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APRESENTAÇÃO
A imposição e criação
de sentidos, a
interpretação e instituição
da realidade constituem práticas
discursivas, a linguagem em ação, a poderosa arma que distribui
lugares, designa e nomeia, exclui
e divide, instaura poderes, enfim, classificando o social
de forma binária:
mulheres / homens;
negro /branco;
mau /bom,
sombra /luz,
etc.Que diferença
é esta, afinal,
que aprisiona as mulheres
a seus corpos, a
um destino biológico, a uma condição
inferior no social,
que passa
a ser “condição feminina”?
A diferença
sexual não passa
de uma atribuição de sentido social
a um detalhe
anatômico, o aparelho genital, que toma a parte pelo todo.
Tudo que é repetido,
ensinado, reiterado,afirmado, passa ao domínio
da evidência, da
tradição, dos costumes,
da norma: torna-se “natural”,
envolve e modela os indivíduos
segundo a
expressão dos valores
que circulam naquela sociedade,
naquele tempo. Não perdem,
porém,
seu caráter histórico,
construído,
apesar de serem distribuídos como
“verdades’, religiosas, científicas, “naturais”.
A luta dos feminismos
contemporâneos tem sido, desde o século
passado, expor os mecanismos que
criam e articulam o social em termos de inferior / superior,
o caráter
construído dos agentes
e papéis sociais, os valores
que criam
representações e as recitam incansavelmente, apoiando na
repetição os seus
fundamentos. A educação,
a escola, a universidade
são parte
deste imenso aparelho
regulador, que
constrói corpos, domestica-os,
transformando-os em feminino e masculino,
categorias compostas de atributos e características
hierárquicas, assimétricas: define-se assim,
desde o útero
da mãe, quem
é desejado, quem é
inteligente, quem
decide, quem ordena.
As
práticas discursivas, ou
seja, a atribuição de sentidos
no social, estão , de fato, traçando linhas
de poder e de força,
engendrando representações identitárias,
coerções múltiplas
que (des)orientam as trajetórias
pessoais. As instituições
do ensino, assim,
apropriando-se do discurso social, reforçam este
traçado de poder, definindo caminhos, soletrados
como femininos
ou masculinos.
“Menina não
briga, menino
não chora”,
frases que
amarram gestos, cerceiam emoções, criam personagens
que, para terem
inteligibilidade social, deixam-se
enredar nas tramas
do “natural”.
Diva
do Couto G. Muniz e Marie Jane
Carvalho aqui
discutem as injunções da educação, de um
aprendizado
formal que esconde
todo um
processo de convencimento
e de reiteração do social. A própria
produção do conhecimento
está ancorada em
valores, na medida
em que
faz escolhas
temáticas, nega ou
aceita a interferência do
sujeito na interpretação
ou criação dos
objetos de estudo.
A ausência das análises
e perspectivas feministas
no ensino acadêmico,
a invisibilidade da autoria feminina sob o
prenome abreviado, os programas
de cursos
conjugados no masculino,
apontam para a permanência
do sujeito universal “ homem”.
Entretanto, “O privado
é político”, diziam as feministas
dos anos 1970, desdobrando em
seguida esta
asserção em “ o
pessoal é político”,
como discute Almira Rodrigues.
O caráter subversivo destas enunciações
atravessa a própria
produção do saber, discutindo os pressupostos que fundam a própria
ciência, assentando-a , subversivamente,
na experiência, no
paradoxo de uma singularidade – o feminino- que
se apóia na diversidade – as mulheres.
A própria divisão
dos espaços, público
e privado, é aqui
discutida como uma construção
discursiva que toma
foro de realidade,
eliminando da história as mulheres
enquanto agentes,
sujeitos políticos,
reduzindo-as, ao longo de milhares
de anos, a um
papel “ natural”,
secundário,
passivo, recluso. A História
das Mulheres vem mostrando a falácia
desta prática, na medida
em que
desvela a ação
e a presença das mulheres
em todas as instancias do social: afinal,
o que a história
não diz, desaparece da memória social,
como se nunca
houvesse existido.
Margareth Rago discute aqui
a experiência e a atuação
de mulheres, em
um ativismo
literário que
compõe e expõe práticas de resistência,
de crítica ao social,
às reduções impostas ao feminino de seu
tempo; Maria Bernadete Ramos aponta para a diversidade dos femininos,
para a ambigüidade da atuação de mulheres,
que, ao reivindicar
direitos são
tributárias de suas
condições de produção, de um
certo tipo
de saber discriminatório e
excludente, destilado
pelo discurso
eugênico e positivista, em
seu estudo
de caso. Por
outro lado,
Heloísa Buarque de Holanda nos
traz uma personagem viva
e atuante, independente
e libertária, presa,
porém, das
ambigüidades de seu
tempo, fascinante
e paradoxal Rachel de Queiroz..
De fato, a multiplicidade dos feminismos
e dos movimentos das mulheres
aparece com
clareza neste volume:
não existe um
feminismo, um
feminino, a mulher.
Existe, sim., um ideal-tipo
de feminino, a “ verdadeira mulher”, no singular,
atrelada à sua
essência de mãe
e à sua
carreira de esposa,
imagem que
ronda o horizonte
de todas as mulheres, fincada em
corpos sedutores,
porém maternais;
belos, mas acolhedores;
frágeis, contudo
capazes de trabalhar, cuidar,
velar, reproduzir, produzir. Esta é a inteligibilidade do “ser mulher”,
singularidade que abraça todo o feminino
e ao mesmo tempo
as tolhe ou apaga da cena do político,
em seu
sentido mais
amplo.
Que diferença
é esta, pergunto eu?
Criada, veiculada como
verdade, ligada
à reivindicação de igualdade,
a diferença sexual
é uma criação do
social, um valor
atribuído culturalmente à reprodução
como eixo da articulação do humano
em opostos
binários. Somos todas/ os diferentes em
relação uns aos outros,
em relação
a nós mesmas/ os
em nossa trajetória
de vida; esta
diferença sexuada,
porém, é um
pilar onde se assenta
o exercício do poder,
criando-se a desigualdade política.
O “ destino biológico”, a maternidade
enquanto
essência do feminino
é discutida por Cristina Maria
Teixeira Stevens, nas diversas teorias
que sustentam ou
questionam a reprodução como eixo da experiência das mulheres.
Neste sentido, os
direitos reprodutivos,
a resistência à apropriação social
dos corpos das
mulheres, material
e simbólica, o direito à escolha
da maternidade, os recortes de
gênero necessários
à própria
definição de saúde
/ doença, da experiência
da dor e do sofrimento é uma discussão
levantada por Eleonora Menicucci de Oliveira
e Wilza Vilela , preocupadas com
uma medicina que trata o sujeito universal, desprezando as representações
e realidades de
gênero.
A própria composição
deste volume nos
indica a pluralidade, as diferentes perspectivas
feministas, a
preocupação com
a transformação de um social, que busca o adensamento
das representações fixas e cristalizadas
em relação
ao feminino. Joelma Rodrigues aponta
para a violência simbólica do
discurso sobre a santidade,(entre outros) que,
de fato, mascara e de certa forma justifica o estupro de meninas e suas mortes
como um
certo “destino”,
uma expiação talvez...
pelo simples
fato de existir,
de carregar um feminino desejado.
Se estas meninas morreram resistindo, Rachel Soihet nos desvela mulheres rebeldes,
que não
aceitam e reagem à violência doméstica e social,
nos processos
criminais que analisa; mostra-nos
também a violência
simbólica das imagens em relação aos
feminismos, às feministas,
estas subversivas que só podem ser feias e mal- amadas!
O que tem ficado claro
em termos
de teoria da
ciência, a partir de
meados do século
passado, é que
a realidade é construída pela
interpretação articulada em
valores e representações
sociais, criadoras de uma trama
simbólica, que determina os pressupostos, a
premissa do conhecimento
formal. A linguagem
urde esta trama e naturaliza papéis, como
explicita Marie-France Dépêche, tomando como
exemplo a
tradução , metáfora
da criação do real
e talhada pelas marcas
de gênero. As práticas
discursivas, expressas nas teorizações sobre
a tradução, impõem
sentidos ao ato
de traduzir, sexualizando e hierarquizando
não só o produto (
a tradução), mas
igualmente o processo
( o ato de traduzir).
Nesta ótica, as
resistências das mulheres
e das feministas tradutoras expõem
estes mecanismos e assim
conferem visibilidade à sua atuação na
literatura e no político.
Num
social que é fundado
na definição de
gênero, de forma
binária e excludente,
a organização dos poderes,
a organização das políticas
públicas tende a ignorar esta realidade e torná-la invisível
nas decisões orçamentárias, nas
opções de estratégias de desenvolvimento.
As mulheres constituem o
segmento mais empobrecido,
mais atingido pela
miséria e pela
violência social,
como atestam estudos
de organizações internacionais;
a não ser em
publicações especializadas, este
fato é encoberto
pela articulação
do social no
masculino. Lourdes Bandeira
e Fernanda Bittencourt discutem a aplicação de
políticas generizadas nas táticas
e perspectivas de desenvolvimento
no Brasil, no que denominam
transversalidade de gênero
nas políticas públicas.
Em sua pluralidade, na multiplicação
de estratégias, os
feminismos e os movimentos
das mulheres tem em
comum o desejo
de transformar o mundo,
de modificar relações
sociais desiguais
e hierárquicas, não só em relação a mulheres e homens,
mas em
todos os
mecanismos que engendram
um modelo, um
referente, ao qual
são comparados, marcados, estigmatizados
os outros, seja
em termos de etnia,
classe, sexualidade,
aparência, idade,
etc.
Transformar
não significa inverter
pólos de poder,
nem criar novas dominações.
Transformar é detectar os pontos
de inflexão do poder
e os mecanismos que
ensejam seu exercício;
é eliminar a diferença
simbólica dos sexos, geradora de desigualdade
política, é mostrar o ilusório das construções sociais.
Afinal, tudo
que foi
construído, pode ser modificado.
tania navarro swain
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