegada dos ingleses, mas quando DB decidiu contatá-los, não encontrou nenhuma, só alguns indivíduos haviam sobrevivido. (50)

Decidiu então vender todos seus bens e viveu uma vida de asceta, oferecendo todos seus recursos para o bem estar dos aborígenes. (105)

Com o objetivo de eliminar as diferentes doenças que dizimavam os aborígenes, o governo decidiu em 1904 isolar os doentes em duas ilhas: Dorré para as mulheres e Bernier para os homens. (83)

Eram recolhidos em toda parte, sem distinção de tribo, com diferentes totens. Os aborígenes não tinham o hábito de se encontrar juntos , com diferentes laços tribais.  Arrancados de suas terras e tradições, presos às doenças dos brancos- venéreas, tuberculose, varicela, gripe- estas ilhas se tornaram morredouros, apesar das instalações hospitalares que DB considerava corretas. Assim narra ela:

« When I landed on Bernier in November 1910, there were only fifteen men left alive there, but I counted thirty-eight graves.[...] They were afraid of the hospital its ceaseless probing and dressing and injections were a daily torture. They are afraid of each other, living and dead. […] When the bleak winds blew, the movable huts were turned against them, facing each other, regardless of tribal customs, which meant mistrust and fear.” (84-85)

Na ocasião, DB estava em missão oficial com uma Comissão Especial do governo para investigar as condições de vida oferecidas aos aborígenes e para deles cuidar. (80)

Na ilha onde foram alocadas as mulheres, DB não ousou contar o número de sepulturas. Exauridas pelas doenças, as mulheres se isolavam em seus medos pois,

« Companionship in misery was impossible to them, for there were so many spiritual and totemic differences. » (84)

Havia, por exemplo, o grupo do totem serpente, do dingo, do canguru, do opossum, peixe, peru, etc., cada um com suas características, cada um com seus mistérios e tabus. Para os aborígenes, os totens possuíam uma intensa magia e seu poder podia, segundo suas crenças, ser mortal.

Com efeito, acreditando estar correto, o governo conseguiu de fato tornar suas mortes ainda mais dolorosas.

« They wanted nothing in the world but their old sand-beds and shelters and little fires [...] and the voices of their own kind. There is nothing you can give them but freedom and their own fires - hearth and home”. (86)

As raras sobreviventes ao serem trazidas ao continente eram abandonadas à sua própria sorte, quando deveriam ser encaminhadas à suas tribos, muitas vezes extremamente afastadas. DB fez tudo a seu alcance para arranjar os meios de transporte e os cuidados necessários, oferecendo-lhes, além disto, sua amizade: graças a seus conhecimentos de suas línguas, trazia-lhes notícias de suas famílias e amenizava seu isolamento. E foi quando começaram a chama-la de Kabbarli, a grande mãe, aquele que os compreendia e que lhes inspirava confiança.

Este nome acompanhou-a toda sua vida na Austrália e permitiu-lhe conhecer profundamente as significações que teciam as relações tribais dos aborígenes. (89)

A incompreensão entre ingleses e aborígenes era total e os brancos os puniam quando seus costumes chocavam a mentalidade e as normas inglesas.

DB  precisou intervir muitas vezes para livrar os aborígenes de um aprisionamento injusto. (83) Eles eram condenados a trabalhos forçados, acorrentados uns aos outros no sistema de gangs, por crimes segundo a lei dos brancos que para eles, nada significava; Tendo em vista a violência costumeira dos brancos, os aborígenes temiam sua aproximação fossem eles cientistas ou médicos. (80-81) Todos representavam para eles fonte de perigo.

DB estima que :

« Rottnest Native Prison was only another tragic mistake of the early colonists dealing with the original inhabitants of a country so new and strange to them. [...] It was still a native prison when I was there in 1911[...] » (101)

E como de hábito, os aborígenes eram encarcerados em grupos de indivíduos pertencentes a totens antagonistas. Quando DB foi visita-los na prisão, pediu para passar a noite em uma cela para tentar desfazer as magias inimigas,  « [...] which I did », comentou ela. (idem)

Seus conhecimentos dos costumes aborígenes faziam dela um elemento precioso para lidar com os mal- entendidos inevitáveis.

Daisy Bates foi assim um personagem conhecido e respeitado: teve um encontro com o rei George V, foi apresentada ao Príncipe de Gales e ao Duque de Gloucester quando este foi governador geral da Austrália. Recebeu igualmente, em 1934, a alta distinção de Commander da Ordem do Império Britânico.  (XIII) Entretanto, quando a velhice chegou o governo concedeu-lhe uma ridícula pensão de AU$4 semanais. (idem)

Mas esta « ajuda » nunca foi algo esperado por DB, nem para ela, nem para os aborígenes. Por ocasião de uma epidemia de varicela, DB tomou para si todos  os cuidados além de cozinhar e trazer água e lenha para o acampamento.

« I gave them medicine or food or whatever it might be. […] When all were convalescent, and everyone was inordinately hungry, the trouble with the children was the impossibility of my being able to feed them all at once.” (75)

DB amava os aborígenes e apreciava estar em sua companhia, pois se não fosse este o caso, não teria estado entre eles a maior parte de sua vida. Desde seu primeiro contato com eles, quando  começara a se interessar por seu sistema de parentesco, na região do Sherlock River, não se queixou ou espantou nunca da diferença de costumes, ao contrário, isto era fonte de prazer e de descoberta. Entretanto, depois de se ocupar deles após uma epidemia, confessou:

 « And those awful huts! How we all escaped fever I don’t know. They lived, ate, slept in, and never moved out of these huts for days, and in all that stench one had to lean over to the patients, who might be huddled in their farthest corners, and inhale the germs of every filth producing disease.[…] I believe that in Heaven, in 40.000 years´ time, if somebody uncorks a bottle of native odour I shall be able to tell them the tribe it comes from.” (75-76)

Em seus 5 diferentes acampamentos, afastados no tempo e no espaço, dispunha de uma tenda, alguns utensílios e jamais – ela insiste em precisar-  teve serviçais. (8)

Aparentemente este tipo de vida não era para ela uma corveia.

« A glorious thing it is to live in a tent in the infinite – to waken in the grey of dawn, a good hour before the sun outlines the low ridges of the horizon, and to come out into the bright cool air, and scent the wind blowing across the mulga plains [...] There was no loneliness. One lived with the trees, the rocks, the hills and the valleys, the verdure and the strange living things within and about them. My meals and meditations in the silence and sunlight, the small joys and tiny events of my solitary walks, have been more to me than the voices of the multitude […]” (99-100)

E o que comia?

 “My own fare, day after day throughout the years, has always been so simple that to myself I am a miracle.[…] A potato in the ashes now and again a spoonful of rice that nine times out of ten was burned […] occasionally the treat of a boiled egg, and always tea – my panacea for ills […]” (147)

Viveu, portanto entre os aborígenes não somente para protegê-los, mas também para conhecê-los. Estes anos de estudo e compilação de dados, tiveram como resultado nada menos que 270 artigos publicados em jornais e revistas científicas, intenso trabalho de divulgação de suas observações e experiência antropológica. Um certo número de seus artigos foi publicado na imprensa australiana sob o título geral de “My natives and I”

Os trapistas.

 

As religiões inundaram  a Austrália para « salvar as almas » dos aborígenes, grandes auxiliares do massacre cultural e dos costumes ancestrais que sofreram.

As peregrinações de DB levaram-na a se hospedar no primeiro monastério trapista da região noroeste, próxima a Beagle Bay, de onde partia para suas incursões no interior das terras. A vida ali era dura, os monges tinham uma alimentação reduzida e trabalhavam sem cessar para manter o monastério inteiro, constantemente destruído pelos fogos do campo e pelas intempéries. Ela faz uma comparação reveladora>

Les religions s´étaient déversées sur l´Australie pour « sauver les âmes » des aborigènes, aidant ainsi à massacrer leur culture et leur mode de vie.

 

Google earth -Nord-Ouest de l´Australie.

Premier points de départ de DB (certaines distances elle couvrait par bateau, d´autres à cheval ou en buggy

« The horses were Trappists, too, skin and bone in their poverty. »(5)

Ela descreve assim o lado pitoresco da Missão:

« I woke to hear the native singing a Gregorian cant in the little chapel near by. Half clothed and, [...] still but half-civilized, they comprised the Nyool-nyool tribe, of the totem of a local species of snake. Most of the women and men had their two front teeth knocked out, and some still wore bones through their noses. Infant cannibalism was practiced, where it could not be prevented […]” (6-7)

DB escreveu todo um capítulo sobre sua permanência no monastério. Amava aquela vida e participava dos trabalhos manuais, das cerimônias dos missionários e dos nativos. Sua posição se colocava muito além dos fanatismos religiosos, da mesma  forma que não se importava com as convenções e normas sociais de sua época. Uma mulher livre de espírito e livre de viver como entendia.

« Although I am an Anglican, I attended all religious ceremonies, morning and evening, during my stay, and loved to listen to the natives, with their sweet voices, intoning the Latin chants and responses as much as I loved to listen to their own weird music.» (12)

DB trabalhou durante 4 meses na Missão e pode participar a todas as reuniões, jogos e trabalhos em geral. Divertiu-se muito com as imitações feitas pelos nativos dos missionários, suas idiossincrasias e suas tentativas de acompanhar, quase nus, os ritos dos monges. Havia assim cenas bizarras, hilariantes, como por exemplo, as mulheres nuas com um véu sobre a cabeça.  

« Standing behind them, close to the door for a breath of air, I tried in vain to maintain a solemn countenance and a reverent mien, only to explode at least once in choking laughter at the antics of one boy. Knowing that was behind him, he was at the same time desperately trying to keep his hands clasped in prayer, and a rag of decency well pulled down over his rear elevations.”(13)

Todos, enfim se divertiam:

« [...] I think I never made a more laughable toilet than that one. Every motion of mine, as I laced my corsets and eased my shoes on with a shoe-horn, brushed my hair and adjusted my high collar rand waist-belt, was greeted with long-drawn squeals of laughter and mirrored in action though the slim black daughters of Eve about me had not even a strand of hair string between the whole thirty. » (16)

Ela acompanhou o bispo em suas andanças, em longas caminhadas sob o sol, naquelas terras desérticas, às vezes sem água e  pouco alimento:

 “Our only surveying instruments were the compass of an old lugger and a chain. The Bishop and I were the chainmen, and we walked in a steam heat, of 106 degrees at times, sometimes twelve miles in the day […] We were always hungry.” (12-14)

No caminho para Disaster Bay, cujo nome revelou-se significativo, o bispo desmaiou de cansaço, haviam bebido água contaminada e a disenteria grassou no grupo todo. DB, precavida, havia fervido sua água e aliviava os doentes com o brandy da garrafa que sempre a acompanhava para urgências como aquela. (15) Ela resistia às dificuldades do caminho e apenas duas vezes adoeceu nos 35 anos que viveu entre os aborígenes. E isto tendo vivido em acampamentos o mais das vezes sobre terrenos áridos, sem árvores e com a água sempre distante, a ser carregada diariamente.

Google earth- paysage d´Eucla

 

Em 1912 DB estabeleceu-se em Eucla (1912-1914) entre os últimos membros da tribo Mirning, ao sul do platô Nullarbor(Wright, web). (Sempre impecavelmente vestida acampou também em Yalata 1915-1918) assim como em  Wynbring Siding. Em  Oldea ficou o mais longo período, de 1918 a 1934.

Google earth-Sud de l´Australie, les campements de DB, marqués avec des épingles jaunes

DB viajava sem medo das distâncias nem dos meios de transporte disponíveis: convidada a fazer uma série de conferencias para a secção de antropologia da Associação para o Avanço da Ciência da Austrália (115-117), não hesitou em percorrer 402 km em um  caleche puxada por um camelo, a fim de responder ao convite. (idem)

Ela, entretanto, dobrou-se a coerções inexplicáveis, como por exemplo montar em amazona, o que ela mesma considerava uma ordália. Cobriu desta forma, 1.600 km, do Lake Eda à Ethel Creek para conduzir  770  cabeças de gado de sua propriedade. Para isso, havia contratado alguns condutores de gado e um cozinheiro. Durante 6 meses, montada (de lado) na traseira do rebanho mantido em forma de triângulo, vê o caminho dobrar em distancia, tendo em vista as voltas e reviravoltas necessárias para impedir a fuga e a perda do gado.

Sabia viajar com pouca bagagem, aliás, não devia possuir grande coisa:

« My equipment was a good English pig-skin side-saddle with ordinary stirrup; three pairs of laced wallaby-skin shoes; three habits, a felt hat, three pairs of riding gloves and plenty of fly veiling. A compact hold-all and portmanteau carried all necessaries, and was easily accessible on the dray, which also carried the stores for the trip and the drovers’ swags.” (43)

Viagem árdua, o rebanho não estava acostumado a beber água dos poços e mais de uma vez debandou de volta pelo caminho, esperando encontrar as pastagens habituais. (45)

Cavalgavam 18h por dia com uma pequena pausa ao meio dia, quando o calor tornava-se intolerável. Entretanto, DB não conseguia aproveitar o repouso:

« Never able to sleep in the day-time, I seized this opportunity for explorations and collections of botanical and geological novelties, which I later forwarded to the museums.” (47)

Uma vez enfim no destino, DB quis voltar o mais rápido possível a Port Herdland, mas não achou nada melhor que uma carroça que transportava dinamite para uma mina! Chegou sem problemas » afirmou ela.  (50)

 

Aborigènes

Seu trabalho era apaixonante. DB interessava-se ao sistema de parentesco dos aborígenes, que podia ser tanto matrilinear quanto patrilinear. Integravam os estranhos a suas relações de parentesco mais próximas, começando por ela mesma. A prática ou não da circuncisão representava também um fator determinante de pertencimento a uma tribo

DB descreve um ritual no qual conheceu seu mundo de magia e de sonho.  (107-112) Um aborígene moribundo transmitiu-lhe sua magia por um ramo de acácia, esculpido em forma de mulher- o bamburu, que a representava, Kabbarli,  « woman of dream time ». (96) 

Este ramo esculpido, explica ela, servia-me de passaporte em todas as outras tribos da parte central das terras.(idem) Ela dedica um capítulo inteiro de seu livro aos ritos dos homens, que compreendia 9 etapas de iniciação e podiam durar vários anos, para pode aceder ao mundo das mulheres, ao casamento. (41)

Porém, como a maior parte dos antropólogos debruça-se principalmente sobre os ritos masculinos e todo o capítulo mencionado (pgs 34/41) apresenta os detalhes desta iniciação. Apesar da importância das atividades das mulheres para a sobrevivência das tribos, o masculino, como de hábito, é a base das observações antropológicas. É de fato o imaginário patriarcal tomando o espaço do real, incutindo nas observações a importância dada ao masculino; lembremos aqui a divisão das tribos feita por DB segundo a existência da circuncisão ou não.

Margaret Mead, a partir de suas observações na Nova Guiné faz o comentário seguinte:

« Or, le thème fondamental du culte initiatique c´est que la femme, en vertu de son pouvoir de faire des enfants, détient les secrets de la vie. Le rôle de l´homme est incertain, mal défini et peut-être inutile. Il a découvert, à grand-peine, une méthode pour compenser son infériorité fondamentale. Équipés de différents instruments mystérieux et bruyants, dont le pouvoir réside dans le fait que leur forme réelle demeure inconnue de ceux qui en entendent le son [,,,] ils peuvent enlever les enfants mâles aux femmes, les considérer comme incomplets pour pouvoir en faire eux-mêmes des hommes. Les femmes, il est vrai, font des êtres humains, mais seuls les hommes peuvent faire des hommes. Plus ou moins ouvertement ces rites sont des initiations de la naissance. » (Mead : 99)

 Não se pode explicar mais claramente a significação dos ritos masculinos, das casas dos homens, interditadas às mulheres. Uma compensação clara da impossibilidade natural de reproduzir e a proibição às mulheres de participar ou mesmo contemplar estes ritos completa a farsa do nascimento dos homens pelos homens.

As mulheres antropólogas, como Annette Weimer, fizeram observações com mais nuances que revelas outros aspectos sociais quando se debruça sobre o aspecto global das atividades e não somente aquelas relacionadas aos homens:

 « Cela ne signifie pas qu´il suffit de compléter les études sur les hommes par des études sur les femmes, mais que nous devons recentrer notre attention sur ce qui est ‘constitué culturellement’ plutôt que sur ce que nous dictent nos catégories d´analyse sociale traditionnelle. » (Weimer, 1983 : 222)

Segundo Schnitt-Pante, Annette Weimer descobriu e mostrou a importância do papel das mulheres nas ilhas Trobiand[vii], estudando as distribuições dos buques de folhas de bananeira e das saias de fibra feitas pelas mulheres por ocasião de cerimonias funerárias.

« L´observation de ces échanges d´objets appartenant aux femmes a permis de remettre en cause des ‘ faits’ préalablement établis touchant aussi bien la possession de la richesse, les échanges et la réciprocité, phénomènes considérés jusqu´alors comme uniquement masculins[...] Ces bouquets de feuilles et ces jupes ont en effet une double valeur matérielle et symbolique : ils légitiment la filiation, ils servent à mesurer l´importance des relations entre individus et entre familles, ils manifestent les principes de décomposition et de mort...Bref, dans la société Trobriand, la circulation de la richesse des femmes assure la reproduction et la régénération du matrilignage. » (Schnitt-Pante, 1984 : 99-101)

Com efeito, a compreensão dos comportamentos e suas imbricações vão bem além da descrição a partir da observação; mas esta compreensão é, também, atravessada pelas representações sociais, pelas imagens e valores do observador.

É assim quee Annette Weimer, enquanto mulher, voltou seu olhar para  as atividades femininas que haviam sido consideradas secundárias ou insignificantes pelos antropólogos homens e mesmo mulheres encaixados na visão patriarcal dos costumes. Pois, para estes o que importa está ligado, como premissa, ao masculino.

Pauline Schnitt-Pante, por exemplo, estima que :

« L´utilisation des concepts de ‘domestique’ et de ‘ public’ dans l´étude des rôles sexuels, appelle la même critique que celle faite de l´emploi des concepts de ‘nature’ et de ‘culture’. Cette opposition paraît être une nouvelle variante de la ‘réduction des catégories de sexe à leur définition biologique’ » (Schnitt-Pante, 1984 : 102)

Esta autora considera igualmente que a divisão sexual do trabalho e a importância dada ao masculino é construída, pois

 « [...] a été prise pour une description de la réalité sociale, alors qu´elle est souvent une construction idéologique qu´il faut étudier en tant que telle. » (Schnitt-Pante : 103)

Seria necessário, acrescenta :

« [...] prendre en charge dans toute société l´analyse de l´ensemble des rôles assumés par les deux sexes, d´étudier l´articulation, propre à chaque culture de ces rôles et d´en tirer toutes les conséquences pour l´interprétation globale du système social. » (idem, 2)

Não é, portanto a natureza sexual dos seres que determina sua importância e seu lugar na sociedade, mas sim a imbricação cultural dos papéis. Mesmo a noção de poder deve ser revisada, pois assim como sublinha Foucault, o poder é um exercício cujos limites dependem da estrutura social e não está na ordem d biológico.

É a importância dada aos atributos masculinos que criam, de fato, esta mesma importância. Estas noções de feminino e masculino são construções societais e não se aplicam automaticamente a todos os grupos sociais, sobretudo ao considerar-se a pluralidade sexual que pode intervir em certos casos.[viii]

Para  Ruth Benedict, os métodos antropológicos sofrem de um referente, a civilização ocidental- e da criação de um “diferente”- os outros. Em uma visão bem contemporânea, prossegue:

 « L´anthropologie était, par définition, impossible aussi longtemps que de pareilles distinctions entre nous-mêmes et les primitifs, entre nous-mêmes et les barbares, entre nous-mêmes et les païens, s´imposaient à l´esprit des peuples. Il était d´abord nécessaire d´en arriver à ce degré de sophistication où nous n´opposions plus nos croyances aux superstitions de nos voisins. Il était nécessaire que ces institutions basées sur les mêmes prémisses, à savoir le surnaturel, fussent considérées ensemble, les nôtres avec les autres. » (Benedict, 1950 : 5)

DB expõe as relações feminino/masculino como sendo uma dominação dos homens sobre as mulheres, segundo a interpretação habitual da antropologia androcêntrica. Entretanto, nuances aparecem quando faz a distinção entre as tribos dos circuncidados  e as outras, pois a liberdade e os papéis sociais das mulheres variavam segundo seu pertencimento a um ou outro grupo (51)

Mesmo a poligamia, cuja existência ela assinala, é paralela a uma poliandria frequente. DB menciona casos onde as mulheres tinha, uma 7 e outra 14 maridos. Pode-se ver esta última nas fotos de seu livro. (60 et 74)

DB menciona algumas vezes a troca e compra de mulheres, mas seu olhar não se volta senão para os atos dos homens. As mulheres aceitavam esta prática? Teriam elas algo a dizer a respeito? Será que não decidiam com quem queriam ficar?

No início da colonização do Brasil os portugueses consideravam que os chefes indígenas davam-lhes as mulheres. Entretanto, uma análise mais aprofundada sobre os discursos dos colonizadores mostra que as mulheres indígenas aceitavam livremente suas relações com os colonizadores, pois seus corpos e sexualidade pertenciam-lhes.[ix] A sexualidade era livre entre os indígenas como foi dito e repetido pelos portugueses.[x]

Ruth Benedict, já em 1950 notava que :

« La civilisation occidentale, [...] s´est répandue plus largement que tous les autres groupes locaux connus. Elle a imposé son modèle à la plus grande partie du globe, d´où cette croyance à l´uniformité du comportement humain, croyance qui, sans ces circonstances, ne serait jamais née. »(Benedict, 1950 : 6)

DB tinha, todavia, esta consciência da interferência do observador sobre o trabalho de campo, assim como a necessidade de um recuo e de tempo para melhor entender as significações de sua linguagem e de seu comportamento:

« The Australian follows the line of least resistance with the white man.[…] The first lessons I learned were never to intrude my own intelligence upon him and to have patience, the patience that waits for hours and years for the links in the long chain to be pieced together.” (90)

DB observa a existência do canibalismo que se encontrava em várias tribos (92 /103-104), mas que não era uma característica única  aos aborígenes: os índios no Brasil, por exemplo, a praticavam igualmente na época da colonização, no século XVI[xi] 

Aliás, em pleno século XX (1933) os deportados abandonados sobre a ilha de Nazino, na Sibéria, pelo governo comunista russo recorreram ao canibalismo para sobreviver. [12][xii] E tantos outros casos...

Fora deste molde, todos os aspectos dos costumes eram importantes para DB pois são os traços culturais que definem um povo. Assim, além dos comportamentos quotidianos, interessava-se à produção de suas representações sociais, cuja imagética reunia  sonhos e  simbolismo. [xiii]

Suas notas e observações científicas constituíam seu bem mais precioso. Ao lado de numerosos artigos que escrevera, DB conseguiu traçar os mapas dos antigos caminhos do nomadismo, precisando os pontos de água conhecidos em gerações. Desenhava os traçados a partir de um certo ponto e avaliava com os aborígenes, as distâncias segundo as pausas para dormir. (93)

DB conseguiu assim estabelecer uma cartografia dos caminhos aborígenes antes da chegada dos brancos, em um grande número de mapas cobrindo centenas de quilômetros quadrados. (93) Pode-se estimar que seu trabalho antropológico é, sem dúvida, o mais importante para o conhecimento dos povos aborígenes, antes e depois da presença dos ingleses.  

É assim que ela desvela um intenso comércio praticado antigamente pelos aborígenes sobre todo o continente australiana: cada grupo trilhava 4 caminhos, nos 4 quatro pontos cardeais, que os levava em todas as direções, afim de trocar produtos (106) Comunicavam-se através de sinais de fumaça, o que permitia avisar dos perigos, anunciar visitas ou convocar reuniões.

Sua vida se desenrolava seguindo a mobilidade dos aborígenes.

 « […] I followed the nomads, seeking for camps, learning and noting the legends and relationships groups, and totems and way of life, and compiling my scientific data hand in hand with the unwritten literature of the race, so far as I could elicit it from shreds of songs and story. » (76)

Entretanto, quando se fixava em algum lugar por um certo tempo, os aborígenes caminhavam centenas de quilômetros para ver sua Kabbarli. (93-94)

Os anos passando, a saúde de DB começou a se deteriorar : em 1918 foi obrigada a ir para Adelaide a fim de se tratar. Uma vez em forma rapidamente retomou o caminho do bush, perto de seus queridos aborígenes. Em Ooldea, porém, onde havia morado a maior parte do tempo -16 anos-  adoeceu  gravemente, quase perdeu a vista e percorreu mais 1000 milhas para consultar um oculista em Perth, em 1922.  (181) Mesmo assim, em 1941 já com 80 anos ainda permanecia em sua tenda no Wynbring Siding, perto de Ooldea.

Esta localidade sofreu a pior seca da história do sul da Austrália, segundo sua estimativa. Oito anos sem chuva (183) poços secos, a água cada vez mais distante, os incêndios devastando tudo.(199) Todos fugiam do fogo, DB reúne rapidamente suas posses mais preciosas:

« It was for my precious manuscripts that I feared, the thousand notes and note-books that represented a lifetime’s ethnological work, accumulated through 35 years and thousands of miles of wandering.”(188)

Foi uma época muito difícil, quando a temperatura podia atingir 52 graus. (184)

Seu acampamento em Ooldea encontrava-se perto da estrada de ferro Transaustraliana, cujo poço de abastecimento de água não secava nunca e atraía os aborígenes, apesar da exclusividade do poço para o uso da estrada de ferro. Mas logo, devido à seca e ao uso intensivo começou a apresentar uma água salobra.(182)

Os aborígenes foram assim exilados de suas próprias terras, privados de água, o essencial para sua sobrevivência. Neste campo, DB ocupou-se, sobretudo a cuidar dos doentes, dos abandonados. Como de hábito.

Db devia buscar sua água numa distancia de vários quilômetros . « I could never accomplish more than eight gallons in one journey [...] » explica. (183) Sua subsistência era, de fato, assegurada pela publicação de seus artigos, entretanto nestas condições era quase impossível escrever. Mas ela resiste a tudo.

Por ocasião das lutas que eclodiram no norte da Austrália, foi chamada pelo Ministro do Interior, em 1933, a fim de aconselhá-lo sobre as decisões a serem tomadas. Cogitava-se mesmo de enviá-la em pessoa à região, para inteirar-se da situação. Ela já tinha, entretanto 74 anos e não se ousou  dar-lhe esta tarefa, árdua, em regiões selvagens. (196-197)

DB aproveitou esta estadia para usufruir dos confortos da modernidade:

« In haste I left my camp on the next passing express, and two days later enjoyed the first bath worthy of the name in twelve years – three quarts of water in a kerosene `bucket´ cut lengthwise being the most luxurious that Ooldea, at its best, could provide. » (196)

Por todos seus trabalhos junto e sobre os aborígenes, DB recebeu a The Order of Commander of the British Empire. (197)

Que mulher! Que altivez e que independência! Que força e persistência ! Que coragem ! Sua aventura foi toda sua vida. Seguiu suas escolhas, abriu suas trilhas, construiu-se em personagem sem igual, uma cientista que não desdenhava da ação. Neste meio desconhecido, entre nativos ferozes porém amedrontados e frágeis, DB tornou-se para eles um porto seguro. Tantas vezes ela os alimentou, tratou de suas doenças, de seus medos. E, sobretudo, os amou.

DB mostrou que a compaixão não necessita religião, deuses que ordenem e castiguem. Ela abriu seus braços aos mais frágeis e sua recompensa foi confiança, respeito, amizade  que lhe foram oferecidas.

Daisy Bates morreu em 18 abril de  1951 , com  91 anos.

Vida plena na paixão pelo conhecimento e no encontro de outrem . O conecimento que produziu sobre os aborígenes é inestimável.

Que aventura!!

[xiv]

Références bibliographiques

Daisy Bates, s/d. The passing of the aborigines, New York, Pocket Books

Alexandra Lapierre, Christie Molichard, 2007, Elles ont conquis le monde. Les grandes aventurières, 1850-1950, Paris :Arthaud

Paola Tabet1998, La construction sociale de l´inégalité des sexes, des outils et des corps. Paris :L´ Harmattan

Margaret Mead. 1966, L´un et l´autre sexe, Paris : Denoël / Gonthier

Ruth Benedict, 1950. Échantillons de civilisation (éditon élétronique

Pauline Schnitt-Pante, 1984.La différence des sexes, histoire, anthropologie et cité grecque, in Michelle Perrot,(dir) Une histoire des femmes est-elle possible ? Paris : Rivages

Annette Weiner. 1983.La richesse des femmes ou comment l´esprit vient aux hommes, Iles Trobiand. Paris : Seuil

R. S Wright. Bates, Daisy May (1863-1951) http://adb.anu.edu.au/biography/bates-daisy-may-83

Julia Blackburn. 1997 Daisy Bates in the Desert, Great Britain:Vintage.

 

Nota biografica:

site: www.tanianavarroswain.com.br

tania navarro swain professora da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre .Na Université du Québec à Montréal, (UQAM), foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Criou, na Universidade de Brasília, o primeiro curso de Estudos Feministas no Brasil, na graduação e na pós-graduação,em níveis de Doutorado e Mestrado, iniciado em 2002. Publicou, pela Brasiliense, O que é lesbianismo , 2000 , organizou um número especial Feminismos: teorias e perspectivas da revista Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente os livros História no Plural e "Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas" publicado em 2005 pela editora das Mulheres além de "A construção dos corpos, em 2008. Tem dezenas de publicações em revistas nacionais e internacionais, bem como capítulos de livros. ( ver site www.tanianavarroswain.com.br

 É editora da revista digital Labrys, estudos feministas".


 

[i] Os números entre parênteses referem-se às páginas do livro em questão

[iv] Ver a obra do historiador Henry Reynolds, por exemplo: The other side of the frontier: Aboriginal resistance to the European invasion of Australia (1981) Sydney: University of New South Wales Press Ltd

 http://books.google.com.br/books?id=5UT3CuOmPmEC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false  ou Frontier: Aborigines, settlers and land (1987) Sydney : Allen & Unwin 

[vi] ] Esta imagem é de domínio público e seu copyright expirou.

[vii] Os estudos de Malinowski nas ilhas Trobiand são considerados com frequencia o grau zer da Etnologia. Estudando apenas os homens.

[viii] Ver meu artigo sobre os indios no Brasil, que escolhiam o sexo a ser definido socialmente.

[xi] Voir , por exemple, STADEN,, Hans,, 1520-1565 Viagem ao Brasil. - Rio de Janeiro : Academia Brasileira,, 1930. - 186 p. http://purl.pt/151

[xiii] Ver Nicolas Werth, 2008. L´Île aux cannibales, Paris:Perrin on the South Australian Museum website, 2004