A violência política da naturalização dos corpos: feminismos e poder conferencia em Fortaleza Uma menina é colocada em uma cela com 20 homens, durante 27 dias, no Brasil, em 2007 e o que se questiona é sua idade. Maior ou menor, não importa: é um corpo de mulher que foi ofertado como pasto aos presos. E este não é um caso único, como afirmam os jornais. Uma mulher presa é um corpo a ser usado, como qualquer mulher que esteja em situação precária ou de risco. E isto é “natural”, Turismo sexual é notícia, a prostituição é “natural”; imagem clássica de uma natureza que encobre a violência da apropriação social dos corpos femininos. Mas afinal, o que é uma mulher? perguntava, em 1949 , Simone de Beauvoir.[1] É esta questão que abala a evidencia maior de corpo sexuado pré-existente à sua inserção no cultural, já que, como afirma esta autora, “não se nasce mulher, [alguém] se torna mulher. Colocando em pauta o corpo sexuado como uma construção social, os feminismos contemporâneos, que adquirem visibilidade justamente a partir desta pergunta de De Beauvoir desarticulam a última certeza da ciência e da biologia, pois fica claro que não basta ter uma genitália específica para ser mulher ou homem. É-se construído culturalmente de forma binária e hierárquica, e a diferença sexual, fundamento de todas as desigualdades é um processo contínuo de diferenciação, de um corte político do humano criando imagens e representações. Os feminismos criticam esta repetição constante de idéia de diferença sexual, esta necessidade de estabelecer como “natural” a coerência entre sexo, desejo e sexualidade para que a inteligibilidade cultural do humano seja admitida e adquira foros de “natureza humana”. A diferença , de fato, é política, o corpo é marcado pelo sexo e o corpo das mulheres se torna assim espaço de domínio masculino. O “natural” aqui, do corpo biológico, dotado de certas particularidades, atrela-se ao político, na medida em que define um comportamento “normal” a partir de valores criados pelo social. A genitália, torna-se, deste modo, causa de uma sexualidade paradigmática, da heterossexualidade reprodutiva, cujo ônus recai, principalmente, sobre as mulheres. Os sentidos elaborados, em tempos e lugares específicos, tomam foros de verdade ao serem expressos na linguagem sob a forma de tradição, memória, história, do “sempre foi assim” ; em sua própria repetição criam constantemente o solo sobre o qual se apóiam, expressão de uma realidade universal e/ou natural A ausência das mulheres como sujeitos políticos na produção do conhecimento e no social, não era sequer notada, até a eclosão dos feminismos contemporâneos. Esta é também uma violência simbólica que sofrem todas as mulheres, para além das violências cotidianas e de sua banalização, que decepam a indignação. As meninas e mulheres entregues aos homens presos e que certamente ainda lá estão mostram a profundidade da violência do processo de diferenciação política dos sexos. . feminismos Ser feminista é sinônimo de rebeldia, de questionamento. Ser feminista é recusar a desigualdade, a apropriação, a naturalização do sexo social, o destino biológico e as limitações políticas impostas pela definição do “ser mulher”. Ser feminista é a recusa das limitações impostas ao feminino baseadas em seu corpo e no poder das representações sociais que o constroem. Assim,antes de Foucault identificar em sua obra os meandros de um poder disseminado, encravado e exercido no próprio tecido constitutivo do social, em 1949 Simone de Beauvoir, denunciava os múltiplos poderes naturalizados e inseridos na hierarquia social constituída pelo binário feminino/ masculino, relacionamento básico das formações sociais na atualidade. No início do século XX, Virgínia Wolf já apontava as coerções de um imaginário social sobre corpos definidos como femininos e seus desdobramentos no que hoje denominamos “sexo social”. Simone de Beauvoir analisou as injunções contidas em um feminino ancorado no biológico, naturalizado, criando espaços delimitados para o “ser mulher”. Betty Friedan,[2] por sua vez, nos anos 1950, apontou o poder exercido pela mídia e pelas pedagogias sociais, na recondução das mulheres a seu papel “natural”, esposa e mãe, depois de, maciçamente, terem adentrado o mercado de trabalho durante a Segunda Guerra mundial. As representações sociais e as imagens produzidas que constituem o corpo feminino e a mulher, no singular, são assim desveladas, mostrando a construção feita no sócio/cultural para determinar lugares, papéis, comportamentos, limites. Poder e saber de fato confluem na constituição de “regimes de verdade”[3], na circulação de enunciados com valor de verdade, nas representações sociais que, uma vez instituídas, transformam-se em axiomas sobre o humano. Estes são marcos extremamente importantes que fazem confluência com as reflexões de Foucault sobre o “processo de subjetivação” / assujeitamento na medida em que se aponta a construção social dos seres e a pedagogia disciplinar exercida pela difusão e reiteração de representações sociais que ancoram no sexo a identidade do humano.. Foucault explica que “se existe subjetivação, ela implica uma objetivação indefiinida de si por si – indefinida no sentido que, não sendo jamais adquirida uma vez por todas, não acaba no tempo ; neste sentido é preciso sempre ir tão longe quanto possível no exame dos movimentos de pensamento, por pequenos e inocentes que possam parecer..[4] Escrito nos anos 1980, este trecho retoma a desnaturalização dos seres, cuja construção de si é permanente, fluida, longe das caracterizações de uma identidade fixa e imutável, ancorada no sexo biológico. A consciência desta construção, disseminada nos feminismos leva ao cotidiano, às relações sociais binárias, numa noção de experiência que se revela constitutiva do ser e não apenas um acontecimento determinado. A experiência é, portanto, aquilo que forja o ser em sua dinâmica de subjetivação, sujeita às injunções do social. Na crítica à naturalização dos corpos e das funções sociais, os feminismos criaram, nos anos 1970, a noção de gênero a fim de categorizar esta construção social. Pode-se aí, entretanto, detectar uma espécie de domesticação epistemológica, na medida em que o “gênero” opera na “casa do senhor”, como sublinha de Lauretis, dentro da economia de uma incontornável ordem binária do humano.[5] Seu aspecto relacional na construção do humano sexuado obscurece a economia hierárquica e assimétrica da construção dos gêneros, esconde a face do poder na instituição dos sexos como fundamento dos gêneros. Caracterizados por uma incansável crítica à produção do conhecimento, os feminismos logo indicam a falência da categoria gênero, que, de instrumento de desconstrução de uma essência “natural” dos seres passou rapidamente a ser utilizada como elemento descritivo do cultural, sem questionar seu binarismo fundador de tal sistema. Ou seja, naturalizou-se novamente a divisão binária dos sexos, ao tomar o sexo biológico como superfície pré-discursiva; é assim que no sistema sexo /gênero, o gênero está jungido incontornavelmente ao sexo biológico, na análise do social. O perigo de turvar a ordem do discurso e sobretudo, a ordem das representações sociais, é dirimido, pois a divisão polarizada da sociedade não é posta em questão. Eis aí uma “evidência” que permanece sem o menor arranhão. Neste sentido, a utilização de “sexo social” é mais produtiva, na medida em que aponta para a escolha do genital como fundamento da construção social. A importância dada a um detalhe anatômico, no caso, a genitália fica assim clara, atrelada à reprodução e à heterossexualidade compulsória.[6] . história do possível Proponho, enquanto historiadora e feminista, um auscultar questionador da instituição sexuada dos corpos, no que chamo a “história do possível”, que seria a construção das relações sexuadas em sua historicidade, sem pressupor nenhuma “natureza” humana essencializada. Judith Butler[7] argumenta neste sentido, e explicita que não existe gênero fora das práticas de gênero, ou seja, não existe sexo social fora de relações culturais. Desta forma, para ela, se o gênero é uma roupagem cultural diversa histórica e espacialmente, não se aplica necessariamente da mesma forma aos corpos biológicos; do contrário, o pressuposto de diferenças culturais estaria anulado. Assim, se o gênero, explicita ela, é uma categoria flutuante, pode se aplicar a um corpo de macho ou de fêmea de forma indiferente. Desta forma, conclui, é o gênero que constrói o sexo, os corpos sexuados. Ou seja, é o poder das representações sociais, o poder instituído sócio-culturalmente que cria instancias de gênero, distribuindo autoridade segundo seus regimes de verdade. Quando se utiliza o sistema sexo /gênero como pressuposto nas análises das relações de gênero, ficam obscurecidos os problemas de definição e de identidade, voltando-se às universalizações em torno da categoria “ mulher” pois afinal, o que é a “mulher”, “o ser mulher”? O que é o feminino? Como pensar a diversidade da experiência vivida pelo humano em contextos culturais e espaço/temporais diversos? Como pensar a resistência nas estratégias desenvolvidas contra a opressão em todas suas formas, ao se considerar a construção social homogênea dos papéis sexuais, nos sistema sexo /genero? Como encarar a diferença entre as mulheres? Estas questões, que aparecem nos textos teóricos atuais, referem-se à crítica da categoria “gênero” e apelam a uma ultrapassagem de seus limites. Apenas um pressuposto universalizante permite pensarem-se as categorias feminino e masculino e o sexo biológico como naturais e fundadores das relações humanas. É negar a dinâmica social fixando-a em categorias binárias e opostas que só existem na imaginação de antropólogos e historiadores enjaulados em seus pressupostos representacioanis. . sexo social É nesta perspectiva que prefiro utilizar sexo social como faz Nicole Cluade Mathieu [8], em lugar de gênero, para não dar continuidade a uma naturalização descritiva das relações humanas. Esta autora sublinha uma análise histórica e antropologia do processo de diferenciação dos sexos, o que elimina da própria problemática de análise o pressuposto de um imutável sistema sexo / gênero. Assim, sou mulher apenas na experiência social de ser mulher e enquanto feminista não cesso de transcendê-la, de criticá-la, num movimento de In e Out constante, como aponta Teresa de Lauretis ao categorizar o que chama de “ eccentric subject”.[9] Este seria o novo sujeito do feminismo, aquele que analisa sua determinação histórica e social, a especificidade de sua deixis discursiva – seu lugar de fala – para desembocar na crítica de seu próprio pensamento. Os discursos feministas iniciam, assim, um movimento contínuo e voluntário de des-alojamento, de des-identificação, que leva em consideração seu quadro epistemológico e sua inserção social, para melhor ultrapassá-los. O eccentric subject cria , desta forma, o solo sobre o qual se apóia e desabrocha. Nesta perspectiva, as teorias feministas se demarcam, no pensamento contemporâneo, pela atenção que concedem às condições de exterioridade, às condições de produção e imaginação, ao regime de verdade em que se insere o sujeito do conhecimento, tratando-o como sujeito político, igualmente atentos à suas contradições internas num continuum de crítica/autocrítica. Retomo Foucault, na medida em que regime de verdade é uma categorização sua. Seria a circulação de v valores, de representações (acrescento eu) com valor de verdade, em sociedades determinadas, que assim definem suas regras e normas de comportamento, suas divisões de papéis e de autoridade. Ou seja, as sociedades funcionam segundo seus dados culturais e em sua diversidade é inegável. A categorização em mulher /homem e mesmo sua designação variaram e variam no tempo e no espaço e abordar o passado com o pressuposto de uma divisão binária , incontornável dos sexos, já cindidos hierarquicamente é dobrar a historicidade social às nossas próprias representações sociais. . história do possível É assim que se concebe uma história do possível, dando asas à nossa percepção do humano, desvinculando-a das normas e tradições que nos constituem enquanto sujeitos da pesquisa. O pressuposto sexo/ gênero amarra o passado às normas e valores conhecidos, cujos eixos são a heterossexualidade obrigatória e a reprodução como valor supremo da organização social. Retomando este pressuposto na história tradicional – sempre foi assim, nunca foi diferente – refazemos a história do Mesmo, da dominação dos homens sobre as mulheres, do poder inquestionável do pênis como divisor de águas, de um destino biológico; mesma concentração de poderes e instituição de hierarquias entre os sexos; mesma compulsão à heteronormatividade, baseada na reprodução, ordem divina. Nas narrativas históricas confundem-se valores e fatos, representações e verdades incontornáveis. que reitera a hierarquia naturalizando seus fundamentos. Neste sentido, o fazer dos historiadores, em sociedades patriarcais, exclui da memória social a diversidade possível das relações sociais, onde sexo e sexualidade não seriam determinantes nem de identidade, nem de exclusões. Eliminam também a possibilidade de sociedades não binárias, não fixadas em uma dicotomia incontornável de gênero, ou ainda, de sociedades onde o feminino tenha tido uma importância inaceitável aos produtores de história. Numa história do possível, pelo contrário nada é definido a priori: a divisão social de trabalho, o lugar de fala e autoridade, a importância, o sexo social, o exercido do poder referem-se a elementos valorativos que são variáveis e arbitrários. É evidentemente impossível desvincular-se das condições de produção e imaginação nas quais estamos inseridos; mas é através de uma problematização bem definida, de uma metodologia bem utilizada que podemos trabalhar os indícios deixados pelas fontes. Se a história é a memória social, revivida e atualizada de acordo com as perspectivas e limites do presente, uma história do possível revê sua construção e as coerções representacionais que por exemplo, eliminaram as mulheres da história. Mesmo a pré-história sofre das representações binárias dos sexos, já que todos os artefatos e produção artísticas da época são conjugadas no masculino. Mas quem pode garantir que os indivíduos, machos da espécie, seriam os únicos produtores dos desenhos de Lascaux ou de Roufignac ou apenas os dotados de pênis teriam imaginado a captura do fogo ou a serventia da roda? Esta questão não se coloca na partilha entre cultura (criadora) e natureza (reprodutora) , domínios respectivos do masculino e do feminino naturalizados e as narrativas reforçam esta ótica, atribuindo invenções, arte, literatura, ao “homem”, genérico masculino que ao incorporar, apaga definitivamente o feminino. É evidente que o valor simbólico de uma divisão “natural” de sexos e tarefas ordena a percepção do mundo e a construção da história. Neste sentido, os feminismos reencontram Foucault, pois a destruição das evidencias[10] é um dos pontos cruciais da reflexão foucaultiana sobre a História- aquilo que não se problematiza, não se questiona, gera suspeitas, deve ser desconstruído. Foucault também sugere que a função da ou do intelectual é finalmente, agir no sentido de subverter os regimes de verdade em que está inserido, mostrando os alicerces de sua construção: instituição de modelos, de normas, de comportamentos tornado evidentes pela tradição, pela memória, pela incansável repetição nas diversas instancias do social. Discursos religiosos, científicos - entre eles a história – pedagógicos, tecnológicos trazem representações sociais em sua formulação e nelas encontram-se as metáforas hierarquizadas do sexo social. É assim que Lucien Febvre,[11] avatar da problematização na história, recusando as narrativas descritivas não escapa às representações binárias do humano pregava uma história viril – e sua linguagem utiliza o binário discriminador para valorizar um modo de ser ou fazer. Pois os feminismos vem destruindo as evidencias há mais de 60 anos[12], enquanto a história engatinha com uma história das mulheres que apenas as faz aparecer numa divisão tradicional de tarefas. Sua démarche recusa a idéia de uma “verdade do sexo”, expressa por uma prática sexual diretamente ligada ao sexo biológico. . Pois, como sublinha Foucault, “[...] a verdade está ligada de modo circular aos efeitos de ‘poder que cria e que a reproduzem.” [13] Como sublinha Monique Wittig, [14] jovem feminista francesa nos anos 1970 o que importa sob os discursos de sexo e sexualidade é a identificação dos mecanismos de produção das “mulheres”, identificando sob a denominação de “pensée straigt” suas categorias fundadoras, entre as quais o contrato heterossexual, aquele que faz supor que existe um núcleo natural no humano que resiste a toda análise, ou seja, a relação heterossexual. Princípio evidente, portanto, como dado anterior a toda interpretação, critica a autora, que se aplicaria de modo geral a toda realidade social, cultura, de linguagem e dos fenômenos subjetivos. Esta é uma universalização da produção de conceitos sob a forma de leis gerais – um néo positivismo – que valeriam para todas as épocas e todas as sociedades.[15] Esta é a postura dos que se valem de um sistema sexo /gênero pré-discursivo na análise sócio- histórica. Monique Wittig argumenta que este sistema de pensamento – que chama de pensée straight – constitui ontologicamente [16](51) as mulheres enquanto diferentes, pois precisa da diferença para funcionar em todos os níveis – neste caso, a heterossexualidade obrigatória para as mulheres é parte constitutiva do “ser mulher, a verdadeira mulher”. A que está submetida às injunções e à especificidade do corpo sexuado em feminino, ao destino biológico da procriação incontornável, à função social da maternage – cuidado de outrem – tendo como objetivo máximo a sedução e a realização pessoal através do Amor. Foucault analisa com maestria o que chama de “dispositivo da sexualidade”, que através de investimentos maciços, culturais, econômicos, jurídicos, legislativos, incitam ao sexo, marcam os limites e os contornos do verdadeiro sexo e da verdadeira sexualidade. Diz ele: “ De fato, trata-se, de preferência, da produção mesmo da sexualidade. Esta, não se deve conceber como uma espécie dada da natureza que o poder tentaria domar, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar. É o nome que se pode dar a um dispositivo histórico : não a realidade sob a qual se exerceriam controles difíceis. Mas uma grande rede de superfície onde a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação aos discursos , a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e resistências se encadeariam uns com os outros, segundo grandes estratégias de saber e de poder [17] Ao analisar a formação de um dispositivo de sexualidade e as tecnologias que o instituem, Foucault traça um horizonte de análise que de fato já vinha sendo explorado pelos feminismos: quando Mathieu propõe o estudo do processo de diferenciação dos sexos , quando Adrienne Rich [18]identifica a heterossexualidade compulsória na constituição do feminino, quando Wittig aponta o sistema de pensamento que define o ser mulher na diferença e na oposição ao referente social masculino, estão navegando nas águas que Foucault palmilha. Propõe ele: “Em que tipo de discurso sobre o sexo, em que forma de extorsão da verdade que aparece historicamente e em que lugares determinados ( em torno do corpo da criança, a propósito do sexo da mulher, por ocasião das práticas de restrição dos nascimentos, etc) quais são as relações de poder, as mais imediatas, as mais locais, que estão em ação? Como tornam possíveis estes discursos e inversamente, como estes discursos lhes servem de suporte? Como o jogo destas relações de poder se encontra modificado por seu próprio exercício – [...], de forma que não houve, dado de uma vez por todas, um tipo de assujeitamento estável? Como estas relações de poder se ligam umas às outras segundo a lógica de uma estratégia global que toma, retrospectivamente, a aparência de uma política unitária e voluntarista do sexo ?, [...] Trata-se de imergir a produção luxuriante dos discursos sobre o sexo no campo das relações de poder múltiplas e móveis. » [19] Temos aí todo um programa de análise já iniciado com Simone de Beauvoir em 1949, quando pergunta : o que é uma mulher? Estava aí indicando as relações de força, de dominação, de convencimento, de poder, enfim, que cria a diferença dos sexos e a ancora em um discurso de natureza humana. Relações históricas, localizadas, construção de verdades e criação de evidencias culturais a partir de sua repetição, instabilidade de papéis e de limitações de sexo e sexualidade em estratégias e tecnologias de poder diversas. Adrienne Rich identifica uma heterossexualidade compulsória que institui o feminino: “...] de maneira implícita ou expçícita supo~e-se que a heterossexulaidade é a ‘ preferencia sexual’ da ‘ maior parte das mulheres’(17)[...] Mas a incapacidade de ver na heterossexualidade uma instiuição é da mesma ordem que a incapacidade de admitir que o sistema econômico nomeado capitalismo ou o sistema de castas que constitui o racismo são mantidos por um conjunto de forças, compreendendo tanto a violência física que a falsa consciência” [20] Afirma que fora deste quadro, quer sejam lesbianas ou celibatárias, o trabalho e a criatividade das escritoras, ativistas, reformadoras, etnologas ou artistas é “ subestimado, ou visto como o fruto amargo do ´desejo do pênis´ ou a sublimação de um erotismo reprimido[...][21] 35 É assim que o poder atua na diferença dos sexos, atribuindo importância e valor diversos segundo se trate do referente – masculino – e do diferente= feminino. São as tecnologias de gênero, que acompanham a ação das tecnologias de sexo, as urdiduras de um poder disseminado e efetivamente exercido no social, que criam e instituem as diferenças, diferenças políticas, e escondem em suas tramas seu caráter provisório e arbitrário. Os discursos sobre o verdadeiro sexo e a sexualidade natural tem na sua repetição constante, nas diferentes instancias do poder - religioso, científico, jurídico, simbólico- a única garantia de sua permanência. A identidade, nesta perspectiva, também passa a ser questionada, pois nos discursos de verdade sobre o humano, identidade está atrelada à norma sexual, garantia de inteligibilidade. Fica claro, entretanto, que desvelado o peso político e ideológico desta construção, não é possível continuar a discorrer sobre sexo e sexualidade enquanto dados naturais, universais e atemporais. O poder não se dá, afirma Foucault, ele se exerce, e é em suas configurações diversas que se desenham as relações humanas. A quem interessa, quem tira proveito das atuais configurações de sexo e sexualidade? Esta é uma questão a não ser esquecida, é a pergunta a ser colocada em todas as análises sobre configurações de poder. [1] Simone de Beauvoir. O seundo sexo
[2] Friedan, Betty.1964. La femme mystifiée, Paris, Gonthier ( [3] Michel Foucault, [4] « [...] si subjectivation il y a, elle implique une objectivation indéfinie de soi par soi -indéfinie en ce sens que, n'étant jamais acquise une fois pour toutes, elle n'a pas de terme dans le temps; et en ce sens qu'il faut toujours pousser aussi loin que possible l'examen des mouvements de pensée, pour ténus et innocents qu'ils puissent paraître » in Dits et t écrits IV, 1980-88, p 207 [5] Teresa de Lauretis .. Technologies of Gender,Eessays onTtheory, Film and Fiction, Bloomington/ Indiana : Indiana University Press. 1987 [6] Ver inúmeros artigos que tratam deste tema da mesma autora, em Labrys, estudos feministas, études féministes, www.unb.br/ih/his/gefem [7] Judith Butler,. Gender trouble. Feminism and the Subversion of Identity , New York : Routledge. 1990, pag.141 [8] Nicole-Caude Mathieu . L’anatomie politique, catégorisations et idéologies du sexe, Paris: Côté Femmes. 1991, pg. 256 [9] Teresa de Lauretis. ” . « Eccentric subjects : feminist theory and historical consciousness ». Feminist Studies, Maryland, Vol. 16, no 1, Spring, 1990, p. 115-150. [10] Michel Foucault, L´ordre du discours”, Paris, 1971,Galimmard. [11] Lucien Febvre. Comabates pela história [12] [12] Jane Flax. Postmodernism and Gender Relations in Feminist Theory, Signs, Journal of Women in Culture and Society, vol 12, n041 ( Summer) p. 621/643, 1987. pg.624 [13] Michel Foucault. Microfísica do poder , Rio de Janeiro 1988,: Ed.Graal. pg.14 [13] Wittig, Monique (1980) La pensée straight. Questions Féministes, Paris, Ed. Tierce, février, n.7. [13] Idem, pg.49 De Lauretis, Teresa (1987) Technologies of
gender. Essays on Theory, Film, and Fiction., Bloomington and Indianapolis,
Friedan, Betty.1964. La femme mystifiée, Paris,
Gonthier ( [14] Wittig, Monique (1980) La pensée straight. Questions Féministes, Paris, Ed. Tierce, février, n.7. [15] Idem, pg.49 [16] Idem, pág.51 [17] Michel Foucault, Histoire de la sexualité, vol , Gallimard, Paris, 1976 pag 140 [18] Adrienne Rich .. La contrainte à l'hétérosexualité et l'existence lesbienne, Nouvelles Questions Féministes, mars , n01, 1981, p.15-43, pg 20/21 [19] Michel Foucault, op.cit. “histoire …”, pag 129 [20] Adrienne Rich, op.cit. pag.31-32 [21] Idem, pg 35 |