A CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA DA HISTÓRIA E DOS GÊNEROS: O BRASIL NO SÉCULO XVI.
O que é a história, finalmente, senão uma imensa lacuna, uma interrogação sem fim, um silêncio sem limites, cujas margens possíveis encontram-se no ruído do tempo, alcançado apenas através de algumas páginas em rascunho, algumas inscrições veladas, inapreensíveis traços do humano? A busca do real em história é, nos dias atuais e a partir de uma certa perspectiva teórica, uma tarefa inútil, pois a realidade do passado chega ao presente através de uma série de mediações, a partir do próprio sujeito que interroga os sentidos nas veredas do tempo. O que buscamos aqui não é portanto o confronto entre a verdade e a mentira, mas os sentidos que emergem dos discursos emitidos no passado e sobre o passado.Esta ótica permite perceber, por exemplo, no momento da descoberta do Brasil,as representações feitas pelos portugueses a respeito dos indígenas e as da historiografia que as interpreta.[1] Mostrar a presença e a ação das mulheres nas narrativas e nas descriçõe dos cronistas do século XVI é uma contribuição à história das mulheres; desmascarar o silêncio, desvelar o papel social político das mulheres portuguesas ou indígenas é a tarefa de uma história no feminino.Por outro lado, analisar as descrições ulteriores de usos e costumes dos indígenas, suas relações com os conquistadores na historiografia é útil para compreender as representações de gênero da época coantemporânea e do presente. Este presente, a despeito de três décadas de feminismo , dos debates teóricos e de uma abundante produção acadêmica sobre as mulheres e as relações de gênero, oferece-nos , nas modulações imaginárias do quotidiano, imagens fixas das mulheres e dos homens que re-constróem as hierarquias e os domínios sociais segundo os valores que lhes são atribuídos historicamente. Entretanto, no silêncio e na obscuridade da história, existe um inesgotável reservatório de relações humanas , de todas as formas e cores, escondidas por uma pretensa "natureza"humana imutável, sede quase divina das determinações sociais de gênero. O que nos guia neste trabalho é a noção de razão histórica, isto é, a historicidade incontornável de todo caminhar humano, o perpétuo movimento das representações do mundo e igualmente dos gêneros que, entretanto, reaparecem continuamente, re-semantizadas, universalizadas pelo discurso histórico, dito científico. Se a razão histórica indica- nos uma evolução, um progresso da humanidade em sua natureza e em seus costumes, a razão histórica propõe-nos um quadro do humano em transformação contínua, diferança sem origem ou referente, um simulacro, segundo Deleuze.[2] A história é também a memória, o cadinho da identidade dos povos e sua dimensão política, fundada sobre a autoridade da tradição, constrói certas relações sociais como sendo inevitáveis. O esquecimento é uma vertente deste político, fator constitutivo de uma caracterização do vivido histórico, do qual as relações entre os gêneros fazem parte integrante.Este esquecimento, porém, não é sempre obra de uma vontade explícita, pode também inserir-se no que Michel Pêcheux[3] aponta como "esquecimento n01", atividade dominada pelo inconsciente, nascida das condições de produção/ possibilidade do emissor. Quem diz o que, em que condições, à quem? pergunta Foucualt e estas questões,dirigidas ao discurso histórico demonstra a fragilidade dos enunciados que se arvoram definitivos, reduzidos à sua razão histórica, à sua produção em circunstâncias precisas do espaço/ tempo. Quando se utiliza a categoria gênero na análise histórica, entretanto, a fragmentação da diacronia permite o desvelar de situações e de casos precisos onde as relações entre mulheres e homens se desenvolvem de maneira imprevista. A história assim percebida desenha un novo horizonte epistemológico, na medida em que o impossível não existe, ao contrário, a história é o ocus onde TUDO é possível. A aprximação binária das relações entre os gêneros, a universalização dos quadros de dominação do feminino pelo masculino, a eterna luta dos sexos são assim recolocadas em seu lugar, isto é, como simples esquemas datados de representação e de interpretação do mundo. Estes esquemas operam como re-criadores do mundo, tal como podemos vê-lo, em condições de possibilidade precisas e sobretudo, tal como gostaríamos que fosse; representar nunca é, portanto, uma atividade neutra, pois a emoção e a afetividade impregnam o olhar posto sobre a realidade. As representações e seus corolários,a di- visão do mundo, o estabelecimento das normas, dos valores, das hierarquias, dos quadros de vida, emergem aos olhos do analistra em todos os discursos, em todos os textos, inscritos, iconográficos, imagens, símbolos. Exprimem igualmente suas condições de produção em redes de sentidos singulares, históricas. O imaginário social, enquanto dinâmica das representações, cria assim os sentidos do real e o agenciamento dos atores sociais. Neste quadro, assim definido, as representações aparecem como similares ao que Panofsky[4] nomeia habitus noção que abriga os princípios interiorizados a partir dos quais uma certa época seria dotada de uma unidade interpretativa/ criadora do real e das relações humanas. Alguns esquemas de representação podem ter um caráter mais ou menos hegemônico, segundo as épocas e podem mesmo reaparecer alguns séculos depois, dotados de um peso e de uma significação diferentes:: definem , entretanto, as fronteiras do possível e do impossível, du pensável e do impensável. Este é o caso dos discursos que concernem a descoberta do Brasil: os dos cronistas portugueses ou franceses confrontados ao estranho e ao maravilhoso e os dos historiadores contemporâneos, que interpretam os discursos e destes produzem outros, dependentes igualmente das classificações e de esquemas mentais. Este olhar, portanto,é dirigido às indias e indios brasileiros e suas relaçõs no século XVI e no século XX e sua apreciação constitui o objeto deste trabalho, no quadro teórico exposto acima. Os cronistas do século XVI tecem suas narrativas em torno do olhar, descrevem o que vêem e o estranho e o maravilhoso que penetram sua visão. O estranho, identificado pela reflexão, segundo Todorov[5] e o maravilhoso, urdido pelo sobrenatural, inexplicável para sempre. A aventura na qual embarcam é, na busca do re- conhecimento, um locus privilegiado da epifania do maravilhoso. Para eles, a natureza selvagem das florestas e dos animais incomuns é a mesma que transforma as borboletas em beija-flores. [6] Os indígenas foram igualmente estigmatizados neste dualismo, abomináveis e atraentes, antropófagos mas livres e nus, de uma nudez perversa e tão desejada![7] O estranho e o maravilhosos penetram seus esquemas de representação do mundo, criam rupturas que desestruturam seus sentidos e os sentidos. Entretanto, a minúcia das descrições revela uma insustentável necessidade de atribuir significações ao que, de início , delas está desprovido. Segundo Eni P. Orlandi,[8] " [...] dar un sentido é construit limites, é desenvolver domínios , é descobrir 'sitios de significância, é tornar possível gestos de interpretação" Em seu imaginário, as reresentações não são mais válidas para identificar a ordem do mundo que será assim, subbstituída pela ordem do discurso. É deste modo que os cronistas descrevem a organização social dos indígenas, interpretando-a segundo as significações que lhes são habituais. através do procedimento da "ancoragem"que torna familiar o estranho e aproxima o sentido "déjà-là" do sentido a ser dado, segundo Moscovici. [9] "Nem Fé, nem Lei, nem Rei" é a fórmula que se encontra muitas vezes para descrever uma sociedade da qual os valores e os laços eram outros, logo, "estranhos". Gabriel Soares de Souza e Pero Magalhães Godinho utilizam uma metáfora idêntica: já que em sua linguagem, os indígenas não dispunham das letras F, L, R, isto seria certamente sintoma de uma certa anomalia social. "[...] porque, se não têm F, é porque não têm fé me Deus Nosso Senhor, nem tem verdade, nem lealdade a nenhuma pessoa que lhes faça bem. E se não têm L na sua pronunciação é porque não têm lei alguma que guardar, nem preceitos para se governareme cada um faz lei a seu modo e ao som de sua vontade [...]E se não têm esta letra R na sua pronunciação é porque não têm rei que os reja , e a quem obedeçam [...]"[10] Assim, segundo os cronistas, os indígenas não tinham chefes e viviam segundo a vontade de cada um; existia porém, um índio chamado "Principal", chefe unicamente em caso de guerras, mas nem por isso dispondo de uma autoridade absoluta. "[...]Em cada aldeia dos tupinambás há um principal a que seguem somente na guerra onde lhe dão alguma obediência, pela confiança que tem em seu esforço e experiência, que em tempo de paz cada um faz o a que o obriga seu apetie." [...]"[11] Este "Principal"detinha um papel de organizador, mas mesmo descrevendo esta circunstância, os cronistas atribuem-lhe um lugar hierarquicamente superior na sociedade. A partir deste ponto, observa-se uma complicada trama de explicações e contradições, que resultam do desconhecimento de uma sociedade cujos fundamentos situavam-se fora de seus esquemas imaginários. Afinal, o principío de inversão das evidências, proposto por Foucault revela-se muito útil para a revisão da história no feminino. Os cronistas deixavam supor uma sociedade regida por homens, mas um olhar atento descobre relações muito mais nuançadas. As relações mulheres/ homens são descritas detalhadamente por todos os cronistas e a despeito da ênfase dada à atividade masculina, sobretudo a guerra, não podiam evitar de sublinhar a importância econômica e social das mulheres. Vê-se assim o esboço de grupos sociais cujo relacionamento era livre e sem hierarquias. Se aquele que era ouvido podia ser considerado o Chefe, eram então os pajés - mulheres ou homens - os verdadeiros dirigentes. Hans Staden, que viveu dois anos entre os indígenas, afirma a existência de mulheres pajés e profetas; Gandavo indica o respeito que os indígenas demonstravam pelas opiniões e conselhos das mulheres mais velhas.[12] Entre os indígenas, os homens não tinham autoridade sobre as mulheres, como sublinha Claude d'Abeville[13] , o que representa um ponto muito importante nas definições de gênero. Mulheres e homens podiam, segundo o mesmo cronista,[14] mudar de parceiro sexual como entendia. Nenhuma obsessão em relação à virgindade: as mulheres eram livres de seu corpo e de seu desejo. Como sublinha Thévet: "[...] este povo é muito luxurioso, carnal e mais do que brutal, as mulheres especialmente, pois elas procuram e praticam todos os meios para atrair os homens ao ato."[15] Os europeus diante desta liberdades de costumes, veem as indias como prostitutas e estas considerações são transplantadas no tempo pelos analistas modernos, tal como Gilberto Freyre: "[...] Saltando em terra, o europeu caía sobre una india nua; os Padres da Companhia, eles mesmos,eram obrigados a prestar atenção para não enconstar com o pé nos corpos femininos.(...) As mulheres eram as primeiras a se entregar aos brancos, as mais ardentes se esfregavam até nas pernas daqueles que supunham ser deuses."[16] Nesta sua tirada etnocêntrica, o autor faz considerações sobre a ativdade sexual dos indios, sem deixar de explicitar as causas e consequências, do alto de sua superioridade: " Pois hoje pode-se afirmar a relativa fraqueza da sexualidade do selvagem americano. Pelo menos do homem - a vida mais sedentária e mais regular da mulher dotavam-na de uma sexualidade mais forte que a do macho, o que explica a excitação de muitas dentre elas face aos brancos[...] Sabe-se com efeito que os órgãos genitais dos primitivos são em geral menos desenvolvidos que os dos civilizados.".[17] Quanto à vida quotidiana, de acordo com as descrições dos cronistas, as mulheres eram extremamente ativas. Os homens dependiam muito delas, tanto para sua sobrevivência quanto para a própria integração social. É assim que , por exemplo, a produção econômica e a coesão social eram asseguradas pelas mulheres: elas plantam , fazem as colheitas e o tratamento dos produtos. Thévet, depois de explicar amplamente em três páginas e no masculinos tudo o que era plantado e a maneira de faze-lo, acrescenta uma pequena frase que, de seu ponto de vista, classifica e ao mesmo tempo desqualifica este trabalho: "Todo este negócio de raízes é deixado às mulheres, estimando-se que não é ocupação adequada aos homens."[18] A maneira de se expressar dirige a trajetória da compreensão do receptor, desvalorizando estas atividades, tendo em vista a dignidade do homem. E possível, entretanto uma outra interpretação: os homens não eram dignos, talvez, de exercê-las. As mulheres faziam igualmente a bebida que jorrava nos dias de festa, participavam ativamente de todas as festividades e atividades lúdicas da tribo: canto, dança, em grupo ou sozinhas. Segundo Cardim, "[...] eles imitam os pássaros, serpentes e outros animais, em versos, para incitar `luta. Estes versos são improvisados e as mulheres revelam-se poetas eméritas."[19] O mesmo cronista indica que: "[...] as mulheres nadam e remam como os homens [...] e sendo grandes nadadoras, não tem nenhum medo de água, de vagas ou do mar."..[20] As índias detinham igualmente o saber e a arte da tecelagem, da olaria, da pintura e da incisão sobre os corpos humanos - sinal de honra e de beleza . Segundo Claude d'Abeville, elas faziam "[...] desenhos admiráveis sobre os corpos."[21] Mas por sua vez, Gilberto Freyre é incisivo: "Mesme a magia e a arte, se não são coisas de mulher, desenvolvem-se pela via do homem efeminado e bissexual, que prefere, à vida de movimento e batalha do macho, a vida regular e doméstica da mulher."[22] Neste caso, o domínio das representações é tão forte que o autor prefere colocar a arte e a magia nas mãos dos "efeminados", mas homens, apesar de tudo.Para ele, apesar da evidências, a criatividade não pode existir senão na esfera do masculino. As mulheres conheciam não só os segredos da preparação das bebidas , mas também a fórmula de preparação das farinhas e da alimentação especial destinada aos guerreiros que partiam em guerra. Saber e poder aparecendo conjugados , é evidente que as mulheres detinham um papel e um lugar determinantes nas relações sociais, não como objeto de troca ou de valor, mas como sujeitos dotados de importância e de prestígio em seu papel e sua condição de mulher. De acordo com os cronistas, as relações entre mulhetes e homens eram boas, pacíficas[23] e os casamentos faziam-se sem imposições; entretanto, a opinião e o consentimento da mãe eram exigidos para realizar a união dos jovens. Para sua sobrevivência, os homens dependiam das mulheres, pois elas asseguravam a produção agrícola e econômica. Abeville afirma que os homens "[...] não pensam senão em seus discursos e suas distrações.".[24] Não existia, porém, relações de dominação que obrigassem as mulheres ao trabalho, enquanto os homens permaneceriam ociosos;de um ponto de vista feminista, pode-se detectar uma sociedade de mulheres na qual os homens teriam um papel marginal, entretanto, no agenciamento das relações sociais. São obrigados, desta forma, a passar por certos ritos iniciáticos, entre os quais a guerra, para entrar no mundo das mulheres e receber seu status social na sociedade indígena. Nesta sociedade, são as mulheres que dão prestígio aos homens: aquele que tem muitas filhas é e mais estimado e honrado, "[...] porque são as filhas mui resquestadas dos mancebos que as namoram [...} os quais servem os pais das damas dois a tres anos primeiro que lhas deem por mulheres[...] eles vão se agasalhar no lanço dos sogros com as mulheres e apartam-se dos pais, mães e irmãos e mais parentela com que antes estavam;[...][25] São os homens, portanto, que se transferem e passam a integrar a família das mulheres. A poligamia dos índios , que fez correr muita tinta, era praticada sobretudo pelos Principais, os "heróis"de guerra. Uma observação mais atenta, entretanto, revela-nos que várias mulheres escolhiam-no por sua bravura no combate e seu prestígio na tibo era devido, em parte, à este grupo de mulheres que o circundava.[26] Como indica Hans Staden, que viveu em uma tribo como prisioneiro durante dois anos: "[ certas mulheres podiam ter um mesmo marido, mas cada uma delas tem seu lugar na casa e sua roça"[27] Guardavam portanto,sua autonomia e independência. E segundo Abeville, as índias eram, entre elas, muito solidárias e demonstravam lealdade e amizade em suas relações.[28] Quando um índio matava um inimigo, mudava de nome e podia então se casar, entrar na sociedade das mulheres, entrar na sociedade propriamente dita, enquanto adulto. Gilberto Freyre, por sua vez," enriquece" nosso conhecimento de suas considerações pessoais: "A poligamia não correspondia entre os selvaens que a praticavam - entre eles os do Brasil- somente ao desejo sexual, tão difícil a satisfazer para o homem, com uma só mulher; ela corresponde também ao interesse econômico do caçador, do pescador, do guerreiro, de se apropriar valores econômicos vivos, criativos, representados justamente pelas mulheres".[29] Nesta tirada falocrata-dominadora, encontramos uma imagem fixa do homem - sujeito social- que se circunda de objetos-valores, as mulheres. Todas as singularidades da sociedade indígena brasileira são apagadas de um só gesto, que determina os sentidos e lhes confere um cunho universal. Por outro lado, haveria na sociedade indígena, uma preocupação em relação ao exercício da sexualidade feminina, não no sentido repressivo, mas ao contrário, a pologamia supriria a falta eventual de parceiros masculinos para as mulheres sem marido, como sublinha Abeville.[30] É interessante notar que o mesmo cronista considera que a poligamia só era possível ao índio capaz de sustentar suas mulheres,o que evidentemente representa uma inversão de papéis.[31] Vemos o processo de ancoragem em ação: o bizarro torna-se familiar por uma simples estratégia verbal, exorcisando assim o perigo de uma sexualidade femina livre, enterinada socialmente. A guerra era assim de grande importância para os homens,era a maneira precípua de afirmação de seu status e papel na sociedade. Os prisioneiros feitos nesta ocasião eram guardados pelas mulheres , que podiam escolher algum deles como parceiro antes que fosse sacrificado. Eram as únicas a poder libertá-los e assim dar-lhes a vida: se uma delas decidia fugir com o prisioneiro , a tribo aceitava o fato e sequer pensava-se em persegui-los.[32] As possibilidades de escolha e a liberdade das mulheres era assim reafirmada, em circunstâncias tão importantes socialmente , como o sacrifício de um cativo. As mulheres capturadas também eram sacrificadas no decurso de grandes festas, mas eram livres de movimentos durante o tempo do cativeiro.[33] Isto demonstra, igualmente, que as representações simbólicas quanto aos prisioneiros não estavam ligadas a uma limitação qualquer de gênero, mais ou menos importante. Vemos, deste modo, que a divisão de papéis segundo os gêneros não implicava em dominação nem hierarquisação. Não temos a pretensão de descrever uma sociedade perfeita, longe disto, pois toda sociedade estabelece seu regime de verdade, seu sistema de circulação de sentidos , que implica em valores e normas o que implica em possíveis exclusões. É possível, entretanto, constatar uma ruptura da monótona representação binária polarizada mulher/ homem, fragilidade/ força, dominado/ dominante, mau/bom, objeto/ sujeito. É instrutivo observar a maneira como os cronistas, a partir de suas representações de mundo descrevem as relações entre mulheres e homens e as contradições nas quais se enredam. Claude d'Abeville explica que as mulheres não podiam abandonar seus maridos, mas na página seguinte indica que os casais podiam se separar segundo o desejo de um ou de outro.[34] Nos ritos que acompanham o nascimento, há uma inversão de papéis, ocasião para o pai de afirmar simbolicamente sua participação ao evento: as mulheres, terminado o parto vão mergulhar no rio enquanto os pais se deitam, queixosos, em suas redes e se fazem visitar e acalentar, como se houvessem sofrido grandes dores.[35] O interdiscurso do século XVI emerge nas observações dos cronistas sobre os indígenas quando pretendem mostrar o papel predominante do pai na concepção da criança. A argumentação aristotélica se faz presente no imaginário cristão, expressa de forma exemplar pela concepção de Cristo.[36]A autoridade da Grécia antiga é constantemente invocada, sobretudo por Thévet, cujas consideraões serão retomadas pela historiografia. Como vimos, porém, as regras e as relações na sociedade indígena eram muito mais nuançadas; o rolo compressor das descrições feitas genericamente no masculino, sob um olhar domesticado por séculos de patriarcalismo deixa facilmente escapar as filigranas que compõem um quadro onde os valores e normas não impõem uma visão binária e hierarquizada do humano. A ideologia seria a imposição de um sentido e dar sentido ao estranho, como sublinhamos, é remeter à ordem, é tornar familiar o que parece impossível ou bizarro, como uma sociedade onde as mulheres são livres e as relações de gênero não são determinadas pela natureza dos sexos. Esta forma ideoológica de descrição dos costumes dos indígenas torna-se um discurso fundador, aquele que instaura e cria uma nova memória e uma outra tradição. Segundo Eni Pulcinelli Orlandi, "O sentido anterior é desautorizado.[...]Esse dizer irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu próprio surgir produz sua "memória".[...] Cria tradição de sentidos projetando-se para frente e para traz, trazendo & o novo para o efeito do permanente[...] Produz desse modo o efeito do familiar, do evidente, do que só pode ser assim."[37] As considerações sobre o patriarcalismo da sociedade indígena brasileira fazem parte de um discurso fundador cuja memória e tradição sobre a relação de gêneros são assim inauguradas no Brasil. A história retoma assim seus discursos e nos recria a imagem de um país do qual as origens "naturais"indicam uma predominância do homem sobre a mulher. As afirmações assim fundadas resultam na eterna "luta dos sexos"e "a universal dominação da mulher pelo homem",discurso do qual os historiadores se fazem cúmplices ou mentores.É este tipo de "evidência"que institui no imaginário social a representação de universalidade hierarquizada na relação entre mulhetes e homens, relação esta definida pela marca indelével do "determinado para sempre"das origens ao fim da humanidade, enterinada pelo presente. É este gênero de evidências que uma história ao feminino deve eliminar. Com seus discursos ambíguos, atravessados de espanto, os cronistas indicam a construção de uma nova ordem que não leva em conta e que , sobretudo, não vê uma organização social formulada por outras representações do mundo.Ao contrário, os portugueses vão se empenhar na destruição da maneira de viver dos indígenas , do ponto de vista material - com a escravidão e os massacre sistemático- e do ponto de vista social / moral - com a instauração de seu imaginário e da moral bi-sexuada ( uma masculina e outra feminina )enfim ,de suas normas e valores onde o masculino domina o feminino. O mundo indígena esfacela-se assim sob o olhar do colonizador e desaparece sob os golpes da selvageria cristã. A ESCOLHA DO GÊNERO Os índios do Brasil conheciam poucas restrições sexuais, à parte algumas interdições entre parentes. Por outro lado, fato notável para os estudos de gênero, as categorias mulher/ homem não eram definidas a partir do sexo biológico. Com efeito, cada qual podia escolher sua ligação à um ou à outro grupo e exercer sua sexualidade como bem entendia.O homossexualismo era uma prática como qualquer outra e não levava a nenhuma espécie de exclusão. Gabriel Soares de Sousa mostra-se indignado por estas práticas e fala unicamente de homens "[...]são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não têm por afronta;e o que serve de macho, se tem por valente e contam esta bestialidade como proeza; e nas suas aldeias pelo sertão, á alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas." [38] Falar nunca é neutro e mais uma vez a linguagem vem sublinhar os valores, os pré- juízos, as representações de gênero do emissor. Os discursos, entretanto, desvelam imagens históricas, cuja historicidade mesmo despedaça os moldes dos paradigmas. Gilberto Freyre, nosso contemporâneo,diz a última palavra sobre a questão, em seu limitado entender: " É impossível verificar até que ponto, na América primitva a prática provinha ou não da perversão congênita. Com efeito, a pederastia não tinha sua origem na falta ou na raridade de mulheres[...] mas na segregação dos jovens nas casas secretas dos homens"[39] Gandavo, no século XVI tem um outro tipo de discurso, onde aborda, de forma oblíqua, um assunto tão "perigoso" que por ele passa sem comentários: "Algumas indias ha que tambem entre elles determinam de ser castas, as quaes nam conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consetirão ainda que isso as matem. Estas deixam todo exercício de mulheres e imitam os hoeme e seguem seus ofícios, como senam fossem femeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos, e vão à guerra com seus arcos e frechas, e à caça perseverando sempre na companhia dos homens e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz he casada , e assi se comunicam e conversam como marido e mulher."[40] A escolha do ser homem ou mulher aparece aqui de forma evidente: se a mulher decide ser um homem ela será considerada e aceita como tal.O indivíduo escolhe assim seu gênero, seu papel sexuado na sociedade e portanto, seu papel social. Não havia determinações "naturais" ou sociais impondo a heterossexualidade. Os discursos positivistas sobre a evolução ou sobre a selvageria não conseguem reduzir a importância deste fato. Sua razão histórica, sua historicidade, a emergência na literatura do século XVI de uma sociedade cujos menbros podiam escolher o gênero ao qual querem pertencer constitui um acontecimento, uma ruptura na ordem do discurso. É uma falha que se cria em nível de imaginário e que abre os horizoantes do possível em história. Todavia, a historiografia, como veremos adiante, irá rapidamente fechar estas brechas e trazer o mundo à ordem do discurso. Outra parte de grande interesse da história feita pelos cronistas refere-se à presença das Amazonas, que os intrigam e perturbam. Com efeito, no século XVI, as mulheres haviam sido desalojadas , em grande parte, da vida política e econömica na Europa. Ao longo dos séculos precedentes,como mostra Régine Pernoud[41], as mulheres detinham um papel considerável nos negócios, na produção e no comércio, na educação. Entretanto, o imaginário cristão tornando-se hegemônico nesta época, as mulheres passaram a ser representadas como seres mental, moral e físicamente frágeis.[42]Mãe, santa ou demônio, estas classificaões não suportavam a imagem de guerreiras, de mulheres fortes e independentes, capazes de lutar, matar e assegurar sua sobrevivência na floresta. Os cronistas hesitam entre o maravilhoso e a terra firme de suas representações. O maravilhoso aparece apenas para melhor desaparecer, para melhor assegurar o ordenamento do mundo , seus valores e suas imposições. As Amazonas são seres improváveis, impossíveis, pois elas escapam ao "natural", à ordem do divino e à instituição do humano. Os cronistas notam muitas vezes mulheres guerreiras, que participam das lutas contra os europeus. Selvagens, porém mulheres , que partilhavam a vida dos homens, normais, portanto. Gandavo indica que entre os Aymorés "[...]As mulheres trazem huns paos tostados com que pelejão."[43] Explica em seguida que este povo é um dos mais ferozes e selvagens: "[...]não têm rosto direito aa ninguém, senão a traição fazem a sua[...]Esses índios não vivem senão pela frecha, seu mantimento eh a caça, bichos e carne humana[44] As Amazonas fazem parte de uma outra espécie, indomáveis, que espalham o medo e o terror à sua volta. Enviadas ao maravilhoso, as Amazonas tornam-se aceitáveis aos olhos dos colonizadores, pois o maravilhoso detém um lugar essencial no mundo do século XIX, nem que fosse apenas para assegurar a ordem do "real". A aproximação feita pelos cronistas em seu discurso , entre as guerreira indígenas e as Amazonas gregas instaura um contrato veridictório ambíguo com os receptores de épocas posteriores, na medida em que o apresentado como real, é imediatamente transportado para a dimensão do mítico , fabuloso, ilusório. Thévet explica longamente a origem das Amazonas brasileiras como sendo descendentes de Pentasiléia dispersas pelo mundo após a guerra de Tróia ou sobreviventes das amazonas africanas. Parece, entretanto,crer em sua existência, e descreve seus costumes,alimentação, habitat, etc. "[..] elas vivem separadas dos homens , e só raramente estão juntos[...] este povo habita em pequenas cabanas ou cavernas nos rochedos, vivendo de peixe ou de alguns animais selvagens, raízes ou de frutos nativos. Matam seus filhos machos assim que nascem[...] se é um menina guardam-nas com elas exatmaente como as primeiras amazonas faziam. Normalmente elas guerreiam contra algumas nações [...] Quanto aos prisioneiros elas os matam com suas flechas e não os comem como os outros selvagens, mas os queimam até que sejam reduzidos a cinzas."[45] Por outro lado, para atemorizar os inimigos que frequentemente vinham atacá-las, as guerreiras "...davam gritos maravilhosos e bárbaros[...]"[46].Gabriel Soares de Souza faz igualmente alusão aos combates destas guerreiras, neste caso com o grupo dos Ubirajaras: "[...]são muito temidos pelos amoipiras, com os quais tem guerra por uma banda e pela outra, com umas mulheres que dizem tër uma só teta, que pelejam com arco e flecha, e se governam e regem sem maridos, como se diz das amazonas; dos quais não podemos alcançar mais informações, nem da vida e costumes destas mulheres.[47] Thévet também relata o encontro dos espanhóis com as guerreiras: "[...] nossos peregrinos não haviam parado senão o necessário para se repousar e buscar alguns víveres, porque estas mulheres tão admiradas de vê-los com aquele equipamente que lhes era tão estranho reuniram-se logo de 10 a 12 mil em menos de tres horas, meninas e mulheres nuas, mas com arco e flecha na mão, gritando como se tivessem visto seus próprios inimigos[...]ao que não quiseram resistir e em seguida se retiraram com sua honra preservada."[48] Com efeito, se na ordem do discurso do século XVI, as amazonas são atreladas às filiações da antiguidade, isto não se dá para por em dúvida sua existência, mas ao contrário, para confirmá-la através das comparações já realizadas. O maravilhoso, que atravessa as representações, cria um espaço possível para a existência de mulheres cujo modo de vida prescindia da presença e da companhia dos homens. O estranho, (neste caso, o Brasil) poderia perfeitamento abrigar o bizarro,(as Amazonas) mas as representações de gênero são muralhas que resistem aos invasores, sobretudo às invasoras, cuja existência, ela mesma, poderia transtornar a ordem do poder e da dominação no imaginário social. Por outro lado, no século XVIII, Condamine , que navegou no Amazonas . faz um longo discurso sobre as mulheres guerreiras: "[...] ao longo de nossa navegação havíamos perguntado aos índios de diversas nações [...] se eles tinham conhecimento destas mulheres belicosas que Orellana teria encontrado e combatido.[...]" Acrescenta que as informações "[...] tendem a confirmar ter havido neste continente uma república de mulheres que viviam sozinhas, sem ter homens com elas.[49]" Condamine acrescenta igualmente vários testemunhos, inclusive de governadores espanhóis a respeito de mulheres que não tinham marido e se inquieta sobre sua localização geográfica no mundo conhecido à épcoa. O autor, dentro do espírito racionalista do século XVIII tenta combinar os testemunhos com a dúvida plantada em seu espírito por suas representações sobre os gêneros.: "[...]o que me parece mais possível do que todo o resto é que elas tenham perdido com o tempo seus antigos usos, seja porque tenham sido subjugadas por uma outra nação, seja porque, cansadas da solidão, as jovens tenham finalmente esquecido a aversão de suas mães quanto aos homens."[50] Mulheres sòzinhas e aborrecidas sem a presença masculina é uma idéia extremamente difundida ,que se perpetua no interdiscurso, e cuja simples enunciação signifca sua evidência até nossos dias.Os homens, por sua vez, entre eles se divertem, criam, trabalham. Tais representações resultam em práticas sociais onde as mulheres vivendo entre elas demonstram uma anormalidade biológica e social. Os cronistas do século XVI, por sua vez , debruçam-se sobre as reuniões dos índios e não se demoram um instante sobre as das mulheres, tarefa ociosa em seu entender, apesar de sua importância social. A dúvida metódica entra nas considerações de Condamine: "se, para negá-lo, alega-se a falta de verosimilhança e a espécie de impossibilidade moral que haveria em que uma república de mulheres deste tipo possa ter se estabelecido e subsistido, não insitirei sobre o exemplo das antigas amazonas [...] já que o que lemos nos historiadores antigos e modernos é , no mínimo matizado de fábulas e sujeito à contestação."[51] Este é já um discurso da época clássica que se considera científico e reafirma argumentos, expondo-os, sem adotá-los de maneira peremptória: impossibilidade moral, falta de verosimilhança. Trata-se de um simples recurso de retórica que invoca a adesão do leitor, no quadro de representações do século XVIII, onde as mulheres perdiam cada vez mais seu lugar e seus direitos cívicos. Após dois séculos de transformações sociais criadas pelos europeus, Condamine estima que [...]se algum dia houve amazonas no mundo, é na América, onde a vida errante das mulheres que seguiam seus maridos à guerra [...]fez-lhes nascer a idéia e forneceu-lhes ocasiões frequentes de escapar ao jugo de seus tiranos, buscando criar um lugar onde elas pudessem viver de forma independen[...]"[52] Nas representações binárias do mundo é indispensável que as mulheres não escolham viver entre si, por livre opção. A criação de um sentido explicativo se impunha e será realizada em uma rede de representações de gênero que se entrecuzam e se imbricam, negam-se e afirmam-se no caminhar dos séculos. No decorrer da época dos Iluministas e da Revolução Francesa, as indígenas guerreiras, altivas e livres são definitivamente relegadas ao mito, à uma ilusória anomalia dos afrescos desenhados pela natureza. Enterradas pelo discurso da razão, as Amazonas americanas transformam-se em mulheres tiranizadas que fogem para a floresta. Em nossa época, Sérgio Buarque de Holanda situa definitivamente as Amazonas indígenas na dimensão mítico/ilusória; para este autor, o fato de enxergar mulheres guerreando ao lado dos homens podia criar a imagem das Amazonas: "[...] de tal espetáculo, entretanto, onde pareciam misturar-se o real e o fantástico, devia nascer o ambiente propício ao mito."[53] Para este autor, os relatos dos espanhóis eram uma produção típica de um imaginário exacerbado pela busca do maravilhoso. As Amazonas eram então colocadas na mesma esfera significativa da Fonte da Juventude, do Eldorado, dos monstros que habitavam a terra e os mares: [..] em Quito, a Academia Real investiga a existência, em certas províncias destas 'viragos', capazes de se sustentar sem a companhia dos homens, salvo em certas circunstâncias."[54] Sublinha, ainda, que fora das categorias do possível, a existência das Amazonas era a simples confirmação de tudo o que queriam ver o capitão e seus companheiros.[55] Nesta divisão entre o real e o imaginário , a história decide sobre o que é admissível na espessura do real: unicamente o que contém as representações disponíveis para a decodificação dos signos. Que as Amazonas tenham existido ou não, esta não é a questão. O que verdadeiramente importa é a possbilidade de sua existência, negada pela história no quadro das representações binárias de gênero. Por sua vez, a historigorafia contemporânea retoma os cronistas para esboçar o quadro das sociedades indígenas. Florestan Fernandes[56], em suas condições de representação, classifica as indígenas que escolhem o papel masculino na sociedade como "tríbades"; cita os cronistas, que indicam simplesmente sua existência e maneira de viver, acrescentando seus próprios julgamentos de valor: " Segundo esta fonte as mulheres tríbades assumiam as atitudes culturalmente definidas como masculinas[...] adotavam a forma masculina de penteado e contraíam núpcias como os homes [...]Adquiriam , pois, através destes conúbios, tôda espécie de parentesco adotivo e de obrigações assumidas pelos homens em sues casamentos[...] Formalmente, porém, parece que este era simples recurso para atribuir status às mulheres que constituíam desvios psicológicos[...][57] O mesmo autor acrescenta: "A avaliar pelas informações, esses desvios eram pouco frequentes e em algumas situações pelo menos, de acordo com as informaçoes de Gandavo, a sociedade resolvia o problema eliminando as mulheres tríbades.[58] Estas citações são exemplares para mostrar a influência do quadro de representações de um autor sobre suas explicações, tanto mais que uma leitura minuciosa de Gandavo ( a fonte por ele citada)não permite absolutamente admitir a eliminação destas mulheres, nem que sua existência possa constituir um problema para a tribo. Doença, problema, desvios psicológicos,as possibilidades infinitas da história das relações humanas são reduzidas à exclusões modernas ou aos eternos silêncios quando se trata das relações entre mulheres. Por sua vez, entretanto, as relações homossexuais entre homens são mais abordáveis e/ ou explicáveis. Florestan Fernandes procura justificá-las pela necessidade: "Parece-me que as práticas sodomíticas dos Tupinambás devem ser encaradas em têrmos dessas dificuldades na obtenção de parceiras sexuais."[59] Efetivamente, a homossecxualidade masculina faz parte da história conhecida, sem que seu aparecimento traga modificações na ordem da representação binária dos gêneros. Paul Veyne adverte muitas vvezes em seus livros a respeito da utilização dos anacronismos na história, das palavras cujos sentidos pertencem à rede atual de significações, empregadas para significar seres ou situações longínquas no tempo e no espaço. Foucault, por seu lado, interroga-se a respeito da conveniência de dizer que mesmo os gregos eram homossexuais. "De fato, a noção de homossexualidade é pouco adequada para recobrir uma experiencia, formas de valorização e um sistema de recortes tão diferente dos nossos.[60] Florestan Ferandes, por exemplo, atribui às relações entre mulheres conceitos ainda pouco utilizados mesmo no seu tempo[61] e sobretudo, em seus enunciados desqualifica estas relacões. No que diz respeito à organização social e política, Florestan Fernandes descreve uma ordem patriarcal, onde classifica os tipos de dominação, oligarquias ( conselho do anciãos) e carismática ( o principal e os pajés); dedica um capítulo ao Conselho doa Anciãos, tratado no masculino. Ora, Thévet e Évreux confirmam o grande prestígio das anciãs.[62] O Principal como ja vimos, era espontaneamente seguido nas atividades da guerra; o pajé, por sua vez, podia ser uma mulher. A análise não pode ser feita no domínio do impensável: uma sociedade sem chefe definido, sem hierarquização dos sexos, onde no entanto, o papel das mulheres era politica e economicamente extremamente importante. Os indícios ,entretanto, as marcas discursivas nos discursos dos cronistas criam imagens orquestradas por relações sociais que desautorizam a ordem do "natural". Fernanades indica o papel decisivo das mulheres enquanto agentes econômicos; mas reelabora a organização indígena no campo das representações: "contudo , acredito que ela deve ser encarado do ponto de vista das compensações recíprocas garantidas pelo sistema de distribuição das ocupações. Entre elas ressalta a proteção permanente assegurada à mulher pelo homem."[63] Após a leitura dos cronistas, Fernandes comenta: [...] a situação precária em que ficavam os homens Tupinambás que não dispunham de mulheres ( mãe, irmã, esposa) que cuidassem deles".[64] Mas de sua própria lavra o autor acrescenta, para marcar a importância dos homens, que "As mulheres poderiam passar grandes privações sem o apoio dos homens"[65] Por outro lado, descreve de uma forma generalizante a poligamia, que, como indicamos, era muito restrita; da mesma forma enfatiza o papel do homem- chefe de família- ainda que o parágrafo que segue mostre a grande importância da mulher no lar: "Cada chefe de família possuía um lote exclusivo de algumas jeiras de terra nas plantações feitas em comum[...]e cada uma das esposas tinha seu lote particular. O produto de cada horta devia ser consumido, em condições noramis, pelo grupo restrito dos membros de cada lar polígino"[66] Acrescenta em seguida, citando os cronistas: "[...] cada filho entrega tudo o que traz de caça à sua mãe[...]Com o matrimônio[...] devia entregar o produto de seu trabalho à sua esposa."[67] Assim, vemos a interpretação que esculpe uma sociedade ao sabor das representaçõe do presente, onde se perpetuam papéis que determinam os gêneros, utilizando argumentos a respeito de uma "natureza"universal, manifestda, segundo esta ótica, numa monótona uniformidade histórica. No entanto, a razão histórica nos prova que no plano das relações humanas e da própria natureza, tudo é possível e que a singularidade é o objeto precípuo da história. No entanto, o que a história não diz, nunca existiu e a história silencia ou lança no domínio das coisas bizarras, o que não é semelhante, o que não se manifesta por si mesmo. Desta forma,o ruído dos discursos contrói uma história à imagem de seus autores e de suas representações,conforme os valores ligados a uma visão binária do mundo. As redes de sentido singulares que dão uma signigificação às imagens de si e do outro são ignoradas, na medida em que os eixos rígidos de interpretação impedem e reduzem a infinita polissemia das relações humanas. Neste quadro, as mulheres foram expulsas da história, não porque estivessem dela ausentes, mas porque o discurso histórico as tornou invisíveis, modelou-as inexoravelmente como seres inferiores,imobilizadas em papéis subordiandos, dominadas, mesmo onde os indícios clamam à dfierença. A livre escolha dos gêneros na sociedade indígena brasileira na época do descobrimento mostra que a "natureza"mente.[68] Os estudos feministas tem a tarefa de rever o lugar das mulheres e a partilha do poder entre os gêneros em sua historicidade, logo, em sua pluralidade, na ifinita re-criação do humano.[69] [1]ver a este respeito, por exemplo, Michel de Certeau. A escrita da História, Rio de Janeiro, Ed.Forense, 1982. [2]sobre esta noção, ver iles Deleuze em , por exemplo, La logique des sens, Paris, Ed. de Minuit, 1969. [3]ver, a este respeito,F.Gadet e T. Hak(orgs)Por uma análise automática do discurso, uma introdução à obra de Michel Pêcheux, Campinas/SP, Unicamp,1990 [4]Panofsky. Larchitecture gothique et la pensée scolastique apud Roger Chartier.História Cultural, entre prátcias e representações.,p35 [5]Tzvetan Todorov.la tetteratura fantastica.Garzanti, Milano, 1977. [6]Fernão Cardim, Tratado da terra e da gente do Brasil, São Paulo, Ed. Nacional, 1978, p.36 [7]ver a este respeito, o capítulo V de Michel de Certeau.A escrita da história, Rio de Janeiro, Forense/ Universitária, 1982. [8]Eni Pulcinelli Orlandi. Discurso Fundador, a formação do país e a construção da identidade nacional, Campinas/São Paulo, Pontes, 1993, p.15 [9]apud Pedrinho Guareshi, Sandra Jovelovich Textos em representações sociais, Petrópolis/RJ, Vozes, 1994 [10]ver,quanto a Gabriel Soares de SouzaTratado descritivo do Brasil em 1587, SP, Ed. Nacional, 1971, p. 302 e quanto a Pero Magalhães Gandavo.História da Província de Santa Cruz. Tratado da terra do Brasil, SP, Ed. Obelisco, 1964, p 54, para o desenvolvimento desta mesam idéia. [11]Gabriel Soares de Souza,op.cit. p.303 [12]Hans Staden Duas viagens ao Brasil. São Paulo, Sociedade Hans Staden, 1942, p.175 [13]Claude dÁbeville História das Missões dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, São Paulo, Livraria Martins Edotpra, 1945, p.223 [14]idem.ibd. [15]André Thevet.Les singularités de la France Antartique- le Brésil des cannibales au XVIeme siècle, Paris, La Découverte, 1983, p. 103 [16]Gilberto Freyre.Maitres et esclaves, la formation de la société brésilienne, Paris, Gallimard, 1974, p.98. Este autor foi traduzido em pelo menos 20 linguas, tal foi seu sucesso. [17]idem, ibd. p.108 [18]André Thévet, op. cit. p.149 [19]Fernão Cardim, op. cit. p.185 [20]idem, ibid.p.188 [21]Claude dÁbeville, op. cit. p.217 [22]Gilberto Freyre, op. cit. p.126 e 127 [23]ver Fernão Cardim a este respeito, op. cit. p.110 [24]idem, ibid. p.242 [25]"Gabriel Soares de souza, op.cit. p. 304 [26]ver F. Cardim,op. cit. p.103 [27]ver Hans Staden, op. cit. p.171. Os índios não tinha propriedade privada de terra, mas segundo os cronistas, dispunham do uso de uma roça. [28]Claude d'Abeville, op. cit. p.283 [29]Gilberto Freyre, op. cit. p.126 [30]ver, a este respeito, Claude d'Abeville, op. cit. p. 223 [31]idem, ibid. p. 283 [32]ver Fernão Cardim, op.cit., p.114 [33]a este respeito, consultar Gandavo, op.cit. [.65 e Thévet, op. cit. p.87 [34]Claude dÁbeville, op.cit. p.222 e223 [35]ver a este respeito, Gabriel Soares de souza, op.cit., p.306 e Frei Vicente de Salvador, História do Brasil 1500-1627, SP, Melhoramentos, 1954,p.72 [36]Maria, depositária da "semente"divina, recebe a "nova"uma vez grávida e não participa ao nascimento de Cristo, senão como receptáculo. [37]Eni Pulcinelli Orlandi, op.cit. p.13 e 114 [38]Gabriel Soares de Souza, op. cit. p. 308 [39]Gilberto Freyre, op. cit. p.130 [40]Gandavo, op.cit. p.56 e 57 [41]Régine Pernoud. La femme au temps des cathédrales, Paris, Stock, 1980 [42]ver, a este respeito, por exemplo, Jean Delumeau. La peur en Occident. XIV/XVIIIème siècle.Paris, Fayard, 1978. [43]Aimoré era um dos povos indígenas do Brasil, assim como os tamoios, tapuias, goitacases, tupinambás, tupininquins. [44]Gandavo, op, cit. p.77 [45]Thévet, op. cit. p.167 [46]idem, ibd. [47]Gabriel Soares de Souza, op. cit. p 337 [48]Thévet, op.cit. p. 167/168 [49]Ch. M. de la Condamine.Voyage sur l"Amazone, Paris, Maspero,1981, p.84 [50]idem, ibid. p. 87 [51]idem, ibid. p. 88 [52]Condamine, op.cit. p.88 [53]Sergio Buarque de Holanda.Visão do Paraíso, São Paulo, Ed. Nacional/ USP, 1969, p.25 [54]idem, ibid, [55]idem, ibid. p.28 [56]autor muito conhecido nos meios academicosa brasileira e internacionais,antigo professor da USP e da universidade de Toronto. [57]Florestan Fernandes. A organização social dos Tupinambás, SP, Hucitec, 1989,p.137/137 [58]idem, ibid, p.138 [59]idem, ibid. p. 136 [60]Michel Foucault.Histoire de la sexualité- l'usage des plaisir, Paris, Gallimard, 1984, vol II, p.207 [61]O livro citado de Florestan Fernades é de 1948; em 1953, o Nouvel Petit Larousse de Claude et Paul Augé, não continha ainda a palavra tribade e o lesbianismo era definido como : De Lesbos. Por outro lado, a psicopatologia, à época classificava o tribadismo com doença mental. [62]Thévet, op. cit. e Evreux, apud Alfred Métraux, A religião dos Tupinambás, SP, Ed. Naciona, /USP, 1979, p.67 [63]idem, ibid. 113 [64]idem, ibid. p. 114 [65]idem, ibid. [66]idem ibid. p.122 [67]idem, ibid. [68]No original em francês, "nature-elle-ment"jogo de palavras utilizados pela revista Questions Féministes dnas un dossier sobre a "natureza ' dos sexos. |