História e literatura: mulheres de letras, mulheres de aventura

(mesa plenária no congresso internaciona Mulher e Literatura, Brasilia, 4 a 6 agosto 2011)

 

A narrativa histórica, durante muito tempo, ligou as palavras aos fatos. Os fatos históricos seriam assim a narração da verdade dos acontecimentos, a descrição e explicação de sua ocorrência. Um dos critérios que presidia a escolha dos documentos era a credibilidade de seu autor, sua imparcialidade. Os fatos seriam, portanto, objetivos, desprovidos de implicações ideológicas e / ou pessoais, avalistas de uma memória social cujo caráter ficcional ficava oculto.

A história permitia-se enunciar “verdades” sobre o humano, sobre uma pretensa “natureza” cuja essência definiria os papéis e importância social de modo incontornável.  As escolhas temáticas que marcam ainda hoje sua produção fixam na memória social uma universalização de normas e estereótipos que, entretanto, representa apenas o terreno de emergência da narrativa e de suas narradoras.

De fato, ancoradas em suas condições de produção e imaginação históricas e arbitrárias, as representações sociais que orientam os temas e acontecimentos ficavam ocultas sob o manto da “verdade histórica”.

O linguistic turn foi uma “revolução copernicana” na medida em que as perspectivas científicas começaram a incorporar as condições sócio-temporais do sujeito à questão da produção  das narrativas. Como se produz o conhecimento?. E como se produz o sujeito- narrador? Estas são  as questões teóricos que transformam as ciências e seus resultados.

A partir desta inquietação, viram-se, na história, os fatos “objetivos” perderem sua substancia, pois o horizonte epistemológico, as condições de inteligibilidade, as significações mergulhadas no social passaram a ser parte constituinte da narrativa histórica, singrando entre temas e acontecimentos escolhidos para construí-la. A posição de sujeito é incorporada assim à questão da elaboração do saber histórico.

De onde falo, a quem, de que? perguntava Foucault. A questão do sujeito é premente  para  aquela que narra: quem sou, eu cujas enunciações constroem a história e suas narrativas? Em que solo me apoio, que pressupostos orientam minhas análises, em que fundamento minha enunciação? E de uma identidade fixa e material, neutra porém,  passa-se à discussão da instauração do próprio sujeito, em suas condições de produção da narrativa histórica ou literária.

Um dos problemas teóricos da história – sua separação da narrativa literária, da ficção – se anula,  pois em ambas – história e literatura - as condições de produção e imaginação do sujeito interferem na problemática e na construção da própria narrativa, recortada ou reagrupada segundo os códigos ou as normas arbitrárias e temporais, elas mesmas formadas na historicidade. Assim, a busca dos pressupostos da narrativa mostra em suas problemáticas temporais, o horizonte epistemológico e imaginário que presidem sua elaboração. Exigem um recorte dos eventos humanos e impõem um nexo inexistente em si.

As incontornáveis “fontes” da história não passam de discursos, emitidos por um sujeito em sua época e reagrupados pela narrativa com uma coerência que lhes é imposta. Longe da história “desencarnada” , criticada por Lucien Febvre, temos agora uma história ciente de suas coerções e limites, atravessada por um lugar de fala, e por representações sociais que a ancoram em valores, normas, estereótipos, codificações, regras, estilos. Estilos de carne, dizia Judith Butler, carne aprisionada em corpos relevantes ou utilitários, cuja inteligibilidade deve ser adaptada às regulamentações vigentes.

Com efeito, o sujeito não é nunca “inocente”, na medida em que sua aparição no mundo se faz em um quadro moral, histórico, dotado de um determinado sistema de linguagem. Concebe-se enquanto sujeito, em uma cena de interpelação (Butler, 2005 :9) onde o Outro que demanda sua função de sujeito pode ser um indivíduo ou o déjà-là de sua emergência.

Assim, o sujeito não tem controle sobre suas condições de chegada ao mundo, e sua memória é limitada e seletiva; entretanto, as condições de sua emergência não são determinantes absolutos para o desenrolar de sua existência. A crítica ou a recusa destas condições faz parte das possibilidades que a dinâmica, própria às formações sociais, desenvolve.

A incorporação destas condições como premissa à elaboração histórica – a metaficção como consciência de uma produção enraizada nas práticas sociais - constitui uma mudança na ordem do discurso, cujas pretensões de verdade e de objetividade fizeram da história humana uma ficção de caráter universal e “verdadeiro”.

Quando Linda Hutcheon (1991, cap. 7)  menciona a metaficção historiográfica, refere-se ao arbitrário da narrativa cuja novelo se desenrola em uma trama de causalidades que não existem senão no discurso, ou seja, em uma rede ficcional. Isto significa que

“ [...] a metaficção historiográfica não reconhece o paradoxo da realidade do passado, mas sua acessibilidade transformada em texto em nosso presente atual.” ( Hutcheon, 1991 :152).

Com efeito, se não podemos ter acesso ao passado e ao real senão pelo intermédio de discursos,  cuja lógica é uma imposição do sujeito ele mesmo histórico à narrativa, fica claro o caráter ficcional da história, que a aproxima da literatura: ambas são oriundas de enunciados que circulam com  valor de verdade, que erigem modelos, definem comportamento, hierarquias e importâncias diversas que são, portanto escolhidas segundo os regimes de verdade do presente.

Uma miríade de discursos tenta preencher as lacunas históricas assim criadas, mas mostra à qualquer espírito minimamente crítico, as fissuras e a fragilidade de sua construção. Para acompanhar estes discursos e fundamentá-los , o debate filosófico sobre a ‘natureza’ humana é uma discussão formal que de fato,  funciona no sentido de justificar e estabelecer o poder de uns sobre os outros. E, em uma perspectiva de análise feminista, sobretudo dos homens sobre as mulheres, como traço essencial ( de essência e de importância)  das relações sociais.[1]

Rasgando-se os véus da neutralidade fica evidente que a história produzida até meados do século XX foi narrada sob a égide do patriarcado, cujas problemáticas a restringia aos eventos e gestos masculinos: a ausência das mulheres é manifesta. E pode-se dizer a mesma coisa da antropologia, da sociologia, das ciências humanas e sociais em geral e mesmo das ciências exatas.

Antes do surgimento da antropologia e da história feministas, o interesse da pesquisa, desta forma, era dedicado unicamente às atividades masculinas, ao ponto de inverter os valores sociais: quando as mulheres detêm as rédeas da economia, como entre nas sociedades indígenas da época da colonização do Brasil, o interesse se dirigia apenas àquilo que supostamente dizia respeito ao masculino, como a guerra.

Aliás, interpretada como masculino, pois a importância e a divisão do trabalho estavam além das condições de imaginação dos colonizadores. Assim, entre os/as indígenas, o gênero não era definido necessariamente pelo sexo, pois os indivíduos podiam escolher seu sexo social, ao feminino ou masculino, e isto foi silenciado pela história durante séculos.

Em um trabalho sobre a pré-história brasileira Anne Marie de Pessis invoca a importância “atávica” dada ao masculino[2]. Este é um tipo de interpretação comum na história patriarcal. O apelo à “natureza’ é axiomático não se discute, não se fundamenta: é assim porque é.

E da pré-história à atualidade a imagem da mulher arrastada pelos cabelos por um bruto armado de clava é repetida, reintroduzida, recitada sem cessar.  A romancista de sucesso Jean Auel inicia sua saga “Os filhos da terra”[3] com um relato sobre os homens das cavernas – neandhertais, no caso – onde os “homens” dominam, submetem, possuem, trocam, distribuem as mulheres segundo seu bel prazer. Este é um relato modelar em termos patriarcais, que reafirma uma divisão incontornável dos sexos em hierarquia e dominação, desde o início dos tempos. O romance encontra aqui a “verdadeira história”, positivista, masculina, a historico do Mesmo que se repete de um poder que não pretende abdicar de seu controle.

O problema mais amplo  aqui é: o que conhecemos do passado, em que horizonte epistemológico os discursos e imagens que chegam até nós foram produzidos, o que escondem ou indicam? Na história anterior aos feminismos, onde estão as mulheres? que faziam elas? ou melhor, o que se faz às mulheres em uma dada época? Ou melhor, ainda, como se transforma o humano em mulheres e homens, como se cria a hierarquia cujo caráter ‘natural’ é proclamado, para melhor apagar a diversidade das relações humanas? Como  a diferenciação dos sexos se produziu, como tornou-se ‘natural’?  

Uma história feminista objetiva, portanto detectar o processo de diferenciação dos sexos, desmistificar a perenidade do patriarcado, expor a existência de sociedades não patriarcais, onde a genitália não era o eixo das relações sociais. Uma história feminista aponta seus escopos, seus fundamentos e pressupostos, suas condições de produção e desvenda em suas narrativas a existência da diversidade, afastando a premissa e o fantasma do Mesmo, da repetição incessante da dominação do feminino pelo masculino. Uma história feminista busca o possível do humano, em sua florescência, pois tem como base a recusa do discurso da “natureza”, substitutivo esfarrapado da ordem do divino.

Quais são as condições de imaginação de nosso tempo que nos permitem pensar a história de outra maneira? Como alcançá-las?É a análise do discurso, segundo uma perspectiva foucaultiana que, nas narrativas, detecta suas condições de produção, quer sejam denominadas históricas ou literárias. O que importa, na realidade, é o que é dito, pois a enunciação revela o regime de verdade que a produz.

Foucault escrevia :

“ Enfim creio que esta vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional. tende a exercer sobre os outros discursos – falo sempre de nossa sociedade – uma espécie de pressão e de poder de coerção. Penso à maneira pela qual a literatura ocidental precisou buscar apoio, há séculos, sobre o natural, o verossímil, sobre a sinceridade, sobre a ciência também – enfim, sobre o discurso verdadeiro.” (Foucault, 1971 :29)

Assim, ficção literária ou ficção histórica, o pressuposto inicial se atém aos valores e às representações sociais, ao imaginário de uma época, que traçam seus contornos. Como sublinha Linda Hutcheon,  a própria história e a ficção são termos históricos, tanto em suas inter-relações que em suas definições. (Hutcheon,1991 :141)

Em história, detectar os bloqueios patriarcais e suas condições de imaginação restritas ao masculino abre uma imensa dimensão ao não percebido,  não pesquisado, ao supostamente não existente, ou seja, relações humanas não regidas pelo sexo e suas hierarquias.

Mas o que a história não diz, não existiu! E falar de sociedades não patriarcais beira a heresia, falar de relações diversas levanta o clamor dos que se consideram eruditos. Ora, o interesse da ciência é a busca e não a descrição do déjà-là, do esperado, é a dinâmica da aplicação das teorias e não suas conclusões antecipadas. Afinal, hoje nem se ousa mais falar de conclusão ao final de um trabalho em história, tendo em vista a volatilidade dos resultados nas dobras impalpáveis do passado. A literatura, neste sentido, torna-se uma fonte privilegiada para o saber histórico, pois de início está liberta das coerções do discurso “verdadeiro”.

A literatura no feminino é uma questão  que se entrelaça ao processo de diferenciação sexual e aos assujeitamentos diversos aos quais são submetidas e modelados os corpos  e as mentes nomeados femininos. Aqui se engaja a interrogação sobre a escrita feminina.

 Existiria ela?

 No que diz respeito aos debates atuais que pregam o fim da identidade fixa em prol do movimento, da deslocalização, de um reconhecimento posterior ao percurso realizado, de uma cartografia que não necessita pontos imutáveis de fixação, como trabalhar a problemática da autoria e da ancoragem sexuada?

Na perspectiva feminista que adoto, é evidente que não existe uma essência humana que define as qualidades, os comportamentos, a criatividade, a importância social, sobretudo se é baseada na biologia e mais especificamente sobre os órgãos genitais. Entretanto, o sujeito que emerge em um repertório de significações, em uma dada linguagem, é modelado ao nascer, por representações sociais que lhe dão um lugar ao sol.

Da acolhida que se faz à criança segundo seu sexo, às cores que se lhe impõem, passando pelos brinquedos, as palavras que lhe são murmuradas e as significações que lhe ensinam sobre seu corpo, a construção binária e sexuada se faz aos poucos. Mas a recusa, as transformações, as resistência fazem parte das condições de possibilidade de todo individuo em um quadro social específico. Em certas formações sociais, porém, o sujeito feminino é obrigado a incorporar seu sexo/gênero sob pena de punições diversas, da mutilação à morte.

Todavia, se não há um assujeitamento completo às imagens que são impostas ao indivíduo, resta que  um movimento in e out das representações permanece, pois não se pode fugir totalmente às injunções da construção social dos sujeitos sexuados. Ao menos em nossas sociedades regidas pela norma do sexo e da sexualidade. É assim que a luta contra a norma dura uma vida inteira.

Com efeito, o feminino é construído pelos discursos que compõem o patriarcado e as mulheres se tornam inteligíveis ao olhar masculino, sob a forma de imagens de sedução, de casamento, de maternidade e imagens ligadas ao setor privado da sociedade, do familiar.  O “natural” desta construção se fixa no reinado do falo e de sua angustiante ereção, em torno da qual se fantasma a heterossexualidade patriarcal.

No processo de criação da diferença dos sexos, há o paradoxo da in-diferença sexual, pois tudo diz respeito ao masculino, já que o feminino é ausência. (Irigaray, 1977). O pai, o penis, o patriarcado são os três P que instituem a ordem do discurso, suas significações, suas representações e seu poder.

Neste sentido, o mimetismo tal como o concebe Irigaray torna-se uma metodologia, cujo objetivo é de destruir a coerência do funcionamento discursivo (Irigaray,1977:72-3).  O mimetismo, portanto, significa para as mulheres tomar o lugar

« [...] historicamente designado ao feminino [...] assumir, deliberadamente este papel. O que já é reverter em afirmação uma subordinação e assim, começar a negá-la [...] encontrar o local de sua exploração pelo discurso sem se deixar completamente reduzir a ela. . » (Irigaray, 1977:74).

Ou seja,  consciência e a análises feministas são a chave da desestruturação do poder conferido à diferença sexual. E da mesma forma, a escrita é um ato de entrar e sair da construção social do feminino.

Foucault analisa a função do autor como sendo recebida de sua época, mas que  , por sua vez, a modifica. Pois para ele, a questão da autoria    

«  [...] Pode bem transformar a imagem tradicional que se faz do autor; é a partir de uma nova posição de autor que a recortará, em tudo que poderia ter sido dito, em tudo que se diz todos os dias, a todo instante, o perfil ainda trêmulo de uma obra. ».(Foucault, 1071 :31)

Neste sentido, as mulheres recebem de sua época suas condições de produção e a ultrapassam, manifestando, porém, sua pujança na crítica do social, transformando-o, por sua escrita e sua existência.  Renée Vivien, Virginia Woolf, Nathalie Barney, Maria de Lacerda Moura, Nísia Floresta ( entre tantos milhares ) estariam elas nos compêndios e histórias da literatura? Quem decide a importância e a qualidade literária de autoras em uma sociedade patriarcal?

Não se trata de pregar uma igualdade de valor na escrita feminina e masculina para vencer a marca do “natural”, mas de observar o funcionamento do discurso, da narrativa que modifica ou não a ordem das significações e representações sociais. E nesta ordem, a escrita feminina tem sido relegada, excluída,  justamente por  estar em uma sociedade patriarcal.

Nesta ótica, pensar a “escrita feminina” enquanto expressão do natural, é aceitar a ordem do discurso que toma o masculino enquanto referente geral e o feminino como , o  “diferente”, a   especificidade. Adélia Prado, em u ma entrevista,  se confessa confusa por escrever, pois para ela, este é “um trabalho de homem” e este é  um exemplo do assujeitamento total às determinações do significado “mulher” , ao olhar do outro e à “natureza” dos sexos que modela suas condições de possibilidade de escrever e de existir. Mas que, felizmente,  não é representativa da literatura cujas autoras são socialmente « mulheres », e  que modificam as representações nas quais foram construídas.

Neste caso, a narrativa histórica e / ou literária excede as significações, quebra as estruturas do lógico, do contínuo, do escondido, do “natural”. Este estilo mimético parte de e recusa o lugar do feminino em sua expressão. Está dentro e fora da rede de representações sociais que engendram o feminino. Pois não se pode mais falar de “diferença de sexos” sem se referir ao processo de construção desta diferença.  ( Nicole Claude Mathieu )

Ninguém nasce mulher, torna-se mulher, é a frase famosa de  Simone de Beauvoir (1949)  que a partir de sua condição de mulher em um espaço / tempo dado, retoma «  o perfil ainda tremulo de uma obra » feminista e modifica / embaralha o jogo filosófico do sentido da « natureza humana”.

Gostaria aqui de evocar a literatura das mulheres de aventura, daquelas que desafiaram e desafiam as coerções de sua época e o lugar reservado às mulheres para se lançar ao desconhecido, à exploração, desertos e perigos reais e metafóricos da descoberta de outrem. De seu lugar de fala de mulheres, negam  a condição que se lhes seria imposta e adentram o desconhecido, penetram vastidões e encontram populações estranhas, um Outro diverso, do qual narrarão as vidas, os feitos, o quotidiano.

E seus olhares se detém sobre o feminino nos lugares onde passam, descrevem suas vidas, lamentam muitas vezes o destino que lhes é imposto. Elas tem um olhar mais penetrante, mais sensível à injustiça, à dor, à discriminação que encontram.

 E neste sentido, é uma literatura feminina e feminista, sem anacronismos, pois feminista é aquela que denuncia e tenta transformar. A transformação a fazem elas em seus próprios países, com suas vidas e experiências, inusitadas para as mulheres: fortes e intrépidas, não hesitam em avançar, sozinhas, para atingir seus objetivos: liberdade, independência, conhecimento.

Elas são legião, estas mulheres de aventura e partem em espaços geográficos diversos, em épocas diferentes. São socialmente mulheres, mas desafiam por suas vidas e escritos uma imagem restritiva do feminino, instituído pelas normas do patriarcado.

É de imagens que se alimenta a representação social das mulheres, reduzidas ao singular – a mulher-  e atreladas a um destino biológico; as que vivem e transformam a realidade por seu dinamismo e coragem, presentes e ativas nas formações sociais não são incorporadas, sequer mencionadas nas narrativas que compões a memória social. Elas são os fantasmas que assombram os discursos de verdade sobre a natureza do feminino e sua incapacidade de agir, criar, descobrir, explorar, de criar a aventura de suas vidas, no próprio sexo social em que são vistas, excedendo-o, modificando sua imagem.

      Para dar  alguns exemplos, temos Ella Maillart, Ida Pfeiffer, Odette de Puigaudeau, de Marion Sénones,  Freya Stark, ´Alexandra David Neal,  Flora Tristan, d´Isabelle Eberhart,   Daisy Bates, Mary Kingsley, Isabella Bird, Louise Boyde, Amelia Earhart, Nellie Bly, Vivienne de Watterville, algumas do passado,  outras no presente, como Niède Guidon,Maud Fontenoy, Laurence de la Ferrière, Anne Quéméré,  Peggy Bouchet, Tori Murden, Christine Janin, Lynn Hill. Apenas alguns exemplos. Quase todas desconhecidas, ausentes da história e da memória social.

 Exploradoras, arqueólogas, etnológas, botanistas, biólogas, viajantes destemidas, desbravadoras, em todas as épocas conquistaram os pólos, os céus, atravessaram os oceanos a remo, a vela, escalaram os mais altos cimos, observaram a natureza, os humanos, os animais, e relataram suas experiências em livros fascinantes, em aventuras que aceitaram todos os desafios. Poderia passar vários dias citando estas mulheres de aventura, que se fazem hoje conhecer por seus diários, seus livros, suas narrativas.

      São mulheres que afrontaram as imagens de um feminino desprovido de recursos físicos e mentais, e partiram, partiram seguindo seu desejo. Os financiamentos de suas viagens se revelam, obviamente, muito difíceis e é preciso já ter demonstrado experiência e conquistas para obtê-los.

“ Esta loura tão bonita, atravessar o Atlântico a remo ? é brincadeira » comentam os homens segundo relata Maud Fontenoy, que realizou este feito no sentido inverso das correntes marítimas. Quatro meses num barquinho a remo, sozinha, para atravessar o atlântico do oeste para o leste.

 Em busca de novos horizontes, de espaços de liberdade, estas mulheres partiram para a aventura e fizeram explodir o sentido do binarismo “natural” que desenvolve toda uma argumentação vazia de fundamento sobre a importância biológica do masculino e silencia os feitos, trabalhos, criações, descobertas das mulheres.

            Estas mulheres e suas sagas, suas histórias narradas dentro e fora do feminino, do sexo social  apóiam-me  quando anuncio uma história feminista: não a história das mulheres, não a história do gênero, ambas ainda sob a égide do binarismo e do patriarcado.

            Uma história feminista é uma história do possível, uma história inimaginável na ordem do discurso dos três P: pai, penis, patriarcado – uma história feminista na qual as mulheres são sujeitos políticos, econômicos, na qual são artistas, cientistas, artistas, onde criam saber, elas descobrem, inovam, produzem.

            Basta apenas buscá-las, elas sempre estiveram ao nosso alcance através da literatura de aventura, de descoberta, escondidas nas dobras da história patriarcal.

 Quem conhece as mulheres que acabei de nomear? quem são as eleitas que atravessaram os desertos, escalaram as montanhas, viveram com povos quase desconhecidos, navegando sobre as palavras e as narrativas de Ella Maillart? Apenas um punhado, que no traçado das viagens, compõem o seleto grupo apaixonado pela  aventura.

Além do conhecimento histórico que nos proporciona, a literatura das mulheres de aventura desperta em nós a sede do risco,  quer seja partindo em novos caminhos ou deslocando-se na transformação do saber, das relações sociais, de um quotidiano pesado de desigualdade e injustiça, principalmente em relação às mulheres, na construção de um feminino dominado.

Tomo, entre tantas, o exemplo de Ella Maillart, nascida no início do século XX, filha de comerciantes suíços. Grande esportiva, esquiadora, obteve muito jovem um brevê de marinheira e navegou como imediata vezes incontáveis. No meio marítimo, considerado um dos mais misóginos, ela foi aceita, obedecida, e desenvolveu suas qualidades de maruja.

  Da mesma forma, Anita Conti e  Odette de Puigaudeau fizeram  parte ativa de numerosas equipagens marítimas. Quem poderia suspeitar nas condições de imaginação que nos impõe as história e as tradições, sobretudo religiosas, que no início do século passado havia muitas mulheres marujas e aceitas nas equipagens masculinas? E que também no século XIX mulheres partiam, sozinhas, para além de todos os limites impostos às mulheres?

Ella Maillart decide partir para o Oriente, trabalhando para financiar esta viagem. De Berlim, ela vai para a Rússia e de lá, penetra nas estepes : primeiro o Turquestão russo e depois chinês. Em outra aventura ela vai da Suiça à India, de carro, nos anos 1940; em seguida, durante cinco anos, freqüenta um ashram  no sul da Índia e vive uma maravilhosa história de amor.. com sua pequena gata cinzenta, Ti Puss, que faz parte indissociável de sua construção de si.

 Quem não ama Ti Puss, quem não chora sua perda, que ela ousa contar em um vívido sofrimento de perda de substancia? Pois com Ti Puss Ella deixa escapar um pedaço de sua existência, um movimento de sua música, um som em seu caminho. A perda de Ti Puss é o encontro de uma solidão almejada e detestada, uma liberdade que não quer dizer seu nome. 

Uma narrativa entre todas fascinante.

Ella Maillart é sujeito de sua própria vida e destino. E seus livros renovam a coragem de desafiar esta “diferença de sexos”, imposta como significação “natural”, de inferioridade feminina.

Anos de aventura em regiões ocultas aos olhos de estrangeiros – ela se introduz, correndo riscos e perigos, a maior parte do tempo sozinha – e soberba etnógrafa, transmite- nos informações preciosas à sua época e também para a nossa, cujos olhos estão velados pelos limites patriarcais.

Vivendo com e como os nômades, quase sem dinheiro, seu olhar agudo nos mostra o quotidiano de povos desconhecidos, dos quais alguns o são ainda, mesmo neste mundo globalizado. Fala-nos das mulheres, de seus trabalhos e suas penas, cujas vidas foram devastadas pela instalação do Islã entre seus povos, com todas suas interdições e preconceitos em relação às mulheres.

Os etnólogos em geral ocupam- se apenas com os fatos e gestos dos homens, que consideram o núcleo essencial da vida social. O aporte da literatura das mulheres de aventura ao conhecimento histórico é crucial para dar vida e voz  às mulheres de outros países e épocas, uma existência que na maior parte das vezes sequer é mencionada.  

 Ella Maillart observa os maus tratos infligidos pelos homens às mulheres e aos animais, dos quais se servem igualmente. A objetividade, jóia da produção do conhecimento das tradições históricas não é uma de suas preocupações. Ela narra o que vê, de forma  original, num sopro de vida, olhar que partilha seu conhecimento, sua sensibilidade.

Escritora, jornalista, fotógrafa, grande esportista, Ella muda o funcionamento do discurso pela sua própria vida e através de suas narrativas. Quem vai crer à completa dominação das mulheres pelo patriarcado, antes dos feminismos contemporâneos, quando se observa a vida destas mulheres de aventura? Quem vai aceitar o “sempre foi assim”, dos desavisados, dos ignorantes e da má vontade de poder que funda o patriarcado?

A aventura para Ella era sua vida, seu  fôlego,  ela não pertencia a nenhum lugar, nenhuma raiz a retinha, e pouco lhe importava os limites que gostariam de lhe impor pela existência de um sexo social –feminino- ao qual pertencia.

Se tinha companhia, ótimo, senão a solidão e a respiração do deserto lhe eram suficientes. Nos anos 1930 transtorna os significados da ordem dos discursos patriarcais por onde passa. Pouco lhe importa o conforto, o dinheiro lhe serve apenas para viajar, o horizonte é sempre seu objetivo. Não busca encontrar uma identidade, ela se constrói na medida de seu percurso, nômade em si mesma, nômade entre nômades. A literatura das mulheres de aventura de fato é isto: uma construção de si.

Ella Maillart é apenas um exemplo, entre tantos outros, destas mulheres de aventura que nos legaram suas narrativas e nos permitiram fazer um trecho de caminho com elas, partilhar o caminho de sua obra, ouvir e ver através de seus livros. Seus relatos escrevem outra história, a história feminista do possível, aquela que nos faz encontrar as mulheres lá onde havia sido apagadas pelo ruído ensurdecedor do discurso patriarcal. Que nos faze,, de fato, perceber que a diferença sexual é uma construção.

Elas vivem o estilo mimético, sexo social feminino, porém livres das amarras dos sentidos que procuram limitá-las. Por onde passam transformam o imaginário social. As mulheres de aventura seriam mulheres, finalmente? Não, não o são, tais como classificadas no funcionamento dos sistemas patriarcais binários e hierárquicos, de heterossexualidade obrigatória, das representações do feminino limitadas à domesticidade e à procriação.

Muitas se casaram, outras não, mas a instituição jamais as impediu se trilhar as sendas desejadas. É uma escrita feminina?

Sim e não.

Sim, pois  com seus olhares penetrantes invadem zonas do humano que não interessa aos homens desnudar.

Não, pois não se deixam aprisionar em moldes de linguagem, de estereótipos, de condutas, de imaginação.

Estas mulheres de aventura são sujeitos sociais, fora do modelo binário. É uma nova forma de ser: elas se inventam na vida e constroem seu presente, legando-nos a cartografia magnífica de suas narrativas.

Com estas mulheres, a literatura é mais do que nunca fonte para a história feminista. Aquela que nos mostra o insuspeitado,  o possível, que mostra as marcas do passado e do presente nos corpos, no processo de diferenciação dos sexos  e na transformação de sentidos do  ser mulher.

Referencias

Hutcheon, Linda. 1991.Poética do pós-modernismo . História, teoria, ficção, Rio de Janeiro, Imago.

Butler, Judith.2005. Le récit de soi, Paris, PUF

Irigaray.1977. Ce sexe qui n´en est pas un, Paris, Editions de Minuit.

Foucault, Michel, 1971. L´Ordre du discours, Paris, Gallimard.


 

[1] Várias autoras feministas analisaram os discursos filosóficos, ver Benoîte Groult, Elisabeth Badinter, Geneviève Fraisse, entre outras.

[2] Anne Marie de Pessis, 2003. Imagens da pré-história, Fundham, Petrobrás, pg.117

[3] Jean Auel. 2008 Ayla, a filha das cavernas, vol.1, RJ, Bestbolso – 5 volumes