O normal e o “abjeto”: a heterossexualidade compulsória e o destino biológico das mulheres.[i]

 

Resumo

Intriga-me pensar em práticas definindo corpos e destinos e formas de pensar; somos, entretanto, como parece, resultado de valores e normas definidoras do ser. É fácil perceber como a noção de diferença é uma arma política. Porque não desmistificá-la? Porque esta submissão aos destinos traçados de antemão, às trilhas que nos escondem o vigor das matas? Os modelos me fatigam e os estereótipos me horripilam. Se as práticas nos forjam, porque não subvertê-las a partir de seu próprio domínio?

 

No princípio era a carne. E a carne tornou-se corpo, no vórtice das relações sociais, com infinitas faces, incontáveis expressões. Em algum momento, em algumas culturas, estes corpos foram divididos: dois se tornaram e esta dualidade passou a marcar espaços, delimitar ações, exigir comportamentos. Deste binário nasceu o destino biológico, construíram-se discursos sobre a natureza, o cérebro, as capacidades, a força em torno de uma parte específica do corpo: o sexo. Corpos sexuados foram assim definidos  em mulheres e homens, criou-se assim a imagem de uma natureza , cujas essências ordenariam os comportamentos e as aptidões. Os corpos foram assim criados em valores sociais, em imagens forjadas que se articulam em práticas, cujo enraizamento é sua própria repetição. Como sublinha Donna Haraway  (Haraway,1991:345), os corpos são apenas “projetos de fronteira” que se materializam de acordo com as práticas e as normas  que nos são impostas ou às quais nos assujeitamos.

Poderiam ter sido a cor dos olhos, a aura, a idade, a sabedoria, os dons artísticos ou manuais. Mas foi o sexo , detalhe anatômico, que instituiu a  forma dos seres e deu-lhes corpos a serem moldados, esculpidos, domesticados e disciplinados em sua expressão sócio-sexual. Os corpos, modelados em feminino e masculino são, portanto, uma invenção social, já que o cerne da questão é a importância dada a este aspecto da materialidade da carne. Por que o sexo, afinal?

Os corpos, porém, e o sexo aparecem como as evidências máximas  dos seres. São considerados dados empiricamente, pré-discursivos, superfícies permeáveis à escrita social, às roupagens culturais. O sexo biológico, nesta ótica,  permanece inalterado ao receber as injunções do gênero. Este é o axioma que sustentam o eixo do sistema sexo/ gênero, no qual o gênero social se apoiaria no sexo biológico., face inteligível do humano.

 Entretanto, neste esquema está implícita a premissa  que conduz esta ordem: a reprodução. Por que razão a procriação seria a vertente única do relacionamento sexual, senão por uma injunção valorativa , alicerçando moral, costume e comportamento aceitável?

A prática heterossexual que Tereza de Lauretis nomeia “Sex Gender System”, seria “[…] um construto sócio -cultural, um aparelho semiótico e um sistema de representações” (Lauretis,1987:3) que confere uma significação à sexualidade em uma rede de valores. Sobre o binário “natural” do sexo biológico eleva-se um edifício de hierarquias e assimetrias, (Delphy,1991:91), um sistema simbólico fundado sobre sua representação, que adquire a evidência da enunciação repetida, da tradição cultivada, de uma memória cuidadosamente elaborada em história. Desta forma, quando os feminismos questionam o “natural” e a “natureza” humana como sendo as bases imutáveis do ser, revelam a multiplicidade do social e as possibilidades infinitas de sentidos atribuídos às práticas, às culturas e aos seres. A própria noção de diferença, neste sentido, é construída historicamente.

A criação de uma diferença biológica e de comportamento é a responsável de uma diferença política , cerne da  desigualdade social , quer se trate de sexo, sexualidade, etnia.  Esta desigualdade instaura  referentes em hierarquias e  valores  desenhando corpos, perfis ideais, cores, raças, estabelecendo exclusões, demarcando espaços, limites de ação e posição, mapeando e classificando o humano.

Só se é diferente, portanto,  face à um referente, a um modelo a ser seguido, do qual se difere e estes modelos de ser são construídos social, histórica e espacialmente..  As diferenças não existem, desta forma por si sós, elas são monumentos sociais arquitetados em uma ampla disposição de poderes, cuja estrutura em rede garante sua solidez.. É assim que o humano, dividido em categorias binárias – feminino e masculino-  criou, na articulação social , a afirmação de sua normalidade na existência dos “ anormais”, os monstros,  os corpos ditos “ imperfeitos” em seu sexo, em sua forma ou em comportamentos fora das sendas definidas pela normatividade sexual. .

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As feministas dos anos 1970 produziram um corpo analítico das relações sociais enfatizando o processo de diferenciação dos sexos (Mathieu, 1991,1ª edição anos 70), ou seja, de criação de diferenças e desigualdades, material eimagétcia. Naquele momento, a análise da apropriação dos corpos, percebidos como femininos, apontava também em direção à denúncia de uma heterossexualidade compulsória,  moldada pelo aprendizado dos comportamentos desde o berço, por uma disciplina instaurada em redes educacionais,  simbólicas – religiosas, em torno do convencimento  das meninas e das mulheres a respeito de  seu destino  biológico.  

 Retomada nos anos 1990, a análise do “sistema sexo /gênero” heterossexual vem indicando, na mesma direção, que os corpos sexuados não são superfícies impregnáveis de cultura; ao contrário, sua pré-existência “natural” e afirmada na prática sexual “normal” é vista como a ilusão criada pela cultura para instaurar a disciplina e a norma.

Assim, para Judith Butler (1990), não existe sexo ou sexualidade fora das relações sociais, portanto é o gênero que define o sexo, é a força do imaginário e das representações sociais que impõe os estereótipos ao anunciar corpos incontornavelmente inseridos na divisão binária dos sexos. Se o sexo biológico existe, o destino biológico reprodutor das mulheres é social. Se a procriação existe, a maternidade é uma injunção do social. Se a sexualidade existe, a reprodução é um de seus aspectos, implantada, porém, como norma ao destacar-se seu aspecto “natural”. A questão aqui seria: é necessário para a perpetuação da espécie, que todas as mulheres procriem?

Adrienne Rich (1981), há mais de trinta anos identificava na coerção à heterossexualidade reprodutora uma das instâncias mais poderosas de apropriação material e simbólica dos corpos , do imaginário e do trabalho das mulheres.Em certos discursos feministas a heterossexualidade não é jamais destacada como instrumento político de assujeitamento das mulheres, pois não questionam o contrato heterossexual, ao se debruçar prioritariamente sobre a maternidade. Este destino sócio-biológico condiciona assim sua identidade e seu lugar no mundo na produção de seres, de mão de obra, de outras mulheres a serem apropriadas em sua sexualidade, no trabalho doméstico não remunerado, no trabalho formal sub valorizado. Ser mulher, de fato, confere a todos os atos e comportamentos o selo do feminino, logo, do inferior, do outro, do subsumido, do dominado por forças superiores. O feminino é diferente, logo desigual.

 Adrienne Rich aponta para a necessidade de ser fazer uma análise política desta heterossexualidade compulsória, apresentada como preferência sexual  e atração inatas que as mulheres sentiriam pelos homens.(1981,m impulso “instintivo e natural”, que ignora toda a  impressionante máquina de domesticação e convencimento social a respeito  do papel e do  destino social. das mulheres. Rich afirma que a heterossexualidade é imposta, exigida,  organizada, veiculada  por todos os meios e  mantida pela força (idem,31) em relações materiais e simbólicas; Colette Guillaumin,(1978) na mesma época faz também uma análise detalhada da apropriação  das mulheres, de seu tempo, seu espaço, de seus corpos e do fruto de seu trabalho a partir desta divisão binária do humano e de sua expressão heterossexual.

Neste sentido, nesta ordem do mundo em que as mulheres asseguram a produção e a reprodução física dos seres humanos, a alternativa do lesbianismo como existência possível de relacionamento   sem a referencia incontornável ao masculino é  apagada, execrada, punida, excluída e estigmatizada. Foram apagados da história e do imaginário as relações entre as mulheres, tanto afetivas quanto eróticas; feministas como Carrol Smith Rosenberg, Geneviève Pastre, Marie Jo Bonnet  e outras preenchem aos poucos estas lacunas na história, enquanto uma intensa produção sobre o lesbianismo é encontrada em publicações  mais ou menos recentes.

Como se manteria a ordem heterossexual se as mulheres percebessem os laços entre exploração/ dominação/ inferiorização e seu  destino biológico procriador ligado ao afetivo e erótico/ sexual? O fantasma do lesbianismo ronda o contrato heterossexual, pois acena com a possibilidade de que as mulheres podem ser perfeitamente indiferentes  aos homens, tirando-lhes o acesso “ natural” à sexualidade, ao afeto, ao cuidado  e ao trabalho  gratuito ou mal remunerado das mulheres como comenta  Adrienne Rich .(1981:27)

Rich questiona o “ natural” da relação heterossexual, já que ela é imposta e mantida pela força e pela persuasão constante; indica algumas formas desta coerção como  a interdição da sexualidade fora das normas, a imposição da sexualidade masculina pela prostituição, mutilação, casamento forçado, estupro, incesto, violência física e mental, sua troca ou venda,  pelo controle do seu trabalho e de seu produto, pela apropriação das crianças, a reclusão , a limitação do movimento e do espaço, a exclusão dos domínios da criatividade e do conhecimento.(1981:22-23)

 Desta forma, a existência lesbiana por si só é um desafio e uma ameaça ao contrato heterossexual e à apropriação social e individual das mulheres, já que anuncia a rejeição de um modo de vida compulsório.

Monique Wittig , também nos anos 70, afirmava que a lesbiana não era uma mulher. A recusa da “ pensée straitgt” , como nomeou o contrato heterossexual, fazia da lesbiana uma subversiva pela sua simples existência: seria uma relação política entre não-mulheres, pois rejeitariam o contrato heterossexual que define o ser mulher , investindo  a vertente possível de uma relação erótico/ afetiva  sem um referente  masculino. .

 Entretanto, existe um leque extenso de formas de ser lesbiana, de ter visibilidade, de afirmar uma resistência às normas, de reivindicar um estilo de vida, uma cultura, o pertencimento a um grupo, o direito à cidadania. Nem todas são definidas pela prática sexual e nesta perspectiva rompem com a coerção à sexualidade, eixo em torno do qual se veicula a própria noção do ser, na atualidade. Criam-se assim alternativas de relacionamento que podem incluir a sexualidade, mas não necessariamente. E isto é uma revolução, na medida em que o dispositivo da sexualidade criou uma nova rede de servidão, a injunção ao sexo, expressão de vida, a “vida sexual”, quase uma entidade paralela à própria existência.

  Em termos de visibilidade  as lesbianas  “femininas” não são identificáveis,  não  causam um impacto no olhar, já que não se distinguem das mulheres heterossexuais. Na produção pornográfica é mesmo comum relações entre mulheres, à espera de um homem, quando então o “verdadeiro” sexo começa.. Talvez causem espanto, na circulação dos boatos: quem diria, tão bonita, tão feminina, que pena! 

As relações ditas butch/ femme ( no caso, uma com aparência masculina e outra feminina) também não subvertem a norma, já que a reafirmam, polarizando de forma binária seu encontro erótico-afetivo. Existe aí uma coerção à norma, estereotipada,  atrelando o desejo sexual de uma butch (aparência masculina) a uma femme ( aparência feminina).Estas últimas , no imaginário social, sempre podem ser recuperadas pelo contrato heterossexual; o lesbianismo , e  neste caso, não romperiam com o “ser mulher” binário, seria apenas um desvio, uma falha possível de ser corrigida. O livro de Radcliff Hall, o Poço da Solidão é disto um clássico exemplo.

Mas o que seria uma butch? Para Cherrie Moraga,(in Inness, 1996:11) ser  butch é não ser mulher, ou seja, aquela que não aceita sua inserção em um esquema binário e hierárquico, que não aceita ser o Outro de um referente modelar. Para De Clarke, “ tornar-se butch é uma escolha política, uma escolha de resistência” ( idem). Ainda nos anos 70 Grace Ti Atkinsons também analisava a lesbiana política, a que subverte o contrato heterossexual, mesmo que não inclua, nesta escolha, sua sexualidade. (Atkinsons,1975)

Se a aparência faz parte do perfil de uma butch, sua maneira de se vestir, seu corte de cabelo, seu comportamento, classificando-a como “masculinizada”,  isto vem apenas desestabilizar o sentido unívoco do masculino A aparência “ masculinizada” de uma butch aponta para o processo performativo da formação dos gêneros, como bem mostra Judith Butler. Aponta como o gênero pode se desvincular do sexo biológico e neste sentido, todos somos fruto de uma manipulação social que nos construiu em corpos sexuados, dotados de características ditas “ biológicas”.

A aparência da butch anuncia que ela não aceita e recusa uma sociabilidade  que exige de um corpo biológico fêmea o comportamento e o desenho da feminilidade”(Inness e Lloyd,1996:18). Que não aceita a coerção, a exploração, a dominação, a violência permitida pelo contrato heterossexual..

 Neste sentido  é uma dupla ameaça: enquanto fêmea escapa ao poder do contrato heterossexual e enquanto butch subverte a idéia de masculinidade pois, como explicitam Inness e Lloyd, “ a masculinidade é um conjunto de signos que conotam o masculino num dado momento cultural e a masculinidade é tão fluida e móvel quanto as definições sociais.” (idem :14) .

Assim, o que seria masculino em um corpo feminino? Não apenas a subversão das normas de gênero, mas igualmente a revolução da ordem heterossexual que exige a dominação das mulheres.

Uma “mulher masculinizada”  pode significar apenas  que ela não adota os paramentos , as condutas, os atavios atribuídos ao feminino, já que a ordem é binária e excludente. Não significa que quer ser um homem ou que pretende assumir as características deste gênero. O sistema de pensamento binário exige que se não for um, tem que ser o outro. Ou então, passa a fazer dos abjetos, dos excluídos, do mundo dos sem rosto, sem sentido, sem lugar, sem presença. Nesta perspectiva, as lesbianas ou butchs não são caricaturas de homens, nem se voltam para as mulheres pela rejeição ou pelo abuso sofridos.  Não desejam tampouco, ser homens, como muitos querem afirmar, pois não conseguem pensar o relacionamento humano senão em termos de feminino / masculino.

A negação social da própria existência das lesbianas e, sobretudo, a rejeição, o preconceito contra as butch, as mulheres que não se assujeitam aos modelos  do feminino, é um sinal positivo de subversão. Quem não incomoda, não existe. Finalmente, os gêneros são tantos quanto as pessoas que os criam. Assim podemos ter o gênero lesbiana, o gênero butch, variáveis do humano, possibilidades da expressão afetiva, da comunicação erótica, da passagem do unívoco para a diversidade, gêneros múltiplos que abalam as estruturas.

O mais subversivo, porém, é a relação butch / butch, pois se  espera que uma lesbiana “masculinizada” seja atraída por uma mulher “feminina”, reproduzindo a bi-polaridade do desejo. Como apontam Innes e Lloyd, muitas análises caem nesta armadilha , não reconhecendo que “ butch pode ser um significante que tem muito pouco a ver com femme ou mesmo com qualquer sexualidade”. ( idem:23) A butch, de fato, é uma personagem política.

 Para estas autoras, a atração butch / butch desconstrói não apenas o imaginário polarizado heterossexual, mas também o faz no próprio âmbito da homossexualidade, em múltiplas transgressões. Explicitam que  dois corpos de fêmeas tendo sexo  violam o mito da “heterossexualidade  natural”, corpos femininos vestidos em roupas masculinas violam as restrições de gênero e estes mesmos corpos tendo uma prática sexual entre si representam uma ameaça explosiva( idem:26) As assimilações à sexualidade entre gays remetem novamente à impossibilidade de ser sem um referente masculino,.

De toda forma, o que interessa é a multiplicação do múltiplo, é a desconstrução das forças da univocidade que engendram campos de diferença, desigualdade, exclusão, campos de concentração dos abjetos, dos impuros, dos fora-da-norma. Os gêneros, face à realidade das práticas, não são apenas dois, são legião, e na pluralidade reside sua força de impacto, sua força de mudança, o ímpeto inovador de modificar o mundo, como querem também os feminismos. Bem por isso, nenhuma análise pode abraçar toda a  materialidade das expressões e práticas humanas. Entretanto, mulheres feministas, lesbianas, butchs e outros gêneros , para além do sexo biológico, estão explodindo limites, abrindo espaços, em esboços do humano que recusam a diferença/ desigualdades para afirmar a diversidade  

Refêrencias

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Mathieu, Nicole-Caude.(1991) L’anatomie Politique, catégorisations et idéologies du sexe.Paris, Côté Femmes.

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nota biográfica

Tania Navarro Swain é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre ; na Université du Québec à Montréal, (UQAM),  foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Ministra um curso de Estudos Feministas na graduação e trabalha na área de concentração com a mesma denominação na pós-graduação. Publicou recentemente um livro pela Brasiliense, “O que é lesbianismo”, 2000 e organizou um número especial “Feminismos: teorias e perspectivas” da revista Textos de História, do Departamento de História da UnB,llançado em 2002. Organizou igualmente um livro “História no Plural”, além de vários capítulos de livros e artigos em revistas nacionais e internacionais.


 

[i] [i] texto apresentado em mesa redonda no II Congresso da Associação Brasileira de Homocultura (ABEH). Tema : Imagem e Diversidade Sexual - Brasília – DF – Brasil , 2004 (www.unb.br/fac/abeh)

 

labrys, estudos feministas, études féministes
agosto / dezembro 2004- août / décembre 2004
número 6