Beryl Clutterbuck Markham – uma mulher livre tania navarro swain
Resumo Beryl Clutterbuck Markham é uma destas mulheres que desprezam as normas e constroem seu destino. Treinadora de cavalos de corrida Beryl não hesita em aceitar os desafios, entre os quais a travessia do Atlântico, pilotando in solo seu próprio avião, quando a aviação ainda era balbuciante.. Palavras-chave: aventura, mulher, avião, cavalos
Uma mulher livre. Livre de seus movimentos, de seus pensamentos, de suas escolhas, Beryl Clutterbuck foi a primeira pessoa a atravessar o Atlântico a partir da Inglaterra em um voo solo do leste para o oeste, a rota mais perigoso e difícil, pois era preciso afrontar os ventos contrários. Mulher piloto, treinadora de cavalos, adorava os desafios: suas missões como piloto na África – sanitárias, de salvamento, transporte de mercadorias e alimentos, etc., levaram-na a atravessar de um lado para outro um território selvagem, repleto de animais, cores, perigos e... caçadores. Do Quênia à Inglaterra faz uma longa travessia do deserto, em seu próprio avião, sobre extensões desmesuradas, de horizontes ilimitados. Como tantas outras mulheres, sua vida mostra claramente que o feminino – com as impostas particularidades tais como fraqueza, timidez, inação, covardia, irracionalidade – não é senão uma insidiosa construção social, apesar de sua pretensão de veracidade. As práticas discursivas – este conjunto composto pelo imaginário, discursos, verdades, crenças, leis, normas, estereótipos, ciência ( Foucault, 1986) – criam e estabelecem o que deve ser o feminino e o masculino. Com efeito, apenas a crença, religiosa ou ideológica, pode fundar a ideia de uma “natureza” como determinante dos papéis sociais. Não é possível negar a historicidade da história, sem aderir a doutrinas totalitárias e arbitrárias, cuja enunciação da verdade sobre as coisas, os fatos, o humano, as criam ao mesmo tempo em que as divulgam. No caso das desigualdades baseadas no biológico, é o sistema patriarcal que faz desaparecer a diversidade das relações humanas, na embriaguez de sustentar seu poder de dominar e submeter as mulheres e a natureza, da qual aquelas seriam a metáfora. As « verdades » e seu corolário normativo definem os locais de fala e de autoridade societal. É assim que a “natureza” do feminino torna-se sua definição designando-lhe um destino biológico feito de procriação, servidão e submissão. Resta-nos assim as narrativas empobrecidas que repetem sempre o Mesmo, a eterna dominação do masculino,“criado à imagem de um divino que transborda em violência, em discriminação, em brutalidade ideológica e material. Todavia, subtraídos os silêncios e parênteses dos discursos patriarcais, o material e o simbólico da vida humana é histórico e instituído, logo, flexível. Se nada é imutável, todo agenciamento social é possível. E isto é princípio teóricos geral, que rege a aproximação analítica das formações sociais, em uma perspectiva feminista: se o concreto da ideologia patriarcal for destruído, é perfeitamente possível pensar outras formas de agenciamento social que não sejam fundadas sobre o biológico ou o “natural”. Sociedades onde os seres humanos não seriam definidos por seus corpos e que foram apagadas da história É o que chamo “história do possível”. Em consequência, as mulheres que subvertem os papéis de gênero nas sociedades patriarcais colocam à história e às ciências sociais em geral, não somente a questão da instituição política da “natureza dos sexos”, mas também a da incontornável maleabilidade do social, marcada pela temporalidade. A vida das mulheres de aventura, entre as quais Beryl, mostra que as normas não são impermeáveis nem onipotentes, nem universais. São constantemente quebradas, escamoteadas, desprezadas, negadas pelas mulheres, quando o apelo da liberdade e da aventura brilha no horizonte. É assim que avida das mulheres de aventura mostra que mesmo nas sociedades patriarcais, onde a lei e o costume podiam e podem ainda acorrentar e atormentar o feminino, a norma não é tão poderosa como pensamos: a presença e a atividade das mulheres – negada já que ficou escondida – era e é inegável, sobretudo quando se descobre sua busca incessante de liberdade. A história patriarcal quer impor a ideia que um século ou uma região são blocos homogêneos que reprimem ou liberam os costumes ou as normas. A Belle Èpoque, fim do século XIX e início do século XX, é o exemplo mesmo das fissuras que permeiam a arquitetura do social: apesar das invectivas e injúrias, de Lutero, da Igreja católica, de Nietzche, de Hegel a Proudhon, e muitos outros “famosos” filósofos e cientistas, apesar das leis misóginas em muitos países europeus, as mulheres fizeram parte integrante desta vaga profunda, cultural, científica e técnica que abalou a Europa. Houve as « garçonnes » que desafiaram as normas e os preconceitos contra as mulheres, as artistas, escritoras, pintoras, cientistas tal como Marie Curie, Djuna Barnes, Nathalie Barney, Collette, Amelia Earhart, Alexandra David Neal, Berthe Morisot, Camille Claudel, Maria Moura, Maria Quitéria de Jesus, Sor Joana de la Cruz, Hildegarde de Bingen, para citar apenas algumas, um enorme contingente de mulheres que não hesitavam a desafiar os limites atribuídos e impostos ao feminino. Houve igualmente aquelas das quais não se conhece os nomes e as obras, que caíram no anonimato pois seus gestos e feitos foram apagados, seus nomes esquecidos pela triagem patriarcal. De fato, a imposição discursiva de uma imagem tecida em torno do corpo, do sexo, da gravidez, da domesticidade, fez um trabalho excepcional de aniquilamento do feminino na história. Assim, forçadas à imanência de sua “natureza”, as mulheres perdem sua subjetividade: sua diversidade se reduz ao singular, “a mulher”. Desta forma, as mulheres que ousavam sair dos moldes eram criticadas, denegridas, caluniadas e raramente tinham sponsors para seus projetos de aventura ou científicos. “Why else would women want to wander about the world, writing of her experiences? » exclamavam o homens. (Hannon, 2007:6) Esta atitude, porém, não era suficiente para detê-las. Sharon Hannon assim se exprime : « By the first decade of the twentieth century, women were breaking mountain climbing records in Bolivia and Kashmir, cycling across India, traveling by camel through the Middle East, yak through Asia, and mule pack through the Andes; and collecting anthropological information about women and children they met. They were photographing the wonders they saw and changing the way societies looked at women and the world.” (Idem) Tendo em vista a permeabilidade do imaginário social, os livros que escreviam as mulheres de aventura eram muito requisitados: os editores começaram, pois a se interessar cada vez mais às narrativas de viagem das mulheres. Assim os direitos autorais permitiram a muitas mulheres financiar novas explorações como por exemplo, Ella Maillart e a própria Beryl. Entretanto, como de costume, os homens formavam clãs e construíam barreiras às aventuras das mulheres, par manterem seu controle. Desta forma, o Explorers Club, fundado em Nova Iorque em 1904, excluiu as mulheres de admissão até 1980!! Em resposta a esta afronta, explica Sharon Hannon (2007:22), Marguerite Harrison, Blair Niles, Gertrude Shelby e Gertrude Emerson criaram em 1925 em Nova Iorque, a Society of Women Geographers (SWG). Em 1955 a SWG contava com mais de 200 membros de vários países que logo chegaram a mais de mil, entre as quais Margareth Mead, Amelia Earhart. Harriet Adams, dentre as mais conhecidas em suas épocas. Harriet Adams foi sua primeira presidente e seu desejo era que a SWG se tornasse um: « [...] world force to help young scientists understudy older ones, and that it may become a great international link between thinking, outstanding women of all nations.” (idem :24) Beryl Beryl Clutterbuck Markham fez parte da SWG, mulher de aventura completa. Não se pode chama-la feminista para não cair no anacronismo mas sua vida foi um exemplo de feminismo, na medida em que sua presença mudou as mentalidade, os costumes, a ideia mesmo do que seria o feminino. Grande, loura, bela, ativa, ela agia, trabalhava, amava, desenvolvia suas potencialidades, seguia seus desejos “como um homem”, o que significa de fato, livremente. Todos os preconceitos caiam em pedaços diante de sua ação. Pois, com efeito, há feministas que falam de feminismo e outras que o vivem. Mas Beryl não se deixava enganar: sentia bem a diferença que lhe queriam impor quando participava de atividades de “domínio exclusivo” dos homens, como por exemplo, as corridas de cavalo: « J´entraîne des chevaux. J´ai déjà obtenu ma licence.[...] Six semaines passées aux courses de Nairobi. [...] Les gagnants. Les perdants. L´argent qui change de mains. Les entraîneurs costauds, les entraîneurs malingres, expliquent comment les choses auraient pu tourner « si seulement » Rien que des hommes. Tous plus vieux que mes dix-huit ans, tous pleins de leur importance d´hommes, sûrs d´eux, avantageux, parfois désinvoltes. Ils ont le droit de l´être. Ils savent ce qu´ils savent – dont certaines choses que j´ai encore à apprendre, mais à mon avis elles sont rares. » (158) Aliás, ela debochava e ria das interdições feitas às mulheres, apenas por serem mulheres. (267) Porque fazer regulamentos especiais para as mulheres, já que fazem tão bem ou melhor que os homens em todos os domínios? Pergunta ela. ( idem) Analisar as biografias das mulheres é muito ilustrativo da ideologia patriarcal, pois as narrativas são sempre em torno de seus corpos, de seus amores, casamento, filhos. Que importa tais detalhes na biografia de um homem? Para Beryl, sua vida livre lhe valeu a fama de “escandalosa”; As mulheres livres suscitam sempre dúvidas sobre sua moralidade, sempre centradas na sexualidade. Liberdade torna-se portanto, sinônimo de prostituição ou escândalo. O livro autobiográfico de Beryl não levanta estas questões. Ela conta suas lembranças de eventos marcantes, fala de seus amigos sem assinalar relações amorosas e canta, sobretudo, seu amor pela África e sua trajetória de mulher livre. Não menciona outras mulheres, que, entretanto marcaram sua vida, como sua amiga Karen Blixen. Foi sua escolha. Ela menciona, todavia, Lady Delamere cuja fazenda encontrava-se próxima as terra do pai de Beryl e que ocupou um lugar especial em sua vida, até 1913, quando morreu. Nascida em 1902, na Inglaterra, Beryl viveu toda sua vida na África onde sua família se instalara em 1906 para aproveitar a oferta de terras que fez o governo inglês à época, a fim de ocupar a British East Africa, hoje o Quênia.
Sua mãe voltou para a Inglaterra no mesmo ano com seu irmão. Porque? O clima? O país ? a cultura ? O casamento? Não se sabe. Beryl reencontrou sua mãe 17 anos depois. Lady Delamere tornou-se assim seu ponto de apoio. « Elle fut en quelque sorte ma mère adoptive [...] pendant une période de plusieurs années, rares étaient les jours où je n´allais pas rendre visite à ‘Lady D’. à Equateur Ranch. Je savais que je pouvais en toute circonstance compter sur sa compréhension de mes problèmes d´enfant et sur ses conseils. »(86) Sozinha com seu pai com apenas 4 anos na fazenda africana, onde ele montara um haras de cavalos de corrida, instalando também o primeiro moinho do território, a menina foi criada em liberdade, saboreando as cores e odores dos campos e dos cavalos. « Parties de quelques boxes, nos écuries s´étendirent en longs bâtiments et le nombre de nos chevaux pur-sang passa de deux à une douzaine, puis à une centaine, lorsque mon père eut retrouvé son ancienne passion pour les chevaux [...] pour moi ce fut la première et elle ne me quitta jamais. » (84) Sua vida foi assim marcada pela presença dos cavalos, seus mais fiéis amigos, seus parceiros, seu orgulho. Também por algum tempo pilotou profissionalmente, mas sua atividade principal ao longo de sua vida foi o treino de cavalos de corrida. Seu quotidiano era duro: sempre viveu em cabanas rústicas com chão de terra batida: « Je retournais à ma hutte, une hutte toute neuve dont je suis fière, et que mon père a fait construire pour moi en cèdre, avec des vrais bardeaux et non plus du chaume. Pour la première fois j´ai eu une fenêtre vitrée, un sol de planches et un miroir. » (136) À época, ela tinha 15 anos. As entradas e janelas de sua cabana estavam sempre abertas e um belo dia um leopardo entrou e levou seu cachorro, que ela encontrou mais tarde todo machucado, mas vivo, aparentemente vencedor da batalha. Seus amigos eram jovens africanos com os quais brincava, mas havia também os guerreiros que a esperavam de madrugada para ir caçar em território selvagem, onde todos os perigos estavam à espreita. Ela quase foi morta por um leão, mais ou menos domesticado –Paddy- por ocasião de um passeio: « Paddy se souleva alors avec un petit soupir et se mit à me contempler avec une sorte de tranquille préméditation[...] Je mentirais si je disais que ses yeux étaient menaçants[...] sa gueule était très belle, et tout à fait propre. Pourtant, il huma l´air [...] et il ne se recoucha pas. »
E tudo se passou em um piscar de olhos ... « Je me rappelai alors les règles à suivre : je ne me mis pas à courir, je marchai très lentement et entonnai un chant de défi.[...] Je passai droit devant Paddy tout en chantant, je vis ses yeux briller à travers l´herbe épaisse et sa queue battre la mesure au rythme de ma chanson.[...] La campagne était sèche, d´un gris-vert, le soleil pesant, le sol chaud sous mes pieds nus. Il n´y avait ni bruit ni vent. Paddy ne fit pas de bruit non plus en courant après moi.[...] je me rappelle nettement : un cri étouffé, un choc qui me projeta à terre [...] et sentis les dents de Paddy se refermer sur un de mes mollets[...] » (76) Felizmente ela não estava sozinha e ela saiu indene deste abraço de leão. Um dos empregados foi explicar a seu pai que ela tinha sido “moderadamente devorada por um leão. (79) Beryl observa que : « Je crois que je ne retrouverai un bruit aussi effroyable que le rugissement de Paddy dans mes oreilles que le jour où les portes de l´enfer sortiront de leurs gonds[...] C´était un rugissement immense, qui m´engloutissait avec le reste du monde. » (77) Os perigos faziam parte do quotidiano e Beryl não imaginava outro lugar onde pudesse viver, a não ser ali, na África com seus riscos e encantos. Seu livro,” Para o oeste com a noite” detalha sua paixão pelos lugares, odores, paisagens africanas. Inicia com um voo de transporte de remédios e busca de um outro piloto desaparecido na planície do Serengeti, que estende do sul ao norte, a partir do lago Nyassa, em Tanganika, até a fronteira meridional da então colônia queniana. (46)
Suas descrições das paisagens são vivazes : « Ces espaces inhabités se déroulent à l´infini mais ils grouillent de vie comme les eaux d´une mer tropicale. Elle (la colonie)est sillonnée par les pistes des élans, des gnous et des gazelles de Thomson, et des milliers de zèbres hantent ses replis et ses vallées. [...] Il n´y a pas de route. Il n´y a ni villages, ni villes, ni télégraphe. Il n´y a rien, aussi loin qu´on puisse voir, en se promenant à pied ou à cheval, rien que de l´herbe, des rochers, de rares arbres, et les animaux qui peuplent la plaine. » (46)
E ainda: « Le troupeau en mouvement ressemblait à un tapis chatoyant aux tons bleu-gris, gris et rouge sombre. [...] il portait le sceau de la liberté qui règne dans un pays intact, appartenant encore beaucoup plus à la nature qu à l´homme. La vue de dix milles animaux que le commerce des humains n´a pas domptés, n´a pas marqués de ses symboles, s´apparente à l´escalade d´une montagne qui n´a encore jamais été vaincue, où la découverte d´une forêt dépourvue de routes ou de sentiers, ignorante de la hache. »(51)
Paisagens maravilhosas e densamente povoadas de animais, antes da vinda das hordas de caçadores, assassinos sem escrúpulos que mediam sua virilidade segundo o tamanho do animal abatido. Infelizmente Beryl fez parte desta matança, na medida em que, com seu avião, localizava os rebanhos, sobretudo de elefantes, para a mira dos fuzis de homens cegos por sua “superioridade” sobre o não-humano. Beryl considerava que « Les chasseurs d´éléphants sont peut-être des brutes sans conscience, mais on doit se garder de considérer l´éléphant comme un animal parfaitement pacifique. » (223) Isto, é claro, não justifica sua matança, a caça imbecil de um animal livre. Os elefantes também se defendiam, atacavam e certamente pulverizaram muitos caçadores desavisados. Com toda razão e pertinências. Apesar disto, contra aviões e fuzis, a população de elefantes caiu drasticamente. Segundo a WWF “The African elephant once ranged across most of the African continent from the Mediterranean coast to the southern tip. It is thought there may have been as many as 3-5 million African elephants in the 1930s and 1940s. However, in the wake of intensive hunting for trophies and tusks, elephant numbers fell dramatically throughout the continent from the 1950s. In the 1980s, for example, an estimated 100,000 elephants were being killed per year and up to 80% of herds were lost in some regions. In Kenya, the population plummeted by 85% between 1973 and 1989. » (WWF,web)[1]
Pelo que se pode inferir, Beryl não caçava, ela mesma, a não ser para a alimentação, em companhia de seus amigos africanos das tribos vizinhas à sua fazenda. Nunca por “esporte”. Finalmente, ela não tinha nenhuma necessidade de afirmar uma “virilidade” decadente, como os homens. Em tenra idade Beryl já desafiava as normas: as de sua família, inglesa e as da várias tribos africanas com as quais estava em contato. Suas sucessivas governantas não conseguiram modelá-la segundo as regras do “lady like”: a menina corria de pés descalços, partia com seus amiguinho para caçar, de short, uma lança na mão, uma faca na cintura, seguida de perto por seu cão. « Suivie de Buller, je me glissai dans la petite cour qui séparait ma hutte des cuisines. Ce n´était pas encore vraiment l´aube, mais le ciel s´éveillait avec le soleil et changeait de couleur.[...] Je longeai la hutte de mon père qui jouxtait la mienne [...] s´il me voyait avec ma lance, mon chien et mon couteau de brousse fixé à ma ceinture,[...] il en conclurait, avec raison que Buller et moi nous dirigions vers le singiri nandi le plus proche pour chasse avec les Murani.[...] J´adoptai l´allure mitigée de course et de saut habituelle aux Nandi et aux Masai Murani et approchai du singiri.[...] J´enfonçai dans le sol la hampe de ma lance et attendis debout à côté d´elle, que la porte s´ouvre. » Seus amigos africanos eram meninos de sua idade e os homens a aceitavam como parceira de caça, sem lhe impor as restrições costumeiras às mulheres. Nos minutos que precediam a caça, os homens e Beryl recebiam uma cabaça das mão de uma mulher, Jebbta. Apesar de serem do mesmo sexo, pertenciam a mundos diferentes: “ Onde encontra a força e a audácia para caçar com eles? Perguntava Jebbta.(91) Beryl comenta assim esta observação: « Nous étions du même âge, Jedbbta et moi, mais c´était une Nandi, et si les hommes nandi étaient semblables à la pierre, leurs femmes ressemblaient plutôt à l´herbe des champs. Elles étaient timides et féminines, leurs occupations étaient celles auxquelles les femmes sont destinées, et elles n´allaient pas à la chasse.[...] elle regarda mon short kaki et mes jambes nues et minces. –Ton corps est comme le mien, dit-elle, il est tout pareil, il n´est pas plus fort. » (92) Jabbti constata assim suas semelhanças e as diferenças de atividades e lugar social. Isto seria também uma interrogação? Agrada-me pensar que esta mulher indagava de fato a razão desta desigualdade de tarefas, entre homens e mulheres, baseada no biológico. Uma mulher era do sexo feminino para os homens nandi se pertencesse a seu modo de vida, à sua tribo. Assim, aceitar Beryl como companheira de caça não colocava em perigo seu papel dominante em sua sociedade. Seu sexo não tinha significação nesta atividade. Mesmo se ela carregasse uma lança, símbolo de virilidade. É, portanto a inteligibilidade social que desenha uma mulher enquanto tal, pois a rede de significações de uma cultura define os papéis e a importância social de cada um. Judith Butler escreve: “ Performativity is the discursive mode by which ontological effects are installed. […] I do not deny certain kinds of biological differences. But I always ask under what conditions, under what discursive and institutional conditions, do certain biological differences - and they're not necessary ones, given the anomalous state of bodies in the world - become the salient characteristics of sex. In that sense I'm still in sympathy with the critique of "sex" as a political category offered by Monique Wittig. I still very much believe in the critique of the category of sex and the ways in which it's been constrained by a tacit institution of compulsory reproduction.” (Butler, web) A assimetria e a divisão do humano segundo o sexo,são desta maneira reificados em torno da noção de “natural”. A vida das mulheres de aventura varre este « natural » de um certo feminino. Algumas dentre elas pagaram o tributo da maternidade: casaram-se, tiveram filhos. Mas um dia, elas partiram. Em busca de seus sonhos, para se construir um destino inteiramente novo, em liberdade como Beryl o fez. Na fazenda de seu pai, o trabalho e o prazer de Beryl estavam na doma e treino dos cavalos. Ela tinha o seu, Pégaso, seu companheiro de todos os caminhos, de todas as travessias. Nasceu sob seus cuidados e os laços entre eles só fez se reforçar ao longo do tempo. Quando ela decide partir da fazenda, ela o faz montada em Pégaso. : « Je monte le cheval ailé, le cadeau de mon père, nom Pégase aux yeux sombres et audacieux, à la robe brune et brillante, à la longue crinière qui ondule comme une bannière de soie sur la lance d´un chevalier[...[ Le chemin est abrupte et constamment sinueux, mais les jambes nettes et fermes de Pégase le parcourent avec une facilité méprisante. Si ses ailes sont imaginaires, sa valeur ne l´est pas » » (151)
Beryl deixou a fazenda de seu pai quando a seca arruinou-o. Ele lhe deu a escolha de partir com ele para um recomeço no Peru, ou ficar na África. E ela escolheu as planícies africanas, tendo como única bagagem sua ciência sobre os cavalos. Tinha 17 anos. Conseguiu então uma licença de treinadora, a primeira dada a uma mulher no Quênia e assim iniciou uma carreira que vai durar toda sua vida. Entre 1963 e 1964 treinou 46 cavalos vencedores de diversas corridas no Quênia. Ela tinha 63 anos. (Kruper, 2008 :web) A prosa de Beryl é saborosa, mesmo quando relata os dissabores da seca. « Il y eut un matin où le ciel était aussi lumineux qu´une fenêtre. Il en fut de même le matin suivant, et celui d´après, et tant de matins après celui-là qu´il devint difficile de se rappeler la sensation de la pluie, et la verdeur d´un champ mouillé de vie dans lequel le pied s´enfonce. Tout ce qui poussait s´arrêta dans sa croissance, les feuilles se tordirent, et toutes les créatures tournèrent le dos au soleil. »(146) Partiu então para uma pequena aldeia, sozinha com seu cavalo, sua sela e o que podia levar, quase nada. A partida foi dolorosa: deixa para trás toda uma vida de prazer e liberdade, « [...] quand on quitte un lieu où on a vécu, que l´on a aimé, où tout votre passé est ancré, [...] il faut en partir aussi vite que possible. » (145) Seu pai também partira, seu cachorro, companheiro de todas as aventuras morrera e ela o enterrara com suas próprias mãos. « J´avais deux sacoches de selle, et Pégase. Les sacoches contenaient la couverture du poney, sa brosse, un rogne-pied de maréchal-ferrant, six livres d´avoine concassé et un thermomètre, à titre de précaution contre la fièvre africaine du cheval. Pour moi, les sacoches contenaient un pyjama, un pantalon, une chemise, une brosse à dents et un peigne. Jamais je n´ai possédé si peu de choses, et je ne suis pas sûre qu´il m´en ait jamais fallu davantage. »(149) Beryl vai então em direção ao desconhecido, só, mas está em sua terra, seu território e se as lembranças a acompanham, deixa as desventuras para trás. Apesar de tão poucas posses, ela tinha sua coragem e seus sólidos conhecimentos sobre equitação e trato dos cavalos, que vão lhe permitir ganhar sua vida como treinadora. « Le silence m´entoure. Cette chevauchée, dans la naissance tumultueuse d´une journée en forêt, est silencieuse pour moi. [...] Je réfléchis, je rêve, je me rappelle mille choses, de petites choses sans intérêt dont le souvenir me revient sans raison pour s´évanouir à nouveau.[...] » (152) Começa então a árdua tarefa de ganhar a vida. Camciscan Um dos mais belos capítulos do livro de Beryl é aquele onde ela conta sua relação, do ponto de vista do cavalo, com um garanhão mais ou menos selvagem, isto é, ele vê com seus olhos e descreve os sentimentos do animal. Oriundo da Inglaterra, seu nome era Camciscan.
« Il marchait comme s´il avait été absolument seul, comme un roi détrôné. Il se sentait seul[...] il ne se rappelait pas d´avoir jamais été soigné par une fille avec des cheveux couleur de paille et des jambes trop longues, comme celles d´un poulain.[...] mais la fille était trop familière. Elle entrait dans son box comme s´ils avaient été des vieux amis, et il n´avait pas besoin d´amis. »(124) Com efeito, ela transmite as impressões e os pensamentos do cavalo, como se os sentisse: é uma mise en abîme das sensações partilhadas entre eles. Com toda paciência suportou uma queda brutal, mordidas repetidas, um ataque repentino na baia, sem jamais se contrariar. « Elle lissait son poil avec un chiffon, brossait sa crinière noire et sa queue[...] elle mettait une sorte de connaissance intime de ses besoins, et une autorité possessive à peine dissimulée qu´il ressentait – et n´aimait pas. » (124) Beryl compreendia as cóleras súbitas do grande cavalo puro-sangue, com olhos desdenhosos, incompreensíveis, mas certamente justificados por alguns tipos de tratamento que havia recebido para sua doma. « Parfois, il éprouvait le désir de se rapprocher d´elle, mais la solitude dont il était si fier ne le lui permettait jamais. Au contraire, ce désir se transformait souvent en une colère qu´il trouvait lui-même déraisonnable.[...] Il ne comprenait pas cette colère ; quand elle était passée, il tremblait comme s´il avait senti l´odeur de quelque chose de malfaisant. » (126) Em seu trabalho, Beryl se mesclava ao cavalo, sem ameaças, sem a brutalidade que temos o hábito de ver neste tipo de exercício. Ela via com seus olhos, sentia com seu corpo, tremia com seus tremores; pode-se perceber o grande respeito que tinha pelo indivíduo “cavalo”, o não-humano, dotado de sensações, podendo expressar seus sentimentos: a cólera, o medo, a dor, o bem estar e mesmo a amizade. Um ser senciente. Beryl foi uma anti- especista pioneira. Não é de espantar que ela tenha tido tanto sucesso como treinadora de cavalos. Este capítulo termina com uma descrição de grande beleza « Il restait toujours dans le coin de son box quand elle y travaillait tous les matins.[...] et une fois, tard le soir, alors que l´orage et le vent l´énervaient, elle vint s´allonger dans la litière propre sous sa mangeoire. Il la regarda, tant qu´il fit jour, mais quand la nuit tomba, et quand il fut sûr qu´elle s´était endormie, il se rapprocha, baissa un peu la tête, projeta sur elle un souffle chaud à travers ses naseaux élargis, et la renifla. Elle ne bougea pas, et lui non plus. Pendant un moment, il caressa ses cheveux avec son museau. Puis il leva la tête aussi haut que jamais et resta planté là, avec la fille à ses pieds, pendant toute la durée de l´orage. Cet orage là ne lui parut pas violent. » (130) Piloto A aviação estava ainda balbuciante. Na época de Beryl, os aviões não tinham os recursos de hoje, instrumentos precisos, comunicação constante com a terra. Na África, sobretudo, reinava a experiência. A intuição, a atenção, o olhar e, sobretudo a coragem tinham que muitas vezes substituir os instrumentos. Onde ela voava havia poucas pistas, apenas a savana cujos buracos e saliências podiam ser fatais para a aterrisagem. Beryl apaixonou-se pela aviação e em 1931 obteve sua primeira licença A, o brevê mais simples; em 1932 conseguiu a licença B, mais técnica, que exigia conhecimentos mais profundos em mecânica, navegação, com exames escritos e orais. Ela pode, então, pilotar aviões mais possantes e de longo curso, como por exemplo Avro Avian, o DH Gypsy Moth e o DH Dragon (dois motores, 130 cv e oito lugares) Foi a primeira mulher a se tornar piloto comercial no Quênia. (Kruper, 2008,web) Seu raio de ação não se reduzia ao Quênia ou aos países limítrofes: em 1932 comprou seu próprio avião, (Avro Avian IV , 2 lugares,, 120 cv DH motor Gypsy II) Para uma primeira viagem ela já possuía 127 horas de voo registrados e partiu sozinha de Nairóbi para Londres – 6 000 miles- que realizou em 7 dias. E esta foi apenas a primeira vez, pois fez o mesmo percurso 6 vezes, das quais 4 sozinha. Ela descreve uma tempestade durante um destes voos, entre Cagliari e Cannes : « [...] l´azur de notre ciel se couvrit de nuages amoncelés par un vent violent et notre visibilité fut bouchée par des rideaux de pluie [...] nous n´avions ni radio ni instruments spéciaux pour nous guider vers notre but.[...] Nous nous rapprochions de la mer dans un avion qui marchait en crabe.[...] nous rompions des lances avec toute une série d´ennemis invisibles, dont les coups, même dans l´obscurité, tombaient avec une précision infaillible sur l´avion, qui gémissait à chaque agression. [...] Il ne m´était jamais arrivé de déterminer ma position d´après des données aussi intangibles que des courants d´air opposés, mais c´est pourtant ce que je fis ce jour-là » (292-293-294) Voou como piloto comercial durante três anos no Quênia, com muitos contratos de transporte, desde a distribuição do correio aos serviços hospitalares aéreos, o que lhe garantia o sustento. Antes de sua primeira travessia do Atlântico in solo calculava já ter sobrevoado 440.000 km. (295) Perguntou-se muitas vezes, antes deste voo, « Por que correr tais riscos ? (297) Não tinha necessidade de fazê-lo e disto estava consciente. Mas era um desafio. Como pensar em desistir, uma vez a decisão tomada?
Seus amigos, os Carberry a haviam desafiado e se propuseram a financiar a aventura, com um avião especialmente construído para ela e para esta travessia. Beryl esteve presente, vigiando a construção do avião, um Vega Gulf – The Messsenger, que tinha fuselagem azul e asas prateadas. (299), porém sua autonomia de voo era de 1000 km. Sua viagem seria de 5 800 km, dos quais 3 200 sobre o mar, a maior parte do tempo de noite. Era preciso encontrar uma solução. Ele recorreu a meios artesanais que acrescentavam perigos suplementares à travessia, como os reservatórios de combustível na cabine: « Les réservoirs étaient fixés dans les ailes, dans la partie centrale et dans la cabine elle-même. Dans la cabine, ils formaient un mur autour de mon siège, et chaque réservoir avait son propre robinet. » (299)
( não é o seu, mas um semelhante) Com eles na cabine, ela ficava tão espremida que foi preciso escolher entre colete salva-vidas e roupas quentes. Abandonou o colete, pois cair no mar não foi considerado uma opção. Os reservatórios não tinham indicadores de nível, portanto era preciso deixa-los esvaziar completamente para utilizar outro, abrindo uma torneira; fora advertida que por ocasião da passagem de um a outro poderia haver uma parada do motor. E tinha que esperar que recomeçasse, tudo isto sobre o mar. O que efetivamente aconteceu.. « [...] à onze heures moins vingt-cinq, mon moteur tousse et s´éteint et le Gull reste impuissant au-dessus de la mer. » (306) O reservatório esvaziou-se com muita rapidez em plena tempestade. A reação natural, diz ela, seria de subir, para ficar o mais longe possível do mar, mas a manobra correta era baixar o nariz, descer com o avião e esperar que o motor pegasse, depois de abrir, com muito esforço, a torneira do outro reservatório. Trezentos pés antes das vagas vorazes e ainda nada. De repente, o motor retoma seus espíritos e Beryl faz subir o avião com pressa, sob raios e trovões. Voara 19 horas sem visibilidade (307) Calculava sua rota com um mapa e um compasso.(308) Finalmente, terra. Mas ainda não terminara seu périplo. Sobrevoando a terra, o motor tossiu várias vezes e se apagou definitivamente. Era 5 de setembro de 1936. « La terre vient à ma rencontre à toute vitesse, j´incline l´avion, je tourne et je fais une glissade pour évite les rochers, mes roues touchent et je les sens qui s´enfoncent. Le nez de l´avion pique dans la boue, je suis précipitée en avant et ma tête heurte la vitre de ma cabine, j´entends le verre qui se brise, je sens le sang couler sur mon visage.[...] Vingt et une heures et vingt-cinq minutes. J´ai traversé l´Atlantique. Depuis Abington, en Angleterre, jusqu´à un marécage anonyme, sans escale. » (310) Não foi a primeira MULHER a fazer este trajeto de leste para oeste, como dizem alguns, mas a primeira PESSOA. A linguagem, claro, é o instrumento mais seguro para apagar as mulheres e suas proezas. Soube-se mais tarde que a queda do avião fora devido a um pedaço de gelo que se inseriu na entrada de ar do último reservatório. (313), pois havia ainda suficiente carburante para que ela chegasse a Nova Iorque, seu destino final, onde Beryl foi aclamada por uma multidão ao chegar.
Béryl incarna uma mulher de aventura : intrépida, livre, seguindo seus desejos e criando, pela experiência vivida, sua subjetividade Ele poderia ter tomado o lugar descrito por Rosi Braidotti : “The real life women who undertake the feminist subject position as a part of the social and symbolic construction of what i call female subjectivity are a multiplicity in themselves: split, fractured and constituted across intersecting levels of experience.” (Braidotti, Butler, 2007:44) Como é o destino de todos, um dia ela se foi : tinha 83 anos, e morreu na África, seu amor de sempre, ao qual esteve fiel até o fim.
Bibliographie Beryl Clutterbuck Markham Vers l´Ouest avec la nuit, 1942(2010)Paris :Libella ----------------------------------------------------------------------------------------------------- Sharom, Hannon, M. 2007. Women who dare: Women explorers: Petaluma: Pomegranete Communications Inc. WWF,web http://wwf.panda.org/what_we_do/endangered_species/elephants/african_elephants/ consulté en mai 2013. Butler, Judith, web. http://www.theory.org.uk/but-int1.htm, consulté en mai 2013. Web. Jackie Kruper . 2008. Against Prevailing Winds - The Remarkable Life of Beryl Markham, consulté en mai 2013. Braidotti,Rosi er Butler,Judith . 1997. Feminism by any other name in Elisabeth Weed and Naomi Schor, Feminism meets queer theory, Indiana University Press, Bloomigton/Indiana, p. 31 a 67
[1] Ver a fundação David Shildrick, que protege e cuida dos elefantes feridos, órfãos, perdidos de sua família. Esta fundação preserva a existência dos elefantes, constantemente ameaçada, ainda hoje. É um trabalho maravilhoso. http://www.sheldrickwildlifetrust.org/ |