labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro 2015 - juillet/décembre

 

Isabella Bird no  Far West

tania navarro swain

Algumas reflexões

Buscar a verdade na história é uma armadilha, pois a realidade é esculpida em uma tal pletora de prismas, que é impossível  captá-los em sua totalidade. Os discursos históricos recortam a realidade, segundo as condições de possibilidade e de imaginação de suas épocas; as perspectivas escolhidas são assim consideradas como toda expressão do real.

Desta foram, quer seja nas narrativas oficiais ou mesmo nas das mulheres / feministas, que buscam o feminino nas dobras dos discursos, todas seguem os caminhos já percorridos, evitando assim o aparecimento do inesperado, do imprevisível, do possível, que salta dos documentos escritos ou imagéticos, logo que o olhar se abre à sua percepção.

Os mitos, os símbolos, os desenhos rupestres, os poemas, as canções, a produção inesgotável do imaginário tanto quanto as criações materiais são fontes riquíssimas para a descoberta da diversidade das relações humanas e das articulações societais que ultrapassam os esquemas conhecidos. Mas a interpretação que é feita não busca ultrapassar a narrativa do Mesmo, em cores diferentes.

Nos discursos da História é sempre “o homem” que faz, que inventa, que produz, e neste sentido, o humano se perde nesta denominação, masculina. É assim que as mulheres desaparecem na literatura, na criatividade, na exploração do novo, na criação técnica, científica  ou artística. Em suma, as mulheres aparecem enclausuradas na maternidade e na domesticidade, como se a atividade humana fosse realizada que pelos homens.

Quem pode, com toda certeza, afirmar que um homem inventou a roda ou dominou o fogo ou mesmo inventou o arado, por exemplo ? Somente os estereótipos e a ideologia patriarcal permitem a exclusão da metade da humanidade de seu caminhar, retendo para unicamente o masculino a posse das artes de fazer e de pensar.

É assim que não se pode falar de “gênero” e da divisão sexuada do trabalho de forma universal, pois em história, nada pode evitar as incontornáveis modificações sociais ao longo do tempo. A aceitação a priori da divisão do humano em masculino e feminino, com tarefas ligadas a sua conformação biológica obscurece as realidades possíveis, pois os agenciamentos sociais não se fazem necessariamente em torno do sexo, da biologia, da reprodução.

A utilização da categoria « gênero » de modo acrítico não faz senão produzir e reproduzir este binarismo ao longo da história, de modo contraditório, reafirmando a “natureza” que pretende negar. A “natureza” humana é apenas uma premissa para a elaboração dos discursos sociais, entre os quais os da história: sua substância reside em sua infatigável repetição.

A « natureza » e sua divisão sexuada é portanto uma invenção patriarcal para melhor criar o feminino em condições “ naturais” de submissão e inferioridade. O que é uma mulher? Perguntava Simone de Beauvoir em 1949. Os moldes de fraqueza, de impotência, de ignorância, de incapacidade retira das mulheres, assim desenhadas e definidas, sua presença e sua articulação com a história da humanidade.

A história, de fato, deveria ser a narrativa das transformações temporais enfrentadas ou criadas pelo humano. Todavia, seu discurso reforça apenas o conhecido, o “déjà là”.

Assim, toda análise do social que não ultrapasse o quadro temporal de suas significações tem relação com a crença, com um núcleo de prejulgamentos para assim melhor gerir o mundo , onde a mão de deus e seus acólitos aponta para a “verdade”. Isto é, uma pura invenção baseada sobre as definições estabelecidas pelos historiadores, sem levar em conta as significações temporais e flexíveis criadas pelo humano. Assim o universal em história assegura a manutenção dos estereótipos e de um binarismo social, tão ancorado quanto anacrônico no agenciamento social dinâmico.

Como se sabe há longo tempo, as significações sociais são o produto de seu tempo e os discursos dos historiadores patriarcais  não escapam a esta condição, apesar de seu desejo insensato de dizer a “verdade” sobre o mundo. É um totalitarismo intelectual este desejo de dizer a verdade sobre o humano, uma arrogância  que talvez não se dê conta da impossibilidade de conhecer o espectro das relações humanas em sua pluralidade.

A solução adotada é o caminho da facilidade : o humano seria o mesmo, desde sempre e para sempre. O resto seguiria esta premissa, ela mesma sem fundamento. É claro: se a premissa cai, todo o edifício teórico desmorona. Certamente por isto que os feminismos atrapalham, pois negando a natureza, os fundamentos do patriarcado se dissolvem.

A noção de « natureza » assim como de raça e de sexo são categorias criadas para estabelecer parâmetros  de dominação sobre a maioria da população fora do masculino, branco, heterossexual. A “ natureza”, idéia concebida pelo patriarcado, desvia a importância da procriação ligada ao feminino para um enclausurar as mulheres na maternidade, tornando-se sua única função no social. Já que são “mães” as mulheres são impedidas de participar plenamente da vida pública e política, amarradas ao doméstico e ao privado, à um imaginário que as define na reprodução.Uma vez definidas enquanto “ventres”, as mulheres  perdem seu pertencimento ao humano, à pretensão de uma qualquer subjetividade.

Explicitar  a atividade das mulheres fora dos quadros estereotipados é uma maneira de quebrar os moldes mentais que impedem de pensar o mundo de outra forma que não seja o binário hierárquico.

É o que faço aqui, pois o que me interessa é a história do possível, a história onde o humano desabrocha nas interações e relações outras que a eterna “ família natural”.

As mulheres de aventura mostram que o espaço histórico e social não é homogêneo. Afirmar que as mulheres são todas encarceradas na domesticidade revela sua falsidade a partir das narrativas das mulheres de aventura, que expõe as complexidades da cena político-social.

É assim que no século XIX, idade de ouro da misoginia, época também da constituição da disciplina “história”, as narrativas históricas são soletradas no masculino: tudo se passa entre heróis e reis e guerreiros e políticos. E partindo disto, para o imaginário social não existem mulheres em ação no social “desde sempre”, graças portanto aos filósofos, aos sacerdotes, aos políticos, aos cientistas e especificamente, aos historiadores.

Mulheres de aventura

Entretanto, a metade do gênero humano não viveu, com certeza, segundo os decretos misóginos das narrativas históricas: ativas, presentes, criativas, elas exerceram todas as profissões, trabalharam  em todos os campos. As mulheres de aventura são a “avant garde” da multidão de mulheres, sujeitos políticos, apagadas da história. É suficiente ter espírito aberto e crítico para detectar sua presença em toda parte, nos documentos do e sobre o passadopassado, imagéticos ou escritos, onde as mulheres se afirmam enquanto sujeitos, vivendo a vida segundo suas  aspirações.

Isto quebra a tendência de fazer a “história dos gêneros” o que volta inevitavelmente a traçar uma humanidade divindade pelo sexo hierarquizado. As questões à colocar à história sobre o humano são muito mais complexas que mostrar uma divisão do trabalho e uma importância social estabelecida pela ‘natureza”. Quando não somos subjugados pela crença na natureza humana, vê-se surgir a nossos olhos uma paisagem muito mais rica e colorida do ser humano.

Os preconceitos são armaduras que não permitem a descoberta de uma face outra da humanidade além do binarismo sexuado. O “ sempre foi assim” faz-me rir pela sua insolência pueril, aquela que pretende conhecer tudo sobre os 40 ou 50 mil anos do caminhar humano.

As mulheres de aventura esfacelam os estereótipos. Mostram um outro rosto de mulher que encara todos os desafios.

Para estas mulheres, a aventura é um sopre de vida já que lhes permite quebrar todas as regras, todas as interdições, desafiar a sociedade que pretende lhes impor a submissão, o casamento, a domesticidade, que pretende igualmente enclausurá-las entre os muros reais ou simbólicos.

As mulheres de aventuras arrancaram seus espartilhos, seus chapéus, seus saltos altos, tudo que podia entravar seus passos, seus movimentos.  Cavalgar de lado, “lady like”, o corpo torcido sobre a sela., para não abrir as pernas, tentação extrema para estes senhores? Jamais! Elas desprezaram a sedução da dependência, afirmando-se como sujeitos de suas ações, mestras de seus destinos.

Estas mulheres casadas com a aventura quebraram as cadeias e os estereótipos e lançaram-se perdidamente sobre as estradas e caminhos perigosos, apesar dos olhares muitas vezes cheios de ódio, muitas vezes ameaçadores, de homens despeitados.

A submissão que pretendia-se lhes  impor as  fazia rir; elas simplesmente partiam, por vales e montanhas, trilhando caminhos desconhecidos em direção a terras longínquas, ao encontro de populações cujos costumes lhes eram estranhos. De uma maneira ou de outras, elas deixam seus lares, a falsa segurança de um casamento, deveres aos quais são ligadas as mulheres, sempre em relação ao corpo, ao sexo, à maternidade. Elas fazem pouco dos hábitos, das coerções, das normas, de uma eventual reprovação social , do desconforto, algumas mais abastadas, outras em uma grande, pobreza, elas querem ver o mundo.

Elas partem. E nos informam, testemunhas de mundos insuspeitados.

Seus alvos são muitas vezes vagos, mas são orientados pelo desejo de conhecimento, de liberdade, que de fato, definem a aventura. Ir onde se encontra o desconhecido, o distante, o diferente, quer seja humano ou uma natureza selvagem, eis os objetivos deste nomadismo bem temperado. As mulheres de aventura oferecem-nos relatos vibrantes sobre as sociedades que elas descortinam, sobre os costumes que sem elas permaneceriam desconhecidos ou presos a significações “naturais”.

Elas nos fazem admirar as belezas das paisagens sombrias ou explodindo em cores, abrindo trilhas, auscultando a natureza, observando os animais, tanto quanto as pessoas com as quais se cruzavam. Elas nos fazem sonhar com espaços e liberdade. Elas nos dão a esperança de outras histórias, de outras relações, de outras figurações do humano fora do quadro binário e hierárquico de um imaginário empobrecido.

Isabella Bird

Como tantas outras mulheres, , Isabella Bird (1831–1904) era uma amante da aventura, dos grandes espaços. A descoberta, a liberdade, a natureza bruta são os temas em torno dos quais são construídos seus relatos de viagem. As mulheres lançadas na aventura reivindicam e buscam quase sempre o silencio e a solidão e Isabella não foi uma exceção.

Ela adorava as longas cavalgadas solitárias no silêncio das planícies, em extensões infinitas, ou em altitudes perigosas, entranhando-se nos bosques, com neve, com sol, em caminhos muitas vezes apenas perceptíveis. As indicações que lhe davam sobre as direções a tomar eram no mínimo pitorescas: ir até a grande pedra à direita, em seguida virar à esquerda depois de ter atravessado três vezes o riacho; passar diante de uma grande árvore morta, com um pico nevado na frente, etc, etc. Para ela, as cidades eram lugares de passagem, pois o barulho, a rudeza dos costumes, as aglomerações de pessoas eram para ela muito desagradáveis.

Quem era ela, esta inglesa aventureira ?  Não se poderia imaginar que a pequena menina doentia,  um tumor próximo à coluna vertebral poderia tornar-se uma intrépida amazona, uma esportiva que não recusava os desafios de percorrer longas distancias a pé, de escalar montanhas ou de remar nas águas turbulentas dos rios.

Chegou na América em 1854 e em breve partia para conhecer o Hawai e o Canadá. Em seguida a Austrália. Em 1873, ela inicia uma travessia continental das terra americanas a pé, a cavalo,  de trem, mas também utilizando os meios de transporte e de hospedagem que se apresentavam, sejam quais fossem.

Isabella narrou sua última viagem a sua irmã em numerosas cartas, publicadas em seguida sob a forma de livro : «  Une Anglaise au Far West » (1876). Este livro obteve um grande sucesso à época e tornou-a famosa.

Isto mostra como o discurso homogêneo da história sobre a domesticação das mulheres retidas no lar pela maternidade não é senão uma invenção. Da mesma forma, a divisão do social em espaço privado e espaço público permitindo a exclusão das mulheres de toda outra atividade, não é consequência de sua “natureza”, mas a produção desta condição, baseada unicamente na repetição dos mantras sobre a “natureza”, assim como o emprego da coerção e de violência para impede-las de agir, de participar aos embates politico-sociais. Esta violência se encontra no silencio dos discursos sociais sobre a presença e a ação das mulheres na formação e no desenvolvimento societais.

Ao longo de sua vida, as viagens faziam parte de todas as perspectivas de Isabella e mesmo já no ocaso de sua vida, (73 anos) suas valises estavam prontas para uma viagem qualquer. Com mais de 60 anos partiu sozinha, em longos  trajetos a cavalo e outros meios de transporte de fortuna, percorrendo  diversos países: Índia, Tibet, Pérsia, Japão, China, Coréia, Malásia e Marrocos.3 

 

Era fotógrafa e naturalista e quase todas suas viagens tornaram-se livros ( felizmente disponíveis hoje na internet 4,

Tornando-se assim fonte de inesgotáveis informações, não somente sobre a natureza, topografia, costumes, mas sobretudo sobre as mulheres e sua situração social e economica nos países que visitou. O que é praticamente ignorado pelos exploradores homens.

Erudita, não havia recebido uma educação formal, mas em casa, com ensino ministrado por sua mãe e seu pai; seu prazer inesgotável pela leitura trouxe-lhe um aporte não negligenciável de conhecimentos. Muito respeitada enquanto escritora, fotógrafa e naturalista, Isabella foi recebida em 1892domo membro da seleta , Royal Geographical Society,  quase exclusivamente composta por homens.

Pequeno desvio

Observei, estudando as mulheres de aventura, que eram quase sempre reconhecidas e homenageadas pelos meios científicos ou literários de suas épocas, enquanto exploradoras, antropólogas, naturalistas, botanistas, mulheres de letras. Seus traços, porém, desapareceram da memória social, contribuindo assim à fantasia segundo a qual as mulheres restavam enclausuradas na maternidade e no ambiente domésticos, sem qualquer relevância política, desde sempre.

Vemos assim, com clareza, os frutos do silêncio da história, esta manipuladora da memória social que segue a ideologia daqueles que a escrevem, sem nenhum pudor em transformar ou ignorar os dados disponíveis. Deste modo, para melhor afirmar a dependência e a incapacidade das mulheres, era consenso “esquecer” suas façanhas, suas descobertas, suas invenções e suas criações.

Trata-se de um complô deliberado para excluir as ações das mulheres das páginas da história? Não necessariamente, pois a ideologia patriarcal ganhou cada vez mais espaço, velando aos olhos dos cientistas a presença das mulheres na cena do social. Tornou-se tão “natural” afirmar a posição secundárias das mulheres que as narrativas históricas não buscam sequer marcar sua presença.  Qunado se interdita o voto às mulheres, por exemplo, o mito de sua fragilidade e de sua inconsistência é criado e ao mesmo tempo reforçado pela lei, não abrindo espaço à argumentação , já que o “natural” ne permite o debate.

Sujeitos de ação, sujeitos políticos, as mulheres de aventura e as mulheres apenas, enfrentam preconceitos, é claro, mas os obstáculos não tinham como efeito senão as empurrar cada vez mais longe e mais profundamente  em seu desejo de liberdade, de conhecimentos, de ir ao encontro do desconhecido, provar suas capacidades. As feministas de hoje são mais visíveis, mas em caso algum são as única à defender o reconhecimento social das mulheres e suas ações; mostrá-las ao longo do caminhar humano é a tarefa árdua das historiadoras feministas, pois a idéia do assujeitamento do feminino está ainda mais ancorada no imaginário e nos discursos cientírico-social.

Os Pictos, os Citas, os Germanos, os Celtas, os gregos de Esparta, os Etruscos, para citar apenas alguns povos, tinham representações sociais próprias sobre as mulheres e os homens e uma divisão de trabalho bem diferente deste binário hierárquico repetido incansavelmente. Por que não se estiada estas formações sociais nas escolas e nas universidades?  Porque bem evidentemente levantar o véu sobre configurações relacionais outras destruiria os fundamentos do patriarcado, baseado sobre a hierarquia “natural” homem/ mulher e sobre seu completo indispensável, a heterossexualidade.

A viagem

Isabella já com 16 anos começou a escrever : um panfleto sobre  Free Trade x Protectionism  abriu o caminho para a colaboração com vários periódicos.5 A escrita portanto, desde cedo tornou-se parte importante de sua vida e suas viagens davam-lhe material inesgotável para suas narrativas.

Sua viagem ao Colorado, tema do livro que nos interessa aqui ( (Une anglaise au Far West) não tinha um fim preciso, mas foi orientada pelo desejo de conhecer as Montanhas Rochosas e os parques nacionais criados para a proteção da natureza. Era a época na qual os animais existiam ainda em grande número, mas a caça, infelizmente, já fazia grandes estragos. Todavia, Isabelle teve a sorte de ver uma natureza quase intacta, poi o humano não havia  ainda ocupado as terras do Oeste em grande número. Ao contrário, a grande transumância para o Oeste estava acontecendo; conheceu assim uma época intermediária entre a ocupação estabelecida e a passagem dos migrantes. Com exceção de alguns centro, como Denver, as cidades não eram ainda numerosas.

Antes de chegar ao Colorado, Isabella havia conhecido o Havaí, onde desembarcou em 1873 onde percorreu numerosas ilhas em dorso de mulas, escalou o vulcão Mauna Loa e dedicou-se à sua paixão pela botânica durante seis meses. (p.12) Mas sempre ávida de descobertas, Isabella tomou um barco para São Francisco, cidade onde a multidão e o barulho afugentaram-na. Resolveu então ir para Estes Park, famoso por seu clima considerado milagroso e por sua beleza extraordinári.

Isabella Bird oferece-nos uma visão inabitual do Oeste americano, sobretudo no que  diz respeito à situação social das mulheres e suas atividades. A imagem da conquista do Oeste que temos é a das lutas entre colonos contra os bandidos e contra os índios, revólver em punho, a violência à espreita em todos os caminhos.

Mostra-nos uma outra face desta conquista: a do árduo trabalho, da hospitalidade, do respeito em relação às mulheres. No imaginário de nosso tempo, a presença das mulheres nesta odisseia surge em duas representações: a das onipresentes prostitutas ao serviço dos machos e a da mulheres “de respeito” dedicadas às tarefas domésticas, não participando nunca aos trabalhos do campo, aos longos e perigosos transportes,  à defesa das caravanas ou das habitações nas cidades atacadas por índios ou bandidos. Em suma, umas nulidades, feitas para a procriação e para a domesticidade. O estereótipo corrente no imaginário.

Isabella descreve situações bem diferentes, mulheres lavrando os campos, conduzindo rebanhos, destras no manuseio das armas. Como ela mesma. Ela foi solicitada muitas vezes a participar do manejo e transporte dos animais, em dezenas de quilômetros.

Havia proprietárias de hotéis, comerciantes, mulheres de todas as classe e origens. Das ladies de Boston às imigrantes de mãos calosas, as mulheres marcaram sua presença na conquista do Oeste americana.  Esquecidas já que mulheres.

Como tantas outras mulheres de aventura, Isabella partia sozinha em busca de paisagens humanas ou naturais e cavalgar assim não despertava nenhum espanto por onde passava. Ao contrário, os encontros que fez ao longo das estradas foram sempre agradáveis : aqui indicavam-lhe o melhor caminho, ali ofereciam-lhe água ou mesmo pássaros. (42)

Diz ela :

« Estes homens poderiam ser perdoados de falar de uma maneira um pouco livre à uma mulher cavalgando só e de uma forma inabitual. A dignidade feminina e o respeito dos homens em relação às mulheres são o sal da sociedade neste Oeste selvagem” (43)

O testemunho deste respeito é totalmente inusitado quanto à imagem geralmente dispersa sobre a conquista do Oeste americano. Penso sobretudo à violência dos homens em relação às mulheres, um dos aspectos ainda mais combatidos pelas feministas atuais.

Isabella mostra uma outra realidade : quando indaga sobre os perigos de um passeio sozinha à noite, a resposta foi:

“Há uma má espécie de bandidos, porém o mais bruto de todos sequer tocar-vos-á. AS pessoas do Oeste não admiram nada tanto quanto a coragem de uma mulher” (43 )

O caminho era longo, porém, para chegar a Estes Park.

Entre uma cavalgada e outra, houve desvios e trajetos em trem, cujo traçado mostrava um engenho espantoso, serpenteando para as alturas,  passando sob galerias de madeira em cerca de 40 km. Isabella explica que os homens ficavam suspensos em cesto para talhar  no flanco da montanha o espaço para a estrada de ferro de São Francisco a  Truckee. (31)

Os alojamentos nas paradas do trem eram no mínimo pitoresco:

 “ Paramos na porta de um decadente hotel do Oeste, do qual apenas a parte formando o bar-room estava ao ar livre, repleto de beberrões e fumantes; no espaço deixado vago entre o hotel e os vagões agitava-se uma massa de vagabundos e passantes”(32)

Neste dia , já eram 11:30 da noite, em Truckee e não havia mais nada para comer, os quartos estavam todos ocupados, era preciso esperar que o trem reparta e que fossem liberados.

Isabella comenta :

« Contaram-me depois que não se levava em conta as horas habituais de sono aqui. Os alojamentos são muito pequenos para uma população de duas mil almas. Principalmente masculina e que recebia frequentemente adições temporária; os leitos eram ocupados continuamente por pessoas diferentes durante a maior parte de suas 24horas. Encontrei, em consequência, cama e quarto que me eram destinados em completa desordem. Roupas de homem e paus estavam suspensos na parede; botas sujas estavam jogadas aqui e ali e num canto havia um fuzil. Nada de janelas dando para o ar externo. (34)

O conforto, com ceerteza.

Apesar destas condições de hospedagem, Isabella dormiu profundamente naquela noite e foi preciso um enorme barulho e tiros de fuzil para acordá-la (34) Apesar do ambiente, todos asseguraram-lhe que podia cavalgar sozinha sem nenhum receio. E isto revelou-se verdade. Haviam lhe aconselhado de ir visitar o lago próximo a Truckee, uma das mais belas paisagens.

Assim, Isabella alugou um cavalo e por cortesia ofereceram-lhe uma sela ‘de mulher’, explicando porém, que a maior parte das mulheres não utilizava este gênero de tortura a cavalo. O proprietário lhe assegurou: ” Faça como quiser; se podemos, em algum lugar fazer o que quisermos, é bem aqui, a Truckee.”(35)

Antes que ele pudesse fazer um gesto para ajuda-la a montar, Isabella já estava sobre o cavalo, com sua traje havaiano, que usou até o fio. Descreve assim sua roupa:

“Trata-se de uma veste meio longa, uma saia caindo até o tornozelo e uma ampla calça turca, afunilado pelas pregas que caiam sobre as botas.  Era uma roupa feminina adaptada perfeitamente para a montanha e para as viagens em qualquer parte do mundo. “(25-26)

Estas roupagens extravagantes não pareceram  espantar os espectadores pois «  eram todos tão respeitosos quanto possível, comentou Isabella. (35)

A cavalgada de uns trinta quilômetros levou-a a uma paisagem espetacular feita de luz, de cimos nevados, de pinheiros gigantescos de mais de 60m, de álamos do Canadá,  o silêncio da floresta, cortado apenas pelo ruído dos animais, da torrente tumultuosa de águas geladas, e ao longe, o ruído dos machados dos lenhadores. O país ainda era pouco povoado, mas já se via a marca do corte das árvores, às vezes milenares, deixando uma trilha de tocos e galhos desfolhados.

O incidente maior do dia foi a aparição de um grande urso! O cavalo pulou de um lado, o urso de outro e Isabella caiu onde estava, “ foi grotesco e humilhante”, afirmou. Teve, portanto que continuar caminhando, sozinha. Felizmente, depois de uma hora, com fome e sede, encontrou seu cavalo que alguém de bom coração havia retido para ela. (38) O interessante é que não foram procura-la.

O lago Tahoe recompensou suas vicissitudes:

“ A garganta se abriu e diante de mim estava o lago, cercado de montanhas, suas bordas recortadas em baías e promontórios revestidos pitorescamente de enormes pinheiros açucareiros. Ele se enrugava e cintilava docemente no solilóquio do meio-dia.[...] Nas espessas florestas que o circundavam[...] havia hordas de ursos cinzas e marrons, lobos, alces, antílopes, martas, lontras, gambás, raposas, esquilos e serpentes.”(39)

 

lago Tahoe

Isabella ficou extasiada, mas ao longo de seu périplo, veria muitas outras paisagens excepcionais.

«  Cores vermelhas, índigo, vermelhas e laranha coloriam a água calma que, sombria e solene, se estendia até a margem , à sombra dos pinheiros majestosos[...] O por do sol chegou com todos os níveis da beleza, em todas as glórias da cor, pela luta e o triunfo, o pathos e a ternura  a um repouso calma e sonhador, ao qual sucederam-se a profundidade solene da luz da lua e um silencio interrompido apenas pelos gritos noturnos das feras das florestas perfumadas.    (40)   

 

De fato, experimentar esta natureza quase intacta, esta beleza que não existia senão para seu olhar, correspondia exatamente à suas aspirações desta viagem.

De volta a São Francisco, Isabella retoma se trem na direção de Estes Park. Descreve com eloquência a viagem, as paisagens vistas do trem, as planícies sem fim. Devia passar por Cheyenne, que servia de armazenagem de mercadorias as mais diversas, encaminhadas em seguida em carroções em um raio de 500 km. Era uma cidade violenta, lugar de transito dos arruaceiros e dos “desperados” que viviam de rixas e desordens.

Isabella resumo a exasperação dos colonos :

« [...] o « juiz Lynch » aparece em cena, com alguns metros de corda.[...] Contaram-me que aqui se desfizeram, desta maneiras, de 120 bandidos em uma quinzena.”  (51/52)

Cheyenne era uma cidade feita

«  [...] de um amontoado disformes de casas de madeira e de cabanas; pedaços de escombros e carcaças de antílopes e veados, dos quais exalavam odores os mais terríveis que jamais havia sentido há muito tempo [...] é absolutamente sem ornamentos e de aspecto abandonado, formiga de pessoas com pesada aparência  de pilares de taverna e parecia ser o local habitual dos homens mais baixos e vis.” (52-53)

Da janela de seu hotel viu passar índios, gado conduzido por homens armados de fuzis a repetição e revólvers, colunas de carroças de migrantes, puxadas por bois e cobertas de lonas brancas.)53) O pitoresco entretanto não a encorajou a lá permanecer e partiu o mais depressa possível.

Da narrativa de Isabella percebe-se a presença de mulheres trabalhando fora do quadro doméstico: o correio em Cheyenne, por exemplo, era dirigido por miss Kingsley, que lhe transmitiu as cartas de recomendação do ex-governador e do jornalista Mr. Bowles do  Springfield Republican ( jornal conhecido em todo o Oeste), destinadas a encontrar ajuda, caso necessário. (53) Comerciantes, hoteleiras e sobretudo mulheres  presentes em todas as tarefas, não apenas os estereótipos.

O trajeto de Isabella..

 

Após sua viagem em trem atravessando as planícies que se estendiam ao infinito, Isabella chegou a Greely, cidadezinha próspera e animada. Havia sido fundada por migrantes “temperantes” e industriosos, que compraram e cercaram 20 mil há; construíram um canal de irrigação que levava água a todo mundo, cerca de 3 mil habitantes. A bebida era proibida, os criminosos e os preguiçosos inexistentes, comenta ela. (52-53)

No hotel onde Isabella se hospedou, dirigido por uma inglesa, cedeu seu quarto a um casal com filhos e ficou com um pequeno espaço dividido por uma separação em tecido, muito quente e cheio de moscas negras, que aliás infestavam tudo. Na hora de dormir, Isabella foi atacada por uma miríade de percevejos e terminou sua noite sobre uma cadeira. Como explica:

“ Os percevejos são a grande peste do Colorado. Saem da terra, infestam as paredes e a maior limpeza não consegue afastá-las. Muitas donas de casa eficientes desmontavam suas camas todas as semanas para borrifar ácido fênico.”  (58) 

A viagem, como soe acontecer, nem sempre é agradável.

Em Fort Collins, Isabella destestou tudo: as pessoas, a comida, a grosseria dos costumes e logo foi embora. Retomou seu caminho rapidamente e embarcou como passageira de um carroção. A estrada era movimentada sob um sol escaldante e luminoso: carroças, cavaleiros, tropas de milhares de cabeças de gado, cujo caminho tomava meses até chegar a seu destino.

Assim, por vales, planícies  e montanhas Isabella aproximava-se de Estes Park, e todo tipo de transporte servia, parando onde podia, hospedando-se com os habitantes do lugar. Haviam lhe aconselhado, por exemplo, de dormir em uma casa de família, perto de uma serraria, que supostamente  recebia hóspedes. Mas esta informação era totalmente inexata.

Após um longo caminho feito de voltas e desvios,  de cerca de 100km pois o condutor de sur buggy alugado não conhecia nada do caminho, ela chegou a uma cabana de toras de madeira, miserável, o telhado de palha cheio de buracos:

« [...] nada de móveis, apenas duas cadeiras e duas pranchas rugosas sobre as quais estavam jogados sacos de palha, fazendo as vezes de cama [...] Uma mulher com ar triste e duro olhou-me das cabeças aos pés. Disse-me que vendia leite e manteiga [...] que nunca havia recebido hóspedes, apenas duas velhas senhoras reumáticas, mas que me aceitaria por 5 dólares por semana, se eu soubesse me mostrar agradável”. (65)

Era preciso então escolher antes de continuar adiante : ou ficar neste lugar desagradável ou voltar atrás. Durante 5 dias então ela dormiu ao ar livre, juntou madeira para fazer um gogo, remendou e lavou sua roupa, enfim, uma existência morna e bem indesejável. Mas esta experiência permitiu-lhe constatar a pobreza dos colonos ali e em volta, vindos buscar o ar puro das montanhas.

« [...] centanas e milhares de pessoas são presas de consunção, de asma, de dispepsia e de doenças nervosas, e buscavam a “cura do acampamento”, durante três ou quatro meses, ou se instalavam em permanência.” (68)

Os Chalmers, onde Isabella estava hospedada, eram pessoas rudes, fanáticos e de espírito estreito. Mulheres e homens trabalhavam duramente, o dia todo, mas seu labor não lhes aportava senão as coisas mais rudimentares à sobrevivência.

Entretnao, Isabella conheceu outros colonos, mais amáveis e menos grosseiros, especialmente um casal de ingleses, os Hughes, cultivados, buscando este “clima inigualável’ e as possibilidades ilimitadas do Colorado. Viviam em uma casa agradável, quase um pequeno chalé suíço, de aprazível companhia.

«  Desde as primeiras palavras de Mrs. Hughes, tive a impressão que era uma mulher verdadeiramente distinta, e suas maneiras inglesas, graciosas e elegantes, quando convidou a entrar em sua casa, pareceram-me deliciosas.” (78)

Quando haviam chegado ao Colorado, os Hughes, que nada conheciam aos trabalhos agrícolas, foram enganados em tudo, mercadorias, gado e equipamentos, pagando um preço abusivo. Mas trabalharam como condenados e conseguiram se estabelecer.

«  Foi a luta mais dura e menos ideal que vi levada por este tipo de pessoas. Haviam adquirido toda sua experiência e obtiveram-na ao preço de perdas e fadigas.” (93)

No período que Isabella passou com eles participou a todos os trabalhos, principalmente no campo. Colheram duas toneladas de duas espécies abóbora, ( duas pesavam 70kg)uma para consumo humano outra para os animais. O trabalho não cessava nunca. Depois do labor no campo, Mrs. Hughes remendava roupas e juntos, liam e recitavam poemas. Isabella ficou encantada.  (95)

A paisagem humana que descreve Isabella era assim muito variada : rudes ou educados, «desperados » sem fé nem lei, ingleses,  pessoas de múltiplas nacionalidades,  todos viviam um sonho de prosperidade. Ou de recuperar a saúde, no clima são do Colorado.

Havia três maneiras de usufruir do domingo, nestas paragens : visitar os vizinhos, caçar ou pescar, ou ainda, dormir. Havia os que não descansavam e seguiam com suas ocupações habituais.

“ A indiferença era manifesta em relação a todas as obrigações mais elevadas da lei divina, mas em geral os colonos são bem comportados: há poucas infrações flagrantes aos costumes e o trabalho é a norma. A vida e a propriedade são muito mais seguras que na Inglaterra ou na Escócia, e a lei do respeito universal às mulheres está ainda em pleno vigor. (97)

Isabella observa um traço comum a quase todos : a avidez e a exclusiva busca do ganho, bem como a indiferença por tudo que não auxilia a aquisição da fortuna. (74)

Mas o que todos tinham reamente em comum – mulheres e homens- era o trabalho duro, quotidiano, sem conforto nem repouso.

 

Estes Park

Estes Park, para Isabella, reunia todas as belezas dos outros parques :  abrigava centenas de vales situados em alturas variando de 2000 a 3000m, cadeias de montanhas, florestas virgens, cânions,  ribeirões. Toda sua viagem tinha por objetivo finalmente alcança-lo.

 

«[...] cada vale se termina em mistério; sete cadeias de montanhas alteiam suas barreiras ameaçadoras entre nós e as planícies e ao sul do parque o pico do Long levanta sua cabeça nua, cortada de neve eterna, a 4500 m de altitute”. (133-134)

Duas vezes ela tenta engajar guias, mas eles, apesar dos protestos contrários, não conheciam o caminho. Aliás, foi ela que, muitas vezes, teve que agir por conta própria para reencontrar o caminho. Tal foi o caso com M. Chalmers, cuja arrogância lhes fez perder a direção tomando trilhas que não levavam a parte alguma. Mas se a companhia não era agradável, a paisagem era soberba, toda em cores.

“[...] o sublime se une à beleza e  neste ar elástico, não sinto mais cansaço [...] Imaginem um vale elevado, com ervas e flores, com clareiras e gramados em declive; o leito seco das torrentes era bordejado de cerejeiras. Pinheiros agrupavam-se artisticamente[...] As montanhas, perfurando o azul do céu se recortam em cimos de rocha cinza, abrupto [...] e toda esta beleza, toda esta glória, não são senão o quadro de onde ressalta o alto do duplo cimo solitário, amedrontador, imposante, do pico do Long, o monte Blanc do Colorado do Norte”. (81-82)

 

Estes Park

Era também  reino dos animais, que hoje é tão difícil ver : ursos e alces, veados, por exemplo povoavam as paragens

«  Esta paisagem satisfaz minha alma [...] Do cimo do pico de Long, podia-se ver 22 cimos com cada um em torno de 3.600m de altura [...] e podia-se ver serpentear distintamente, através este deserto de montanhas, o Snowy Range, espinha dorsal ou linha de partilha do continente, onde as águas se dirigem para um ou para outro dos oceanos.» (84)

 

snowy range

Para lá chegar, foi uma tavessia perigosa : os cavalos caíram várias vezes por ocasião de subidas abruptas e descidas vertiginosas e todos se machucaram com maior ou menor gravidade. (89) “ Aconteça o que for, chegarei em Estes Park, estou decidida”(90) anunciou Isabella.

Depois de todos os fracassos para atingir seu objetivo, Isabella decidiu desfazer-se  dos guias e viajar sozinha. As dificuldades foram numerosas, como quando nevava muito e todos os traços do caminho se apagaram.

«  Segui penosamente durante quatro horas, cercada de neve e não vendo senão um oceano de picos brilhantes se destacando no céu de um azul furioso. Não saberia jamais como encontrei o caminho, pois os únicos traços percebidos de tempos em tempos eram passos humanos mas eu não tinha meios de saber se me conduziam na direção que queria tomar.” (198-199) ?

Pode-se avaliar  quanto era penoso este caminhar quando ela narra ?

“O caminho cessou bruscamente [...] Foi um trabalho terrível atravessar a neve; havia 80 cm e fizemos (ela e sua égua Birdie) um quilômetro e meio acredito, em algo como duas horas. Entramos uma vez, Birdie até as costas e eu até os ombros, em um banhado cuja superfície ondulava como a areia do mar.” (199)

Nos cimos, o frio, a neve, as torrentes glaciais, nada a fez parar.

«  Atravessei um lago gelado, e encontrei –me em um parque cercado por colinas [...] Lá, entre os arbustos, passei sobre o gelo que se quebrou, um riacho bastante profundo; o frio terrível da água me endureceu os membros para o resto da viagem[...] não ouvia ruído algum, apenas o rumor da neve e do gele, o uivo lamentável dos lobos e o grito das corujas” (196)

Isabella não se sentia só, entretanto, pois sua égua Birdie, era sua fiel companheira. Como para tantas outras mulheres de aventura, seus cavalos eram, talvez o elemento mais importante para levar à termo suas viagens. Eles sabiam onde passar e sobretudo onde não passar , em estradas impraticáveis ou quase.

«  Tudo estava encoberto por um brilhante lençol de neve. O murmúrio dos riachos era abafado sob obstáculos de gelo. Não encontrei, não cruzei com ninguém; nada de cabanas, perto ou longe. O único ruído era o que fazia Birdie esmagando a neve sob seus cascos. Cheguei a um riacho sobre o qual estavam jogados troncos de árvores e jovens troncos atravessado; Birdie tentou um pé, retirou-o, avançou o outro, cheirou fortemente esta ponte. A persuasão não servia de nada: ela apenas inspirou, hesitou, recuou e virou a fina cabeça para me olhar. Era inútil discutir sobre este ponto com um animal tão sagaz.  (177)

 

Isabella Bird

Isabella fazia às vezes  80 km por dia a cavalo, mas « somente » 20 ou 30 km segundo o estado dos caminhos ou o clima. (202)Todos ficavam entusiasmados para indicar-lhe as trilhas e isto podia tomar horas a fio de discussão, pois ninguém estava nunca de acordo. (198) Ou então, os pontos indicados eram tão imprecisos que se perdia a direção na primeira curva. (224) Era sempre por acaso que se tomava uma direção ou outra e assim muitas vezes ela encontrou-se no frio e na noite nas pradarias, sem saber a direção a tomar, ansiosa para ver uma luz aparecer , um fogo, a promessa de uma cama.

«  Minha diretiva de caminho era : ‘ Navegar para o sul, seguindo a trilha mais usada’ Isto valia embarcar sobre o oceano sem bússola.” (165)

Sobre as infinitas extensões das planícies, ela podia perceber um cavaleiro a mais de 2 km. De tempos em tempos cruzava um carroção de colonos ou um comboio acompanhado de cavaleiros. Além disto, as planícies estavam desertas e esta solidão representava para ela um sopro de liberdade (164-165) Sobre as montanhas, igualmente, a solidão parecia-lhe esplêndida. Em Greem lake, observou:

“ Sentia uma sensação estranha pensando que estava, nesta altitude glacial, o único ser humano   [...] » (222)

 

planícies do Colorado

Em pouco tempo ficou conhecida na região e assim pode usufruir de sua boa reputação: todos se mostravam  prontos a ajuda-la: aqui um cavalo  “[...] Se é esta dama inglesa que viaja pelas montanhas dar-lhe-emos um cavalo, e a mais ninguém”(219), ali uma hospedagem (203) segundo as circunstancias. Os alojamentos eram aliás de qualidade extremamente desigual e se mostravam muito limpos, aerados, com quartos individuais, bem arrumados,(209) ou então enfumaçados, onde todos dormiam no solo, em uma só peça. (184)

Quando permanecia longo tempo em hospedada com colonos, Isabella partilhava todas as tarefas mas a que lhe agradava mais era reunir o rebanho disperso por vales e montanhas. (158) Ela se saiu tão bem nesta tarefa que propuseram-lhe um trabalho regular. As mulheres não eram portanto excluídas deste tipo de trabalho, como querem nos fazer crer graças ao silencio da história ou pela afirmação de uma divisão absoluta de trabalho entre mulheres e homens
Ela narra com entusiasmo :


« O que há de mais estimulante, é quando um animal escapa e corre furiosamente do alto até o pé de uma colina e que a seguimos por toda parte, acima e entre os rochedos e as árvores, ultrapassando quando ele ultrapassa e persistindo até que o trazemos de volta. (159)

E um dia, finalmente, chega a Estes Park.
« gostaria de não ter senão três pontos de exclamação para meu belo retiro solitário, sublime, elevado, longínquo, amado dos animais, que parece ainda mais impossível a descrever.” (226)

Isabella se extadia :


Nada que já tenha visto no Colorado pode se comparar a Estes Park, e agora com um tempo magnífico, o cimo das montanhas sobre a floresta de pinheiros é de um branco sem mancha, o coração não pode desejar nada além do belo e da grandeza.” (237)

 

estes park

Enfim, bloqueada pelo inverno, Isabella foi obrigada a ficar em uma cabana por um mês, com dois jovens que ela cobriu de elogios por sua gentiliza e respeito. (230). Partilhavam todas as tarefas. (239)

« Nossa vida tornou-se serena e nossa singular associação muito agradável. Se não fosse a cortesia constantes e a gentiliza das quais eram pródigos os jovens, vivíamos juntos como três homens.(247) [...] Neste país, todas as mulheres trabalham, de modo que consideram o que faço naturalmente, e não me dizem: ‘Oh! Não faça isto, oh” deixe-me fazê-lo”.(255)

Isabella insiste muitas vezes, em sua narrativa, sobre o respeito e consideração que tinham os homens em relação às mulheres. Isto contradiz as imagens que temos sobre a rudeza e a violência na colonização do Oeste americano; ao longo de sua viagem, ela poderia ter sido violada mil vezes, ser excluída, maltratada, menosprezada. Mas de fato, foi aceita em toda parte, auxiliada e admirada por sua coragem. Ela tomou todas as trilhas quando e onde queria e não foi nunca perturbada ou ameaçada.
Este é um ótimo exemplo de uma história do possível, pois seu testemunho abre um espaço insuspeitado das relações entre as mulheres e os homens, na qaul a imagem de violência dos homens contras as mulheres e a submissão destas últimas à domesticidade é totalmente evacuada.

Se não cremos no “natural” das relações humanas, mas à construção singular de cada formação social, é impossível pensar uma divisão de trabalho pré-fixada , na qual as mulheres destinar-se-iam exclusivamente ao privado e que a total edificação do social seria reservada unicamente aos homens. As mulheres de aventura mostram a diversidade e a plasticidade das normas societais e sua aplicação nos costumes.

As teorias feministas devem ir ao cerne de suas premissa, ou seja, consequentemente e imediatamente empregar-se à desconstrução do Mesmo nas relações humanas. Fora do molde do binário, o humano se apresenta em toda sua complexidade: as definições das categorias “mulher” / “homem” se encontram assim transformadas.
Como se pode afirmar a perenidade do binário hierárquico senão fazendo apelo à “natureza”, instaurada e definida por um deus quimérico, mas construída e afirmada por seus acólitos” As igrejas se apressam de implantar uma noção fixa e universa do feminino e do masculino para melhor instaurar o patriarcado nas origines do humano e desde a noite dos tempos.

A história – esta narrativa que resume em poucas palavras todas as infinitas facetas do humano tenta igualmente construir um mundo homogêneo, regido por leis “naturais” cuja ordem se baseia sobre a superioridade do macho e a fragilidade / submissão das fêmeas. E o discurso social, em todos seus ramos e seus meandros, não cessa de repetir a mesma coisa, criando e solidificando um imaginário fictício de um binário programado.

Em que medida pode-se crer nas descrições históricas das sociedades, se elas são a reprodução de um imaginário patriarcal? O uso da categoria “gênero” de maneira acrítica, reforça a dominação patriarcal. Os homens estupradores, as mulheres que só sabem gritar, sem se defender, são imagens ancoradas e pretensamente universais; entretanto, uma vez descontruído o “natural”, outras figurações aparecem.

Foucault afirmava a construção do sexo e da sexualidade enquanto motor da vida e da sociedade além do natural. Isto interina a plasticidade do social, que pode se organizar sobre outros valores que não sejam o sexo e a procriação, a dominação dos homens sobre as mulheres, em primeiro lugar. Por que as Amazonas se tornaram seres míticos? A imagem de guerreiras independentes autônomas seria muito prejudicial ao patriarcado. É assim que a história as exclui, como personagens reais e atuantes.
Com efeito, a história derrama sobre o passado os esquemas violencia / dominaçao/ força- fragilidade, submissão, assujeitamento, cujos polos são o masculino e o feminino. Entretanto, se buscamos nas dobras dos discursos, se valorizamos a produção imagética, os testemunhos, as histórias de vida das mulheres, todo um outro mundo se desenha. Um olhar disposto a ver as configuração sócias fora dos moldes do “gênero” pode abrir as portas a uma humanidade outra, a uma história do possível.
Sempre, jamais, são palavras que deveriam ser banidas de todo vocabulário feministas, já que fora do “natural” não há nenhuma possibilidade de haver as mesmas figurações sociais por toda parte e em todos os tempos.

As mulhres de aventura quebram e quebraram os moldes do binário incontornável, não somente por ser parte integrante de todas as atividades sociais, mas também por mostrar uma audácia e uma coragem insuspeitadas nos discursos patriarcais. Em suas épocas, estas mulheres de aventura despertaram o respeito e a admiração de seus contemporâneos.

Não por ser diferentes das outras mulheres, mas por ter tido a oportunidade de publicar suas aventuras e torna-las conhecidas..

Como Isabella Bird.

 

 

Nota biográfica:

tania navarro swain professora da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre .Na Université du Québec à Montréal, (UQAM), foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Criou, na Universidade de Brasília, o primeiro curso de Estudos Feministas no Brasil, na graduação e na pós-graduação,em níveis de Doutorado e Mestradol, iniciado em 2002. Publicou, pela Brasiliense, “O que é lesbianismo”, 2000 , organizou um número especial “Feminismos: teorias e perspectivas” da revista Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente os livros “História no Plural” e "Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas"  publicado em 2005 pela editora das Mulheres além de "A construção dos corpos, em2008. Tem dezenas de publicações em revistas nacionais e internacionais, bem como capítulos de livros. ( ver site www.tanianavarroswain.com.br) É editora da revista digital Labrys, estudos feministas".

Notas:

1Voir les dossiers “ ces femmes d´aventure” sur les numéros précédents de Labrys

2En anglais: A Lady's Life in the Rocky Mountains

3[1]Voir carte des périples d´Isabella aux États Unis et en Europe: https://www.google.com/maps/d/viewer?mid=zBAoLRVq7hb0.kjfgFxKeUr8c&msa=0&ll=45.828799,2.8125&spn=137.084784,13.710938

4. Plusieurs adresses:https://ebooks.adelaide.edu.au/b/bird/isabella/; http://onlinebooks.library.upenn.edu/webbin/book/search?author=bird2C+isabella&amode=words&title=&tmode=words;  https://librivox.org/author/1059?primary_key=1059&search_category=author&search_page=1&search_form=get_results 

5.voir The Life of Isabella Bird". The Spectator (London): 6. 26 January 1907. Et également "Mrs Bishop". The Times. Obituaries (London, England) (37521): 4. 10 October 1904.

6The Hawain Archipelago, publié em 1875

 

labrys, études féministes/ estudos feministas
julho/dezembro 2015 - juillet/décembre